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É o fim do mundo e eu me sinto bem

It’s the end of the world and I feel fine

Resumo

Este ensaio pretende sugerir uma constelação e uma linhagem dentro do Modernismo brasileiro aqui centrada numa leitura de Fronteira (1935), de Cornélio Penna, mas não limitada a ele, também incluindo Pelo sertão (1898), de Afrânio Arinos, Vida ociosa (1920), de Godofredo Rangel, Crônica da casa assassinada (1959), de Lucio Cardoso, Sinos da agonia (1974), de Autran Dourado entre outros através de imagens do fim do mundo como uma forma de pensar o campo e as pequenas cidades dentro de um Modernismo localista. A proposta não é contar mais estórias para evitar o fim do mundo, mas viver de novo o que já aconteceu.

Palavras-chave:
fim do mundo; Modernismo; Cornélio Penna; localismo

Abstract

This essay aims to suggest a constellation and a lineage inside Brazilian Modernism focusing on a reading of Fronteira (1935) by Cornelio Penna, but not limited to it -also including Pelo Sertão (1898) by Afrânio Arinos, Vida Ociosa (1920) by Godofredo Rangel, Crônica da Casa Assassinada (1959) by Lucio Cardoso, Sinos da Agonia (1974) by Autran Dourado, among others- through images of the end of the world as a way of rethinking the countryside and small cities within a localist Modernism. The proposal is not to tell more stories to avoid the end of the world but to relive what has already happened.

Keywords:
end of the world; Modernism; Cornélio Penna; localism

Resumen

Este ensayo equen um constelaciónum un linaje dentro del Modernismo brasi equ aquí centuum en una lectura de Fronteira (1935) de Cornelio Penna, pero no limitada equena, también incluyendo Pelo Sertão (1898) de Afrânio Arinos, Vida Ociosa (1920) de Godofredo Rangel, Crônica da Casa Assassinada (1959) de Lucio Cardoso y Sinos da Agonia (1974) de Autran Dourado entre otros, a través de imágenes del fin del muum como una forma de pensar el equenaslas pequeñas ciudadeumdentro de un Modernismo localista. La propuesta no es contar más historias para evitar el fin del mundo, sino vivir de nuevo lo que ya ocurrió.

Palavras-clave:
fin del mundo; Modernismo; Cornélio Penna; localismo

Assim expira o mundoNão com uma explosão, mas com um suspiro. (T. S. Elliot, “Terra Devastada”)

Isto será sobre catástrofe, ruína, naufrágio. Isto será sobre o fim, um longo fim, fim de linha, fim de caminho, de esperanças, de utopias. Isto será sobre sobreviventes de uma outra época. Sobreviventes de si mesmo. Ao contrário dos que se dedicam ao colapso ambiental, ao extermínio de espécies, povos e culturas no presente, o fim do mundo que me interessa não é algo a ser evitado, já foi há muito tempo. Só consigo ver ruínas e cadáveres sem sentido. Resta saber, e esta é minha esperança ao escrever esse ensaio, que ele possa dizer algo sobre o presente. Não é inútil dizer, a sensação é que escrevo para a minha morte. Agora, nesses últimos dias, quando reescrevo e reviso essas anotações, parece que terminarei este ensaio, feito sob grande exaustão, como se vampirizado pelo que escrevia.

Não sou próximo aos discursos ativistas que pretendem evitar o fim do mundo, sejam ecologistas ou de(s)coloniais, no resgate de saberes não-ocidentais ou de povos originários como alternativas a um outro mundo possível, como se a Modernidade e o Ocidente fossem as “bêtes noires” do presente. Deixo-me ser tomado pelo naufrágio, pela decomposição, por forças muitos maiores que as humanas, individuais e sociais, e ser sensível para perceber onde elas possam nos levar, à deriva, aprender a não temer o dilaceramento, a dispersão. E continuo indo até esse passado cada vez sabendo menos o que encontrarei e o que serei. Mal comecei e um grande cansaço me toma para me interromper, para dilacerar ou me fazer continuar por caminhos imprevistos. Mas busco conexões.

Aqui, neste Modernismo que trilho, haveria alguma equivalência para pensar o que acontece depois da explosão vanguardista dos anos 20? Incorporar suas aberturas, mas não seus gestos públicos ou no desejo de reformar a cultura nacional? Balbucios, sussurros, falas particulares em tom menor atentas aos silêncios e vazios, não tanto dos que têm ou querem poder, lugar e fala, mas do que perderam o poder, o lugar e a fala, antes que desapareçam, diante da normalização da destruição, da sua desaparição. Caminho em direção a vocês. Não procuro um espelho. Seria visto se nos encontrássemos? Talvez, no máximo, num relance de olhos, mais um fantasma nas suas paisagens. Mas continuo a caminhar pelo deserto do real contemporâneo em direção ao mundo em desamparo em que viveram. O céu já há muito desabou para vivos e mortos.

Genealogia do fim do mundo

Quando começa o fim? Que fim? O fim do ouro e do café como matrizes econômicas em Minas Gerais e no vale do Paraíba encenam uma vez mais o drama da decadência, foram revitalizados pelo imaginário decadentista do século XIX, estabelecendo uma linhagem que expressa a decadência do café e dialogando com a decadência do ouro. O que vem depois do fim? O que resta?

Uma cena vem dos Sinos do Agonia, de Autran Dourado (1974DOURADO, Autran. Sinos da agonia. Rio de Janeiro: Rocco, 1974.), que remonta ao apogeu do ouro em Vila Rica, atual Ouro Preto, mas, nesse apogeu, já há a marca da transitoriedade da riqueza e da revolta. Para a história do Brasil, o mito que restou foi a Inconfidência Mineira, mas uma outra história, uma outra genealogia, distante dos marcos heroicos da nacionalidade, é que Autran Dourado (1974) encena entre aqueles destinados a não terem herdeiros ou terem herdeiros frágeis, mulheres sem filhos, melancólicos sem pertencer bem ao presente, ao passado e ao futuro. É o que resta da destruição que importa aqui. Em Sinos da agonia, só há um vislumbre de futuro quem teve seu passado mais destruído, o que não tinha posse e talvez pudesse tudo arriscar: Isidoro, ex-escravo, deixa de falar português e fala iorubá, vai em busca dos quilombos passados ou a serem construídos.

Pensando em Os sinos da agonia, de Autran Dourado (1974DOURADO, Autran. Sinos da agonia. Rio de Janeiro: Rocco, 1974.), vemos como o movimento é o da nobreza vicentina empobrecida em direção aos enriquecidos donos de lavras, mas o fantasma da crise, da queda, se imiscui no romance desde o início, e o herdeiro é o filho melancólico, numa ausência de horizontes políticos e históricos, traduzido na ruína e no impasse, não na gestação de utopias passadas ou futuras, de espaços culturais fora das matrizes eurocêntricas. Embora haja vislumbres de hibridismos, eles não são suficientemente fortes para se pensar uma alternativa radical em moldes decoloniais, afroamericanos, que, no entanto, ficam no horizonte final. Mas haveria uma herança da decadência?

Em Pedreira das Almas (1958), de Jorge Andrade, diante do declínio do ouro e das revoltas liberais sufocadas no século XIX, é o vislumbre do interior paulista como uma alternativa econômica e histórica de uma sociedade talvez mais livre das limitações sociais, religiosas das pequenas, sufocantes e aprisionantes cidades mineiras (ANDRADE, 1970ANDRADE, Jorge. Pedreira das almas. In: ANDRADE, Jorge. Marta, a árvore e o relógio. São Paulo: Perspectiva, 1970. p.71-116.). Já no romance de Autran Dourado, os sinos da agonia tocam sobre e para aqueles sem futuro. Seria o som o que resta? Ou os objetos? Como em Pelo sertão, de Afonso Arinos (1898ARINOS, Afonso. Pelo sertão. Rio de Janeiro: Garnier, 1898.), a cadeirinha ou o piano que decaem de dono em dono, passando por espaços outrora grandiosos, feridos pela morte, até serem esquecidos de seus faustos (SANTIAGO, 2021SANTIAGO, Silviano. Lúcio Cardoso levantou um punhal contra Minas Gerais em obra-prima. Folha de São Paulo, Ilustrada, 22 abr. 2021.).

A atmosfera em Vida ociosa, de Godofredo Rangel (1920RANGEL, Godofredo. Vida ociosa. São Paulo: Melhoramentos, 1920.), já no Vale do Paraíba, vem de encontro a essa vida modorrenta, cristalizada num casal envelhecido, que perdeu grande parte de suas posses, a pujança econômica de suas terras e a vitalidade social, vivendo de lembranças e memórias. Fora das cidades pequenas, o que resta desses herdeiros despossuídos sem dinheiro e ou destinados a profissões liberais, como o narrador juiz, celibatário de A vida ociosa?

Os lustres, o quadro da Marquesa do Pantanal, os móveis austeros no labirinto de quartos com janelas sempre fechados em Fronteira (1935PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021.), de Cornélio Penna. Se em Menina morta (1954), podemos pensar em um esteticismo de objetos raros, mercadorias vindas do Rio de Janeiro ou do exterior, esses parecem não estar mais presentes nos espaços grandiosos, mas empobrecidos de Fronteira. Tanto um romance como o outro nada têm de nostalgia conservadora ou dimensão antimoderna, mas encarnam um outro olhar moderno que já tentamos identificar, marcado pela melancolia, pela anacronia (LOPES, 1999LOPES, Denilson. Nós os mortos: melancolia e neobarroco. Rio de Janeiro: 7Letras, 1999.).

A história social, política e econômica é imprecisa. A única data mencionada em Fronteira é a Revolta da Armada, que aconteceu em 1893, fracasso diante da república endurecida sob a égide militar. Grande parte do que acontece está num tempo vago, décadas depois. Nada a falar ou a contar da República Velha a não ser pela ruína de uma família, as mortes numa casa onde não se veem nascimentos. Não são figuras exemplares nem heróis que persistirão. Nesse mundo os objetos persistirão mais do que nossos corpos em decomposição. A própria escrita são fragmentos, restos incompletos de personagens cujos rostos se apagam, às vezes, já sem nomes. Alguns poucos retratos sobrevivem nas paredes de Cornélio Penna e Carlos Drummond de Andrade, ambos marcados por Itabira, cidade que parece uma ponte imaginária entre o mundo do ouro e o do ferro.

Há aqueles que partiram das casas assassinadas, das cidades mortas, e habitam discretamente um mundo de escuridões, aqueles que não deram certo, escondidos nos restos de suas propriedades, ou em pequenos empregos, nos subúrbios, longe do feerismo do centro das cidades modernas como em vários quadros de Goeldi. Essa sensibilidade mais atenta ao fim do que a um começo pode nos conferir uma herança para enfrentarmos as catástrofes futuras? O que brota na sombra, na noite, na escuridão? Seria só uma lembrança evocada por alguns artistas desses seres dilacerados, impotentes, testemunhas do fim, aos quais cabem apenas se eclipsarem? O que restaria da perda, do fracasso, da derrota, da morte?

O caminhar com esses seres reservados, nem sempre discretos, com gestos grandiosos em quatro paredes, pode nos fazer apenas perceber o que uma vez existiu e não existe mais. Haveria uma outra força na melancolia que não seja a revolta, a revolução, os levantes e insurreições? Na constante ação, produção, bem pode a impotência no seu constante desfazer criar uma outra rede de sensações, afetos, sem grandes ambições, mas que nos falam do menor, do pequeno, do frágil?

Assim, me detenho em Cornélio Penna, não tanto o contramito da confraternização racial como Luiz Costa Lima (2005, p. 16) chamou Menina Morta em contraponto à Casa-Grande e Senzala (1933), de Gilberto Freyre, mas algo que vai numa outra direção. O caminho das ruínas (LOPES, 1999LOPES, Denilson. Nós os mortos: melancolia e neobarroco. Rio de Janeiro: 7Letras, 1999.) não é só a inversão ou crítica do mito que “acentua a impossibilidade da comunicação entre as criaturas” (COSTA LIMA, 2005COSTA LIMA, Luiz. O romance em Cornélio Penna. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2005., p. 21), mas um viver em constante fugacidade, desfazimento, pela morte, pela noite, enfim, pela catástrofe que não nos leva a novas utopias nem a distopias, mas a um enfrentamento da precariedade diária, ao ouvir o som estridente de pássaros sombrios no raiar do dia.

Ao reler Cornélio Penna, também há uma outra dimensão que não pertence só a ele mas se trata de resgatar a província, de forma diferente de seus sentidos mais comuns como estado pregresso, atraso, inadequação histórica, periferia fora do tempo, cor local, preconceito (BERARDINELLI, 2007BERARDINELLI, Alfonso. Da poesia à prosa. São Paulo: Cosac Naify, 2007., p. 69), mas também não só dentro de um processo de modernização que hoje se traduz no agronegócio, mas que tem um longo histórico associado a momentos de decadências, quando não há mais nem possibilidade de nostalgia de um fausto do passado ou ele nunca existiu. A província ou a pequena cidade é mais do que o lugar de onde partiram artistas modernos para realizarem suas carreiras nas metrópoles nacionais ou internacionais. Assim, o espaço rural não seria só espaço do passado, da memória da infância, nem do arcaico, do regional, do não moderno social, cultural e, por vezes, econômico, numa reprodução da dualidade campo e cidade. Há uma localidade, mas não uma cor local, nem o horizonte do nacional. Se após a conhecida metáfora de McLuhan o planeta passa a ser visto como uma aldeia (não sei se a referência indígena passou tão desapercebida quando o termo foi criado, o que não aconteceria hoje...) em que medida a pequena localidade, a província pode ser o mundo. No mundo das conexões dos meios de comunicação de massa e, ainda mais das redes virtuais, fica cada vez mais fácil imaginar uma espécie de cosmopolitismo midiático, em comunidades de solidariedades transnacionais (APPADURAI, 1996) que se superpõem às proximidades geográficas, mas nessa trajetória das decadências dos espaços extrativos do ouro e do café, nem o rádio parecia ter chegado. Se, nos momentos de riqueza, os trânsitos de mercadorias e bens culturais aconteciam, esses parecem rarear com o declínio econômico. Também não cabe a conhecida frase roseana de o sertão ser o mundo, num encontro radical construído com problemáticas modernistas, aqui estamos numa outra região geo-imaginária e num outro horizonte estético. Outra dimensão a se mencionar, mas que não tenho tempo de explorar, em alguns desses trabalhos, seria um possível diálogo do cosmopolitismo com o universalismo cristão, no qual as cosmogonias afro-ameríndias estão nas margens, quando presentes.

Em Cornélio Penna, o mundo da província, não por acaso, chamado pejorativamente hoje em dia de fim de mundo, pode ser constituído em torno da família, mas este não é mais tão coeso, está se estilhaçando, como na linguagem lírica moderna, o indivíduo perde seu peso, sua espessura. Portanto conjuga expressões distintas. Como não busca fazer uma crônica de costumes, o tédio não é derivado da repetição explicitada de um cotidiano, mas de um esvaziamento, de uma espectralidade derivada da dissolução afetiva, da solidão também presente nas multidões das grandes cidades como em lugares ermos. Longe, portanto, de nostalgia idealizadora, conservadora, regressiva, na província ficam também explicitados, de forma que podemos chamar de crítica, mas não como denúncia, males do progresso, a falência, a desagregação, em que o antiquado se mistura ao perverso.

Aqui tento aproximar a decadência do ouro e dos diamantes em Minas Gerais a partir do século XVIII e a decadência do café a partir do século XIX no Vale do Paraíba. Não só uma comparação possível de ser feita considerando dois imaginários associados à decadência, à catástrofe, à crise e mais do que a persistência de um imaginário barroco seja em diálogo com Neobarroco (LOPES, 1999LOPES, Denilson. Nós os mortos: melancolia e neobarroco. Rio de Janeiro: 7Letras, 1999.), seja já dentro de uma discussão modernista (VELOSO, 2018VELOSO, Mariza. O Tecido do Tempo: o patrimônio cultural no Brasil e a Academia SPHAN. Brasília: Editora UnB, 2018.; SCRAMIM, 2019SCRAMIM, Susana. “Pervivências” do Arcaico: a poesia de Drummond, Murilo Mendes e Cabral e sua sombra. Rio de Janeiro: 7Letras , 2019.). Estaria em pauta a construção de uma linhagem de um Modernismo melancólico que redimensiona a experiência rural como moderna e não arcaica ou mítica. O desafio, segundo Moreira (2012MOREIRA, Paulo. Modernismo localista das Américas: os contos de Faulkner, Guimarães e Rulfo. Belo Horizonte: Ed. da UFMG , 2012.), não é de pensar o Modernismo definido por um cosmopolitismo hostil a qualquer dimensão do local (MOREIRA, 2012MOREIRA, Paulo. Modernismo localista das Américas: os contos de Faulkner, Guimarães e Rulfo. Belo Horizonte: Ed. da UFMG , 2012., p. 257), mas que pensa o local em Rulfo, Rosa e Faulkner no interior mesmo do Modernismo, o que nos afasta de pensá-lo, nos autores que estamos lendo, não como parte de um Brasil profundo, expressão que voltou a ser usada em recente artigo que teve uma certa repercussão ao enfocar a publicação de romances contemporâneos que se passam no interior associado ao sucesso de Torto Arado (2019), de Itamar Vieira (GABRIEL, 2022GABRIEL, Ruan de Sousa. De volta ao Brasil profundo: editoras apostam em obras de novos autores ambientadas no interior do país. O Globo, 26 mar. 2022.). Voltar a um Modernismo localista não seria uma outra forma de nomear uma tradição regionalista que remonta ao nacionalismo romântico ou ao realismo social do século XIX, mas algo associado mesmo à modernização (MOREIRA, 2012MOREIRA, Paulo. Modernismo localista das Américas: os contos de Faulkner, Guimarães e Rulfo. Belo Horizonte: Ed. da UFMG , 2012.). Também, em autores como Cornélio Penna, Lucio Cardoso e Autran Dourado, a sociedade e história locais, ao invés de mitos arcaizantes ou detalhadamente descritas, narradas nos seus costumes e tradições, ou mesmo nos fatos históricos, aparecem como espectros, vagas referências, sensações. Não são “mundos de ficção que são objeto da imaginação nostálgica de cidadãos de um mundo urbano e desenvolvido (e incluo aqui os que habitam esses enclaves na América Latina) como culturas arcaicas perenemente à beira da desaparição” (MOREIRA, 2012MOREIRA, Paulo. Modernismo localista das Américas: os contos de Faulkner, Guimarães e Rulfo. Belo Horizonte: Ed. da UFMG , 2012., p. 23). Distantes da nostalgia idealizadora, regressiva, já mencionada acima, “através da qual os leitores urbanos se separam de maneira paternalista e condescendente do que consideram “produtos autênticos de suas regiões” (MOREIRA, 2012MOREIRA, Paulo. Modernismo localista das Américas: os contos de Faulkner, Guimarães e Rulfo. Belo Horizonte: Ed. da UFMG , 2012., p. 24), e mais próxima, no caso dos trabalhos que estou lendo aqui, de uma melancolia para a qual o passado nunca passa de todo. Seguindo Moreira (2012), “decidi adotar o termo localismo, não como proteção contra o sentido pejorativo que costuma estar implícito em regionalismo, mas porque localismo me permite integrar à minha reflexão a ficção centrada em um olhar atento e amoroso a ambientes urbanos e inclusive metropolitanos” que esperamos ver, no decorrer da pesquisa, ao aproximar Cornélio Penna e Goeldi.

Assim, a proposta de um Modernismo localista procuraria evitar certas armadilhas:

uma falsa oposição entre o particular e o geral na arte, complicada por uma ideia ainda mais equivocada de universalidade que, como disse Susan Sontag em ensaio sobre Machado de Assis, serve não mais que para uma apreciação, ao final autoelogiosa, de artistas e intelectuais localizados nos centros econômicos e culturais do mundo ocidental e para o abastecimento de um complexo de inferioridade entre artistas e intelectuais do terceiro mundo em seus enclaves periféricos. Dentro dessa perspectiva, para ser universal havia que ser urbano e referir-se a uma existência reconhecível pelas classes médias urbanas e as elites mundiais (MOREIRA, 2012MOREIRA, Paulo. Modernismo localista das Américas: os contos de Faulkner, Guimarães e Rulfo. Belo Horizonte: Ed. da UFMG , 2012., p. 27).

E adicionaria: nos afastaríamos de outro problema, que seria o fetiche do radicalmente outro, o exótico. Os autores que vamos tratar não vão aos limites da linguagem como Rosa ou Faulkner, não é porque suas narrativas sejam mais domesticadas, mas porque estabelecem relações com tradições romanescas, como a francesa e a inglesa no século XX, ainda interessadas na narrativa e não só no romance como criação de mundos radicalmente particulares. Aqui, ao recuperarmos uma aproximação com o Barroco, não se trata de falar de uma vida mais autêntica ou no seu contrário, mais alienada, mas um palco de encenação que pode ser tão complexo quanto o das grandes cidades.

Um outro fim de mundo é possível

A estreia com Fronteira colocou Cornélio Penna do lado dos católicos (sem nunca ter se assumido como tal na ficção ou politicamente) ou dos intimistas, mas, como em vários trabalhos de autores nordestinos, para continuar com o vocabulário dos confrontos dos anos 1930, o mergulho na intimidade se mistura à construção de uma paisagem não só social, mas uma paisagem poética que fugirá em vários momentos de uma tradição regionalista calcada no realismo social e não se abrirá para leituras alegóricas ou míticas, nostálgicas ou revolucionárias, de um Brasil profundo ou arcaico. Contudo, me interessa tentar ler Fronteira, dado sua fortuna crítica restrita, a partir de um outro olhar do que esses embates dos anos 1930.

Seu gosto pela atmosfera, presente em seus trabalhos visuais (EULÁLIO, 2012EULÁLIO, Alexandre. Os dois mundos de Cornelio Penna. In: CALIL, Carlos Augusto (org.). Tempo reencontrado: ensaios sobre a arte e literatura. São Paulo: IMS/34, 2012. p. 221-246.) poderia nos dirigir a um campo do realismo fantástico ou do romance gótico (BARROS, 2020BARROS, Fernando Monteiro de. Lúcio Cardoso e Cornélio Penna: parcerias textuais do Gótico Brasileiro. In: RODRIGUES, Leandro Garcia (org.). Lúcio Cardoso 50 anos depois. Belo Horizonte: Relicário, 2020. p. 83-96.), mas seu mundo de fantasmas é mais dos meandros da memória, e, apesar do estado letárgico e solitário dos seus personagens, estes são pouco descritos, como também pouco falam ou pensam, com exceção de Menina Morta. O sobrenatural não vem de uma mundivisão religiosa, mística, e esse mundo que se mistura com sonhos decorre da solidão e ensimesmamento. A atmosfera se sobrepõe a uma narrativa com poucos e descontínuos fatos, difíceis de serem transpostos para outras linguagens. Não sendo à toa que a dimensão atmosférica de Fronteira (2008) está mais presente no filme homônimo de Rafael Conde pela fotografia (me chamou a atenção numa das vezes que vi o uso da névoa) e na música (o trabalho de Grivo, a música do padre José Mauricio, o contraponto dos rituais afro e católico) do que no enredo ou nos personagens, em que o diretor parece aproveitar todos os (poucos) momentos que poderiam constituir diálogos para tentar fortalecer a narrativa ao invés de apostar na atmosfera marcada pela ausência de grandes fatos ou dramas, nos tempos vazios que parecem preencher boa parte da existência dos personagens.

Longe do detalhismo luxuoso da casa de Menina Morta, aqui tudo é mais fantasmagórico e decadente, inclusive os personagens. Apesar de uma sensação de ameaça, nada muda. Há uma tensão sexual entre o narrador e Maria Santa, emoldurado por pequenos detalhes como flores vermelhas no lençol e o noivo assassinado (COSTA LIMA, 2005COSTA LIMA, Luiz. O romance em Cornélio Penna. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2005., p. 62-63), o que não é tão importante nos outros romances de Cornélio. Em Fronteira, “toda aquela casa enorme e fechada, como um cofre, com a pequena cidade, que se aborrecia espalhada em torno dela” (COSTA LIMA, 2005COSTA LIMA, Luiz. O romance em Cornélio Penna. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2005., p. 33), de onde saía enterros (COSTA LIMA, 2005COSTA LIMA, Luiz. O romance em Cornélio Penna. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2005., p. 24), lembra a Chácara dos Menezes em Crônica da casa assassinada, de Lucio Cardoso (1999CARDOSO, Lucio. Crônica da casa assassinada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.). Em contraponto a esse isolamento é que as consultas que a população vinha fazer à tia Emiliana se batiam, como se quisessem insuflar ar e vida à casa. Era um labirinto de espaços autônomos sem se saber de suas conexões.

Suas salas gigantescas e toscamente construídas eram mobiliadas com raros móveis, de pau-santo, muito grandes, rígidos e ásperos, dando a impressão de que os avós de Maria, seus antigos possuidores, levavam uma vida de fantasmas, em pé diante da vida, só se sentando ou recostando, quando doentes, para morrer. Era uma casa feita de acordo com o cenário das montanhas que a cercavam de todos os lados, e não feito para servir de quadro e abrigo para os homens que a tinham construído com suas próprias mãos. Tudo se conservava nos mesmos lugares (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 9).

Mesmo que todos tenham morrido e tenha ficado apenas Maria Santa.

A casa em Fronteira, fechada ao olhar público, pesada e pouco acolhedora, lenta, diferente da riqueza de detalhes da casa opulenta de A menina morta, raramente objetos são destacados, uma vez um lustre, uma cadeira de alto encosto onde Maria Santa se sentava (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 36); retratos na parede, ou um quadro feito com animais mortos da marquesa do Pantanal, que isolou-se na fazenda por quarenta tristes anos, após a morte de seu marido, influente no Império (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 29-30), diferente de uma linhagem de mulheres que nunca se aborreceram por falta de finalidade, à qual julga Maria Santa fazer parte, no entanto, aprisionada, em suas próprias palavras, na loucura e na solidão em quem sua tia Emiliana julga ver uma missão. O quadro talvez tenha um papel semelhante ao da menina em A menina morta. Num, os animais preservados. Noutro, a imagem da menina morta. Ambos, restos de vida e movimento, de prazeres num lugar onde não aparecia haver muitos.

Um duplo da casa talvez seja a “casa dos bexiguentos” (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 52), erguida ainda por escravos em que seu sangue se misturava ao cimento, bem como preenchida, assim rezava uma lenda, pelos corpos de uma senhora martirizada e um feitor assassinado, cortado em pedaços (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 52-53), como o câncer se mistura à casa de Crônica da casa assassinada. O narrador, contudo, “queria sentir o contato das coisas inanimadas, que vivem e combinam com as coisas humanas” (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 45). Talvez por ser em vão ele anda pela cidade. Em Fronteira, a cidade, não nomeada, como nos outros dois romances seguintes de Cornelio Penna, parece ser assombrada por Itabira:

As montanhas negras, escorrendo chuva, apagadas pelo denso nevoeiro que sobe da terra, calçada de ferro, e também negra, caminham aos meus olhos, lentamente, como em sonho sufocante. Leio, em minha memória preguiçosa, um grande cartaz com dizeres em inglês e que aparece de surpresa na escuridão, indicando a entrada de minas de ouro abandonadas. O vale de pedra, nu de árvores, engolfa-se na noite, ameaçador. Nenhuma ambição dava vida àquele lugar de mistério (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 5).

Esse ambiente negro me levou menos ao Expressionismo cinematográfico, mas a uma releitura particular que o Modernismo brasileiro fez do Barroco (LOPES, 1999LOPES, Denilson. Nós os mortos: melancolia e neobarroco. Rio de Janeiro: 7Letras, 1999.), que talvez possa ajudar a compreender as gravuras de Goeldi, embora os espaços sejam diferentes, em ambos, o fascínio por vultos sombrios e solitários, e as distorções não se encaminham por uma decomposição do espaço e da figura tão forte pelas cores como na pintura expressionista.

Revendo anotações feitas de Fronteira, de Cornélio Penna, minha admiração por esse romance tão pouco lido cresce e a sugestão de um Modernismo brasileiro cuja leitura remonta a uma linhagem que vem do Barroco permanece ainda mais forte do que diálogos com as variações estrangeiras mais influentes das vanguardas (Futurismo, Surrealismo, Expressionismo, Dada, Abstracionismo). Estaria, então, caindo na armadilha da repetição, incapaz de ter outros olhares ou só consigo olhar aquilo que me fascinava, e vejo que ainda fascina, cego para outros caminhos, para outras possibilidades? Repasso duas palavras: catástrofe e festa. Talvez elas não tenham ficado tão evidentes lá quando comecei e agora ganham maior ênfase nesse espetáculo que, se tiver ainda energia e sorte, poderei ainda erguer cena por cena. Diferente do lirismo de Guignard:

As montanhas correm agora, lá fora, umas atrás das outras, hostis e espectrais, desertas de vontades novas que as humanizem, esquecidas há dos antigos homens lendários que as povoaram e dominaram. Carregam nos seus dorsos poderosos as pequenas cidades decadentes, como uma doença aviltante tenaz, que se aninhou para sempre em suas dobras. Não podendo matá-las de todo ou arrancá-las de si e vencer, elas resignam-se e as ocultam com sua vegetação escura e densa, que lhes serve de coberta, resguardando o sonho imperial de ferro e ouro (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 8).

Assim a cidade, como o narrador, não nomeada em Fronteira, mas nomeada como Itabira nos outros dois romances de Cornélio Penna e no seu artigo “Itabirismo”, é um elo entre a decadência do ouro e a devastação na procura do ferro no Estado de Minas Gerais, que se estende até o presente, em morros destruídos, paisagens exclusivamente minerais e nas suas catástrofes ambientais de represas de dejetos rompidas. Mais do que um retrato na parede que dói, como para Drummond em Confidências de um itabirano, Itabira aqui é o centro mesmo do mundo de Cornélio Pena, onde não nasceu, onde pouco viveu, mas de onde nunca se afastou. Não se trata de mero enraizamento, de nostalgia patriarcal e colonial, mas talvez de uma reinvenção geo-imaginária a partir do local, um apego a uma materialidade das paisagens e dos objetos, mas sem nenhum desejo panteísta porque há sempre a cidade, a casa e a fazenda afastadas da natureza.

Não se notabilizando como jornalista ou ensaísta, Cornélio Penna não foi intelectual público, nem se posicionava sobre temas públicos e da atualidade. Apesar de não termos feito uma pesquisa nos jornais de época sobre seus escritos, alguns de seus textos e entrevistas foram publicados recentemente (PENNA, 2020bPENNA, Cornelio. Caderno de pinturas e desenhos. São Paulo: Faria e Silva, 2020a.), nos quais alguns dialogam com mais força com seus romances. Outros são decepcionantes, concessões a lugares comuns de sua época, como. Por exemplo, entre os artigos jornalísticos reproduzidos, há um sobre a cultura brasileira a ser construída além das reproduções do que índios, negros e brancos fizeram (PENNA, 2020bPENNA, Cornelio. Alma Branca e outros ensaios. São Paulo: Faria e Silva , 2020b., p. 24) e com a incorporação do melhor que possa vir de fora, o que coloca o autor em sintonia com certa tradição intelectual brasileira, mas que não encontra muito eco em sua produção ficcional. Mais curioso e particular é seu artigo Itabirismo (1937), ao colocar não o Rio de Janeiro ou São Paulo, mas Itabira como “a prodigiosa cristalização da alma brasileira, de sua consciência e de seu princípio essencial” (PENNA, 2020bPENNA, Cornelio. Alma Branca e outros ensaios. São Paulo: Faria e Silva , 2020b., p. 61), destoando de qualquer visão ufanista ou utópica, ele se pergunta: “Quem melhor do que ela poderá ensinar a arte complexa de ser infeliz, a alegre ciência da renúncia e da humildade?” Apesar de ver esta Itabira ameaçada de destruição,

compreende-se que daquele silêncio pobre, daquela vida extremada, daquela alucinação de ausência e obsessão de nada, deve sair um espírito coletivo novo, de tal fortaleza e austeridade que empolgará a nossa gente, sempre à procura de sua própria alma, e que não a achou porque está voltada para o mar, esquecida de seu velho patrimônio de pobreza taciturna, sadia e indestrutível, sempre à espera dos transviados, para empolgá-los de novo (PENNA, 2020bPENNA, Cornelio. Alma Branca e outros ensaios. São Paulo: Faria e Silva , 2020b., p. 61).

Ao invés da exuberância, são evocadas qualidades cristãs quietistas, como a renúncia e a humildade, a serem encontradas mais nessas cidades do interior do que em grandes cidades, mas que não devem se confundir com “simples anedotas de pequena cidade” (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 72), em geral, associadas a clichês do regionalismo? Ou, ainda, o que essa encenação de Itabira se aproximaria e se distanciara da imagem constituída de seu mais conhecido cidadão, Carlos Drummond de Andrade (WISNIK, 2018WISNIK, José Miguel. Maquinação do Mundo: Drummond e a mineração. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.)? Curiosamente, Drummond celebra CornélioPenna quando da morte desse ( PENNA, 2020bPENNA, Cornelio. Alma Branca e outros ensaios. São Paulo: Faria e Silva , 2020b., p. 182-183), na constituição de Itabira como uma personagem (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 182). E por mais que Cornélio gostasse das histórias contadas a ele sobre a fazenda pioneira do café no Vale do Paraíba (fazenda do Cortiço em Sapucaia) quanto da fazenda pioneira da mineração de ouro e do ferro em Itabira (fazenda do Girau que passaria às mãos da Companhia Vale do Rio Doce onde teria feito sua sede), sua ficção não se tratava de recordações de fatos já ocorridos, mas apenas a criação de tudo em torno delas, na fantasmagoria de existências, de episódios, de detalhes (PENNA, 2020bPENNA, Cornelio. Alma Branca e outros ensaios. São Paulo: Faria e Silva , 2020b., p. 76).

Pergunto-me o que pode ser chamado de fronteira. Terra longínqua? Não parece ser fronteira do Brasil. Fronteira entre o que? Entre realidade e sonho? Entre a loucura e a razão? Entre a mina do ouro e o sertão? Essa nebulosidade se estende ao recurso de que o suposto romance ou suposta novela que seria um diário, mas não há datas nos fragmentos curtos, e quem seria o autor? As divisões são fragmentos descosidos, como talvez a própria vida, como diz o narrador: “A minha vida, como a de todo mundo, é uma série disparatada de episódios sem qualquer significação seguida e sem lógica” (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 70). Sabemos que narrador vem da “grande cidade” (possivelmente Rio de Janeiro, mas por que evitar nomear?), vista por ele como prisão (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 5). Ele volta com as “mãos gastas, corpo cansado, alma usada e sem destino” (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 7) Mas por que voltara a esse lugar que compara a um país natal (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021.), que chama, em voz baixa, de “minha casa” querendo acreditar e nos fazer acreditar (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 6)? Seria então para recuperar o passado que o narrador volta? Curiosamente, o nome, o rosto, mesmo o gênero, não aparecem, desafio não enfrentado no filme de Rafael Conde, já que é explicitado, desde o início, como homem, primo de Maria Santa. Contudo, não parece ser um nome, um rosto, um gênero que o narrador busca.

Maria Santa, essa sim, é o centro da casa, com fama de realizar milagres, por vezes evocando uma figura expressionista, “seus dedos se encurvaram transformando suas mãos em garras trêmulas, e seu rosto se decompôs assustadoramente” (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 19), para logo voltar ao

rosto muito pálido, mas como sempre, indiferentes, sem vestígio sequer das lágrimas que deveria ter derramado em abundância. O seu semblante tinha o característico das mulheres das serras, com as maçãs muito salientes, a boca reta, os olhos oblíquos, acentuando cabelos intensamente negros a vaga semelhança que se lhe notava com as mulheres mongóis (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 19).

Curiosamente nem há referência a uma herança indígena ou árabe, que poderia ser mais verossímeis num romance realista. A protagonista oscila entre o rosto detalhadamente descrito e sua decomposição. Seu olhar verde, já percebido no primeiro encontro do narrador com ela: “o seu olhar verde e vago, misteriosamente perscrutador, me ultrapassou, negando a minha presença, apagando-me completamente” (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 7) remetia (era só o que restava talvez de vibrante) a uma curiosa origem cruzada, das mulheres caladas e sofredoras que acompanharam os maridos e amantes desbravadores das matas interioranas, imagem fantástica dos bandeirantes à procura de ouro e diamantes. De uma herança épica e aventurosa, resta o isolamento, “há muitos anos... não saía de casa” (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 24) com janelas sempre fechadas, passando dias seguidos em seu quarto (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021.) e a decadência como podemos ver num dos momentos de encontro com o narrador murmura: “Eu sou a última das mulheres...” culminando também a antissaga que se reencenará até Menina Morta, em que o fim culmina, nas famílias sem herdeiros. Mesmo o encontro com o narrador de nada adiantará ao dizer: “Somos duas criaturas miseráveis...” (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 37), mesmo logo depois desdizendo, se contraponto ao narrador, ao dizer que “só nas grandes cidades a vida era possível” (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021.), para as quais nunca irão e de onde também de onde recebiam notícias de decadência, livros se decompondo “pelos cupins que devoram lentamente toda a cidade do Rio de Janeiro” (ibidem, p. 38).

Por fim, o definhamento de Maria Santa (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 42) encenado como uma dissolução (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 43) que ao invés de um milagre que a tia Emiliana quer fazer crer à população da cidade por uma suposta aparição de Nossa Senhora, o que é prenunciado numa mistura de línguas por uma velha negra vai para outra direção: “Maria meu ´tá´i... Maria meu ´tá´i... a cidade vai morrer. tudo vai morrer... as invenções do demônio também ... ela também”. O encontro entre Maria Santa e o narrador, por mais que tenha uma tensão erótica silenciada em boa parte do romance, é de outra ordem, “éramos apenas como dois seres que viajaram lado a lado, muito perto um do outro, mas sem se verem, e, de repente, a um choque exterior, que os sacode ao mesmo tempo, se entreolham com espanto, fria e hostilmente, sem uma ideia comum, unicamente irmanados, um instante, pela dificuldade surgida” (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 20). Um encontro entre um esquecimento real ou desejo de esquecimento: “eu já me esqueci de tudo” diz Maria Santa (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021.). Ao que responde o narrador: “Eu não me esqueci de Deus”, mas que não implica um lugar seguro e fundador. O que importa mais é tudo que Maria Santa esqueceu: “esse “tudo” que você esqueceu tão depressa e tão facilmente, pesa sobre mim, sufocando qualquer alegria futura, qualquer iniciativa de vida nova” (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021.). Mas desde seus primeiros encontros, talvez seja isto que o narrador buscava ao ver em Maria Santa: “Percebi que sua atenção estava muito longe de tudo que nos rodeava, e um sonho antigo, surdo, monótono, distante, a dominara, em estranha hipnose interior” (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 8). Não parece ser um passado a ser lembrado, algo talvez que Maria Santa não vivenciara, algo parte dela, mas anterior a ela. Não fatos, mas espaços a serem percebidos, espaços além da percepção, perceptos, que só podem ser imaginados, criados, no passado ou no futuro. Talvez nem mesmo espaços, mas uma atmosfera nebulosa, desconhecida, um funesto encantamento. Há um peso apagado dos mortos, das violências e crimes passados que nunca serão ditos.

O desfecho, que poderia ser a abertura da casa para a população da cidade, a vitória de tia Emiliana, a recuperação da ascendência da casa sobre a cidade, se dá num estranho ritual em que Maria Santa tem seus braços espetados por alfinetes (PENNA, 2021PENNA, Cornelio. Fronteira. São Paulo: Faria e Silva , 2021., p. 79), que desconheço se foi uma prática regular no catolicismo mineiro, à espera de um milagre, enquanto a casa era invadida por moradores e peregrinos. No filme, mas creio que não na novela, ao estranho ritual católico se funde num ritual fúnebre. Ainda que separados, prenunciam uma estranha festa que acaba por se esvaziar porque, ao invés do milagre, ocorre a morte de Maria Santa, corpo percorrido pelo narrador como Nina por seu filho em Crônica da casa assassinada. Com a morte de Maria Santa, a que resta ao narrador? Haveria ainda algum pertencimento que o pudesse manter na pequena cidade? Um lento eclipse até o seu fim? Assim, a morte, que é o ponto de partida dos dois grandes romances de Cornélio Penna e Lucio Cardoso, é o fecho de Fronteira. Em todos os três, um corpo morto que se desdobra alegoricamente é o núcleo do romance, da casa, da cidade, de um mundo, enterrando qualquer outra possibilidade para esta “cidade sem alegria”, “por toda a parte o homem conseguiu pôr a nu as suas pedras de ferro, negras e luzidias. E sobre elas construíram suas casas, onde as famílias degeneram lentamente, e em cada uma está a loucura à espreita de novas vítimas”, fala o narrador.

E naqueles dias, as pessoas procurarão a morte e não a encontrarão; e desejarão morrer e a morte fugirá deles. Apocalipse, cap. 9, versículo 6.

Diferente dos discursos contemporâneos que pretendem aproximar estética e política ao conferir visibilidade e empoderamento a sujeitos excluídos social e historicamente, pretendi sugerir fins de mundo que emergem de atmosferas melancólicas, de espectralidades e silêncios dos que perderam e não desejam visibilidade e poder, ao recuperar uma tradição moderna, aqui centrada no romance Fronteira, de Cornélio Penna, como possibilidades outras de uma genealogia de um Modernismo localista e de artistas retirados, em grande parte da cena pública, por suas opiniões ou ausência delas num mundo que já acabou várias vezes. Apenas se deixar levar no mais sutil desparecimento, na mais delicada extinção. Terminamos com algumas experiências como impotência, repouso e deriva, que serão discutidas em próximo ensaio.

Referências

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  • WISNIK, José Miguel. Maquinação do Mundo: Drummond e a mineração. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    21 Mar 2023
  • Aceito
    15 Ago 2023
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