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Rastros do Modernismo em O perfeito cozinheiro das almas deste mundo

Traces of Modernism in O perfeito cozinheiro das almas deste mundo

Resumo

Como um objeto de arte despretensiosamente dadaísta, o diário escrito pelos frequentadores da garçonnière mantida por Oswald de Andrade em 1918 consiste num inventivo álbum de bricolagens, intercalando imagens à escrita num jogo repleto de trocadilhos. Localizamos esse livro-objeto como antecipador da linhagem multifacetária do Modernismo, através de Miss Cyclone, normalista desafiadora das normas sociais da época, explorando a estrutura antropofágica presente n’O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. A figura enigmática de “Miss Cyclone”, ao mesmo tempo musa e autora do diário, é também sua razão de existir, e vice-versa. Somente conhecemos Cyclone através de Oswald de Andrade, mas seria possível observar e reconstruir Oswald através de Cyclone? Estudá-la implica em estudar Oswald, mas também é possível fazer o caminho inverso. A principal fonte utilizada foi o Diário da garçonnière, além de cartas e biografias.

Palavras-chave:
Modernismo; Diário da garçonnière; Oswald de Andrade; Miss Cyclone

Abstract

As an unpretentiously Dadaist art object, the diary written by those who frequented the garçonnière kept by Oswald de Andrade in 1918 consists of an inventive bricolage album, interspersing images with writing in a game full of puns. We locate this book-object as an anticipator of the multifaceted lineage of Modernism, through Miss Cyclone, a schoolgirl who defied the social norms of the time, exploring the anthropophagic structure present in O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. The enigmatic figure of “Miss Cyclone”, at the same time muse and author of the diary, is also its reason for existence, and vice versa. We only know Cyclone through Oswald de Andrade, but would it be possible to observe and reconstruct Oswald through Cyclone? Studying her implies studying Oswald, but it is also possible to do the opposite. The main source used was the Diário da garçonnière, in addition to letters and biographies.

Keywords:
Modernism; Diário da Garçonnière; Oswald de Andrade; Miss Cyclone

Resumen

Como objeto de arte dadaísta, el diario escrito por quienes frecuentaban la garçonnière mantenida por Oswald de Andrade en 1918 consiste en un ingenioso álbum de bricolajes, que intercala imágenes con escritura en un divertimento lleno de juegos de palabras. Ubicamos este libro-objeto como un anticipo del linaje multifacético del Modernismo, a través de Miss Cyclone, una normalista que desafió las normas sociales de la época, explorando la estructura antropófaga presente en O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. La enigmática figura de “Miss Cyclone”, a la vez musa y autora del diario, es también su razón de ser, y viceversa. Solo conocemos a Cyclone a través de Oswald de Andrade, pero ¿sería posible observar y reconstruir a Oswald a través de Cyclone? Estudiarlo implica estudiar a Oswald, pero también es posible hacer lo contrario. La principal fuente utilizada fue el Diário da Garçonniere, además de cartas y biografías.

Palabras llave:
Modernismo; Diario de Garçonniere; Oswald de Andrade; Miss Cyclone

Alugo uma garçonière, à Rua Líbero Bardaró, nos fundos de um terceiro andar. Estamos no ano de 17. Dessa época, do ano de 18 a 19, componho com os frequentadores da garçonière e com Deise, que se tornou minha amante, um caderno enorme que Nonê conserva. Chama-se - uma ideia de Pedro Rodrigues de Almeida - “O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo”. Oswald de Andrade

Decorada com o “retrato da Anna Pavlova, reproduções célebres, loucuras do Di, quadros da Anita Malfatti” (ANDRADE, 2002ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe. 2. ed. São Paulo: Globo , 2002. (Obras completas).), sofás, tapetes e almofadas, a garçonnière mantida por Oswald de Andrade na Rua Libero Badaró, nº 67, 3º andar, sala 2, possuía um tesouro: uma Graphonola, com vários discos, sempre tocando: “Miramar tortura a phonola; escorre um ar de romance extinto e ilusões desfeitas” (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987. (Edição fac-similar)., p. 55). A ligação de Oswald com a música é visceral, e ele preferia comprar discos novos a reabastecer a dispensa: “encontrei discos novos: indícios mui vivos de grossas transações de terras. [...] Volto do guarda-comida. Que miséria!” (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987. (Edição fac-similar)., p. 36). Na garçonnière, a “grafonola chia como uma gata asthmática” (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987. (Edição fac-similar)., p. 59) discos ecléticos de Beethoven, Wagner, Rubinstein, e canções populares norte-americana, como “Some Sunday morning”, alguns tangos e fox-trot, o ritmo do momento. O ambiente da garçonnière é marcado pelo forte cheiro de juventude, onde “é delicioso errar! A vida é amalgama de pequenos erros” com “saúde - Força - Mocidade: Emoção - Rubinstein - 2$000 no bolso - Boa vontade - Litteratura -” (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987. (Edição fac-similar)., p. 62).

Repleto de frases espirituosas e galhofeiras, tal como no Manifesto Antropófago, onde decretou que “a alegria é a prova dos nove”, este Diário foi escrito entre 30 de maio e 12 de setembro de 1918 pelos frequentadores da garçonnière mantida por Oswald, e atualmente está inserido no cânone da literatura nacional. Trata-se de um caderno de contabilidade preto, capa dura, 24x33cm, com 200 páginas numeradas. A pretensão do grupo era montar o “livro mais útil e mais prático e mais moderno deste século de grandes torturados” (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987. (Edição fac-similar)., p. 1), como assina João de Barros logo na primeira página.

A pesquisadora Tereza Virgínia pondera que o Diário tinha um caráter íntimo, e embora fosse um álbum coletivo, não era seu intuito publicá-lo, e de fato não foi, até a edição fac-similar, em 1987.

Após a restauração do original, O perfeito cozinheiro das almas deste mundo foi publicado, como livro, somente em 1987, isto é; quase setenta anos após a produção da obra original, em uma cuidada edição fac-símile de tiragem limitada, produzida pela editora Ex Libris, em parceria com o Instituto Moreira Salles. A edição, sob a direção de Frederico Nasser, preservou as suas características de livro-objeto de arte, como as dobras e as colagens. Esgotada, converteu-se em obra rara, objeto de desejo. Posteriormente, a Editora Globo republicou a transcrição do texto presente no livro, acompanhada de reproduções de algumas páginas do caderno, a título de ilustração, para que o leitor possa compreender melhor a riqueza de elaboração da obra original (SILVA, 2016SILVA, Yara dos Santos Augusto. Plasticidades poéticas, escrituras picturais: jogos do texto e da imagem na arte de poetas e pintores das vanguardas latino-americanas. 2016. 316 f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016., p. 147).

Beatriz Resende indica que “romper a barreira que separa a manifestação pública que é arte, do privativismo, da vida pessoal, é ser moderno. Sobretudo, é ser vanguardista” (RESENDE, 1995RESENDE, Beatriz. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo, Diário do jovem Oswald e outros intrépidos rapazes. In: TELES, Gilberto Mendonça et al. Oswald Plural. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1995., p. 28). O programa de dessacralização da poesia, observado no Diário por Haroldo de Campos, afirma que a “poesia existe nos fatos”, como uma proposta cujos entrelaçamentos estéticos e inquietações estilísticas e experimentais são características. Os autores estavam convictos da mistura como receita, e “muito de arte entrará nestes temperos, arte e paradoxo, que, fraternalmente, se misturarão para formar, no ambiente colorido e musical deste retiro, o cardápio perfeito para o banquete da vida” (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987. (Edição fac-similar)., p. 1-2).

O Diário era construído num “espaço privado, sua inscrição na tradição das escritas íntimas, sobre a não participação da autora no processo de publicação que se dá posteriormente, sobre a não intencionalidade literária dos fragmentos” (ALMEIDA, 1998ALMEIDA, Tereza Virginia de. Ausência Lilás da Semana de Arte Moderna. Florianópolis: Ed. Letras Contemporâneas, 1998., p. 119). Maria Eugenia Boaventura (1995BOAVENTURA, Maria Eugênia. O salão e a selva: Uma biografia ilustrada de Oswald de Andrade. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995.) considera o caderno da garçonnière

[...] uma reportagem viva e movimentada da vida intelectual do Brasil art nouveau; uma crônica alegre do dia-a-dia de um grupo de intelectuais de São Paulo do início do século, que lograram construir “um texto engraçado, irreverente e moderno quanto à concepção e estrutura”.2 2 BOAVENTURA. A crônica mundana. Uma leitura de O perfeito cozinheiro. In: Seminário sobre a crônica. Fundação Casa de Rui Barbosa. Rio de Janeiro, out. 1988, p. 1.

Escrito com tintas coloridíssimas, as páginas do Diário carregam bilhetes, cartas, reclamações, provocações, xingamentos, recados, declarações de amor, marcas de batom, grampos de cabelo, flores murchas, carimbos, caricaturas, desenhos, “recortes de jornal, pedaços de papel, cromos, pequenos textos, cartões, bandeirolas, carimbos. Muitas vezes contornam seus enfeites e textos usando lápis de cor” (FONSECA, 1990FONSECA, Maria Augusta. Oswald de Andrade: biografia. São Paulo, Globo, 1990., p. 87) vermelho e azul, designer que se assemelhava com as bricolagens que os dadaístas arriscavam elaborar neste período. Pioneiro em comentar este álbum, Mario da Silva Brito o considera “mais do que um diário, O perfeito cozinheiro é um caótico e desencontrado ou desordenado [...] romance de nova estrutura, de técnica inusitada, de um surrealismo natural e espontâneo.” (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987. (Edição fac-similar)., p. XI).

“Oswald Canibal”

A produção intelectual de Oswald está imbricada à sua vida amorosa. Maria Augusta Fonseca afirma que Oswald, “escandalizando sua própria classe social, quase sempre se uniu a mulheres que desafiaram normas de comportamento de seu tempo” (FONSECA, 1990FONSECA, Maria Augusta. Oswald de Andrade: biografia. São Paulo, Globo, 1990.). Em 1917, ele já havia saído de dois intensos relacionamentos: com a francesa Kamiá, mãe de Nonê, seu primogênito, e com Carmem Lydia, jovem atleta e bailarina, conhecida por Landa. Eram personalidades femininas cujas atitudes confrontavam meios sociais tacanhos e conservadores.3 3 Diferindo de grandes nomes da literatura, que alcançam o auge na maturidade, no caso de Oswald de Andrade o momento de maior profusão experimental de sua obra consiste entre o período da garçonnière, com O perfeito cozinheiro das almas deste mundo (1918), indo até meados dos anos 1930. Essa época coincide com o momento em que Oswald se relacionava com as três mulheres historicamente mais significativas: Miss Cyclone (1917-1919), Tarsila do Amaral (1922-1929) e Patrícia Galvão (1930-1935). Certamente, essas mulheres atravessaram o modo de produção de Oswald de Andrade. Perpassando “horas de profundo abatimento” (ANDRADE, 2002ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe. 2. ed. São Paulo: Globo , 2002. (Obras completas)., p. 158), ainda sofrendo pela história de amor frustrada com Landa, Oswald inicia a “introdução ao episódio de Miss Cyclone. Requiescant Landa et Miramar. Chorai por eles” (ANDRADE, 2002ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe. 2. ed. São Paulo: Globo , 2002. (Obras completas)., p. 159). “Miramar” já era usado como pseudônimo por Oswald desde aqui.

Considerando que Oswald percebia a antropofagia como visão de mundo, captamos n’O perfeito cozinheiro das almas deste mundo o ato de devoração, presente desde o período da garçonnière na Líbero Badaró. Uma característica peculiar de Oswald consiste nessa capacidade de absorver o outro e nesse contato catalisar uma nova atividade criativa. Através do romance narrado no Diário da garçonnière com a múltipla Maria de Lourdes Pontes, poderíamos vislumbrar “fragmentos da modernidade pretendida” (RESENDE, 1995RESENDE, Beatriz. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo, Diário do jovem Oswald e outros intrépidos rapazes. In: TELES, Gilberto Mendonça et al. Oswald Plural. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1995.). Em paralelo, Cyclone compõe outro diário, “um caderno comum, de capa dura, preta e vermelha, de umas cinquenta páginas, aproximadamente. Na parte interna, grava: ‘Diário de Miss Cyclone / Oswald e Cyclone’, entre aspas ‘Dazinha Astinha’. Iniciado a 18 de agosto” (FONSECA, 1990FONSECA, Maria Augusta. Oswald de Andrade: biografia. São Paulo, Globo, 1990., p. 89). Nesse diário, ela anota, em formato de diálogo que transcrevo abaixo:

- Bem vez que o nosso amor é um paradoxo, um fenômeno incrível. - Tu me amas! Tu, o boy-chic da moderna literatura.

A relação entre a linguagem antropofágica de “comer o outro” e as relações amorosas e sexuais, em que somos devorados e devoramos, é captada através da frase do diário pessoal de Daisy: “Eu em ti, tu em mim, nós dois em Cravinhos” (FONSECA, 1990FONSECA, Maria Augusta. Oswald de Andrade: biografia. São Paulo, Globo, 1990., p. 90). Cria-se uma experiência nova através da fusão. Nesses sentidos múltiplos da devoração, só a antropofagia poderia nos unir. Essa fundição é localizada na assinatura “shippada” MIRACYCLONE, unindo “Miramar” e “Cyclone” logo na página 5 do Diário.

Mario da Silva Brito foi um dos primeiros a comentar este álbum, apontando nele “um romance de nova estrutura”. Haroldo de Campos defende que a “ciclônica Tufãozinho acaba sendo, por osmose e catalização, a autora-regente de O perfeito cozinheiro” (ANDRADE, 1992ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Globo, 1992. (Obras completas)., p. XXII), ao sugerir que Miss Cyclone é “espécie de ‘ghost writer’ desse agendário coletivo, dessa escritura originariamente plural, que flui por revezamento e contraste, por idílio e trocadilho, ponteio e contraponto, exercício estilizante e mordacidade paródica” (ANDRADE, 1992ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Globo, 1992. (Obras completas)., XXII). Eis um exemplo transcrito:

Receitas conventuais - Quizeras estar no convento? - Nú com vento? - ... !!! - Prefereria estar nua com garôa! (C. ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987. (Edição fac-similar)., p. 105).

Além de encontros sexuais, a garçonnière era usada como um espaço de questionamento das convenções sociais normativas. Notamos o jogo picante feito por Cyclone, onde sugere que, em vez de ir para o convento, prefere estar “nua com garôa”, um dos pseudônimos de Oswald. Provocante e irreverente, ela joga com a ambiguidade entre castidade ou sexualidade, deixando clara certa preferência libertina.

A estrutura aleatória deste livro-objeto foi anotada por Haroldo de Campos, que reforça características marcantes: a desconstrução da linguagem, o desrespeito pelas convenções sociais, desconstruídas com humor perspicaz, que remete à “figuração do futuro” da escrita oswaldiana, e o jogo verbal através do trocadilho. Todos estes elementos estão presentes na escritura de Cyclone:

KAMIÁ Oswald entrou cá miando, pelo chapéu. (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987. (Edição fac-similar)., p. 97).

No Diário, o jogo de ironias, situações insólitas e o tom humorístico constroem o ritmo do texto sem perder a dinâmica. É através da forma “livre, permitida pelo diário, que reflete uma subjetividade cujo potencial acabou por não se definir em um contexto social que visa impedir a constituição de uma subjetividade feminina e moderna de fato” (PASINI, 2015PASINI, Leandro. Daisy, Oswald e o Processo Erosivo do Modernismo Brasileiro.Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 61, p. 140-158, ago. 2015. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/100787 . Acesso em: 6 jan. 2023.
https://www.revistas.usp.br/rieb/article...
, p. 154). Oswald apresenta a persona “Miramar-Miramante-Miramarido”, enquanto o espírito escarnecedor de Cyclone é rápido como um flerte.

“Cyclone, Cyclone, Cyclone!...”

Uma moça com “ânsias modernas” frente ao modelo conservador das famílias tradicionais e numa sociedade particularmente repleta de valores que hoje soam como machistas e preconceituosos, Miss Cyclone prova que, embora em condições “sufocantes, o comportamento feminino nem sempre é dócil” (FONSECA, 1990FONSECA, Maria Augusta. Oswald de Andrade: biografia. São Paulo, Globo, 1990., p. 84). A garçonnière era um refúgio onde inquietações juvenis teriam espaço, com provocações intelectuais regadas à “Morgadas” e “canninha com limão! Mais canninha com limão!” (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987. (Edição fac-similar)., p. 44).

“A Cyclone, ela sozinha basta para encher um ambiente intelectual de homens do quanto ele precisa de feminino, para sua alegria e para seu encanto.” (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987. (Edição fac-similar).). Chama atenção que a normalista, “esquelética e dramática, com uma mecha de cabelos na testa” (ANDRADE, 2002ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe. 2. ed. São Paulo: Globo , 2002. (Obras completas)., p. 159), igualasse homens e mulheres, já na primeira conversa com Oswald, cujo diálogo transcrevo abaixo:

- Que pensas dos homens? - São uns canalhas. - E as mulheres? - Também. (ANDRADE, 2002ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe. 2. ed. São Paulo: Globo , 2002. (Obras completas)., p. 159).

Foi o suficiente para ele querer devorá-la: “Parece inteligente. Convido-a cinicamente a amar-me”. Ela responde: “- Sim, mas sem premeditação. Quando nos encontrarmos um dia” (ANDRADE, 2002ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe. 2. ed. São Paulo: Globo , 2002. (Obras completas)., p. 159). Ela vinha de Cravinhos, interior do Estado de São Paulo, para morar com os tios enquanto fazia o Curso Normal na Escola Caetano de Campos. “A esfinge do deserto do Brás” tinha uma presença ciclônica, era vaga nos comentários, misteriosa e sumia de vez em quando, para o desespero geral. “Decididamente, este covil sem a Cyclone é inútil como um gramofone sem discos” (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987. (Edição fac-similar)., p. 44). “O covil sem a Cyclone... eu preferia, no entanto, a Cyclone sem o covil.” (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987. (Edição fac-similar)., p. 45).

Miss Tufãozinho testava os limites sociais, familiares e religiosos, avançando num território intelectual exclusivamente masculino, mantendo a igualdade e constatando a grande verdade da época: “a mulher não é nem o que ela quer” (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987. (Edição fac-similar)., p. 105). Sem intimidar-se, Cyclone provocava a transgressão, pois “não somente inspirava a produção alheia, mas também entrava em jogo com os companheiros da garçonnière, desfiando ironias e nutrindo afetos, o que se preservou inscrito nas páginas do caderno” (SILVA, 2016SILVA, Yara dos Santos Augusto. Plasticidades poéticas, escrituras picturais: jogos do texto e da imagem na arte de poetas e pintores das vanguardas latino-americanas. 2016. 316 f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016., p. 153)

No dia 30 de junho, lemos sobre “Um mez de diário - quanto choque! quanta aventura! quanta vida! Cyclone, Cyclone, Cyclone!...” (ANDRADE. 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987. (Edição fac-similar)., p. 58). Desde o início, “Dasÿ é o pirão deste menu”, alma e alegria deste local, sem a qual, “o covil agoniza”. Suas peculiaridades provocam em Oswald um “novo estilo, imprimindo a ligeireza e síntese e muitos achados de sua literatura mais avançada. Deise acompanha com igual agilidade de estilo. Oswald chega mesmo a ressaltar esse seu talento literário” (FONSECA, 1990FONSECA, Maria Augusta. Oswald de Andrade: biografia. São Paulo, Globo, 1990., p. 86). Essa agilidade escrita que floresce com Deyse acompanharia Oswald em Memórias sentimentais de João Miramar e no Manifesto Antropófago.

Com a jovialidade à flor da pele, “A Cyclone é um desenho moderno” (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987. (Edição fac-similar).). Atrevida, indomável e marcada por um “sentimento iniludível de doença, de morte e de frustração” (ANDRADE, 2002ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe. 2. ed. São Paulo: Globo , 2002. (Obras completas).), ela acaba se indispondo com a família e com a escola, pois circulava a história de que ela fugia pela porta dos fundos do colégio para, dentre outras atividades, frequentar a garçonnière na Badaró. No livro Memória e sociedade - lembrança de velhos, Eclea Bosi entrevista D. Brites, que foi contemporânea de Maria de Lourdes Pontes na Escola Caetano de Campos. Ela define em poucas palavras a visão popular do caso:

Oswald de Andrade era de gente muito rica. Ele foi a causa de um escândalo na escola Normal do tempo em que fui aluna. Uma moça teve um caso muito comentado naquele tempo: entrava pela porta da Escola e saia pela dos fundos para encontrar com Oswald de Andrade. (FONSECA, 1990FONSECA, Maria Augusta. Oswald de Andrade: biografia. São Paulo, Globo, 1990., p. 93).

Miss Cyclone chega a comentar, em 1º de agosto de 1918, suas impressões em relação aos professores: “Mas como envelheceram os meus pobres lentes - (biconvexas). O Mérito de Moura cada vez mais chato e mais encardido, fazendo uma profusa distribuição de ‘Hymnos Nacionaes de sua lavra” (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987. (Edição fac-similar)., p. 120), e como era a recepção que recebia no local, no comentário de Mister Buarque, que:

Encarou-me um distante a dizer: - Então: cuidei que morrêra. Causava pena o perder tão eminente alumna “É exactamente, o que eu não desejava” da parte do pessoal miúdo da classe, recebi uma manifestação respeitosa e... escrapulosa. (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987. (Edição fac-similar)., p. 120).

O que provoca a escritura do diário são as ausências e presenças, os mistérios e gargalhadas sombrias que cercavam a enigmática moça moderna, que conseguia driblar família e escola, transgredindo limitações impostas e adentrando um espaço “estritamente masculino” como igual, brincando com a imagem de sedutora fatal, livre e independente, protótipo da modernidade feminina. Ela participa das discussões em nível de igualdade, sendo por vezes até mais sarcástica e maliciosa do que os “gravatas”, todos mais velhos que ela, que contava com 17 anos no início do Diário, completando 18 no dia 09 de julho de 1918.

Oswald escreve neste dia:

Julho 9 Dia dos anos da Cyclone, Salve, deusa ligeira! Salve, musa da tradição, agulha do meu disco emotivo, phonola da minha garçonière sentimental! Salve Toda Poderosa! Miramar.

O Diário é atravessado por tentativas de romance; o desenrolar da relação entre Oswald e Daisy - que já sabemos, era uma figura instigante, leitora de livros de mistério (além do livro “Os mistérios de Paris”, ela cita autores como Verlaine e Baudelaire). Cyclone era intimamente desejada por todos os “gravatas”, que entram com ela num jogo amoroso, “provocante e reticente, joga um jogo de esquivanças com seus mal-dissimulados pretendentes e com o próprio Miramante”.8 8 CAMPOS. Réquiem para Miss Cíclone, musa dialógica da pré-história oswaldiana. In: ANDRADE. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo, p. XIII-XV.

Exemplo inquestionável de mistura entre arte e vida, vai sendo costurada uma obra ficcional da vida real, em torno da figura ciclônica de Daisy, que participa do jogo ao construir a persona “Miss Cyclone”, “uma versão literária de si mesmo” (ALMEIDA, 1998ALMEIDA, Tereza Virginia de. Ausência Lilás da Semana de Arte Moderna. Florianópolis: Ed. Letras Contemporâneas, 1998., p. 45), tal como “Miramar”, versão literária de Oswald. O papel precursor do Diário da garçonnière é comprovado, evocado na figura de Cyclone como a “independência estética e social da mulher moderna” (PASINI, 2015PASINI, Leandro. Daisy, Oswald e o Processo Erosivo do Modernismo Brasileiro.Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 61, p. 140-158, ago. 2015. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/100787 . Acesso em: 6 jan. 2023.
https://www.revistas.usp.br/rieb/article...
, p. 148).

“O que nos interessa (e fascina) nesse livro passado é recapturar neles a figuração do futuro.” (PASINI, 2015PASINI, Leandro. Daisy, Oswald e o Processo Erosivo do Modernismo Brasileiro.Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 61, p. 140-158, ago. 2015. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/100787 . Acesso em: 6 jan. 2023.
https://www.revistas.usp.br/rieb/article...
, p. 148). Se observarmos o Modernismo brasileiro não como um processo linear, mas sim um fenômeno constituído de blocos, como peças de um quebra-cabeças, ou um jogo de montar, localizamos O perfeito cozinheiro das almas deste mundo e o Manifesto Antropófago como duas peças desse processo, extrapolando a Semana de Arte Moderna de 1922.

Pseudônimos

Desde o título, já fica explícita certa aura canibal através da figura de um “perfeito cozinheiro”, que prepara como banquete as almas deste mundo. Com uma carga experimental debochada e desafiadora, inclusive no pseudônimo que todos usavam, a autoria era ocultada ou embaralhada, principalmente por Cyclone, que escrevia e assinava embaralhando a autoria:

(Isso não é meu, é do garôa) Viruta Isso não é meu, é do Ventania Viruta Alto lá! foi a Cyclone quem escreveu as coisas de cima Ventania Foi o Valente Cyclone. (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987. (Edição fac-similar)., p. 93).

O disfarce teatralizado dos pseudônimos libertava para a performance textual. Como Cyclone escrevia em nome de outros, somente através da edição fac-similar é possível distinguir a caligrafia e tentar identificar a autoria. Ao longo deste ensaio, nos deparamos com os múltiplos pseudônimos usados pelos autores do Diário. Ainda assim, listamos abaixo (Tabela 1) alguns autores e suas respectivas assinaturas:

Tabela 1.
Alguns autores e seus pseudônimos

Nesse exercício desdobram-se nos pseudônimos os posicionamentos dos autores desse diário, fazendo da palavra e do humor, escudo e arma, construindo uma narrativa de retalhos e mistérios. Chama a atenção, por exemplo, o número de alcunhas assinadas por Monteiro Lobato, provável frequentador assíduo da garçonnière.

Embaralhar a autoria era uma ousadia de Cyclone, mesclada à insubordinação e a necessidade de liberdade. Cyclone representava para Oswald “a nossa mocidade, o nosso símbolo esquio” (ANDRADE, 2002ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe. 2. ed. São Paulo: Globo , 2002. (Obras completas)., p. 174), a vida antropofágica do “covil”.

Entre as onomatopeias que imitam os sons dos discos, inclusive a “Phonola” chega a assinar, ou melhor, assinam por ela, como se fosse também um personagem.

“Literatura cravinhense”

Figuras peculiares são utilizadas por Miss Cyclone durante a escrita (não apenas n’O perfeito cozinheiro...) classificada pejorativamente de “literatura cravinhense” por Oswald: “Todas as horas são roxas, a tarde é cinza-roxa. Morrem rosas, morrem almas. Miss Branca é mais pálida que a lua” (ANDRADE, 2002ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe. 2. ed. São Paulo: Globo , 2002. (Obras completas)., p. 179). Talvez ele jamais percebesse o quanto teria devorado desta “literatura cravinhense” de Daisy. Uma escrita sinestésica, capaz de sentir o gosto dos dias e o cheiro das músicas, e de construções como “beijo-te o olhar verde” e “ri devagar”. Vai se compondo uma “orquestra de cegos”, cuja “batuta invisível” é Miss Cyclone, e “si desafinarmos, a culpa é dela” (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987. (Edição fac-similar)., p. 21).

Que Miss Cyclone desafiava e motivava a escrita de Oswald, não há dúvidas. Inclusive, o próprio deixa claro a sua colaboração, na ocasião em que esteve no interior do Estado para apresentar uma conferência, pretexto para visitá-la em Cravinhos. Ele relembra: “Miramar precisa fazer a conferência. Tufãozinho o auxilia até uma hora, ante a lâmpada implacável, que ela barrou de vermelho, os dois fabricam a encomenda nacionalista” (ANDRADE, 2002ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe. 2. ed. São Paulo: Globo , 2002. (Obras completas)., p. 181). Infelizmente, jamais poderemos ter a exata noção dessa escritura, perdida em grande parte:

De Daisy, que também usara o pseudônimo de Gracia Lohe, resta bem pouco, apesar de ter deixado uma difusa e numerosa literatura. Se, nas minhas peregrinações, eu não tivesse perdido as suas “memórias” inteiramente fantásticas, ela talvez tivesse sido a precursora [...]. (ANDRADE, 2002ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe. 2. ed. São Paulo: Globo , 2002. (Obras completas)., p. 185).

“É a forma livre, permitida pelo diário, que reflete uma subjetividade cujo potencial acabou por não se definir em um contexto social que visa impedir a constituição de uma subjetividade feminina e moderna de fato.” (PASINI, 2015PASINI, Leandro. Daisy, Oswald e o Processo Erosivo do Modernismo Brasileiro.Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 61, p. 140-158, ago. 2015. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/100787 . Acesso em: 6 jan. 2023.
https://www.revistas.usp.br/rieb/article...
, p. 154). Ainda assim, é possível desconfiar que brote desta parceria algumas pilastras da antropofagia oswaldiana. Contudo, a escrita da moça já foi considerada como referência para “notações ingênuas e fim de século do álbum” (CANDIDO, 1992CANDIDO, Antônio et al. Crônica: o gênero e sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP , 1992.), que também chegou a ser criticado “do ponto de vista da inconsistência ideológica e da pobreza de seu conteúdo” (CANDIDO, 1992CANDIDO, Antônio et al. Crônica: o gênero e sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP , 1992.). É indubitável, porém, que ali já estava instalado o germe das posições radicais assumidas por Oswald nas décadas seguintes. A estrutura caótica e a manipulação de “objetos prontos e estranhos à linguagem tradicional, aliada ao humor constante são também engrenagens do Miramar e, sobretudo, das obras antropofágicas (CANDIDO, 1992CANDIDO, Antônio et al. Crônica: o gênero e sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP , 1992.). O perfeito cozinheiro das almas deste mundo “é um journal a um tempo pessoal e coletivo, estilhaçado em fragmentos de variada autoria” (ANDRADE, 1978ANDRADE, Oswald de. Os condenados. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1978. (Coleção Vera Cruz)., p. 31), cuja razão de existir é Miss Cyclone. E vice-versa.

Despretensiosamente dadaísta

A valorização do ócio é um alimento presente no banquete da garçonnière, retomado por Oswald posteriormente na “Revolução Caraíba”, onde não há oposição entre trabalho e diversão. Por muito tempo, a antropofagia foi confundida, sendo discutida apenas no contexto da Semana de Arte Moderna, embora este conceito tenha sido retomado diversas vezes por Oswald. Os principais elementos amadurecidos sob o signo de “antropofagia” já permeiam a aura desse Diário. A radicalidade indeglutível de Oswald de Andrade nasce com O perfeito cozinheiro... Antes, era um jornalista que havia publicado duas peças com textos melancólicos, beirando o piegas.9 9 A atmosfera deste diário não possui semelhanças com a melancolia apresentada nas primeiras peças, escritas em francês com Guilherme de Almeida, em 1916: Leur âme e Mon coeur balance. A partir dessa experiência, ele encontra na identidade múltipla de “Miramar” a irreverência devoradora experimental que caracterizaria sua obra.

Oswald se manteve fiel “a uma busca estética que primava pela inversão de códigos, pela experimentação artística e pelo interesse em explorar as fronteiras expressivas entre as artes. Essa atitude criativa insubordinada, que congrega a alegria audaciosa e irreverente e a burla espirituosa e mordaz com uma profunda visão crítica da sociedade, constitui um relevante componente da dimensão lúdica das obras de Girondo e de Andrade” (SILVA, 2016SILVA, Yara dos Santos Augusto. Plasticidades poéticas, escrituras picturais: jogos do texto e da imagem na arte de poetas e pintores das vanguardas latino-americanas. 2016. 316 f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016., p. 144).

A referência com o que vem de fora também pode ser pontuada além das canções que tocavam na Phonola. O jogo de bricolagem proposto por Daisy quando assina seu pseudônimo “CYCLOWNE”, no qual a palavra inglesa “clown”, que significa palhaço, é incorporada ao nome, engendrando esse significado. O discurso da nossa formação cultural até hoje está centrado neste dilema entre incorporar o estrangeiro ou abraçar o nacionalismo. Essa discussão já está no Diário, no qual existe até uma crítica satírica ao nacionalismo na página 194. A antropofagia oferece a possibilidade de colocar em choque esses dois mundos, e não simplesmente copiar ou levar nossos elementos para o outro. Esse trânsito possibilita o surgimento de algo novo, vivo e experimental. O choque entre as “coisas do Brasil” e as “coisas de fora” é identificado nas entrelinhas do Diário.

Despretensiosamente dadaísta, esse enorme livro-objeto antecipa a “multifacetária estrutura do romance invenção de Oswald de Andrade” (CANDIDO, 1992CANDIDO, Antônio et al. Crônica: o gênero e sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP , 1992.), em que o protagonista Miramar ganha corpo e alma. No Diário, imagens e textos se complementam, antecipando publicações como a Navilouca, enquanto livro-objeto de arte. Um modelo único, que seria precursor de livros como O mez da grippe (1981), de Valêncio Xavier, que também mergulha o leitor num jogo entre a linguagem e as imagens. Em todos esses, a fragmentação é a principal característica, capaz de agregar diversas referências.

Perceber o experimentalismo estético no jogo de colagens e montagens estabelecido entre texto e imagens é central na construção de sentido do Diário da garçonnière. Esse processo criativo singular inaugura perspectivas experimentais na exploração de uma escrita interartes performática, que mescla perspectivas artísticas e literárias.

A persona antropofágica de Oswald pode ser vista através de Miss Cyclone, “Feiticeira das olheiras outonaes”, “pinga da minha taverna sentimental” (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987. (Edição fac-similar)., p. 49). Segundo Yara Silva, através da manipulação da linguagem no Diário, do “contato interartístico e o experimentalismo estético, vislumbramos a prática de uma escrita criativa concebida como atividade lúdica” (SILVA, 2018SILVA, Yara dos Santos Augusto. Jogo e confluência interartes. In: ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. 2018. p. 2629-2640. (Congresso Internacional da ABRALIC - Circulação, tramas e sentidos na Literatura)., p. 2629). A performance de um “papel, um personagem, é parte inerente ao jogo literário que entabulavam” (SILVA, 2018SILVA, Yara dos Santos Augusto. Jogo e confluência interartes. In: ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. 2018. p. 2629-2640. (Congresso Internacional da ABRALIC - Circulação, tramas e sentidos na Literatura)., p. 2030). As vozes, que aparentemente são desarticuladas, vão costurando mensagens cujo elo é a animada disputa pelas atenções da Miss Cyclone.

Miramor Canibal

Oswald canibaliza suas relações amorosas antropofagicamente, numa troca em que as forças criativas dessas mulheres nutrem a própria criatividade. Essas mulheres foram fundamentais para modelar em Oswald o impulso antropofágico. Sem estas trocas, é provável que a escritura oswaldiana fosse outra... Em relação à Daisy, a liberdade sexual, que era associada aos indígenas (canibais), é louvada (e amordaçada) na moça moderna. Como já foi exposto, Oswald valoriza a energia primitiva, caótica e selvagem deste ato de “comer o outro”, o que pode ser interpretado inclusive sexualmente, refletindo-se na escrita.

Segundo Brito, “a visão de crimes e traições, de Bas-fonds e desagregação de Os Condenados, decorre dos mistérios que cercavam Miss Cyclone” (ANDRADE, 1978ANDRADE, Oswald de. Os condenados. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1978. (Coleção Vera Cruz)., p. 31). Ele anota que o tom de “sátira, zombaria e caçoada” e sua relação com situações insólitas possuem no Diário da garçonnière sua pedra fundamental.

O diário, por outro lado, apresenta ainda específico valor - é, em si mesmo, com suas tintas de diversas cores, suas colagens, trechos a carimbo, caricaturas, charges e caligrafias diversificadas, um objeto criativo, uma invenção como livro, peça rara em sua aparência e organização. É precursor de várias obras que, graficamente, tentam inovar as formas de comunicação. Texto e contexto, aspecto interior e exterior, forma e fundo, estão indissoluvelmente ligados nesse precioso documento de uma época e de uma cultura (ANDRADE, 1978ANDRADE, Oswald de. Os condenados. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1978. (Coleção Vera Cruz)., p. 31).

As possibilidades de experimentação são evocadas através da figura mítica de Miss Cyclone. Como vemos, a presença, e em especial, a sua ausência, é o motor desta dinâmica, que posteriormente seria identificada como antropofágica. Mário da Silva Brito acentua as peculiaridades antecipadoras do Diário

Se em Os Condenados é possível perceber em gérmen ou fermentação, os assuntos, personagens e clima que serão constantes na obra do romancista, é preciso acentuar que, tanto o primeiro volume da Trilogia do Exílio quanto o par Memórias Sentimentais de João Miramar - Serafim Ponte Grande, foram primitivamente gerados em O Perfeito Cozinheiro das Almas Dêste Mundo. É o diário da garçonnière do ficcionista. Dêle vários trechos foram reproduzidos em suas Memórias. [...]. Nesse caderno de formato grande, Oswald e seus amigos redigem, ora a lápis ora a tinta de várias cores, pensamentos, comentários, trocadilhos, paradoxos, impressões sôbre diversos fatos - há até um poema pré-concreto do futuro autor de Pau-Brasil, feito com tipos de carimbos, e diversas caricaturas (ANDRADE, 1978, p. 30).

N’O cozinheiro das almas deste mundo estão manifestas técnicas livres e práticas que interligam o verbal e o visual, cuja plasticidade antecipa mecanismos interartísticos. As brincadeiras dos “gravatas” agregam toda uma “variedade discursiva, material e artística. O jogo travado entre os frequentadores do estúdio supõe, portanto, uma imbricação criativa que repercute em uma escritura pansemiótica, de marcada plasticidade” (SILVA, 2016SILVA, Yara dos Santos Augusto. Plasticidades poéticas, escrituras picturais: jogos do texto e da imagem na arte de poetas e pintores das vanguardas latino-americanas. 2016. 316 f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016., p. 147).

Como um “jogo instrumental”, a subversão e as inversões dos sentidos conferem ao Diário um caráter de ineditismo criativo com contornos imprevistos. O livro passa a ser um “objeto artístico” que “subverte padrões e estilos de escrita, rompe as fronteiras entre as artes e expande a ideia de que a criação vanguardista deve ser inovadora” (SILVA, 2016SILVA, Yara dos Santos Augusto. Plasticidades poéticas, escrituras picturais: jogos do texto e da imagem na arte de poetas e pintores das vanguardas latino-americanas. 2016. 316 f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016., p. 149).

Mus(a)utora

A importância d’O perfeito cozinheiro das almas deste mundo foi ressaltada pioneiramente por Mario da Silva Brito e Haroldo de Campos. No entanto, sua reconhecida “musa”, é sempre vista através de Oswald de Andrade, reduzindo a figura de Daisy a um período determinado da biografia oswaldiana, “em que ela seria somente uma etapa da construção de sua obra, ou de sua personalidade literária” (PASINI, 2015PASINI, Leandro. Daisy, Oswald e o Processo Erosivo do Modernismo Brasileiro.Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 61, p. 140-158, ago. 2015. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/100787 . Acesso em: 6 jan. 2023.
https://www.revistas.usp.br/rieb/article...
, p. 151).

Somente conhecemos Cyclone através de Oswald de Andrade, mas seria possível observar e reconstruir Oswald através de Cyclone? O exercício aqui proposto foi exatamente seguir essa trilha, olhar a figura de Oswald através de Daisy. Podemos supor que, para Daisy, ele representasse “a sua condição de possibilidade e o fator de sua obliteração” (PASINI, 2015PASINI, Leandro. Daisy, Oswald e o Processo Erosivo do Modernismo Brasileiro.Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 61, p. 140-158, ago. 2015. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/100787 . Acesso em: 6 jan. 2023.
https://www.revistas.usp.br/rieb/article...
, p. 155). Estudá-la implica em estudar Oswald, mas também é possível fazer o caminho inverso.

Segundo lembra Cecília de Lara, na constituição do Modernismo brasileiro “para cada figura que sobressaiu, muitas outras ficaram nos bastidores, mas tiveram papel decisivo no debate de ideias, na abertura de caminhos”.10 10 LARA, Cecília de. Pressão afetiva e aquecimento intelectual: cartas de Antônio de Alcântara Machado a Prudente de Moraes, neto. São Paulo: Giordano/ Lemos, 1997, p. 14. Nesse sentido, Daisy é uma das figuras ocultas do Modernismo, mola propulsora de uma energia inventiva que Oswald experimentaria poucas vezes. É preciso olhar com mais ênfase as marcas deixadas por Daisy num dos momentos mais inventivo do trabalho de Oswald.

Nesse jogo perspicaz costurado por Cyclone, ela se revelou muito mais rebelde e moderna do que aqueles rapazes boêmios. Eternamente fadada à “incompletude fragmentária”, a uma presença ausente, sua escrita, irremediavelmente “deformada pela literatura”, como ela mesma anotou, carrega na “alma deste mundo” a mistura de estilos malditos, cuja leitura a faz querer sofrer todos os males do século, “Que será que eu tenho em mim? Uma anciedade (sic) má que me tortura um pouco... Sinto a premeditação que a alma tem para a desgraça! Que será que eu tenho em mim?... A medalha mostrou-me o reverso... C” (ANDRADE, 1987ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. São Paulo: Ex Libris, 1987. (Edição fac-similar)., p. 138). Oswald enfatizou pesar sobre ela o “sentimento iniludível de doença e de morte e de frustração” (ANDRADE, 2002ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe. 2. ed. São Paulo: Globo , 2002. (Obras completas)., p. 185). Quase premonitório, pressentia uma marca na alma, o signo da morte: “Num trecho literário que conservo, talvez dos seus quinze anos, ela narra que ‘Numa tarde de novembro’ assistiu a morte de Daisy, ‘uma linda criança de 17 anos!’” (ANDRADE, 2002ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe. 2. ed. São Paulo: Globo , 2002. (Obras completas)., p. 186). A personalidade desconcertante de Miss Cyclone vai se montando como um quebra-cabeças, onde algumas peças foram irremediavelmente perdidas. Uma leitura atenta “faz com que os escritos e a personalidade de Daisy adquiram um dinamismo próprio, capaz de fazer todo esse contexto gravitacional em torno de si” (PASINI, 2015PASINI, Leandro. Daisy, Oswald e o Processo Erosivo do Modernismo Brasileiro.Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 61, p. 140-158, ago. 2015. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/100787 . Acesso em: 6 jan. 2023.
https://www.revistas.usp.br/rieb/article...
, p. 154).

A falta de Miss Cyclone e sua relevância no Diário é percebida quando folheamos a revista coletiva Papel e tinta, dirigida por Oswald e Menotti del Picchia, na qual participavam vários integrantes da garçonnière da Libero Badaró. Embora quase idêntico, o grupo dessa revista não consegue alcançar nem de perto o nível experimental anterior. Faltava o combustível essencial, Daisy.

Como definir essa união descomunal? Uma comunhão experimental dominadora? Um paradoxo, cuja “extrapolação de classe” pode ser apenas uma das brechas para nos provocar espiar e modelar os elementos desta com-junção “MiraCyclonica”. Daisy foi a primeira esposa, e hoje está enterrada junto com Oswald de Andrade, no Cemitério da Consolação, Rua 17, nº 17, em São Paulo.

Referências

  • ALMEIDA, Tereza Virginia de. Ausência Lilás da Semana de Arte Moderna Florianópolis: Ed. Letras Contemporâneas, 1998.
  • ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo São Paulo: Ex Libris, 1987. (Edição fac-similar).
  • ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo São Paulo: Globo, 1992. (Obras completas).
  • ANDRADE, Oswald de. Os condenados 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1978. (Coleção Vera Cruz).
  • ANDRADE, Oswald de. Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe. 2. ed. São Paulo: Globo , 2002. (Obras completas).
  • BOAVENTURA, Maria Eugênia. O salão e a selva: Uma biografia ilustrada de Oswald de Andrade. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995.
  • CANDIDO, Antônio et al Crônica: o gênero e sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP , 1992.
  • FONSECA, Maria Augusta. Oswald de Andrade: biografia. São Paulo, Globo, 1990.
  • PASINI, Leandro. Daisy, Oswald e o Processo Erosivo do Modernismo Brasileiro.Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 61, p. 140-158, ago. 2015. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/100787 Acesso em: 6 jan. 2023.
    » https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/100787
  • RESENDE, Beatriz. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo, Diário do jovem Oswald e outros intrépidos rapazes. In: TELES, Gilberto Mendonça et al Oswald Plural Rio de Janeiro: EdUERJ, 1995.
  • SILVA, Yara dos Santos Augusto. Jogo e confluência interartes. In: ANDRADE, Oswald de. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo 2018. p. 2629-2640. (Congresso Internacional da ABRALIC - Circulação, tramas e sentidos na Literatura).
  • SILVA, Yara dos Santos Augusto. Plasticidades poéticas, escrituras picturais: jogos do texto e da imagem na arte de poetas e pintores das vanguardas latino-americanas. 2016. 316 f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016.
  • 1
    O que tocava na fonola de Miss Cyclone. Folha do Estado de São Paulo - A Ilustríssima - N° 31.672 - Ano 95, 20 dez. 2015, p. 4-7.
  • 2
    BOAVENTURA. A crônica mundana. Uma leitura de O perfeito cozinheiro. In: Seminário sobre a crônica. Fundação Casa de Rui Barbosa. Rio de Janeiro, out. 1988, p. 1.
  • 3
    Diferindo de grandes nomes da literatura, que alcançam o auge na maturidade, no caso de Oswald de Andrade o momento de maior profusão experimental de sua obra consiste entre o período da garçonnière, com O perfeito cozinheiro das almas deste mundo (1918), indo até meados dos anos 1930. Essa época coincide com o momento em que Oswald se relacionava com as três mulheres historicamente mais significativas: Miss Cyclone (1917-1919), Tarsila do Amaral (1922-1929) e Patrícia Galvão (1930-1935). Certamente, essas mulheres atravessaram o modo de produção de Oswald de Andrade.
  • 4
    Diario de Deyse. Fundo Oswald de Andrade, CEDAE, Unicamp.
  • 5
    BRITO, Mario da Silva. “O perfeito cozinheiro das almas deste mundo”. Correio da Manhã, edição 22989. Domingo, 17 de março de 1968. 4º Caderno, p. 3.
  • 6
    Neste ensaio, a normalista Maria de Lourdes Pontes será indicada através dos vários pseudônimos, para dar ideia da multiplicidade.
  • 7
    Continuação do depoimento (com certas incongruências): “Acabou indo viver com ele... Teve um filho; ficou tuberculosa e quando a criança nasceu ela já estava à morte. (Dizem que ele se casou in extremis com ela). A criança também morreu.”
  • 8
    CAMPOS. Réquiem para Miss Cíclone, musa dialógica da pré-história oswaldiana. In: ANDRADE. O perfeito cozinheiro das almas deste mundo, p. XIII-XV.
  • 9
    A atmosfera deste diário não possui semelhanças com a melancolia apresentada nas primeiras peças, escritas em francês com Guilherme de Almeida, em 1916: Leur âme e Mon coeur balance.
  • 10
    LARA, Cecília de. Pressão afetiva e aquecimento intelectual: cartas de Antônio de Alcântara Machado a Prudente de Moraes, neto. São Paulo: Giordano/ Lemos, 1997, p. 14.
  • Parecer dos Editores Convidados

    Ana Luiza Fernandes e João Queiroz, acolhemos os pareceres recebidos e recomendamos o texto para publicação. Seria possível observar e reconstruir Oswald de Andrade através de Miss Cyclone? Para a autora do artigo, a musa polifônica não é apenas a "autora-regente" de O perfeito cozinheiro (Andrade, 1992, XXII), mas sua grande ghost-writer. Ela organiza o livro. Assumidamente sua precursora ("Se, nas minhas peregrinações, eu não tivesse perdido as suas "memórias" inteiramente fantásticas, ela talvez tivesse sido a precursora" (...) [Andrade, 2002, p. 185]), Deise “traça os rumos que levarão Oswald, anos mais tarde, a reconsiderar sua precedência essencial na construção do que depois viria a ser a Filosofia Antropofágica (Antropotrágica também, nesse caso)”. "MiraCyclonica" é, aqui, um "germe das posições radicais assumidas por Oswald nas décadas seguintes”, “estudá-la implica em estudar Oswald”.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2023
  • Aceito
    15 Ago 2023
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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