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Diário, colagem e montagem: o amor readymade em O perfeito cozinheiro das almas deste mundo

Diary, Collage and Montage: The Readymade Love in O perfeito cozinheiro das almas deste mundo

Resumo

Este ensaio se propõe a fazer uma leitura de O perfeito cozinheiro das almas deste mundo (1918-1919) na condição de um laboratório do modernismo: escrita coletiva e diarística, colagem e montagem são ingredientes fundamentais desse experimento, cujas páginas exprimem uma dramaturgia da sedução. Por um lado, as condições materiais do diário permitem a aproximação de vestígios do mundo exterior que vão se moldando à plasticidade dos frequentadores e da frequentadora protegidos por pseudônimos. Por outro, esses elementos estabelecem, em parte, a constituição de uma nova sensibilidade na qual o “amor” e o “amar” se tornam um readymade. Sendo significantes flutuantes, eles aderem à dinâmica do humor, da paródia e até mesmo da dimensão lutuosa advinda com a morte da miss Cyclone. Essa leitura do diário da garçonnière segue fundamentalmente pelas materialidades que a edição fac-similar libera ao longo de suas páginas.

Palavras-chave:
diário; Oswald de Andrade; colagem; montagem; paródia

Abstract

This essay aims to read O perfeito cozinheiro das almas deste mundo (1918-1919) as a laboratory of modernism: collective and diaristic writing, collage and montage are fundamental ingredients of this experiment in whose pages a dramaturgy of seduction is expressed. On the one hand, the material conditions of the diary allow for an approximation to traces of the outside world that are being moulded to the plasticity of the regular visitors who are protected by pseudonyms. On the other hand, these elements lead, in part, to the constitution of a new sensibility in which “love” and “loving” become readymade constructs. As floating signifiers, they adhere to the dynamics of humour, parody, and even the struggling dimension that comes with the death of Miss Cyclone. This reading of the diário da garçonnière follows fundamentally through the materialities that the facsimile edition releases throughout its pages.

Keywords:
Diary; Oswald de Andrade; collage; montage; parody

Resumen

Este ensayo propone una lectura de O perfeito cozinheiro das almas deste mundo (1918-1919) como laboratorio del modernismo: escritura colectiva y diarística, collage y el montaje son ingredientes fundamentales de este experimento, cuyas páginas expresan una dramaturgia da seducción. Por un lado, las condiciones materiales del diario permiten la aproximación de vestigios del mundo exterior que se van moldando a la plasticidad de los frecuentadores y de la frecuentadora del lugar protegidos por seudónimos. Por otro lado, estos elementos constituyen, en parte, la integração de una nueva sensibilidad en la que "el amor" y "el amar" se tornan un readymade. Al ser significantes fluctuantes, ellos se adhieren a la dinámica del humor, la parodia e incluso a la dimensión luctuosa que viene con la muerte de Miss Cyclone. Esta lectura del diario de la garçonnière sigue fundamentalmente las materialidades que la edición facsímil publica a lo largo de sus páginas.

Palabras clave:
diario; Oswald de Andrade; collage; montagem; parodia

O ciclo Cyclone: amar aos carimbos, o amor readymade

Estamos em São Paulo em 1918. Oswald de Andrade tinha 28 anos quando alugou uma garçonnière na rua Líbero Badaró, 67, sala 2, no terceiro andar. Mário da Silva Brito escreve que o diário coletivo da garçonnière fora proposto por Pedro Rodrigues de Almeida, um literato raté que terminou seguindo a carreira de delegado de polícia (BRITO, 1972BRITO, Mário da Silva. As metamorfoses de Oswald de Andrade. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1972., p. IX). Sob o pseudônimo João de Barros, ele abre o volume coletivo com um texto manuscrito que data do dia 30 de maio do respectivo ano. Eis um local frequentado por homens que deixavam do lado de fora os seus nomes, codificando seus corpos para encenar algo que não passaria de uma performance da própria masculinidade. No centro dessa performance havia uma jovem, objeto de desejo de todos e que fora seduzida por Oswald de Andrade. Escrito entre 30 de maio e 12 de setembro do mesmo ano, o diário marca o ciclo conhecido por Cyclone, pseudônimo de Dasy, que era amada e admirada por todos os frequentadores. Há algo de teatral nesse jogo que deixará traços materiais no objeto diário.

Por que a forma “diário” representa uma encenação que deveria estar inscrita no anonimato de uma grande cidade? A garçonnière é um espaço íntimo complexo, pois trata-se de um lugar singular de encontros que se davam sobretudo em grandes cidades onde os indivíduos podiam se perder nas massas. O diário, que é o espaço íntimo por excelência destinado mesmo às confissões mais inconfessáveis, tornou-se, por sua vez, o lugar em que essas singularidades se encontravam. E isso, mais que o teatro municipal, no qual a aparição de artistas, musicistas e escritores tinha ares para uma institucionalização que será fotografada apenas em 1924, o espaço da garçonnière permitia uma experimentação dos sujeitos, situando-se ainda como uma cozinha experimental do modernismo. O diário que sai dessa cozinha expõe que as manifestações do modernismo no século XX possui inclinações a uma educação sentimental particular e celibatária. Adquirida em garçonnières, ela se materializa em termos de uma mecânica celibatária, mantendo, no entanto, um rito que talvez se aproxime de uma grande missa à musa. O diário, todavia, incorpora uma materialidade singular na pluralidade de sujeitos-objetos coletados, dispostos e colados, revezando o espaço das páginas com os mais diversos textos colados ou manuscritos.

Essa heterogeneidade marca instantâneos produzidos por cada um dos frequentadores. Cada frase assume uma estilística celibatária cuja primeira aproximação pode ser feita com o artista francês que foi um agente fundamental para a arte moderna nomeadamente no espaço americano: Marcel Duchamp. Mas antes de se aprofundar na comparação com a obra Duchamp, é preciso demarcar o uso do diário. Com 200 páginas numeradas, as frases manuscritas, por vezes rasuradas, compartilham o espaço com caricaturas, recortes de jornal, carimbos (tal como o “Amaral & Co. São Paulo”), manchas de café, bilhetes, cartões de visita, quadrinhos, recibos de hotel, recados telegrafados, cartões postais, enfim, existe nesse diário uma fonte de formas que se observadas retrospectivamente permitem novas combinações de leitura. Uma delas vinda do carimbo Amaral & Co, presente pela primeira vez na página 53 do fac-símile, reaparece na página 109 não apenas diante de uma nova combinação, a saber, “Amaral & Co Araras”, mas numa equação composta por carimbos AMAR. Nesse sentido, amar é um Readymade1 1 Em um primeiro momento, pelo menos para este estudo, é preciso adotar o readymade ao pé da letra. De acordo com Duchamp: “Projetando por um momento porvir (à venir) (tal dia, tal data, tal minuto), ‘de inscrever um readymade’. - O readymade poderá em seguida ser buscado (com todos os prazos). O importante então é este relogismo (horlogisme), esta instanteindade, como um discurso pronunciado pouco importando a ocasião, mas numa determinada hora. Como um tipo de encontro (rendez-vous). - Inscrever naturalmente esta data, hora, minuto, no readymade como informações. Também o lado exemplar do readymade” (DUCHAMP, 1975, p. 49, tradução nossa). Em poucas palavras, endossa-se a observação de Haroldo de Campos na edição fac-similar segundo a qual o diário da garçonnière é um readymade, mas aqui se especifica o uso do tempo verbal infinitivo, “amar”, como um readymade. de Miramar (Figura 1).

Figura 1 -
Amar e Miramar, declinações de Amaral.

“‘Amar’ se tornou a divisa da Miramar.” No entanto, essa divisa tem uma particularidade visual. O carimbo não é utilizado contra a página do diário na integridade de todas as letras. Algumas delas foram suprimidas e, para que a palavra “Amar” apareça, foi necessário fazer uma pressão particular. Reinventar o carimbo não foi apenas uma manobra técnica, mas um modo de contornar a linguagem burocrática que o carimbo representa “Amaral & Co”, para reinventá-la a partir do amor como um verbo não conjugado, a ser contemplado como o mar, que também surge do mesmo carimbo. Nesse pequeno gesto com o carimbo, a firma ou a companhia passa por uma invenção da paisagem e da flora brasileira: “mar” e “araras” criam um hiato onde lá é possível inserir o verbo “amar”. “Que mira o Miramar? Mira amar.” Nessa breve leitura do amar aos carimbos, Miramar nasce de Amaral: “Amaramiramaral & co.” Mas sem estar conjugado, o amor se torna um elétron livre, um significante que pode flutuar e até polinizar todo o campo semântico do diário. Estando junto da precisão duchampiana do readymade, nota-se sobretudo que se trata de recortes de tempo incidido em um determinado objeto. O objeto é praticamente uma testemunha daquele recorte preciso (data, hora, minuto) e que pode ser procurado sem um prazo determinado. Com o diário ocorre algo semelhante. Retornando a ele, lê-se instantâneos com espanto como se houvesse ali circunscrito um oráculo da obra de Oswald de Andrade, sempre oscilando entre o mundo oracular e orecular.2 2 Essa distinção merece atenção no “Manifesto Antropófago”: “Só podemos atender ao mundo oracular”. Benedito Nunes, que estabeleceu as notas para o manifesto, ressalta que “orecular” pode ter sido “uma gralha perpetuada nas sucessivas edições do manifesto” (ANDRADE, 2022, p. 629). Diante de um impasse que está registrado nas obras incompletas, é melhor manter a ambiguidade em que “orecular” faça um apelo, ainda a partir de Nunes, “à tradição oral, à adivinhação e à intuição”.

Sabendo que ainda se deve aprofundar o amor-readymade ou amar-readymade na obra de Oswald de Andrade, fica posto nesse momento a ação performática dos carimbos que encontra ecos estéticos nas práticas de Paulo Bruscky e seu “poema de repetição” (BESSA, 2015BESSA, Sergio. Paulo Bruscky: poesia viva. São Paulo, Cosac Naify, 2015.). Para situar apenas outro breve exemplo, a correspondência tem uma força na poesia de Oswald como numa das seções de Pau-Brasil, de 1924, intitulada “secretário dos amantes”. Os poemas são trechos de cartas e telegramas trocados entre Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, como anotou Gênese Andrade (2021ANDRADE, Oswald de. Obra incompleta. Organizado por Jorge Schwartz. Coleção Archivos: São Paulo: Edusp, 2021., p. 69). E um dos poemas: “Que distância!/ Não choro/ Porque meus olhos ficam feios” (ANDRADE, 2021ANDRADE, Oswald de. Obra incompleta. Organizado por Jorge Schwartz. Coleção Archivos: São Paulo: Edusp, 2021., p. 72). Esse breve desvio mantém o fio argumentativo sobre o diário da garçonnière. Como não se está em um romance ou em um diário linear de um único indivíduo, toda e qualquer unidade narrativa pode ser desviada ou extraviada por um único gesto. A questão que aflora do diário é que a obra de Oswald de Andrade se torna um destino para esse significante flutuante, o amor, o amar, que, com ele, as idas e vindas entram num processo de possibilidades ínfimas e infinitas. A colagem e os significantes (amar/amor3 3 No infinitivo e na sua condição isolada de substantivo ambas as palavras se aproximam de fotografias, de instantâneos que “clicam” e “carimbam” a obra de Oswald de Andrade. ) produzem instantâneos quem vêm de uma realidade exterior àquele espaço íntimo, expondo no jogo dos rendez-vous uma materialidade que é fundamental para o texto coletivo do diário, ao qual é necessário sublinhar que Oswald de Andrade foi um sujeito coletivo.

No entanto, diga-se de passagem, que essas condições materiais não foram controladas ou criadas por um artista, nem mesmo por Miramar, mas fazem parte integrante da escrita única e heterogênea, não-automática, mas que se descobre a partir de um contato tão direto quando o contato do carimbo com a página em branco. Pelo menos essa é uma das origens - e dos destinos - de Miramar, contando com a transformação da matéria do diário da garçonnière nos cento e sessenta e três fragmentos das Memórias sentimentais de João Miramar, de 1924. Embora o romance de Oswald termine no Hotel Miramare, em 1923, situado em Sestri Levante, na extremidade meridional da costa da Ligúria, Miramar já estava na “mira” de Oswald e, vindo de “Amaral”, sua ligação com Tarsila ocorrerá apenas anos depois. As memórias sentimentais de Miramar/Oswald estavam impregnadas do estilo da garçonnière. A frase final do livro inclui um crítico implícito que é telegráfico: “O meu livro lembrou-lhe [ao crítico dr. Pilatos] Virgílio, apenas um pouco mais nervoso no estilo” (ANDRADE, 2021ANDRADE, Oswald de. Obra incompleta. Organizado por Jorge Schwartz. Coleção Archivos: São Paulo: Edusp, 2021., p. 435).

O ciclo cyclone é um turbilhão que não cessa de se remeter a sequências de futuro como é o caso da dimensão memorial. Oswald de Andrade buscou subverter o futuro. Em um breve texto intitulado “O modernismo”, publicado em dezembro de 1954 e reproduzido no primeiro tomo das Obras incompletas, lê-se do próprio Oswald de Andrade: “Na garçonnière da Praça da República começou o Modernismo. Arrastei para lá Mário de Andrade. Ali estiveram Di Cavalcanti, Menotti Del Picchia, Ribeiro Couto e até uma vez o futuro acadêmico Gustavo Barroso” (ANDRADE, 2022ANDRADE, Oswald. Diário Confessional. Organizado por Manuel da Costa Pinto. São Paulo: Companhia das Letras, 2022., p. 741). É por esse relato que se observa um movimento literário “sem esquema, sem passaporte e sem justa definição” (ANDRADE, 2022ANDRADE, Oswald. Diário Confessional. Organizado por Manuel da Costa Pinto. São Paulo: Companhia das Letras, 2022., p. 741). “Ninguém sabia ao certo ser moderno” (ANDRADE, 2022ANDRADE, Oswald. Diário Confessional. Organizado por Manuel da Costa Pinto. São Paulo: Companhia das Letras, 2022., p. 741), escreveu ele, ainda, como se nesse “não saber” estivesse a gênese de explodirá o movimento que em princípio era puro mimetismo das vanguardas europeias, mas que na verdade vinha de uma combustão entre forças e afetos na mudança do século. Oswald de Andrade viveu numa “vertigem itinerante” para se valer da expressão de Nicolau Sevcenko para definir o cotidiano do “homem sem profissão”:

Seu cotidiano se compunha de uma sucessão interminável de visitas às redações de vários jornais e revistas, às livrarias e casas importadoras, aos bancos, agências incorporadoras, escritórios de advocacia, repartições públicas e gabinetes de políticos, restaurantes, bares, hotéis, igrejas, capelas, praças de esportes, casas de apostas, teatros, meetings políticos, serões intelectuais, bailes, exposições, cinemas, chás, cocktails, aos bancos das praças, ao footing do Triângulo, aos clubs da Ponte Grande, ademais de suas incursões no “abismo brumoso das várzeas” (ANDRADE, 2021ANDRADE, Oswald de. Obra incompleta. Organizado por Jorge Schwartz. Coleção Archivos: São Paulo: Edusp, 2021., p. 944).

A última expressão citada por Sevcenko vem de Maria Eugenia Boaventura, que assina a biografia de Oswald de Andrade, O salão e a selva, de 1996. Toda essa vertigem permanece incompleta se não for mencionada a garçonnière de Oswald de Andrade. Os nexos locais e cosmopolitas têm suas terminações nervosas nas mãos de determinadas e de determinados artistas e escritores. Incluir a garçonnière nesses nexos e fluxos implica situá-la numa rotina e em novos hábitos que não deixam de entrar em choque com as sensibilidades emergentes. Mas a questão é que a montagem e a colagem produzem uma memória de futuros possíveis, além de um prazer semântico-visual advindo do diário que tem Dasy e Oswald no polo humorístico-dramático. Utilizar o termo “casal” seria levar a dinâmica para um terreno afetivo da vida burguesa tal como São Paulo estava a se constituir. A obra de Oswald de Andrade demonstra que ele agia no campo da escrita a partir de um polo, de modo que existe a concretização de um estado amoroso-nervoso que se multiplica em Kamiá, Cyclone, Tarsila, Pagu, Alckmin, não são apenas nomes, mas presenças indispensáveis em cada momento da vida de um autor que, sozinho, existiria pela metade. A propósito desse polo Dasy-Oswald, Mário da Silva Brito escreve:

A figura dominante do Perfeito Cozinheiro é Deisi - novo amor de Oswald, misteriosa mulher com que depara ao sair de momentos sentimentais turbulentos, mulher que exerce grande fascínio não só sobre o jovem jornalista mas também sobre todos os que rodeiam e fazem ponto na sua garçonnière. Há uma espécie de secreta paixão coletiva por Deisi, que é amante de Oswald. “Todos declaram que amavam a Cíclone” - escreve ele (BRITO, 1972BRITO, Mário da Silva. As metamorfoses de Oswald de Andrade. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1972., p. X).

Nesse polo há um jogo no qual cada um exerce um papel. O roteiro desse jogo viril não se distancia da fórmula posta em obra por Marcel Duchamp no seguinte título: La mariée mise à nu par ses célibataires, même. O jogo viril na dimensão duchampiana é a formulação mais sutil até então encontrada para desmontar a sobrevida de um motivo épico ou cavalheiresco nos jogos de conquista entre o guerreiro e a dama que geralmente era um motivo cantado por poetas. Uma de suas origens se encontra na Odisseia: Penélope, cercada de pretendentes enquanto Odisseu erra pelos mares do mediterrâneo para regressar depois de anos na guerra de Troia. Sem aprofundar-se no roteiro do épico, volta-se à Duchamp para iluminar um breve comentário sobre o título enigmático, que, se traduzido literalmente, não faz sentido: “a noiva despida pelos seus celibatários, mesmo.” Duchamp inventou enigmas sonoros que só podem ser resolvidos em voz alta. Uma expressão oswaldiana retirada de Os condenados, de 1922, “namoros sonoros” (DUCHAMP, 1975DUCHAMP, Marcel. Duchamp du Signe. Paris: Flammarion, 1975., p. 13) situaria bem a tática do artista francês para O grande vidro. Outra possibilidade para esse roteiro duchampiano seria substituir celibatários por pretendentes para marcar os homens que lhe fazem a corte ou, no caso do diário da garçonnière, dos pretendentes. É na homofonia do advérbio “même” que Duchamp pousa o verbo “m’aime” descoberto em voz alta: “[ela] me ama”. Assim, a solução proposta para o Grande Vidro seria: “a noiva despida pelos seus pretendentes, me ama”. O diário da garçonnière é uma espécie de Grande Vidro, naquilo que ela tem em termos de estrutura de um jogo viril, na transparência da história, cujos corpos cifrados estão postos a nu, descobertos pela revelação desse objeto heterogêneo e erógeno, e pela inseparabilidade da vida-obra em Oswald de Andrade que foi o seu “grande vidro”.

O perfeito cozinheiro das almas deste mundo não é um simples livro de receitas do modernismo. No entanto, a partir dele vários pontos se ramificam: o surgimento de Miramar, o entusiasmo de uma escrita telegráfica para os manifestos, Poesia Pau-Brasil, de 1924, e o Antropofágo, de 1928, além da prosa de Oswald em Memórias sentimentais de João Miramar, de 1924 ou Serafim Ponte Grande, de 1933, como observou Haroldo de Campos na introdução da edição fac-similar. Além disso, não seria um exagero afirmar que a forma-diário foi disseminada ao longo da obra de Oswald de Andrade, sendo que em cada obra a escrita diarística é praticamente inseparável da voz do autor.

Nesse jogo de quem cozinha quem, e quem come quem, está a exposta a expectativa de um desejo ora correspondido ora fugidio à luz de testemunhas visuais e textuais - masculinas. Já agora sob a força do polo Cíclone-Miramar, percebe-se que a participação dos demais mimetizam o desejo desse último, sendo tanto os pretendentes verbi-voco-visuais de Cíclone quanto os celibatários de Miramar. A questão não é, portanto, cartografar os desejos no seu plasma psíquico, mas ler o conjunto inseparável de textos e de imagens nas suas condições materiais: isto é, um desejo-montagem, desejo-colagem, cuja composição elabora um dos objetos únicos da prática coletiva em termos de uma disposição gráfica da Miss Cíclone, das “testemunhas oculares”, segundo a expressão de Marcel Duchamp, e das oscilações vertiginosas de Oswald-Miramar.

Que o diário da garçonière de Oswald seja um Grande Vidro duchampiano, esse seria um ponto que se sustenta apenas no tempo em que a comparação é capaz de fascinar, pois na prática, além da eficácia da correspondência para uma ficção-teórica, as duas obras e projetos se distinguem uma da outra em termos de realização material. Além da materialidade em questão, o Grande Vidro ainda estava sendo gestado - celibatariamente - para vir ao mundo como atesta a data proposta por Duchamp, 1915-1923, enquanto que o diário é de 1918-1919. O próprio fato de compartilhar um tempo presente insere os dois objetos nas palavras de Mário da Silva Brito: “o gosto pelo trocadilho, cultivado abusivamente no diário” [...] “o amor pelas situações insólitas e imprevistas com tons de sátira e humor, tem a mesma fonte” (BRITO, 1972BRITO, Mário da Silva. As metamorfoses de Oswald de Andrade. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1972., p. XII). A fonte de Duchamp seria uma outra, o bidê de porcelana posto em readymade e assinado por R. Mutt em 1917. Dado que o Readymade é um trocadilho visual e um encontro entre um instante e uma temporalidade estendida, poder-se-ia avançar na hipótese do amor no diário da garçonnière sendo um Readymade, situando-o como uma técnica de um jogo viril da relação. Marcel Duchamp e Oswald de Andrade teriam sido aqueles que levaram a mimese da realidade amorosa a um nível paródico e plagiotrópico como pode ser compreendido à luz da imaginação crítica de Haroldo de Campos. No Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, de 1927, o significante flutuante, o amor, finalmente encontra o humor, configurando um dos menores, senão o menor, poemas em língua portuguesa. Ilustrado pelo próprio poeta, a roda de bicicleta facilita um encontro entre readymades, o de Oswald, de 1927, e o de Duchamp, de 1913, no imaginário dos leitores.

A máquina garçonnière e a forma readymade: voz-montagem, vozes-colagem

Retornando ao prefácio da edição fac-similar do diário assinado por Haroldo de Campos que se pode seguir na leitura da máquina garçonnière e a forma readymade. Segundo Haroldo de Campos:

Desmistificada, minada nos resquícios prestigiosos de solenidade que lhe sobravam da “escrita artista”, transposta para um novo contexto, assumida ao revés enquanto possibilidade de paródia (e de autoparódia), essa mesma verve dará nutrimento à sátira mordentemente demolidora dos romances-invenções oswaldianos (CAMPOS, 1987, p. XVI).

Haroldo de Campos menciona a “forma readymade” (CAMPOS, p. XXI), citando-a no começo e no final do seu ensaio, o que é legitimo. No entanto, seria possível adicionar à estrutura da garçonnière uma figura “garçonne” de Marcel Duchamp, La mariée mise à nue par ses célibataires, même (1915-1923). Assim, passa-se da forma readymade para a forma mariée e, da forma mariée para a forma Sélavy (C'est la vie), acrescentado ao que foi observado por Mário da Silva Brito em As metamorfoses de Oswald de Andrade, no que diz respeito a um princípio combinatório de uma crítica comparatista a um romance que praticamente solicitava uma nova técnica (BRITO, 1972BRITO, Mário da Silva. As metamorfoses de Oswald de Andrade. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1972., p. 21) sentimental.

A partir de Haroldo de Campos temos as linhas críticas do diário da garçonière organizadas entre Duchamp e Benjamin. O primeiro surge via readymade, e o segundo vem a partir dos traços memorialísticos da Rua de mão única (Einbahnstrasse), cuja memória está voltada não para o passado, mas para o futuro. Haroldo de Campos se serve do comentário de Peter Szondi para quem “o tempo perdido de Benjamin não é o passado, mas o futuro” (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987., p. XXI). Em suma, entre Duchamp e Benjamin, Haroldo de Campos aborda a vida efêmera da Miss Cyclone no contexto histórico, aproximando Oswald de Andrade de autores como José de Alencar e Machado de Assis. Estabelecendo genealogias para essa infância do modernismo, Haroldo de Campos menciona duas obras de Alencar, Iracema e Luciola, com passagem por Machado de Assis, nomeadamente, Capitu de Dom Casmurro. Essa constelação não se sustenta apenas pela memória naquilo que ela dispõe em termos de testemunho e de anamnese, mas pela dimensão da colagem e da montagem, recursos que Haroldo de Campos dominava com precisão.

É possível encontrar pontos específicos desse uso da memória na escrita de Oswald de Andrade e, para isso, investe-se em dois momentos. O primeiro deles no próprio Diário confessional e o segundo em um poema do próprio autor. Na sua dimensão mais material, a voz passa pelas distintas investidas e recursos da memória. Publicado apenas em 2022, o Diário confessional de Oswald de Andrade apresenta um detalhe que está presente em toda a obra do autor. A propósito da escrita de suas memórias, após ouvir os comentários de Maria Antonieta Alckmin que fez a leitura das primeiras páginas, ele escreve “que seja a literatura oral a forma deste livro, onde a confidência, a confissão e a própria história da confidência e da confissão se reúnam num único compromisso - o da autenticidade. E com isso o da responsabilidade assumida e o da posição confessional” (ANDRADE, 2022ANDRADE, Oswald. Diário Confessional. Organizado por Manuel da Costa Pinto. São Paulo: Companhia das Letras, 2022., p. 36). No sentido mais amplo, a afirmação não deixa de ser coerente com toda a obra e vida de Oswald de Andrade, fazendo do amalgama de ambos o mais fiel registro de autenticidade. No mais restrito, Oswald é o autor que, por excelência se vale da voz, em tudo aquilo que ela dispõe de uma filosofia da expressão vocal, para se valer de uma expressão de Adriana Cavarero.

Oswald de Andrade dispunha de um “flautismo irresistível e bastante perigoso” (ANDRADE, 2022ANDRADE, Oswald. Diário Confessional. Organizado por Manuel da Costa Pinto. São Paulo: Companhia das Letras, 2022., p. 83), para se apoiar no que Cavarero (2003CAVARERO, Adriana. A più voci. Filosofia dell’espressione vocale. Roma: Feltrinelli, 2003.) situa nos artifícios da voz elementos que, semanticamente unidos, se aproximam do universo de Oswald de Andrade: encanto, infância e animalidade. Esses termos poderiam ser variantes da antropofagia e a voz, a partir do sufixo de origem grega “fago” que exprime a ideia de “que come” ou “se alimenta”. A voz é um elo entre os diversos elementos de montagem e colagem. No poema “Cântico dos cânticos para flauta e violão”, dedicado à Alckmin, Oswald escreve um “dote”: “Te ensinarei/ o segredo onomatopaico do mundo” (ANDRADE, 2021ANDRADE, Oswald de. Obra incompleta. Organizado por Jorge Schwartz. Coleção Archivos: São Paulo: Edusp, 2021., p. 188). Os textos, ensaios e manifestos dispõem uma estrutura mimética da voz que é capaz de por o mundo em movimento a partir de um segredo onomatopaico. Mais que uma literatura oral, Oswald de Andrade desenvolveu uma literatura cuja expressão advém de uma filosofia vocal. Assim, a diário coletivo da garçonnière não deixa de ser uma espécie de coro de vozes que estavam mais ou menos de acordo com a voz de Oswald. Os trocadilhos colecionados no diário são parte integrante de um segredo onomatopaico do mundo que começa a se abrir, pelo menos para os frequentadores da garçonnière e também para seus leitores. Ainda nas primeiras páginas lê-se a “primeira receita” que, entre rasuras, lê-se: “Nos casos de amor, á Dulcinéa prefira-se a Dulce núa” (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987., p. 2).

A voz, na medida em que “cola” e “monta” breves textos, estilhaça a aura semântica do ritmo prosaico que está, por exemplo, em um João de Barros, que abre e media pontos do diário. Kenneth David Jackson aproximou o “objet trouvé” das experiências surrealistas não sem antes observar que se trata de um “testemunho epifânico” (JACKSON, 2013JACKSON, Kenneth David. Oswald de Andrade e André Breton: paixões loucas, loucos textos. Remate de Males, Campinas, v. 33, n. 1-2, p. 149-168, jan./dez. 2013., p. 151). O termo não poderia ser mais preciso para delinear essa experiência única na qual as vozes manuscritas são fundamentais para as colagens, caricaturas, bilhetes, etc. O “etc.” entra literalmente numa categoria heterodoxa como a da colagem, pois, somada ao “testemunho epifânico”, mostra que se torna um elemento indispensável para esses tempos aglomerados. Há no experimento do diário uma memória epifânica que não cessa de produzir curtos-circuitos na corrente histórica da semana de arte moderna, que ocorrerá apenas em 1922, mas que, sob a ótica do diário, apenas acomodará e encontrará instituições para práticas e ethos que já encontravam formas sígnicas para circular no Brasil.

Ainda pelo fio da voz, passa-se do testemunho à memória pelo fato que existe, sobretudo na segunda, uma composição de tempos que não entram em ação de modo sincronizado. Sempre se pode retirar um fio de futuro do diário que, para utilizar outra expressão de David Jackson, era “um repositório particular de escritas ou grafias espontâneas de todos que passavam pelo ateliê” (JACKSON, 2013JACKSON, Kenneth David. Oswald de Andrade e André Breton: paixões loucas, loucos textos. Remate de Males, Campinas, v. 33, n. 1-2, p. 149-168, jan./dez. 2013., p. 151). Dado que Jackson aproximou o diário das experiências surrealistas, caberia aproximá-lo de Marcel Duchamp e de Rrose Sélavy com seus “Lits et ratures” (DUCHAMP, 1975DUCHAMP, Marcel. Duchamp du Signe. Paris: Flammarion, 1975., p. 157). É Raúl Antelo que escreveu a propósito dessa personagem transvestida de Duchamp que “Rrose Sélavy (el otro que tiene fuego en el culo, el azar que elige los problemas) nos persuade entonces que la subjetividad organiza la historia del arte occidental, sostenida, sin embargo, por las máscaras imaginarias de los fundamentos y de los fines” (ANTELO, 2006ANTELO, Raúl. Maria con Marcel. Buenos Aires: Siglo XXI, 2006., p. 69). Operando uma leitura a partir de uma ficção crítica, tal ponto sublinhado por Antelo, expõe que não apenas a história da arte, mas as histórias da literatura se valem de tais máscaras teleológicas para situar não os instantes de invenção, mas os momentos em que esses instantes se institucionalizam. Os efeitos da voz em Duchamp-Sélavy, Miramar-Cyclone, permite uma leitura das frases que são sintomas que marcarão a passagem do humor ao pathos: “O Miramar está doente de cyclonite, mais nada” (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987., p. 83).

A partir da voz, dois pontos se organizam para a leitura do diário da garçonnière: se o manuscrito que existe a partir de várias mãos pode ser entendido como uma colagem de vozes, a montagem teria sobretudo a voz de Oswald que se valerá de tais procedimentos para a sua obra, isto é, essas marcas de espontaneidade, de diálogos breves mantendo o ritmo de desenvolvido a partir de poemas-piada e de prosas dramáticas. Não a toa que telefonema será o título de suas colunas de jornal, primeiro no Diário popular, depois, no Correio da manhã, onde ele fará colagens de vozes como “A mulher automática”, publicada em 24/11/1949. No final desse “telefonema”, a mulher defende a própria voz: “[...] O que a mulher tem de melhor é a voz! - gritou desaparecendo numa porta volante. - A voz e a saliva! (ANDRADE, 1976ANDRADE, Oswald. Telefonema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. , p. 160). Mas é prosseguindo pela voz e pela colagem que se pode agrupar a formulações tais quais “namoros sonoros” (Os condenados, 1922, p. 13) e um sentimentalismo experimental que será confirmado no já citado Memórias sentimentais de João Miramar, de 1924. Cento e sessenta e três fragmentos foram um romance puzzle que tem alimenta uma memória epifânica. Rosalind Krauss nos Papéis de Picasso faz leituras focalizadas nas colagens do artista franco-espanhol. No entanto, há uma passagem do livro na qual ela aborda a procedência fragmentária dos elementos da colagem, eles vêm “do mundo de objetos reais” (KRAUSS, 1999KRAUSS, Rosalind. Picasso’s papers. Massachusetts: MIT, 1999., p. 169). No dilentantismo da garçonière, no entanto, nenhum milagre foi realizado.

O que ressoava cômico no diário de 1918 torna-se doloroso em 1919. O diário é encerrado com uma nota de falecimento que data de 25 de agosto de 1919. Maria de Lourdes Castro de Andrade, a Dasy, cuja letra Y habitava o significante “cyclone”, faleceu com 19 anos de idade. Ela se casou com Oswald apenas uma semana antes da sua morte para, literalmente, ter onde cair morta. Infelizmente o amor flutuou em direção à morte. “De uma chronica do seculo 21: “O primeiro encontro, na tarde manhã lavada e azul, foi junto à estátua de Miramarmore” (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987., p. 146). Mas o que houve foi o inverso, pois Oswald de Andrade encomendara a Victor Brecheret uma escultura de Dasy. Essa imagem talvez suavize a dor da leitura da carta “Ceu de cravinhos”. Cyclone escreve que está mal de saúde. “Quando virás visitar a Miss?”, pergunta. E ainda sem poupar a pouca energia que lhe restava compartilha suas leituras que, mesmo no momento mais febril, releu partes do Dom Casmurro, revisitou Beatriz e as flores do mal. Ela pede notícias dos celibatários da garçonnière que na realidade foram as testemunhas oculares do amor-ready made entre Miramar e Cyclone. Ainda nessa carta ela sugere que a garçonnière seja desfeita, afinal, em termos duchampianos, sem a Mariée não existe o grande vidro. Com esse pedido, ela propõe uma partilha: “A phonola é minha”. “Lego-te o bidet, mas manda-me o espelho”. Dentre a redistribuição dos objetos, Dasy pede suas almofadas verdes, o retrato de Oswald e também os “Di”, Malfatti” (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987., p. 201). Na fala final, os travessões indicam uma voz: “- Que queres, querido, são coisas!!!” A nota de falecimento não deixa de conter um homem celibatário-viúvo. Um viúvo fresco que se despede: “A Dasy, o teu pobre Oswald”.

O amor e seus namoros sonoros

A piada, o humor, a paródia são formas de amor ao detalhe. Os “namoros sonoros” ativam o amor-readymade imprimindo um entusiasmo no texto e nas colagens, dando literalmente voz e corpo ao diário. A fabricação dos modernismos é um conjunto de objetos dentro dos quais um joga luz no outro. É uma produção de sensibilidades que atua simultaneamente no campo simbólico e material. Cada detalhe é capaz de produzir um outro caminho de leitura. Por um lado, afirmar que a vida cotidiana numa cidade como São Paulo no final da primeira década do século XX era matéria que em si consistia numa montagem de vidas coletivas e individuais, implica em aceitar que o diário da garçonnière de Oswald de Andrade entra em acordo no que diz respeito aos princípios miméticos de uma metrópole em êxtase. Nicolau Sevcenko inicia Orfeu extático na metrópole nos primeiros dias de 1919. Ele situa os três Gês que marcaram o ano precedente: a gripe espanhola, a geada e os gafanhotos, mas que assumiu que dois outros Gês seriam a guerra, a Primeira Grande Guerra, e as greves (SEVCENKO, 1992SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole. São Paulo: Companhia das Letras, 1992., p. 24). De modo, focalizado neste breve estudo, a garçonnière poderia ser um outro Gê que, um gê minúsculo, a partir do contexto situado por Sevcenko ajuda até a situar o contexto em que surgiu a garçonnière de Oswald de Andrade. Diferentemente do que ocorreu com os surrealistas em Paris, São Paulo foi uma metrópole que solicitou outros agenciamentos artísticos que, nada organizados, geraram o objeto diário.

A metrópole drena as formas na medida em que troca energia com seus habitantes. Essa troca produziu uma escrita mais instantânea com um tipo de simultaneidade do dentro e do fora, do íntimo e do público, do erótico e do político. Por outro lado, afirmar a singularidade da colagem e da montagem das páginas do diário da garçonnière implica em sair do caráter puramente mimético da força das metrópoles para entrar naquilo que é retido em termos de desejo, isto é, na existência única do encontro singular de indivíduos e objetos. A piada no mais simples chiste se torna um meio de transporte do desejo enquanto a paródia recodifica os códigos que até então circularam com seus imperativos categórico. A cidade grande começa a se minimizar passando a ser vestígios da vida de sujeitos que, por mais que tentem se anonimizar para ampliar seus desejos, eles farão parte de um corpo sempre coletivo que os agrupa pelos instantâneos contidos no diário. Tais instantâneos compõem uma memória epifânica, oracular e orecular, cuja força vem através do humor e do riso. Mas, atenção, qualquer pequeno desvio do amor pode ser trágico. Por mais que a vida objetiva na metrópole exija pressa e até um êxtase (técnico), o imperativo de Cyclone subverte esse ritmo vertiginoso propondo nem primeiro, nem por último, mas “ri devagar”.

Referências

  • ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo São Paulo: Ex Libris, 1987.
  • ANDRADE, Oswald de. Obra incompleta Organizado por Jorge Schwartz. Coleção Archivos: São Paulo: Edusp, 2021.
  • ANDRADE, Oswald. Diário Confessional Organizado por Manuel da Costa Pinto. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
  • ANDRADE, Oswald. Telefonema Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
  • ANTELO, Raúl. Maria con Marcel Buenos Aires: Siglo XXI, 2006.
  • BESSA, Sergio. Paulo Bruscky: poesia viva. São Paulo, Cosac Naify, 2015.
  • BRITO, Mário da Silva. As metamorfoses de Oswald de Andrade São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1972.
  • CAVARERO, Adriana. A più voci. Filosofia dell’espressione vocale Roma: Feltrinelli, 2003.
  • DUCHAMP, Marcel. Duchamp du Signe. Paris: Flammarion, 1975.
  • JACKSON, Kenneth David. Oswald de Andrade e André Breton: paixões loucas, loucos textos. Remate de Males, Campinas, v. 33, n. 1-2, p. 149-168, jan./dez. 2013.
  • KRAUSS, Rosalind. Picasso’s papers Massachusetts: MIT, 1999.
  • SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
  • 1
    Em um primeiro momento, pelo menos para este estudo, é preciso adotar o readymade ao pé da letra. De acordo com Duchamp: “Projetando por um momento porvir (à venir) (tal dia, tal data, tal minuto), ‘de inscrever um readymade’. - O readymade poderá em seguida ser buscado (com todos os prazos). O importante então é este relogismo (horlogisme), esta instanteindade, como um discurso pronunciado pouco importando a ocasião, mas numa determinada hora. Como um tipo de encontro (rendez-vous). - Inscrever naturalmente esta data, hora, minuto, no readymade como informações. Também o lado exemplar do readymade” (DUCHAMP, 1975DUCHAMP, Marcel. Duchamp du Signe. Paris: Flammarion, 1975., p. 49, tradução nossa). Em poucas palavras, endossa-se a observação de Haroldo de Campos na edição fac-similar segundo a qual o diário da garçonnière é um readymade, mas aqui se especifica o uso do tempo verbal infinitivo, “amar”, como um readymade.
  • 2
    Essa distinção merece atenção no “Manifesto Antropófago”: “Só podemos atender ao mundo oracular”. Benedito Nunes, que estabeleceu as notas para o manifesto, ressalta que “orecular” pode ter sido “uma gralha perpetuada nas sucessivas edições do manifesto” (ANDRADE, 2022ANDRADE, Oswald. Diário Confessional. Organizado por Manuel da Costa Pinto. São Paulo: Companhia das Letras, 2022., p. 629). Diante de um impasse que está registrado nas obras incompletas, é melhor manter a ambiguidade em que “orecular” faça um apelo, ainda a partir de Nunes, “à tradição oral, à adivinhação e à intuição”.
  • 3
    No infinitivo e na sua condição isolada de substantivo ambas as palavras se aproximam de fotografias, de instantâneos que “clicam” e “carimbam” a obra de Oswald de Andrade.
  • Parecer dos Editores Convidados

    Ana Luiza Fernandes e João Queiroz, acolhemos os pareceres recebidos e recomendamos o texto para publicação. O ensaio dedica-se a alguns componentes da microarquitetura do livro, proto-surrealistas, e a procedimentos que mais tarde caracterizariam os romances-invenção de Oswald, "do entusiasmo de uma escrita telegráfica" à fragmentação estrutural de planos sintagmáticos, como vemos no Memórias sentimentais de João Miramar, e no Serafim Ponte Grande. Os protocolos de bricolagem aparecem, como explorado por muitos autores (Haroldo de Campos, e outros), no Perfeito Cozinheiro, na forma de grampos, carimbos, cartas, cartões, caricaturas, marcas de batom, histórias em quadrinhos etc. Mas este ensaio sugere, de modo revelador, uma surpreendente aproximação com seu contemporâneo, Marcel Duchamp, no núcleo de sua intervenção na arte moderna, o readymade, e, ainda mais surpreendente, com o "Grande Vidro" ("O diário da garçonnière é uma espécie de Grande Vidro"), mesmo que ela, a aproximação, "se sustent[e] apenas no tempo em que a comparação é capaz de fascinar".
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2023
  • Aceito
    15 Ago 2023
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