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A dedicatória e a garçonnière: ambivalências de algumas imagens do Modernismo brasileiro

The dedication and the garçonnière: Ambivalences of some images of Brazilian Modernism

Resumo

Tomando como escopo as primeiras décadas do século XX no ambiente cultural brasileiro, no circuito intelectual reconhecido como de formação e consolidação da modernidade literária, este ensaio investiga ambivalências presentes no modo como a noção de margem se manifesta no discurso crítico e historiográfico. São analisadas algumas imagens do Modernismo brasileiro, especialmente imagens concernentes a Oswald de Andrade. Nas duas primeiras partes, o ensaio concentra-se em uma cena ‒ a dedicatória feita por Oswald em um livro presenteado aos irmãos Augusto e Haroldo de Campos ‒ e em um espaço ‒ a garçonnière de Oswald em São Paulo, na qual foi produzida a obra coletiva O perfeito cozinheiro das almas deste mundo ‒, ambos emblemáticos para o Modernismo brasileiro. A parte final apresenta um levantamento de outras possibilidades e perguntas para a exploração crítica.

Palavras-chave:
Modernismo brasileiro; garçonnière; dedicatória; ambivalência; O perfeito cozinheiro das almas deste mundo

Abstract

Taking as its scope the first decades of the 20th century in the Brazilian cultural milieu, in the intellectual circuit recognized as forming and consolidating literary modernity, this essay investigates ambivalences present in the way the notion of margin manifests itself in critical and historiographical discourse. Some images of Brazilian modernism are analyzed, especially images concerning Oswald de Andrade. In the first two parts, the essay focuses on a scene ‒ the dedication written by Oswald in a book he gifted the Campos brothers Augusto e Haroldo ‒ and on a space ‒ Oswald’s garçonnière in São Paulo, where the collective diary O perfeito cozinheiro das almas deste mundo was produced ‒, both of which are emblematic of Brazilian modernism. The final part presents a survey of other possibilities and questions for critical exploration.

Keywords:
Brazilian Modernism; garçonnière; dedication; ambivalence; O perfeito cozinheiro das almas deste mundo

Resumen

Tomando como foco las primeras décadas del siglo XX, el ambiente cultural brasileño y el circuito intelectual reconocido como la formación y consolidación de la modernidad literaria, este ensayo investiga las ambivalencias presentes en la forma en que la noción de margen se manifiesta en los discursos crítico e historiográfico. Se analizan algunas imágenes del Modernismo brasileño, en especial imágenes relativas a Oswald de Andrade. Las dos primeras partes del ensayo se centran en una escena ‒ la dedicatoria de Oswald en un libro regalado a los hermanos Augusto e Haroldo de Campos ‒ y en un espacio ‒ la garçonnière de Oswald en São Paulo, donde se produjo la obra colectiva El perfecto cocinero de las almas de este mundo ‒, ambos emblemáticos del Modernismo brasileño. La parte final presenta un estudio de otras posibilidades y preguntas para la exploración crítica.

Palabras clave:
Modernismo brasileño; garçonnière; dedicatoria; ambivalencia; El perfecto cocinero de las almas de este mundo

Dobras da margem

À margem da margem é o título do livro publicado em 1989 pelo poeta e crítico Augusto de Campos, um dos principais nomes do movimento da Poesia Concreta no Brasil. Trata-se da reunião de artigos sobre autores que, mesmo de épocas e nacionalidades diferentes, possuem em comum “a marginalidade dos que buscaram caminhos não balizados, abriram sendas novas, estranhas ao território habitual da poesia ou da literatura” (CAMPOS, 1989aCAMPOS, Augusto de. À margem da margem. São Paulo: Companhia das Letras, 1989a., p. 7). O livro se dedica ao estudo de “textos marginais de autores marginais em relação à estrada oficial das letras, mesmo que, como no caso de Flaubert, Joyce ou Butor, tenham estes, em algum ponto do caminho, passado a figurar no rol dos nomes consagrados” (CAMPOS, 1989aCAMPOS, Augusto de. À margem da margem. São Paulo: Companhia das Letras, 1989a., p. 7).

Tomo a expressão “à margem da margem” como ponto de partida para o presente ensaio. Em especial, interessa-me a forte carga de ambivalência que nela reconheço. “À margem da margem” pode identificar um espaço onde se verifica a intensificação do caráter de marginalidade, uma margem ainda mais distante do espaço principal ou do centro ao qual a margem se refere. Entretanto, também pode significar algo bastante distinto: a reversão da margem, ou seja, um espaço no qual o caráter de marginalidade se enfraquece, já que levado em direção ao lado oposto da margem, ao centro ou ao espaço principal.

A ambivalência também se observa no comentário feito por Augusto de Campos de que certos autores podem ser simultaneamente marginais e consagrados. Explorar essas e outras ambivalências presentes no modo como a noção de margem e noções dela derivadas se manifestam no discurso crítico e historiográfico é o objetivo deste ensaio, que toma como escopo as primeiras décadas do século XX no ambiente literário brasileiro, em determinado circuito intelectual reconhecido como de formação e consolidação de nossa modernidade literária.

Para investigar esse escopo, elejo algumas imagens do Modernismo brasileiro, entendendo imagem em sentido abrangente de qualquer material que atribui significação a um objeto. São imagens concernentes em especial a Oswald de Andrade, que, juntamente com Patrícia Galvão, a Pagu, e em relação ao trabalho de ambos em O homem do povoANDRADE, Oswald de; GALVÃO, Patrícia. O homem do povo. São Paulo: Globo; Museu Lasar Segall; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. 2009., recebem de Augusto de Campos, no livro citado, a denominação “marginais”. Interessa-me explorar também a ambivalência do termo imagem, considerando que ele pode se referir tanto às imagens que um autor produz ‒ sobretudo em sua obra: a propriamente literária e os registros das intervenções públicas ‒ quanto às imagens que o tomam por objeto ‒ o que inclui vários tipos de materiais, como biografias, fortuna crítica, depoimentos sobre o autor, além de outras formas de recepção do nome e da obra.

É importante realçar que o presente ensaio possui caráter explicitamente experimental, desejando-se um exercício de interpelação às maneiras possíveis de se conceber e executar a atividade crítica, ou seja, desenvolvido nas margens da crítica, ou nas margens de suas margens, ambivalentemente propondo instituir, como válidos, modos não consolidados e inusuais de fazer crítico.

Cenas emblemáticas

O que vem a ser, no campo literário, uma cena emblemática? Quais cenas emblemáticas estão vinculadas à modernidade literária e ao Modernismo brasileiros? Para perscrutar questões dessa natureza, começo narrando uma breve cena pessoal. Em março de 2005 passei uma tarde conversando com Augusto de Campos em seu apartamento no bairro Perdizes, em São Paulo. Entre diversos assuntos, contei a história de como alguns de seus trabalhos chegaram às minhas mãos, às vezes por sorte pura, como no caso do raro ExpoemasCAMPOS, Augusto de. Expoemas. São Paulo: Entretempo, 1985., série de poemas-cartazes feitos em serigrafia em 1985, numa edição de 300 exemplares assinados. Lamentei que estivesse esgotado o CD Ouvindo OswaldANDRADE, Oswald de et al. Ouvindo Oswald. Funarte, Itaú Cultural, 1999. 1 CD., organizado por Augusto e Cid Campos, com várias participações especiais e trazendo registros da voz de Oswald de Andrade.

Quando a noite caiu e eu disse que precisava ir, Augusto pediu que eu esperasse. Foi até outro cômodo e, enquanto fiquei conversando com sua esposa Lygia, voltou com um exemplar do CD. Fiquei embaraçado, achando que ele entendera meu comentário como cantada para ganhar o CD, o que não havia sido minha intenção. Comentei meu embaraço. Augusto riu e me assegurou que queria mesmo me presentear com algo. No encarte do CD, havia uma dedicatória em tinta vermelha, principal cor do projeto gráfico: “Ao Luis Alberto / suas estátuas / e seu livro de livros / com o abraço do / Augusto”. Eram referências aos livros Saber de pedra: o livro das estátuasBRANDÃO, Luis Alberto. Saber de pedra: o livro das estátuas. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.e Tablados: livro de livrosBRANDÃO, Luis Alberto. Tablados: livro de livros. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004., que Augusto havia lido.

Essa cena real é, sem dúvida, emblemática para mim, pois sintetiza a importância que a obra e a presença de Augusto de Campos representam para meu horizonte de valores culturais e pessoais. É uma cena de caráter privado, que somente agora, 15 anos depois, está vindo a público neste texto. De certa forma, porém, ela remete a outra cena, também emblemática, reiteradamente citada pelo próprio Augusto e por seu irmão Haroldo de Campos em diversos veículos e ocasiões: a cena em que visitaram Oswald de Andrade nos anos 1940 e foram presenteados com um exemplar de Serafim Ponte GrandeANDRADE, Oswald de. Memórias sentimentais de João Miramar / Serafim Ponte Grande. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972., com a dedicatória: “Aos irmãos Campos / (Haroldo e Augusto) / - firma de poesia / Oswald”.

A cena é narrada com algumas variações (como a que menciona outra visita em que cada um dos jovens de um grupo maior é presenteado com um exemplar das poesias reunidas de Oswald) e interpretações (como a de Haroldo, que, no vídeo-documentário Poetas de campos e espaçosFONSECA, Cristina. Poetas de campos e espaços - TV Cultura. 1992. 1 vídeo (60 min 29 seg), 1 vídeo (60 min 29 seg), https://www.youtube.com/watch?v=VTfOQHILw8g . Acesso em: 15 dez. 2020.
https://www.youtube.com/watch?v=VTfOQHIL...
, afirma que Oswald, naquele momento, teve a “visão premonitória dos Irmãos Campos”). Mas ela se tornou uma espécie de tradução não apenas do isolamento e da solidão de Oswald em sua última fase de vida, como também do forte vínculo estabelecido, em escala pública e mesmo programática, entre o grupo concretista e a “firma” (com o significado simultâneo de obra, pessoa e personalidade cultural) Oswald de Andrade.

Cenas emblemáticas que se tornam amplamente públicas têm a função de instaurar linhagens e fortalecê-las mediante um continuado labor de difusão de sua pertinência e relevância. São cenas que ganham vigor pela reiteração. Em geral, juntamente com a propagação da cena, outros trabalhos são realizados. Nesse caso específico, tratava-se de um empreendimento de revisão da herança oswaldiana, o qual se verifica, por exemplo, na minuciosa revalorização de sua obra poética, sobretudo por meio de textos críticos como “Uma poética da radicalidadeCAMPOS, Haroldo de. Uma poética da radicalidade. In: ANDRADE, Oswald de. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1978. p. 9-62.”, de Haroldo de Campos, que se tornou peça obrigatória nas edições da poesia reunida do escritor modernista; e “Oswald, livro livre”, de Augusto de Campos, ensaio incorporado à edição fac-similar do livro Primeiro caderno do alumno de poesia Oswald de AndradeCAMPOS, Augusto de. Oswald, livro livre. In: ANDRADE, Oswald de. O primeiro caderno do alumno de poesia Oswald de Andrade. São Paulo: Companhia das Letras , 2018. p. 15-21..

Cenas emblemáticas têm por finalidade, assim, inaugurar, recuperar ou deslocar tradições. Segundo o próprio Augusto de Campos (1989bCAMPOS, Augusto de. Entrevista. 34 Letras, n. 4, p. 10-28, 1989b.), referindo-se à intervenção histórico-cultural levada a cabo pelos concretistas:

a tradição de invenção sempre foi rara e rala, ainda mais entre nós. Era necessário recuperá-la. Inventariar e reinventar a invenção. Foi essa mesma ideologia (compartilhada, desde cedo, com Haroldo e Décio) que orientou o movimento crítico de revisão de poetas como Sousândrade, Kilkerry, Oswald. (CAMPOS, 1989bCAMPOS, Augusto de. Entrevista. 34 Letras, n. 4, p. 10-28, 1989b., p. 18-19).

Com sua firma na dedicatória, Oswald produziu uma imagem, amplificada pelos concretistas, os quais a transformaram em imagem do próprio Oswald e de determinado modo de postular as especificidades do movimento modernista brasileiro. Nessa dupla assinatura ‒ a firma de Oswald constituída pelos concretistas ‒, a superposição de imagens gera uma linha ao mesmo tempo deslocada ‒ a “desmarginalização” de Oswald ‒ e contínua ‒ o estabelecimento de uma filiação cuja principal meta era alterar o que se entendia por margem ou, de modo explícito, eleger a margem como parâmetro valorativo.

Se é inegável o relevo de cenas emblemáticas na história literária, a pergunta que faço aqui é sobre o papel da crítica em relação a tais cenas: além de auxiliar em sua propagação e fortalecimento, seja por intermédio de leituras concordantes quanto ao significado da cena, seja pelo mero fato de replicá-la, de que modo a crítica pode atuar?

Pelo menos três alternativas parecem viáveis, com distintos graus de desafio para o que se entende por atividade crítica. A primeira alternativa é realizar o levantamento e a análise das cenas emblemáticas, do modo como se consolidaram e dos significados convergentes e divergentes que lhes foram atribuídos. Trata-se de tarefa facilmente reconhecível como crítica, já que descritiva e exegética.

A segunda alternativa é eleger, em um campo de possibilidades culturalmente dado, novas cenas e tratá-las como emblemáticas, ou seja, divulgar, como incisivamente representativas, cenas até então não consideradas assim. Essa tarefa também é identificável como crítica. Entretanto, a intenção explicitamente revisionista impõe um patamar mais exigente e ambicioso, de interferência direta na história literária e cultural. Trata-se de metacrítica, já que coloca sob indagação o percurso histórico estabelecido pelo conjunto da atividade crítica.

A terceira alternativa é desdobrar, a partir da pergunta pelo estatuto de cenas emblemáticas em contextos culturais específicos, a questão sobre o que se entende por emblemático. É possível lidar, criticamente, com cenas desemblematizadas, cenas que não se pretendem ou se recusam a ser emblemáticas? Aqui, a crítica torna-se um campo de incertezas, pois ela suspende os parâmetros críticos. Trata-se, sem dúvida, de metacrítica. Contudo, trata-se também de algo que deliberadamente desafia essa designação: uma crítica que ultrapassa os limites de sua circunscrição.

Essa terceira alternativa me foi aventada quando coloquei lado a lado a cena emblemática da assinatura oswaldiana e a cena pessoal que narrei. O estatuto da cena que vivenciei com Augusto de Campos é incerto. Não é emblemática (exceto, é claro, para mim), já que não possui dimensão pública, não apresenta intencionalidade clara, não representa um programa explícito de intervenção no campo literário. Porém, é como se seu caráter emblemático se anunciasse, ainda que ambiguamente, no simples fato de ter sido narrada e tomada como propulsora do questionamento sobre o que se entende por emblemático.

Aproximar o caráter emblemático e a feição incerta das cenas leva a uma nova pergunta: pode a crítica tornar-se um experimento ‒ no limite da crítica ‒ em que as imagens não apenas se reforçam, seja pelo endosso, seja pela recusa de outras imagens, mas também se relacionam dispersivamente, se indeterminam, se interrogam e se tensionam, sem que a essa interrogação e a esse tensionamento seja viável atribuir uma motivação exata, e sim, ao contrário, aberta a possibilidades sugestivas?

Espaços simbólicos reais

1918, Centro de São Paulo: entra no elevador do edifício elegante um casal de jovens irreverentes e apaixonados ‒ Miss Cyclone e Miramar, ou Daisy ou Maria de Lourdes Pontes e Oswald de Andrade. Centro de São Paulo, 2015: o edifício, até então considerado demolido, é redescoberto por um pesquisador. Está pichado, praticamente vazio e com placas de “vende-se” e “aluga-se”. 2020, Centro de São Paulo: imagens do Google Earth exibem o edifício com a fachada ainda pichada, mas sem as placas e com a porta principal e todas as janelas abertas. Em múltiplos tempos, atravessando quase todo o século XX e o começo do XXI, o mesmo edifício. Na história do Modernismo brasileiro, esse prédio possui presença de destaque. É um espaço emblemático, tendo em vista a recorrência das menções que lhe são feitas em vários momentos da escrita dessa história.

Assim como de cenas emblemáticas, o trabalho da crítica e de seus desdobramentos historiográficos depende de espaços desse tipo. Porém, diferentemente das cenas, que só podem ser revisitadas em sua forma de discursos ‒ depoimentos orais, escritos e visuais que retomam o instante em que a cena ocorreu ‒, em muitos casos os espaços podem ser concretamente revisitados no presente, ou melhor, em diferentes presentes. O discurso crítico pode, então, utilizar como fontes a espacialidade concreta das cenas e a espacialidade simbólica associável a tal concretude. Pode alimentar-se não apenas de outros discursos, mas também da realidade arquitetônica e urbanística, inclusive em suas variações temporais.

Para tomar como ponto de partida esse edifício em seu intenso vínculo com o Modernismo brasileiro e explorar potencialidades críticas no tratamento de espaços ao mesmo tempo reais e simbólicos, elejo três referências básicas, as quais desempenham aqui papéis distintos. A primeira é o caderno O perfeito cozinheiro das almas deste mundoANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Globo, 2014., lançado como um livro de Oswald de Andrade, embora seja um diário coletivo, incluindo desenhos e colagens, elaborado ao longo de 1918 pelos frequentadores do apartamento 2 nos fundos do terceiro andar do número 67 da Rua Líbero Badaró.

Trechos desse diário foram fartamente citados em Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãeANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1976., volume memorialístico que Oswald dedicou ao período entre 1890 e 1919, e que foi lançado em 1954, ano de sua morte. O caderno ganhou projeção pública a partir da edição fac-similar, lançada em 1987, e das edições comerciais lançadas em 1992 e 2014, com apenas a transcrição dos textos, ou seja, excluindo os outros materiais. A projeção também se deu mediante publicações de fôlego historiográfico, como as biografias de Oswald (Cf. BOAVENTURA, 1995BOAVENTURA, Maria Eugenia. O salão e a selva: uma biografia ilustrada de Oswald de Andrade. Campinas. São Paulo: Editora da Unicamp; Ex Libris, 1995.; FONSECA, 1990FONSECA, Maria Augusta. Oswald de Andrade, 1890-1954: biografia. São Paulo: Art, Secretaria de Estado da Cultura, 1990.) e inventários sobre o Modernismo, os quais dedicam capítulos específicos ao que se passou no apartamento.

A segunda referência é a matéria jornalística intitulada “A garçonnière redescoberta”, assinada por Luís Antônio Giron e publicada em 2015GIRON, Luís Antônio. A garçonnière redescoberta. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. 4-7, 20 dez. 2015.. Além de recontar episódios da convivência do grupo, a matéria dá destaque à investigação que permitiu localizar o edifício, levada a cabo por José Roberto Walker, que utilizou a pesquisa documental no livro Neve na manhã de São Paulo, publicado em 2017WALKER, José Roberto. Neve na manhã de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras , 2017., um “romance de não ficção”, segundo o autor.

A terceira referência é um registro fotográfico recente do edifício, feito in loco (ver Figuras 1 e 2). Registros semelhantes também estão disponíveis por meio da ferramenta de localização digital Google Earth.

Figura 1.
Rua Líbero Badaró, n. 452 (antigo n. 67), Centro de São Paulo.

Utilizo tais referências para levantar três séries de questões que projeto sobre o edifício ‒ mais especificamente, sobre o apartamento utilizado como garçonnière. Apesar de suas singularidades, todas essas questões possuem forte natureza espacial, e seus desdobramentos se relacionam com ações históricas tanto de consolidação da tradição modernista e de revisão de suas margens ‒ em geral, revisão que almeja trazê-las para o centro da tradição ‒ quanto de problematização das bases do empreendimento revisionista.

A primeira série de questões diz respeito ao vínculo entre o grau de precisão dos dados objetivos concernentes ao espaço ‒ do edifício e do apartamento, mas também da rua, da região e da cidade ‒ e o caráter lendário ou simbólico que a ele se atribui. É grande a quantidade de informações precisas sobre a garçonnière. São conhecidas suas dimensões exatas: 42 m2 distribuídos em uma saleta de entrada, com 7 m2; a sala principal, com 30 m2; e o banheiro, com 5 m2. É minuciosamente descrita a mobília de cada cômodo, a qual inclui, por exemplo, na saleta, uma secretária branca onde ficavam o caderno, pena e tinteiro; na sala grande, um sofá verde com estampa de ramagens, um tapete felpudo com oito almofadas também verdes, a Grafonola Columbia com 20 discos, telas de Di Cavalcanti e Anitta Malfatti; no banheiro, um grande espelho e uma banheira de metal. Há, também, detalhes construtivos do prédio, como a distribuição dos apartamentos, o número de janelas em cada um, as escadas de mármore decoradas com ladrilhos nos patamares, o elevador de ferro, a porta de entrada principal em madeira de lei.

Essas informações, coletadas no próprio diário e em outras fontes de diferentes épocas, sustentam a criação e a proliferação de metáforas espaciais atribuídas ao apartamento, a começar pela designação “covil”, cunhada por Oswald e sempre relembrada pela crítica. Em função da ambiguidade de tais metáforas, de seu caráter ora abertamente jocoso, ora com pretensões descritivas, elas desempenham papel marcante no reforço do valor simbólico associado àquele espaço e aos eventos que nele se desenrolaram. “Berço”, “sala de parto”, “laboratório”, “altar impossível” e “antessala” são exemplos da intenção de tratar a garçonnière como espaço de formação e experimentação, alianças e rupturas, de vivências não apenas antecipatórias cronologicamente ‒ como a adoção, por Oswald, do pseudônimo Miramar, que viria a ser o nome do protagonista de seu romance publicado em 1924 (ANDRADE, 1972ANDRADE, Oswald de. Memórias sentimentais de João Miramar / Serafim Ponte Grande. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.) ‒, mas também de caráter seminal, ou seja, fundador em relação ao que viria a se desenrolar e a ser conhecido, alguns anos depois, como movimento modernista. O próprio termo garçonnière é altamente metafórico, ainda que se justifique, em termos históricos, como adequado para se referir a apartamentos com finalidade sexual, explicitada em vocábulos como “matadouro” e “abatedouro”, presentes em alguns textos críticos.

Cabe destacar que a ambiguidade também se verifica no modo como os dados precisos são utilizados pela crítica. Por um lado, reforçam o caráter lendário ou simbólico por gerar uma espécie de fetiche espaço-temporal na circunscrição de eventos que, apesar de vinculados ao cotidiano de um grupo, são tratados como extraordinários por causa dos desenvolvimentos posteriores associados a tais eventos. Por outro lado, contudo, segundo a lógica de um modelo exegético decifrador, funcionam como provas em uma investigação detetivesca que busca revelar verdades empíricas. Assim é que se acredita possível e pacífico reconhecer os nomes reais por trás dos pseudônimos, embora existam indicadores de que no diário se buscava um regime autoral caótico ou agonístico, segundo o qual era cabível, por exemplo, proliferar pseudônimos, imitar a caligrafia, assinar com o pseudônimo de outro, não assinar. Assim é que as “vidas de ficção”, livremente inventadas no diário, são explicadas em conformidade com parâmetros das “vidas reais”.

A segunda série de questões concerne às tensões entre presente e passado e aos conflitos entre vetores históricos de transformação e de permanência. De acordo com a lógica detetivesca, é possível, por exemplo, fixar várias datas exatas na história do edifício. Essas datas, porém, configuram uma narrativa de mudanças: a dos números que identificam a localização do edifício. Conforme a pesquisa empreendida por Walker, a numeração foi alterada diversas vezes ao longo das décadas, inclusive com troca de lados entre pares e ímpares. Assim, o número 67 de 1918 acabou se convertendo no número 452 de hoje. Seja porque, por uma questão de ângulo, o prédio não aparece nas fotografias antigas, seja porque nunca teve um nome ou porque “tenha sido invadido por sucessivos movimentos de sem-teto” (GIRON, 2015GIRON, Luís Antônio. A garçonnière redescoberta. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. 4-7, 20 dez. 2015., p. 4), é como se muitos fatores se juntassem para esconder a história do edifício. No presente, essa espécie de narrativa de ocultamento (e desocultamento), em chave tanto empírica quanto simbólica, vem substituir a narrativa anterior de que o prédio havia sido demolido.

Concomitantemente ao vetor transformação (conjugado ao ocultamento), o vetor permanência (conjugado ao desvendamento) ganha ênfase nos discursos gerados a partir da revisitação (concreta, in loco, na matéria jornalística de 2015) e da revisão (simbólica) do edifício. Manifesta-se, por exemplo, no comentário sobre tudo o que, em termos espaciais, tanto no prédio quanto no apartamento, deixou marcas claramente identificáveis: “O banheiro, de cinco metros quadrados, com a porta dotada de quadrados de vidro foscos (um deles trincado), não abriga mais nenhuma louça. Está nu, com as marcas do vaso sanitário, o bidê, a pia e a banheira” (GIRON, 2015GIRON, Luís Antônio. A garçonnière redescoberta. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. 4-7, 20 dez. 2015., p. 4). Manifesta-se também, é claro, naquilo que continuou existindo exatamente como no passado: “A forração do teto e o piso com disposição diagonal, ambos de madeira, são os mesmos sob e sobre os quais passou a turma de Oswald” (GIRON, 2015GIRON, Luís Antônio. A garçonnière redescoberta. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. 4-7, 20 dez. 2015., p. 4). Propõe-se, assim, mediante o inventário de elementos espaciais, a reafirmação de uma presença ‒ ao mesmo tempo real e simbólica ‒ que transcende a passagem do tempo.

A terceira série de questões surge do modo como o espaço da garçonnière é tomado em seus contundentes vínculos com o espaço do diário. Trata-se não apenas de um liame entre conteúdo e continente - um espaço dentro do outro, o diário sendo gerado na saleta de entrada da garçonnière ‒ ou de um elo de adjacência - o diário como um espaço paralelo, que testemunha os eventos da garçonnière. Trata-se de um vínculo mais imbricado e, em larga medida, indiscernível: o diário como um microcosmo, uma miniatura do universo de eventos ocorridos no espaço da garçonnière, ou, por uma inversão sintomática da fusão entre espaço da obra e espaço onde a obra se desenvolve, o diário como partitura que pode tanto registrar os eventos quanto comandá-los, à maneira de um roteiro ou programa de ações.

As metáforas espaciais utilizadas pela crítica para designar o diário são significativas da percepção do quão complexos são tais vínculos. Mário da Silva Brito (2014BRITO, Mário da Silva. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. In: ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Globo , 2014. p. 9-17.) reporta-se ao diário como “um objeto criativo, uma invenção como livro, peça rara em sua aparência e organização” (BRITO, 2014BRITO, Mário da Silva. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. In: ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Globo , 2014. p. 9-17., p. 17). Haroldo de Campos (2014CAMPOS, Haroldo de. Réquiem para Miss Cíclone, musa dialógica da pré-história textual oswaldiana. In: ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Globo , 2014. p. 18-34., p. 18 e 25) fala de “mosaico dispersivo”, “livro-caixa-de-surpresas”, “pantalha art nouveau”, “álbum-vida”, “álbum boêmio”. Jorge Schwartz (2014SCHWARTZ, Jorge. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo: diário ou ficção?. In: ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Globo , 2014. p. 37-49.) utiliza os termos “caixa mágica” e “visão caleidoscópica” (SCHWARTZ, 2014SCHWARTZ, Jorge. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo: diário ou ficção?. In: ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Globo , 2014. p. 37-49., p. 38).

Associações com o caráter experimental das artes plásticas e performáticas também aparecem, inclusive por meio de expressões que apenas décadas mais tarde seriam difundidas por historiadores da arte, como é o caso de “livro-objeto” ou “livro de artista”. Relevante dessa visão crítica é o fato de um exemplar da edição fac-similar do diário integrar o acervo de livros de artista da Biblioteca Central da Universidade Federal de Minas Gerais e ter se tornado objeto de culto, vendido a preços altos em sebos especializados. Também prova da projeção, sobre o diário e a garçonnière, de valores da historiografia de arte contemporânea ‒ dedicada ao período que se inicia com as vanguardas dos anos 1960 ‒ é o uso de expressões como “instalação”, “site specific”, “reality show”, em alusão ao caráter de obra artística aberta e processual vivenciada em tempo real e em regime de multiautoria.

Conforme destacado no início deste item, são distintos os papéis que cada uma das referências desempenha no quadro dessas três séries de questões. O diário e seus prolongamentos (edições e menções, por exemplo) sem dúvida exercem a função de fontes primárias e matéria de decifração. Já o trabalho investigativo que culminou na redescoberta do edifício, divulgada em 2015, e que gerou, entre outros produtos, matérias jornalísticas e um romance que se autoproclama não ficcional, atua como revisão das fontes, não apenas demonstrando o potencial produtivo que ostentam e reforçando-lhes a aura, como também trazendo-as para o presente, lançando-lhes uma nova mirada, tentando ressignificá-las segundo parâmetros contemporâneos. Trata-se, pois, de uma espécie de remodernização do Modernismo, o que, paradoxalmente, chama atenção para seus aspectos antimodernos, isto é, explicita as contradições do impulso modernizador no campo cultural.

A revisão se dá sobretudo quanto à personagem-pessoa Miss Cyclone-Daisy-Maria de Lourdes Pontes, que passa a ser tratada, de forma ainda mais nítida e conflituosa do que nas fontes primárias, como figura central da garçonnière, símbolo da mulher moderna e mártir dessa condição, tendo em vista sua morte precoce, em decorrência de um aborto. Em sua resenha sobre o livro de Walker, o jornalista Ruan de Sousa Gabriel (2017WALKER, José Roberto. Neve na manhã de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras , 2017.) afirma: “O modo desastroso como Oswald se comportou com Daisy revela as contradições da modernização (e do Modernismo) brasileira, que marcha rumo ao futuro arrastando consigo um passado conservador e violento, num esforço de conciliar algum progressismo com os valores mais atrasados”. (GABRIEL, 2017GABRIEL, Ruan de Souza. Oswald de Andrade e um ciclone na São Paulo onde caía neve. Época, 2017. Disponível em: https://epoca.globo.com/cultura/noticia/2017/06/oswald-de-andrade-e-um-ciclone-na-sao-paulo-onde-caia-neve.html . Acesso em: 15 dez. 2020.
https://epoca.globo.com/cultura/noticia/...
, n.p.).

Também artigos acadêmicos buscam tornar presente a ausência de Miss Cyclone na história do Modernismo. Tereza Virginia Almeida (1997ALMEIDA, Tereza Virginia. O cânone e a Ciclone: a ausência lilás da Semana de Arte Moderna. Travessia, n. 29/30, p. 181-222, 1997.) postula:

A normalista morre a 24 de agosto de 1919, aos dezenove anos de idade, traída por seu próprio anseio de liberdade, num mundo que tem a oferecer-lhe apenas a punição, vinda inconscientemente pelas mãos de Oswald, o mesmo homem que no fim da vida terá como utopia maior o retorno da humanidade ao matriarcado, mas que em 1918 afirma com seu gesto sua inscrição no contexto fortemente patriarcal em que se move. (ALMEIDA, 1997ALMEIDA, Tereza Virginia. O cânone e a Ciclone: a ausência lilás da Semana de Arte Moderna. Travessia, n. 29/30, p. 181-222, 1997., p. 211).

Leandro Pasini (2015PASINI, Leandro. Daisy, Oswald e o processo erosivo do modernismo brasileiro. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 61, p. 140-158, 2015.) avalia: “a desaparição prematura de Daisy, como autora e figura histórica, é índice forte das muitas perdas do movimento e também de um processo contínuo de erosão do Modernismo, simultâneo ao seu processo de autodefinição e desenvolvimento de sua autoconsciência” (PASINI, 2015PASINI, Leandro. Daisy, Oswald e o processo erosivo do modernismo brasileiro. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 61, p. 140-158, 2015., p. 145-146).

Figura 2.
Rua Líbero Badaró, n. 452 (antigo n. 67), Centro de São Paulo.

Já as imagens feitas in loco em 2020 (Figuras 1 e 2) e as imagens digitais disponibilizadas pelo Google Earth cumprem aqui o papel de elemento de interrogação ou de indeterminação relativamente à atividade crítica e historiográfica. Na atualidade, o acesso visual presencial (ou remoto, via ferramenta digital) à fachada do edifício gera uma sensação ao mesmo tempo desauratizadora, de prosaísmo, de anonimato (pode-se dizer: é apenas um prédio antigo sobrevivendo aos ciclos de degradação e remodelação do Centro de São Paulo), e auratizadora, transcendentalizante, de grandiloquência histórica quase teatral (pode-se também dizer: é o prédio da garçonnière de Oswald de Andrade!).

Tal sensação ambígua se desdobra em outras sensações, como a de que mesmo as revisões bem-intencionadas não deixam de repetir os parâmetros do que se pretende revisar. Assim é que, embora exista um diário não publicado, escrito por Daisy Pontes, a relevância que lhe tem sido atribuída na reescrita da história do grupo e daquele momento ainda é bastante reduzida. Em sua biografia de Oswald, Maria Augusta Fonseca (1990FONSECA, Maria Augusta. Oswald de Andrade, 1890-1954: biografia. São Paulo: Art, Secretaria de Estado da Cultura, 1990.), comparando os diários, comenta: “Ao lado desse caderno, Deisi compõe um outro, onde os amigos da Líbero Badaró arriscam algumas notas. Não tem a proporção volumosa do primeiro. É um caderno comum, de capa dura, preta e vermelha, de umas cinquenta páginas, aproximadamente” (FONSECA, 1990FONSECA, Maria Augusta. Oswald de Andrade, 1890-1954: biografia. São Paulo: Art, Secretaria de Estado da Cultura, 1990., p. 89).

As imagens feitas in loco ou acessadas por ferramenta digital ‒ simultaneamente concretizadoras e mistificadoras, vívidas e espectralizantes ‒ parecem falar também do que na história se perde, se apaga (irreversivelmente? Com alguma chance de reversão? Com possibilidades de reversão pré-definidas?). Sabe-se, inclusive, que as imagens do Google Earth, apesar de parecerem registros fidedignos dos espaços rastreados por satélite, passam por diversos filtros e modificações deliberadas. Há uma política, um conjunto de protocolos e de interesses que definem a forma como essas imagens são tornadas públicas. A consciência quanto a tal política talvez seja um alerta importante para a crítica que se volta para todas as imagens com pendor historiográfico: as consolidadas, as sob revisão e as imagens novas que possamos vir a criar.

Outros prismas

A título de conclusão deste ensaio ‒ a qual se pretende abertura para outras reflexões e experimentos ‒, apresento um breve inventário de possibilidades e interrogações quanto ao papel que pode vir a desempenhar a crítica que busca conceber-se nas margens da crítica. A partir das ambivalências que constato nos processos de fundação, revisão e refundação da tradição modernista brasileira, realizo um levantamento de prismas críticos que tentam revelar, sob variados ângulos, ora de modo conjectural e indagativo, ora provocativo e propositivo, caminhos pouco explorados.

O debate sobre cenas e espaços emblemáticos, simultaneamente concretos e simbólicos, e sobre a alternativa de sua desemblematização, pode se projetar sobre um fenômeno também característico da história cultural: a tendência às polarizações tanto pessoais quanto intelectuais. No caso do Modernismo brasileiro, de fato é emblemática a polarização entre Oswald e Mário de Andrade, a qual define linhagens de críticos, sobretudo os que se vinculam à cultura paulista, e linhagens de posicionamentos políticos e intelectuais, que apontam, por um lado, para uma tendência iconoclasta e cosmopolitista; por outro, para uma verve institucionalizante e nacionalista. Mesmo no caso de críticos que se pretendem ecléticos e não totalmente alinhados, será que tais oposições são efetivamente tensionadas? Quais são as condições para uma crítica que não opere opositivamente, que não atue por meio de adesões e recusas a linhagens, ou que procure constantemente deslocá-las ou tirar partido de suas ambivalências?

Será concebível que a crítica deixe de se basear prioritariamente em nomes e biografias individuais, datas e marcos temporais, e abra seu foco para grupos, coletividades, cruzamentos de tempos, imagens culturais multifacetadas, transindividuais e internamente conflituosas? Interrogando sua tendência a densificar referências históricas, a tomar como baliza a exaustividade informativa, talvez a crítica possa se aventurar na rarefação, no trabalho com recortes minimalistas, ou na proliferação de imagens, mediante um sistema móvel e flexível que se abre constelarmente a partir de qualquer ponto.

Talvez o modelo historiográfico dessa crítica possa não se pretender cumulativo e progressivamente esclarecedor, mas composto por séries heterogêneas e deliberadamente incongruentes entre si. Talvez essa crítica possa abandonar o princípio da autoridade do crítico, as regras que definem quem tem direito a falar e em quais condições, e adote o princípio da desautorização, segundo o qual todas as leituras interessam ‒ por diferentes motivos, é claro ‒, mesmo quando elas supostamente partem de equívocos, mesmo quando são supostamente desprovidas de força interpretativa.

Ao prisma da racionalidade investigativa e discursiva como prioridade, apoiada em convenções fortemente estabelecidas, que sejam aproximados, de modo problematizador, o prisma dos afetos, dos impulsos sensoriais e intuitivos, e o prisma (antilógico) do indecidível. À tendência à monumentalização, à mistificação e ao caráter laudatório como efeitos do trabalho crítico, que seja aproximada a tendência à relativização desmistificadora, que abdique da tentação de substituir um cânone por outro, uma consagração por outra. Ao caráter explicativo por meio de elementos de determinação (como, no Modernismo brasileiro, o foco nos temas da nacionalidade e da inovação) e à tentativa de sedimentar narrativas de impacto cultural duradouro, que seja aproximada a intenção perplexificadora, cuja ênfase recai nos elementos de indeterminação, cujo efeito narrativo seja da ordem da instabilidade e da indecidibilidade.

Será possível uma crítica que deixe de se conceber como olhar retroativo, exegese de biografias, obras e quadros culturais, e passe a se conceber como séries de vislumbres prospectivos, de caráter culturalmente motriz, literalmente geradores de obras e de cenas culturais, mesmo as tidas como impensáveis? A adoção das ambivalências e indefinições da crítica como ferramentas da própria crítica, a indagação quanto ao estatuto e às potencialidades de tais ambivalências e indefinições não soam como vigorosas promessas ‒ vigorosas porque abertamente assumem e produtivamente fazem desdobrar o que caracteriza sua fragilidade ‒ para o trabalho crítico que ambivalentemente deseja se inventar?

Referências

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  • ANDRADE, Oswald de et al Ouvindo Oswald Funarte, Itaú Cultural, 1999. 1 CD.
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  • ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo São Paulo: Globo, 2014.
  • BOAVENTURA, Maria Eugenia. O salão e a selva: uma biografia ilustrada de Oswald de Andrade. Campinas. São Paulo: Editora da Unicamp; Ex Libris, 1995.
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  • CAMPOS, Haroldo de. Uma poética da radicalidade. In: ANDRADE, Oswald de. Poesias reunidas Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1978. p. 9-62.
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  • FONSECA, Cristina. Poetas de campos e espaços - TV Cultura 1992. 1 vídeo (60 min 29 seg), 1 vídeo (60 min 29 seg), https://www.youtube.com/watch?v=VTfOQHILw8g Acesso em: 15 dez. 2020.
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  • GABRIEL, Ruan de Souza. Oswald de Andrade e um ciclone na São Paulo onde caía neve. Época, 2017. Disponível em: https://epoca.globo.com/cultura/noticia/2017/06/oswald-de-andrade-e-um-ciclone-na-sao-paulo-onde-caia-neve.html Acesso em: 15 dez. 2020.
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  • GIRON, Luís Antônio. A garçonnière redescoberta. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. 4-7, 20 dez. 2015.
  • PASINI, Leandro. Daisy, Oswald e o processo erosivo do modernismo brasileiro. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 61, p. 140-158, 2015.
  • SCHWARTZ, Jorge. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo: diário ou ficção?. In: ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo São Paulo: Globo , 2014. p. 37-49.
  • WALKER, José Roberto. Neve na manhã de São Paulo São Paulo: Companhia das Letras , 2017.
  • Parecer dos Editores Convidados

    Ana Luiza Fernandes e João Queiroz, acolhemos os pareceres recebidos e recomendamos o texto para publicação. O autor explora "as ambivalências presentes no modo como a noção de margem e noções dela derivadas se manifestam no discurso crítico e historiográfico". O artigo possui "caráter explicitamente experimental, desejando-se um exercício de interpelação às maneiras possíveis de se conceber e executar a atividade crítica”. Trata-se de uma experiência de metacrítica baseada em O perfeito cozinheiro que, ambivalentemente, propõe a validação de modos incomuns de atividade crítica não consolidadas.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação e agradecemos aos órgãos de fomento à pesquisa (CNPq e FAPEMIG) o apoio concedido ao pesquisador para desenvolver o trabalho.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    21 Jan 2023
  • Aceito
    15 Ago 2023
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