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Da viagem lírica ao relicário de perdas: a via crucis poética de Astrid Cabral

From the lyrical journey to the reliquary of losses: The poetic via crucis of Astrid Cabral

Resumo

O presente ensaio discute a presença do tema da viagem em Ponto de cruz (1979), de Astrid Cabral. A leitura cerrada dos poemas selecionados busca extrair traços fundamentais do livro, os quais podem ser projetados sobre a obra da autora. O raciocínio é dividido em duas partes: situa-se a natureza da viagem em um primeiro momento; explicitam-se os produtos do trajeto em seguida. Orientando-se pelos estudos de poesia de Michel Deguy (2010), interessa avaliar quais fórmulas do referido tema são recuperadas e como são reinventadas no contexto da poesia brasileira. Ao fim, destaca-se o modo como Astrid Cabral transforma a constelação de imagens literárias tradicionais ao inseri-la na esfera histórica do século XX.

Palavras-chave:
poesia brasileira do século XX; Astrid Cabral; viagem

Abstract

This essay discusses the presence of the theme of travel inPonto de cruz(1979), by Astrid Cabral. The close reading of the selected poems seeks to extract fundamental features of the book, which can be projected on the author's work. The reflection is divided into two parts: the nature of the journey is located at first; the products of the route are then explained. Guided by Michel Deguy’s (2010) poetry studies, I’m interested in evaluating which formulas of this theme are recovered and how they are reinvented in the context of Brazilian poetry. Finally, the paper highlights the way in which Astrid Cabral transforms the constellation of traditional literary images by inserting it into the historical sphere of the twentieth century.

Keywords:
Twentieth Century Brazilian poetry; Astrid Cabral; journey

Resumen

El presente ensayo discute la presencia del tema del viaje enPunto de cruz(1979), de Astrid Cabral. La lectura detallada de los poemas seleccionados busca extraer rasgos fundamentales del libro, los cuales pueden ser proyectados sobre la obra de la autora. El razonamiento se divide en dos partes: se sitúa la naturaleza del viaje en un primer momento; después se explicitan los productos del trayecto. Orientándose por los estudios de poesía de Michel Deguy (2010), interesa evaluar cuáles fórmulas del referido tema son recuperadas y cómo son reinventadas en el contexto de la poesía brasileña. Al final, se destaca el modo como Astrid Cabral transforma la constelación de imágenes literarias tradicionales al insertarla en la esfera histórica del siglo XX.

Palabras clave:
poesía brasileña del siglo XX; Astrid Cabral; viaje

Metáforas náuticas formam um topos conhecido pela tradição literária. Elas possuem um conjunto de imagens que remetem à viagem de Ulisses, tema tantas vezes recuperado por prosadores e poetas. A poesia contemporânea brasileira conhece alguns exemplos que reprocessaram tal conjunto, inoculando seus posicionamentos no próprio correr da história literária.1 1 A esse respeito, indica-se o estudo de Rafael Quevedo (2020), em que discute a recuperação de metáforas náuticas na poesia brasileira contemporânea de autoria feminina, tomando como corpus poemas de Ana Cristina Cesar, Orides Fontela, Neide Archanjo, Hilda Hilst e Maria Lúcia Dal Farra. A partir daí, duas atitudes estão entrelaçadas. Por um lado, mobilizar uma constelação de imagens é não deixar que ela escape à memória literária do presente; por outro, tornar esse repertório fato contemporâneo não equivale à mera repetição. Assentados nos regimes de outra época, novos elementos entroncam-se com esse topos, o que modifica a forma de sua própria constelação.

Astrid Cabral poderia ser incluída no grupo de poetas que reprocessam essas metáforas e, por extensão, a própria viagem, tema que atravessa toda sua obra. A postura da autora é de quem escreve poemas como quem produz um contraponto. E, para isso, é preciso indicar a que dirige o olhar. Em Ponto de cruz, seu primeiro livro de poesia, as metáforas náuticas aparecem quando, por exemplo, a poeta “veleja no dorso / de roxazuis baleias” na esfera onírica em “Sono de pedra” (CABRAL, 1979CABRAL, Astrid. Ponto de cruz. Rio de Janeiro: Cátedra, 1979., p. 33) ou, ainda, quando “Correm as águas do rio / corre veloz o navio” em “Navio-esquife” (CABRAL, 1979CABRAL, Astrid. Ponto de cruz. Rio de Janeiro: Cátedra, 1979., p. 36). Astrid Cabral opera rasuras sobre o topos tradicional ao construir o livro como um “périplo anti-homérico”, como indicou Paulo Graça (1998GRAÇA, Antônio Paulo. A poesia de Astrid Cabral. In: CABRAL, Astrid. De déu em déu: poemas reunidos (1979-1994). Rio de Janeiro: 7Letras, 1998., p. xxi), em cujo término não alcança felicidade. O posicionamento dela concerne à transformação da matéria épica por meio da intensificação lírica impressa sobre o tema da viagem. E isso pode ser observado em duas circunstâncias do seu projeto de navegação. Primeiramente, Astrid Cabral inverte a polaridade da matriz épica ao trocar grandes temas bélicos pela banalidade da ida ao armarinho (caso do poema que dá título ao livro). Também não é a comunidade que lhe interessa, mas o caso particular, um episódio prosaico do qual a poeta extrai um conteúdo para reflexão. Por meio dele, elabora a ponte para a segunda circunstância que atravessa a sua poesia: a sondagem lírica da matéria da vida. A segunda transformação converte o ordinário em pensamento mais amplo, por exemplo, em “O grande drama”: “O grande drama sempre foi / essa miopia metafísica / de jamais roçar o avesso / a instante nenhum saber / de que aquilo que nos cerca / é fim ou quem sabe começo” (CABRAL, 1979CABRAL, Astrid. Ponto de cruz. Rio de Janeiro: Cátedra, 1979., p. 37). Esses versos tematizam a angústia da escolha, indissociável da ideia de estar à deriva, da qual se depreende a relação entre viagem e vida. Se tradicionalmente capitanear a embarcação resulta na viagem como processo formativo,2 2 A acepção mais comum da viagem encontra na simbologia do navio uma conjuntura coordenativa entre o todo e as partes, de modo que controlá-lo corresponde à glória e perder o leme ao insucesso. Nesse contexto, Kathlenn Martin informa que, por “estabelecer um objetivo e seguir um curso, descobrir onde estamos em relação ao centro, a viagem do herói mítico que confere circum-navegação consciente dos aspectos não traçados da personalidade”. Com isso, acrescenta-se aos sentidos do verbo “viajar” a própria ideia de formação incluída na significação de “viver” (MARTIN, 2012, p. 452). Astrid Cabral produz um corte nessa concepção para conferir atenção não ao final da trajetória, momento em que o herói estaria formado e completo, mas à vacilação e à incerteza que irrompem durante o percurso. Essa inclinação que encerra o mesmo poema: “Acaso o que chamamos de sorte / não é o selo de nossa morte / ou o que chamamos de morte / não é mesmo a grande sorte?” (CABRAL, 1979CABRAL, Astrid. Ponto de cruz. Rio de Janeiro: Cátedra, 1979., p. 38). Sua inflexão mostra uma poesia que se vale de um estilo indagativo, pondo em evidência o gesto da dúvida. Também deixa um campo de respostas em aberto, encerrando a primeira estação da viagem (a primeira seção do livro) sem precisar o destino. Logo, ao opor-se à referência homérica, canibaliza-a, transvertendo-a para outra dicção - acentuadamente lírica - e tonalizando-a para questões de outra época. Em outras palavras, seria preciso mergulhar no texto que se deseja renegar, glosando-o para, a partir do conjunto de matrizes que oferece, engendrar outra proposta.

Neste momento, cabe avaliar as duas últimas inclinações dessa poesia e demonstrá-las como dinâmicas internas à viagem em Ponto de cruz. Ambas podem ser interpretadas como condutas estruturantes do pensamento poético de Astrid Cabral, o qual vai evoluindo e ganhando contornos mais precisos até Rasos d’água (2004CABRAL, Astrid. Rasos d’água. 2. ed. Manaus: Editora Valer, 2004.), livro mais amadurecido. À primeira denomino agudo ramerrão, em que pese o olhar apurado que encontra unicidade no costumeiro. É no ordinário, portanto, que nasce sua inclinação ao lirismo. Ela é ilustrada, como disse, por “Ponto de cruz”, e deve ser pensada como uma instância motivadora de sua viagem poética.

Lá fui eu ao armazém comprar açúcar e mel. Voltei com um quilo de sal na boca o gosto do desgosto lágrimas no rosto embutidas. No balcão ao pedir vinho vinagre me foi servido, queria um maço de fogos chuvas de prata e estrelas para comemorar a noite porém só havia velas com que imitar o dia. Lá fui eu ao armarinho (tangida por que ventos por que pérfidas sereias?) comprar um dedal de amor. Voltei com este coração são sebastião de alfinetes. O peito? retrós entaniçado por mil linhas de aflição euzinha toda por dentro que nem pano em bastidor: bico de agulha finoferoz sobe-desce-sobe bordando minha vida em ponto de cruz. (CABRAL, 1979CABRAL, Astrid. Ponto de cruz. Rio de Janeiro: Cátedra, 1979., p. 26).

O revés aparece como assunto central, expresso pelo dissabor acentuado do infortúnio. Embora o sujeito poético peça algo que o satisfaça, o que lhe é entregue é adverso ou insuficiente. Para Michel Collot (2018COLLOT, Michel. A matéria-emoção. Tradução de Patricia Souza Silva. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2018.), o poeta vai “tornando sensível o objeto que o inspirou e dando a seu próprio texto a consistência de um objeto verbal” (COLLOT, 2018COLLOT, Michel. A matéria-emoção. Tradução de Patricia Souza Silva. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2018., p. 45). É desse modo que Astrid Cabral investe sobre as coisas, toma os itens alimentícios e converte todos em formas da desdita. Os alimentos doces são trocados; ao invés da grande luminosidade dos fogos, há a parca luz das “velas” como réplicas inócuas. Tais elementos operam como imagens mediadoras da disparidade e geram o descompasso entre expectativas e realidade, entre desejos e insatisfação.

A navegação marítima subjaz à remissão aos “ventos” e às “sereias”, símbolos de produções do desajuste. No texto homérico, Éolo é senhor dos ventos3 3 Junito de Souza Brandão registra a presença dos ventos na mitologia grega: “Para os Gregos os ventos eram divindades inquietas e turbulentas, a custo guardados em cavernas profundas nas Ilhas Eólias. Além do rei e deus dos mesmos, Éolo, distinguiam-se quatro tipos de ventos: os do Norte (Aquilão e Bóreas); vento do Sul (Austro); vento da manhã e do Leste (Euro) e o da tarde e Oeste (Zéfiro)” (BRANDÃO, 1986, p. 271). Dentro da trajetória de Ulisses, é a presença de Éolo que determina parte do canto, distanciando-o de Ítaca. Em Astrid Cabral, encontra-se a evocação a essa ação dos ventos. , enquanto as Sereias, filhas do rio Aqueloo, são monstros femininos alados que cantam para seduzir os homens e afundar suas embarcações.4 4 Como lembra Brandão, “no canto XII, da Odisseia, Ulisses consegue escapar à sedução das Sereias, cuja voz irresistível ‘encantava’ suas vítimas para devorá-las. Como sentiam o ‘desejo’, mas não podiam realizá-lo, por serem peixes, frias, portanto, da cintura para baixo, bebiam o sangue dos que atraíam com seu canto” (BRANDÃO, 1986, p. 247). Nesse sentido, é a característica da sedução própria a esses seres mitológicos que interessa a “Ponto de cruz”. Esse espectro mitológico está implícito nas imagens do poema, de modo que haja a sombra borrada de Ulisses por trás do sujeito poético. Ambos têm em suas rotas a adversidade ocasionada por forças externas, seja no retorno à Ítaca, seja no ordinário percurso ao armarinho. O imaginário mítico surge como eco enfraquecido ou, ainda, como se fosse diluído pela subjetividade moderna que dele se apropria. Aliado a isso, há o pueril interesse em adquirir a proteção do amor na ilusão de convertê-lo em um produto. Ser motivado por esses enganos, porém, é o que move a trajetória da poeta, o que faz o contraste com a desilusão ainda mais doloroso.

Da primeira à última das imagens, as rupturas de expectativas intensificam-se gradualmente. Na viagem de retorno, o símbolo mais dramático é o de “são sebastião de alfinetes”, mesclando o mártir da Igreja Católica ao utensílio de costura. A mudança da natureza do substantivo cristaliza seu emprego no poema, preservando-lhe o traço principal. O mártir nada mais é do que uma figura humana elevada, pela via da dor, ao patamar de sacralidade. A metáfora transporta o santo e, com ele, sua história, imprimindo sobre o objeto de costura traços daquela aura sacra. Instantaneamente, a dor pode ser experimentada na identidade entre o substantivo originado e a palavra “coração”. A autora cristaliza em seus versos o processo de aquisição das dores humanas, como se elas - sacralizadas - pudessem ser guardadas a cada episódio desagradável. Portanto, também é no nível da criação vocabular que Astrid Cabral aclimata a grandeza no comum, munindo o ordinário de importância singular. A partir desse dado, é possível reconhecer como a linguagem dramatiza um assunto recorrente nessa poesia: a dor. E seu entrelaçamento com o “retrós entaniçado”, cujo resultado final é uma subjetividade atrofiada como um “pano em bastidor”, enfeixa as dores da vida.

A poesia é considerada tradicionalmente uma arte da linguagem, de sorte que, como orienta Paul Valéry (2007VALÉRY, Paul. Poesia e pensamento abstrato. In: Variedades. Tradução de Maiza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 2007. p. 193-210.), “certas combinações de palavras podem produzir uma emoção que outras não produzem” (VALÉRY, 2007VALÉRY, Paul. Poesia e pensamento abstrato. In: Variedades. Tradução de Maiza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 2007. p. 193-210., p. 197). Ora, o ajuste do registro ao tom coloquial gera um efeito de humor. É assim que as duas partes do poema, encabeçadas pelo prosaico “lá fui eu”, arquitetam outro nível de contraste. A leveza do tom é diametralmente oposta à densidade do assunto, fazendo da dor da vida algo risível. Por sua vez, composições como “finoferoz” e “sobe-desce-sobe” engendram a trajetória de altos e baixos e aludem à aquisição de dores precisas e mutiladoras. Expressar a vida como um bordado traduz as próprias lacerações; tentar exercer esse ofício com autonomia encontra correspondência com a dificuldade de conduzir a própria viagem-vida, principalmente quando os objetivos da capitã são constantemente gorados em razão da tessitura invisível do destino.

Dos alimentos às velas, das sereias ao santo, do coração à agulha, “Ponto de cruz” opera o contraste. Como estratégia discursiva, essa reincidência expressa - pela expectativa malograda e, principalmente, pelo “desgosto” obtido - quais sentimentos formam o livro, a fim de que, em seguida, componham a perspectiva severa com que Astrid Cabral observa o mundo. O sujeito poético pode, então, extrair uma lição de cada dor sentida e, com base nelas, voltar seu olhar às situações com lentes cada vez mais agudas. Entretanto, é preciso fazer uma ressalva. Apesar da fala coloquial, os poemas não devem ser tratados como mero recurso de uma composição genericamente queixosa. O ritmo, muito próximo à oralidade, é o que rasura a tradição de poesia de dicção mais elevada. Nesse sentido, indica sua historicidade pelo viés da dessemelhança. Trata-se de uma historicidade moderna, na qual a “poética do sujeito” (MESCHONNIC, 2017MESCHONNIC, Henri. Modernidade, modernidade. Tradução de Lucius Provase. São Paulo: EDUSP, 2017., p. 16), isto é, aquela que se volta à subjetividade, põe a nu uma “política do ritmo”, conforme aponta Henri Meschonnic.

[...] o ritmo, de esquema formal de alternância métrica, inscrito no signo, tornou-se organização de um discurso por um sujeito, de tal modo que todo discurso faz ouvir esse sujeito, e esse sujeito é organizado por seu discurso. Que excede o signo. Culturalmente, retoricamente, poeticamente. Pelo que pode parecer que o signo induz uma métrica social. (MESCHONNIC, 2017MESCHONNIC, Henri. Modernidade, modernidade. Tradução de Lucius Provase. São Paulo: EDUSP, 2017., p. 16)

Essa concepção de ritmo situa-o como matéria cultural capaz de dar organicidade ao mundo no poema. Com efeito, a organização e a apresentação do cotidiano em Astrid Cabral efetuam-se também pela ruptura da dicção elevada. As rimas internas - “na boca o gosto do desgosto / lágrimas no rosto embutidas” - produzem ruídos quando comparadas com as demais. Portanto, também fazem parte do jogo de contrastes operado no poema, que substitui o tom grandiloquente, do épico, e lamentoso, de certa vertente lírica, para abrir um espaço para a própria voz crítica.5 5 Um dado curioso corresponde à expectativa que o título despertaria no leitor. Pensar em um livro chamado Ponto de cruz nas estantes de uma livraria na década de 1970 no Brasil facilmente convidaria a um equívoco. A autoria feminina e um título que remete a um manual de costura conduz a um perfil feminino que já vinha sendo questionado no contexto brasileiro pelo menos desde a década anterior. O gesto de buscar “açúcar”, “mel” e um “dedal de amor” no poema alude a essa expectativa, a qual se revela malograda no presente texto e nas demais páginas. Astrid Cabral assume uma postura contrária a que se espera. Consequentemente, denuncia, mesmo que rapidamente, um contexto social que começa a ser modificado para as mulheres. Imagens, assunto e ritmo edificam o que aqui compreendo por agudo ramerrão de Astrid Cabral, isto é, o produto de uma poesia que reconhece a altura do comum.

Nesse primeiro livro, a viagem encontra-se rarefeita. Isso é produto da dissolução da grande navegação mítica a um quadro emoldurado pela esfera do sujeito. Quero explicitar, com a metáfora do quadro, a delimitação da perspectiva do sujeito poético, isto é, a sua cosmovisão. Ser reduzida a tal enquadramento não quer dizer que possua menor potência. Pelo contrário, faz-se poderosa por inverter o esquema de pensamento de uma ratio que sequer consideraria reconhecer no ordinário um drama humano. Trata-se de uma perspectiva eminentemente moderna, a qual não ignora o mundo.

Irradiando do mesmo centro (a dor), a outra inclinação dessa poesia compreende poemas com tom mais austero e ancorados em uma linguagem altamente simbólica, por meio da qual é sugerida a viagem em curso. De fato, essa postura também aparece nos poemas versados com a linguagem do cotidiano, no entanto, há outros que tangenciam questões metafísicas, suscitando uma sondagem lírica - caso do poema “Pelas regiões do inferno”, em que a sombra homérica desaparece e a viagem passa a ser amalgamada ao outro viés cultural. Assim, cada inclinação de Ponto de cruz expõe um modo de interpretação dos eventos em função dos fragmentos do mundo vivido.

Carregas em teu corpo a dor como carga que te transcende e baixas ao abismo em vertigens de instantes que são eternos. Há o consolo das drágeas calçando o teu percurso pelas regiões do inferno. Mas sonâmbulo ou insone segues só. A teu redor, com mágoa, mão nenhuma logra te alcançar nem palavras te freiam a partida rumo a esse nada que com sua goela de gula te espreita constante tocaiado em tua carne. Há o consolo de uma praia a te acenar da outra margem: a drágea da fé gratuita. (CABRAL, 1979CABRAL, Astrid. Ponto de cruz. Rio de Janeiro: Cátedra, 1979., p. 34).

A viagem surge agora por meio de uma variação antevista pelo título. As sugestões náuticas arrefecem e dão lugar a outras referências mediadoras do assunto. Dentre elas, a praia e a descida ao inferno. Sendo assim, a base etimológica mostra-se bastante significativa. “Inferno” advém da palavra latina infernus, derivada de inferus, que significa “que se encontra embaixo” (BRANDÃO, 1986BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega: Volume I. Petrópolis: Editora Vozes, 1986., 314).6 6 Essa acepção compõe a antinomia inferus vs superus, o último significando “que se encontra em cima”, de modo que haja dois grupos de deuses na cultura latina: “Di Inferi (deuses do Inferno, do Hades)” e “Di Superi (deuses do Olimpo)” (BRANDÃO, 1986, p. 314). No contexto grego, por sua vez, o “Hades foi dividido em três compartimentos, Campos Elíseos, local onde ficavam por algum tempo os que pouco tinham a purgar; Érebo, residência também temporária dos que muito tinham a sofrer; o Tártaro se tornou o local de suplício permanente e eterno dos grandes criminosos, mortais e imortais” (BRANDÃO, 1986, p. 186). A autora recolhe outro topos da viagem da tradição literária para expressar agora a derrelição absoluta. O perfil distintivo dessa poesia concerne à ironia situada na perda da fé, à descrença em uma proposta redentora, enquanto o tom geral do poema é ancorado no amargor da perda irrevogável.

A dor é convertida em pertence carregado durante o trajeto. Ela se cristaliza como peso sentido no corpo, integrando o conjunto das dores recolhidas. Seja o que é superior ao viajante, seja o que lhe excede às possibilidades, a transcendência sempre está além de suas forças. Independentemente da opção escolhida, ela produz um movimento descensional. A desproporcionalidade entre o portador e o que ele consegue suportar lança-o ao desejo pelo consolo paliativo das “drágeas” (projeções do contrapeso possível, apesar de não serem perenes). Em outras duas imagens, o mesmo contraste chama a atenção. O sonambulismo é um estado em que atividades são exercidas inconscientemente pelo corpo. Trata-se do momento em que o sujeito está livre de consciência. Em sentido diametralmente oposto, a insônia impõe obstáculos ao sono, de sorte que o descanso restaurador não seja possível. Apesar de o primeiro estado propiciar o enleio onírico, retira a capacidade de julgamento, fazendo a viajante vulnerável; o segundo, causa-lhe sofrimento e desgaste. Logo, a aparente mitigação desse estado de angústia não passa de ilusão. E sobressai o desprazer, insinuado pelo ritmo arrastado das consoantes e pelo enjambement, para aquela que vagueia “só”.

A angústia na poesia de Astrid Cabral foi primeiramente indicada por Nicia Petreceli Zucolo, que assinalou: “o pessimismo ronda a poesia de Astrid, seja revestido de ironia, seja dissimulado, [...] seja manifesto de capitulação: entrega à desesperança” (ZUCOLO, 2012ZUCOLO, Nicia Petreceli. Estações do inferno: lírica e angústia em Astrid Cabral. In: LEÃO, Allison (org.). Amazônia: literatura e cultura. Manaus: UEA Edições, 2012. p. 175-187., p. 178). Nesse sentido, as “drágeas” e o sonho estão carreados pelo disfarce irônico do engano. A transcendência não é benévola, e o ressentimento prevalece pela ausência de amparo. Todo esse conjunto simbólico prepara a autoentrega irremediável à “goela de gula” do nada, cuja ferocidade devora e destrói tudo indiscriminadamente. Irremediável porque “tocaiado em tua carne”, indiscernível da própria viajante. Dessa maneira, o poema sugere uma indagação sem resposta: como fugir daquilo que está em mim?

As margens do rio Lete enfeixam o conjunto de ilusões para que o sujeito poético prossiga em “vagar errático” (ZUCOLO, 2012ZUCOLO, Nicia Petreceli. Estações do inferno: lírica e angústia em Astrid Cabral. In: LEÃO, Allison (org.). Amazônia: literatura e cultura. Manaus: UEA Edições, 2012. p. 175-187., p. 182). A última delas é a fé, cuja aparência de gratuidade o conduz à travessia.7 7 Como foi apontado ainda por Zucolo (2012), “não se pode deixar de considerar que o tu do texto já percorre as regiões do inferno, apenas vai alcançar a outra margem, no próprio inferno, setorializado” (ZUCOLO, 2012, p. 179). Corrobora-se, assim, que a expectativa de saída não passa de fantasia. Ora, a segunda ocorrência de “drágea”, singularizada, tipifica a fé como doce armadilha. Para alcançar o “consolo de uma praia”, é preciso atravessar o rio, o que equivale a abandonar-se, esquecer-se, enfim, desistir de si. A sondagem lírica desse elemento constitutivo da vida humana, metaforizado pela viagem pelo inferno, revela a austeridade com que Astrid Cabral o explora. Sua poesia subtrai dele a possibilidade de qualquer afago. O que permanece do início ao fim do poema é a dor convertida em mágoa.

“Ponto de cruz” e “Pelas regiões do inferno” contêm o mesmo gesto de recolhimento de desilusões e trazem em si variações da perda. De certo modo, perder paradoxalmente estabelece um jogo entre presença e ausência, entre posse e destituição, o qual está figurado nos objetos. Na esteira de Michel Collot (2018COLLOT, Michel. A matéria-emoção. Tradução de Patricia Souza Silva. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2018.), é possível conceber que “o poeta projeta fora de si, na imagem das coisas e na ressonância do poema, a tonalidade afetiva de sua relação com o mundo, em que, em compensação, interioriza a matéria-emoção” (COLLOT, 2018COLLOT, Michel. A matéria-emoção. Tradução de Patricia Souza Silva. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2018., p. 60). É desse modo que o porta-alfinetes e o medicamento adocicado traduzem a abertura da subjetividade lírica ao mundo. Angústia e tristeza transformam-se em elementos portados pela viajante (porque materializados nos objetos de cada poema). Para que se construa o sentido, o corpo é o mediador do referido processo. Em graus diferentes, ele produz uma espécie de reabilitação da matéria, da qual os poemas não prescindem.

Toda viagem imprime experiências que formam um viajante. O balanço dos ganhos em curso permite pensar um relicário de perdas como produto da viagem lírica em Astrid Cabral. Reliquarius designa a caixa ou o baú em que são depositadas as relíquias, enquanto reliquiæ é a palavra latina que corresponde aos restos, às sobras ou às ossadas dos santos. Ambos os sentidos partem da materialidade do que é guardado e do fato de o portador conferir-lhe algum grau de importância. Tais palavras pressupõem um sentido material facilmente preenchido por valores históricos, os quais justificariam a salvaguarda dessas “riquezas”. No entanto, como seria possível conceber o acúmulo do que está ausente? É nesse paradoxo instituído sobre os objetos que Astrid Cabral elabora um curto-circuito produtivo. Cada objeto aparece em seu livro não pela materialidade em si mesma. Também não se trata de uma interioridade pura, apartada do mundo, a qual os submete à sua figuração. O que ocorre é “um quiasma fundamental que faz com que a consciência se exteriorize no mundo e que este, reciprocamente, se interiorize na consciência” (COLLOT, 2018COLLOT, Michel. A matéria-emoção. Tradução de Patricia Souza Silva. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2018., p. 86). O objeto conserva sua materialidade atrelada a um episódio da vida do sujeito poético, que passa a se dizer por meio deles. A consequência disso é o investimento de uma máscara de uma colecionadora de ausências, em que a contradição inerente revela a natureza dos elementos desse relicário, assim como a impossibilidade de partilha do que ele contém. Essas experiências subjetivas são constantemente convertidas em coisas de outra ordem, na qual a presença da lacuna tem valor expressivo.8 8 “Eternos metais” segue a mesma inclinação ao apresentar talheres usados pela família, o que conserva, pela ausência, a presença dos antepassados: “Quando levo à boca / a colher com que minha avó / tomava a sua antiga sopa / ou o talher de prata / com que comia o arcaico peixe, / a eternidade dos metais / me assusta e desafia. / Gente, onde jaz minha Vó? / Gente, quede os peixes? / Curvas reintegradas na argila / suas formas no todo se fundiram / enquanto à mão brilham invictas / as rosas dos cabos lavrados”. (CABRAL, 1979, p. 43).

Desse modo, há em Astrid Cabral um impulso à coleção. Ao denominar seu gesto colecionador como relicário, procuro lembrar o conceito de Philipp Blom, para quem

As relíquias fazem pensar numa curiosa dialética do ato de colecionar: tudo que colecionamos, seja o que for, precisamos matar; literalmente, no caso de borboletas e besouros, metaforicamente no caso de outros objetos, que são tirados do seu ambiente, de suas funções e de sua circulação de costume, e, postos num ambiente artificial, despidos de sua antiga utilidade, transformados em objetos de uma ordem diferente, mortos para o mundo. (BLOM, 2003BLOM, Philipp. Ter e manter: uma história íntima de colecionadores e coleções. Tradução de Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2003., p. 177).

As relíquias estão imbuídas pela ideia de morte. Seja literal, seja metaforicamente, elas destituem o objeto ou a vida do mundo, para que figurem com outro sentido no conjunto da coleção. A preciosidade das relíquias reside, pela sugestão etimológica, na concepção de restos mortais; e, ainda, pela sugestão religiosa na sacralidade de tais restos. Além do círculo simbólico do colecionador, a elas é atribuído outro, prefigurado pela doutrina, que pode coincidir ou não com o primeiro. O rastreio desses elementos é suficiente para pensar o relicário poético de Astrid Cabral como produto da recolha dos restos apresentados metaforicamente na viagem. Eles indicam não só a presença do que foi perdido como também seu alto valor. Faz parte desse espectro o poema “Coleção de espadas”, em que a ideia de coleção aparece logo no título. Nele, instala-se um desvio, uma inversão. Como artefatos, as espadas contemplariam objetos de mesma natureza. No caso do poema, a palavra “espadas” não encontra identidade com o objeto em si, mas vale-se dele para ligar ao atributo de perfuração, caracterizador das lacerações. As “espadas” qualificam as desilusões e, por extensão, as perdas a que cada uma alude. Quem viaja, carrega, porta ou conserva elementos da viagem. As perdas-espadas, portanto, compõem aquilo que o sujeito poético leva consigo, as experiências transformadas em bagagem de sua coleção.

I Afoguei a primeira desilusão em marítimas lágrimas: o mundo girava imundo e despovoado. Pra tanta náusea mesmo os jasmins fediam. II Senti que ressurreição era lenda. Deitei-me na mesma fenda fria e deixei os cabelos virarem capim. III Embora grotas e pedras persigo o horizonte. (O que está distante é o que mais me atrai) Estou apenas à beira de um monte mas de relance vejo o abismo das almas. IV A cegueira confortável duraria bem pouco. Visto a própria cruz como quem veste um casaco. Quem para sempre estaria nu? (CABRAL, 1979CABRAL, Astrid. Ponto de cruz. Rio de Janeiro: Cátedra, 1979., p. 25).

A imagem do mar é transformada logo na primeira estrofe, o que negativiza o status da viagem. Seu ponto de partida é a morte da utopia, contrariando a aventura, que caracterizaria tradicionalmente o périplo. Uma vez que não possui mais a fantasia, o sujeito poético é empurrado para a crueza do mundo sujo e vazio, restando-lhe apenas o sentimento nauseante, produto da aversão ao próprio mundo. À segunda estrofe concerne a acepção do verbo “sentir” como pressentimento, como se a viajante fosse capaz de perceber o que ainda não está totalmente aclarado. Esboroa-se a crença na ressurreição, constatando-a mero pensamento ingênuo e falível. Decorre dessa consciência severa a primeira expressão da desistência. Assim, essas revelações consecutivas demonstram choques do sujeito poético com o mundo, todas desestabilizações constituintes desse sujeito.

Todos os elementos positivos são reiteradamente desfeitos: uma réstia de desejo é inerente à ânsia pelo “distante”, contudo, é inútil que essa ilusão apareça como contrapeso enquanto o “horizonte” constantemente se afasta; o conforto temporário traz a inconsciência paliativa, antípoda da visão como excesso de consciência humana; o olhar “de relance” insinua a sensação de vertigem derivada da paisagem sempre à vista, como se a consciência do abismo tragasse o viajante ao menor deslize. Ao fim, não resta outra opção a não ser resignar-se “como quem veste um casaco”, verso cuja ironia recai sobre a redenção judaico-cristã.9 9 Pela lógica do texto judaico-cristão, a paixão na cruz é seguida da ressurreição. Isso serve de base para se pensar no sofrimento de modo temporário; na penitência como algo aceitável, porque passageira. Em Astrid Cabral, o que se vê é a perenidade da desgraça.

“Coleção de espadas” é um dos textos nucleares de Ponto de cruz. Sua divisão em quatro partes, encabeçadas por algarismos romanos, arquiteta o projeto de estações que figuram metonimicamente as etapas de uma via crucis poética. Ele contempla internamente a progressão da errância, assim como a coleção das dores formadoras da viajante. A viagem de Astrid Cabral é preenchida, consequentemente, não pelo regozijo, mas pela imputação das perdas sentidas como espadas. Ela prescinde do espaço para concentrar seu sentido na dimensão sacralizada da dor. Assim, pode ser conservada, maturada e exposta como peça de seu relicário. Dele se pode depreender o que acontecerá nas próximas seções do livro, mesmo que entre elas não exista linearidade nem cronologia rígida.

Tomado como estrutura de pensamento, o relicário poético de Astrid Cabral compreende também outra dimensão: a estético-autoral. Desde o primeiro momento, o manuseio refinado de elementos da herança literária é central no gesto de criação da autora. Esses elementos ora subterrâneos ora evidentes atravessam o plano da linguagem e, principalmente, o das imagens. O posicionamento dela perante a tradição literária, mudando-a de lugar, tem o deslocamento como princípio. Sob essa inclinação, a poesia de Astrid Cabral poderia ser associada a uma compreensão de relíquia muito específica, cuja definição está no pensamento de Michel Deguy.

As relíquias - que são herança, legado para o escritor - e o escritor - que desmistifica (bem mais do que remitifica...) - são as relíquias da linguagem, em língua, em linguagem de língua (poética é a linguagem da língua). Desmistificar [...] significa perder, ativamente, ao conversar; passar novamente a agulha nos sulcos profundos, ou estéreo-tipos, estéreo-fonia da língua transmitida pelas obras para fazê-la falar outra vez ou, como se dizia, recitar [rechanter] - digamos tirar o encanto [désincanter]; descantar [déchanter].

Refazer revelação com a profanação: é o que eu propunha, outrora, à guisa de poética. O sentido seria o produto de uma operação, a de colocar em comunicação os dois vasos, um profanador e o outro revelador = o sentido estaria na confluência. (DEGUY, 2010DEGUY, Michel. Reabertura após obras. Tradução de Marcos Siscar e Paula Glenadel. Campinas: Editora da Unicamp, 2010., p. 92-93).

Michel Deguy concebe a herança como algo passível de uma transformação que a mantém presente. A alteração vocabular com ênfase na troca lexical - em desmistificação - ilumina outro tipo de relação que um escritor estabelece com o referido legado. Não há por parte daquele uma submissão a esse. O escritor incide sua escrita sobre a história da poesia, o que faz com que parte dessa história seja recuperada em detrimento de outra. Paradoxalmente, a perda compõe o processo de escrita da mesma forma que a conservação. A reapropriação profanadora da viagem por meio da escrita recoloca sua presença em nova chave interpretativa, de modo que o topos seja decantado da forma primeira. Seja pelo enleio do comum, seja pela sondagem lírica do mundo habitado, o sentido em Astrid Cabral conflui para a revelação da viagem como relíquia retomada e indissociável da perda inerente ao gesto profanador de seu recolhimento. Afastando-se da atitude de mitificação, a qual endossaria a tradição da viagem épica, por exemplo, Astrid Cabral apresenta o negativo da viagem, renegando o transcendente e afastando-se de qualquer possibilidade de ascensão. Embora possuam tons e inclinações diferentes, a dor entrelaça seus poemas como estágios da referida via crucis. O leitor encontra certa progressão no andamento do livro, sem que isso recaia propriamente em uma narrativa - principalmente se ela for pensada com base no modelo tradicional. Cada poema vai compondo espaços para os quais convergem a clara acentuação do lirismo com um sujeito poético em errância (a última só é percebida se for levada em consideração a reaparição das variações desse topos a cada seção de Ponto de cruz).

É nesse contexto em que está inserido outro poema em que a metáfora náutica retorna, na segunda seção, chamada “Carrossel dos dias”. Trata-se de “Âncoras”, antecipado pela primeira estrofe do poema XII - “Le lac”, de Méditations poétiques (1820LAMARTINE, Alphonse de. Méditations poétiques. França, 1820. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/aa000055.pdf . Acesso em: 14 jan. 2021.
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), de Alphonse de Lamartine, tomada como epígrafe. O título da poeta brasileira vale-se do elemento náutico como projeto de ancoragem ao passado. Cada momento equivale a um episódio retratado em uma fotografia, como se o poema fosse capaz de cristalizar o instante, conforme revela a indicação metapoética da primeira estrofe. Paisagem, figuras humanas, vivas ou mortas, todas têm sua efemeridade fixada e convertida ao “plano do papel”. A partir disso, o texto subdivide-se em dois segmentos, correlatos à tipificação das fotografias.

Ainsi toujours poussés de nouveaux rivages Dans la nuit éternelle emportés sans retour. Ne pouvons-nous jamais sur l’océan des âges Jeter l’ancre un seul jour? Lamartine Entre malhas de luz prenderam-se os instantes sobre o plano do papel. FOTOS AVULSAS I Muralha imóvel no ar, a onda não dobrou a crista nem se espatifou em espumas. II A moça, eterna, colhe frutos que jamais apodrecerão. A mão alçada em gesto vitalício de estátua. III Com dentes de leite, permanentes, o garoto sorve o sorvete sem fim. IV Os mortos não morreram. Estão na posse total de seus corpos, os sorrisos presos no anzol dos lábios. DO MEU ÁLBUM PARTICULAR I O outono de 59 não apagou sua luz entre os ramos do Bois de Boulogne onde Afonso e eu nos emolduramos. II Em Ver-o-Peso, Belém do Pará, fevereiro de sessenta e nove: confundo-me com a prima adolescente à frente de velas e barcos estáticos. III A neve de 1970 em Aley/Líbano não derreteu. Meus filhos não cresceram Eu não envelheci. (CABRAL, 1979CABRAL, Astrid. Ponto de cruz. Rio de Janeiro: Cátedra, 1979., p. 55-56).

Lamartine sugere um jogo antinômico com o qual arma sua proposta: de um lado, o desejo de apreensão do momento; de outro, o tempo que urge. Na tentativa de cristalizá-lo, o poeta francês selecionou a “ancre” como símbolo de seu anseio de paralisar o avanço do tempo. Seu poema, portanto, direciona-se ao impossível: reter o instante na tentativa vã de conservá-lo inalterado. A emulação de Astrid Cabral, por sua vez, ilumina e reinterpreta o curto-circuito instalado sobre a matéria do tempo. Ponto de cruz reapresenta a questão no contexto da experiência eminentemente moderna e demonstra como a fotografia logra relativo êxito. A poeta não tem interesse pelo que escapa à fotografia, mas pelo que nela se mantém: a pujança das ondas que não quebram no mar; a beleza feminina jovial e a vitalidade das frutas convertidas em estátua única; o prazer infantil eternizado; e a reversibilidade da morte, “alcançada” pela longevidade das figuras humanas em nova forma. Em todos esses casos, o sujeito abole o universalismo e a totalidade da vida para sobrevalorizar um momento, por ser esse passível de recorte e especificação. Ele se torna exato e discernível dos demais, uma vez que estabelece a identificação entre sujeito e realidade. Novamente, adentra-se o território da subjetividade - que agora destaca parte de sua historicidade em fotografia.

O leitor está diante de uma ideia antiga, em que a técnica acarreta uma nova forma de experimentar o tempo. Discutindo o tema, Walter Benjamin esclarece os conflitos iniciais entre fotografia e pintura. Para o estudioso alemão, as famílias perdiam o interesse pelos quadros algumas gerações depois, reduzindo-os ao “testemunho do talento artístico do seu autor” (BENJAMIN, 1994BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. (Obras Escolhidas, Vol. I), p. 93). Com a fotografia, porém, acontece algo diverso: ela “reclama com insistência o nome daquela que viveu ali, que também na foto é real” (BENJAMIN, 1994BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. (Obras Escolhidas, Vol. I), p. 93), não se limitando à noção de arte da época.10 10 A ideia de arte de que fala Walter Benjamin é aquela em que apenas o artista, inspirado, poderia fixar a imagem de Deus em uma obra. Trata-se, como explica, de uma concepção que abole qualquer valor de técnica. A partir do surgimento da fotografia, essa noção de arte é abalada (BENJAMIN, 1994, p. 92). A presença da nova técnica determina o interesse do público, que se torna desejoso da reprodução e da exposição da imagem exata. Conforme explica,

[...] a técnica mais exata pode dar às suas criações um valor mágico que um quadro nunca mais terá para nós. Apesar de toda a perícia do fotógrafo e de tudo o que existe de planejado em seu comportamento, o observador sente a necessidade irresistível de procurar nessa imagem a pequena centelha do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade chamuscou a imagem, de procurar o lugar imperceptível em que o futuro se aninha ainda hoje em minutos únicos, há muito extintos, e com tanta eloquência que podemos descobri-lo, olhando para trás. (BENJAMIN, 1994BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. (Obras Escolhidas, Vol. I), p. 93).

À luz dessas palavras, a fotografia abriga um recorte do tempo. Ela o submete à intenção prévia, que visa ultrapassá-lo. É o futuro que interessa àquele que deseja ser fotografado. Para tanto, recorre ao valor mágico da exatidão fotográfica, a fim de recuperar a posteriori aquela vivacidade do acaso. Essa faísca de realidade na imagem corresponderia à unicidade, ao hic et nunc do vivido, cuja captura permitiria o acesso daquele que desejasse olhar o evento retrospectivamente.

Ao pôr em jogo o par poesia-fotografia, Astrid Cabral realiza o que na epígrafe do escritor francês é apenas desejo. A contemplação do passado é redirecionada da memória para uma zona de confluência formada por essa e pela materialidade da foto. Para apresentá-la, a economia verbal densifica o poder da imagem, a qual prescinde da pormenorização descritiva. A precisão vocabular define o escopo observado, ao passo que anela sequencialmente as lembranças. Essa estratégia discursiva emula a arte fotográfica no plano da linguagem e, com isso, edifica uma instância interartística dessa viagem poética.

A recriação poética da fotografia serve-se do léxico estabilizador. A muralha é “imóvel”; a moça, “eterna”; os dentes, “permanentes”; as velas e os barcos, “estáticos”. A acentuação sobre os adjetivos produz o efeito de paralisação da imagem em cada caso. Se tais exemplos trazem matérias pelas quais haveria certo apreço, a estrofe IV, entretanto, destoa das anteriores. Ao focalizar os sorrisos das figuras humanas, a poeta informa que estão “presos no anzol dos lábios”. A alusão ao peixe aprisionado pela boca revela-se irônica, exprimindo sutilmente o desagrado como síntese afetiva da produção de um curto-circuito sobre o tempo. Quando os “mortos” não morrem, são deslocados para uma zona espectral, intervalar, por meio da qual se rompe a harmonia daquelas imagens. Eles têm a “posse total de seus corpos”, e não da vida. Rasura-se o coração da pretensa totalidade para extrair dela apenas o corpo como parcela possível. Todavia, isso se fraciona uma segunda vez quando o portador do álbum não possui nada além do que um suporte perecível com uma imagem miniaturizada. Progressivamente, o poema acentua a lacuna deixada pela perda, isto é, a estrutura fundante que forma seu relicário.

Opera-se, ainda, uma retórica da recusa em “frutos / que jamais apodrecerão”, assim como nas negações sequenciais da última estrofe, as quais dão vazão ao pesar amargo que enfeixa o poema. Os pequenos reveses ao final de cada conjunto demonstram que nem sempre as lembranças engendram sensações positivas, portanto, a relação com o passado não é necessariamente reconfortante. Astrid Cabral sugestiona que se ater à memória como âncora se torna uma ação ambivalente: se, por um lado, retoma as raízes formadoras do sujeito poético, por outro, não deixa de trazer ao presente algum amargor, afinal, atualiza-se a perda da antiga vitalidade.

Da primeira à segunda parte do poema, percorre-se um caminho do genérico ao singular. Avulsos ou particulares, os instantes são tomados como peças passíveis de organização por gênero ou cronologia, por exemplo; seus elementos espraiados em um passado embaralhado. A divisão do álbum é determinada por uma linha afetiva, logo, fundamentalmente pessoal. Isso explica a escolha pelo critério cronológico, embora lacunar, na segunda parte do texto, demonstrando certo movimento em ziguezague dessa viagem poética, que intercala o outono de Paris, a paisagem fluvial de uma cidade do Norte do Brasil e o frio do Líbano. O caráter familiar do segundo conjunto concentra pontos de uma narrativa incompleta, a qual nem mesmo a intenção ordenadora pode remontar. Esse dado corrobora o caráter fantasmal insinuado pela presença dos mortos, os quais aproximam afetivamente o sujeito poético ao passado.

Em estudo dedicado à fotografia, Susan Sontag detalha as características das fotos de família:

Por meio de fotos, cada família constrói uma crônica visual de si mesma - um conjunto portátil de imagens que dá testemunho da sua coesão. Pouco importam as atividades fotografadas, contanto que as fotos sejam tiradas e estimadas. A fotografia se torna um rito da vida em família exatamente quando, nos países em industrialização na Europa e na América, a própria instituição da família começa a sofrer uma reformulação radical. Ao mesmo tempo que essa unidade claustrofóbica, a família nuclear, era talhada de um bloco familiar muito maior, a fotografia se desenvolvia para celebrar, e reafirmar simbolicamente, a continuidade ameaçada e a decrescente amplitude da vida familiar. Esses vestígios espectrais, as fotos, equivalem à presença simbólica dos pais que debandaram. Um álbum de fotos de família é, em geral, um álbum sobre a família ampliada - e, muitas vezes, tudo o que dela resta. (SONTAG, 2004SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 19).

História visual, arca portátil, rito familiar. As três características extraídas da argumentação de Sontag conferem à prática fotográfica o valor atualizador desse núcleo social. A autora não qualifica a memória do grupo; apenas indica os usos da fotografia, de modo a esclarecer como ela atua junto à instituição moderna. Inserida como componente da celebração familiar, a fotografia cria futuras lembranças daqueles que desaparecerão por razões quaisquer. Nesse sentido, o ponto mais importante dessa questão reside na produção de vestígios espectrais a que os donos das fotos ainda se mantêm atrelados. O álbum é uma instância gerada com a seleção de momentos únicos, esses cristalizados na forma pela qual o sujeito poético pode ter ativadores de sua memória. Como elementos externos, as fotos são suportes visuais, espécie de antologia de imagens.11 11 Tomo de empréstimo a expressão de Susan Sontag em seu estudo detalhado sobre a história da fotografia. Conforme a autora, “ao nos ensinar um novo código visual, as fotos modificam e ampliam nossas ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de observar. Constituem uma gramática e, mais importante ainda, uma ética do ver. Por fim, o resultado mais extraordinário da atividade fotográfica é nos dar a sensação de que podemos reter o mundo inteiro em nossa cabeça - como uma antologia de imagens” (SONTAG, 2004, p. 13). O gesto antológico inerente ao álbum é antevisto pela intenção do fotógrafo. Significa dizer que nasce no momento em que as fotos são disparadas pela câmera, pois esse é momento que produzirá a anotação “outono de 59” para o sujeito poético viajante, por exemplo. Mesmo que nem todas sejam incorporadas àquele álbum de tema específico, as fotos aguardam pela futura compilação. Para Susan Sontag, “colecionar fotos é colecionar o mundo” (SONTAG, 2004SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 13). Logo, o fotógrafo captura a realidade circundante e a transforma em um objeto mental; em seguida, materializa-o em miniatura. Com esse percurso, a fotografia retroalimenta a memória como forma que desvia do esquecimento e que permite ao portador do álbum olhar para trás e ver-se nele emoldurado. Isso possibilita identificações e desidentificações com o passado quando as fotos forem recuperadas. Ainda para Susan Sontag (2004), a fotografia é “uma arte elegíaca, uma arte crepuscular”, pois “a maioria dos temas fotografados tem, justamente em virtude de serem fotografados, um toque de páthos” (SONTAG, 2004SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 24-25). Toda essa atmosfera paira no poema, não especificando ao leitor se o trabalho de luto, ao qual elas poderiam servir, encontra-se em aberto ou não. Em síntese, o álbum de fotografia, tal um baú compacto da memória, dispõe um pedaço da viagem ao alcance da mão.

Ao identificar tanto as espadas quanto as fotografias como uma coleção de perdas, pontuo um contraste estruturante, porque recorrente, na poesia de Astrid Cabral. As espadas remetem à presença das dores que deslocam o sujeito poético para uma instância vacante; as fotos são “tanto uma pseudopresença quanto uma prova de ausência” (SONTAG, 2004SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 26). Esses objetos instalam um cruzamento de temporalidades sensíveis, embora não necessariamente materializáveis. Elas efetuam, portanto, um jogo especular entre sensações de presenças-ausências, todas formadoras de uma esfera fantasmal.

As duas dimensões do relicário poético estão aqui intimamente implicadas. O corte promovido pela fotografia qualifica o fragmento de tempo, de modo que ele seja cristalizado pela ação da técnica. No poema, isso decorre da releitura moderna que Astrid Cabral realiza sobre Alphonse de Lamartine. Desse modo, é a ação profanadora que está em jogo, na medida em que permite ao sujeito poético a elaboração criativa de seu relicário. Retomando as considerações de Michel Deguy, é possível compreender a poesia de Astrid Cabral como maneira de “recolher o transmitido, o legado, para levá-lo a outra parte - translatio studiorum” (DEGUY, 2010DEGUY, Michel. Reabertura após obras. Tradução de Marcos Siscar e Paula Glenadel. Campinas: Editora da Unicamp, 2010., p. 142). Nesse contexto, a escrita é uma operação transformadora, a qual se põe a par da história da poesia para se pensar a partir dela, não se autogestando nem se isolando da tradição.

A bagagem dessa viajante determina seu lugar e sua singularidade. A partir dos objetos que carrega, convoca uma postura própria à fragmentação, ao elemento minimal, ao território moderno do sujeito. Astrid Cabral ilumina a mutação de um paradigma hermenêutico que afeta tanto o gênero quanto o assunto. Se as grandes narrativas cedem lugar à observação do diminuto, isso decorre de uma historicidade - momento de inserção da técnica no curso da história. Na história literária, o exemplo mais célebre desse caso é o gênero romance, que sobreviria à narrativa épica. No contexto mais amplo das artes, esse quadro histórico também afeta, como bem lembra Walter Benjamin, outras instâncias:

[...] somos forçados a reconhecer que a concepção das grandes obras se modificou simultaneamente com o aperfeiçoamento das técnicas de reprodução. Não podemos agora vê-las como criações individuais; elas se transformaram em criações coletivas tão possantes que precisamos diminuí-las para que nos apoderemos delas. Em última instância, os métodos de reprodução mecânica constituem uma técnica de miniaturização e ajudam o homem a assegurar sobre as obras um grau de domínio sem o qual elas não mais poderiam ser utilizadas. (BENJAMIN, 1994BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. (Obras Escolhidas, Vol. I), p. 104).

Walter Benjamin coloca em evidência dois processos: a reprodução, pautada na possibilidade infinita de replicação, e a miniaturização, a qual redimensiona o objeto reproduzido ao grau de acessibilidade. O que elas têm em comum é estarem atreladas à ideia de sujeito moderno. Particularmente, tornar a obra uma miniatura equivale a reduzi-la à dimensão perceptiva, isto é, ao domínio no qual esse sujeito possa não apenas fruí-la, mas estender sobre ela o seu pensamento.

Essas transformações contemplam os instrumentos que se encontram em Ponto de cruz. Alfinetes, dedal, espadas e fotografias, todos endossam as transformações operadas no século XX. Eles são indícios da presença da reprodutibilidade, mas, simultaneamente, do gesto contraditório da poesia, que se inscreve nesse tempo a contrapelo. A poesia é contaminada pelo mundo industrial, mas não cede a ele. Astrid Cabral dobra-o, reprocessa-o, recria-o. Em suma: transfunde os objetos do cotidiano na escala em que o sujeito se vê e se reconhece. Não mais a portentosa dimensão universal. Os traços históricos do mundo não o permitem.

Ao fim, esse conjunto de poemas retirado do primeiro livro de poesia da autora brasileira traz algumas das linhas de força de sua poesia. O agudo ramerrão e a sondagem lírica do mundo mesclam-se nos demais livros e compõem o estilo único de escritora. A viagem que inicia em Ponto de cruz irá se desenvolver, armando sua obra como aquela em que se realiza um sujeito poético viajante. Torna-viagem (1981CABRAL, Astrid. De déu em déu: poemas reunidos (1979-1994). Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998.) trará o percurso pelas terras ao redor do Mediterrâneo, em meio às ruínas do tempo; Rês desgarrada (1994CABRAL, Astrid. De déu em déu: poemas reunidos (1979-1994). Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998.) apresentará grandes de cidades dos Estados Unidos, sobre as quais recai toda a agudeza do olhar crítico frente o desenvolvimento econômico do mundo; Rasos d’água engendrará mergulho radical no seio de uma subjetividade enlutada. A cada livro, a autora vai refazendo uma nova viagem lírica, dando, assim, continuidade a um projeto de obra única.

Referências

  • BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. (Obras Escolhidas, Vol. I)
  • BLOM, Philipp. Ter e manter: uma história íntima de colecionadores e coleções. Tradução de Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2003.
  • BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega: Volume I. Petrópolis: Editora Vozes, 1986.
  • CABRAL, Astrid. Ponto de cruz Rio de Janeiro: Cátedra, 1979.
  • CABRAL, Astrid. De déu em déu: poemas reunidos (1979-1994). Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998.
  • CABRAL, Astrid. Rasos d’água 2. ed. Manaus: Editora Valer, 2004.
  • COLLOT, Michel. A matéria-emoção Tradução de Patricia Souza Silva. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2018.
  • DEGUY, Michel. Reabertura após obras Tradução de Marcos Siscar e Paula Glenadel. Campinas: Editora da Unicamp, 2010.
  • GRAÇA, Antônio Paulo. A poesia de Astrid Cabral. In: CABRAL, Astrid. De déu em déu: poemas reunidos (1979-1994). Rio de Janeiro: 7Letras, 1998.
  • LAMARTINE, Alphonse de. Méditations poétiques França, 1820. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/aa000055.pdf Acesso em: 14 jan. 2021.
    » http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/aa000055.pdf
  • MARTIN, Kathleen. O livro dos símbolos: reflexões sobre imagens arquetípicas. Taschen, 2012.
  • MESCHONNIC, Henri. Modernidade, modernidade Tradução de Lucius Provase. São Paulo: EDUSP, 2017.
  • QUEVEDO, Rafael. Metáforas da navegação na lírica brasileira contemporânea de autoria feminina. Scripta, v. 24, n. 52, 2020. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/23859 Acesso em: 24 ago. 2021.
    » http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/23859
  • SONTAG, Susan. Sobre fotografia Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
  • VALÉRY, Paul. Poesia e pensamento abstrato. In: Variedades Tradução de Maiza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 2007. p. 193-210.
  • ZUCOLO, Nicia Petreceli. Estações do inferno: lírica e angústia em Astrid Cabral. In: LEÃO, Allison (org.). Amazônia: literatura e cultura. Manaus: UEA Edições, 2012. p. 175-187.
  • 1
    A esse respeito, indica-se o estudo de Rafael Quevedo (2020QUEVEDO, Rafael. Metáforas da navegação na lírica brasileira contemporânea de autoria feminina. Scripta, v. 24, n. 52, 2020. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/23859 . Acesso em: 24 ago. 2021.
    http://periodicos.pucminas.br/index.php/...
    ), em que discute a recuperação de metáforas náuticas na poesia brasileira contemporânea de autoria feminina, tomando como corpus poemas de Ana Cristina Cesar, Orides Fontela, Neide Archanjo, Hilda Hilst e Maria Lúcia Dal Farra.
  • 2
    A acepção mais comum da viagem encontra na simbologia do navio uma conjuntura coordenativa entre o todo e as partes, de modo que controlá-lo corresponde à glória e perder o leme ao insucesso. Nesse contexto, Kathlenn Martin informa que, por “estabelecer um objetivo e seguir um curso, descobrir onde estamos em relação ao centro, a viagem do herói mítico que confere circum-navegação consciente dos aspectos não traçados da personalidade”. Com isso, acrescenta-se aos sentidos do verbo “viajar” a própria ideia de formação incluída na significação de “viver” (MARTIN, 2012MARTIN, Kathleen. O livro dos símbolos: reflexões sobre imagens arquetípicas. Taschen, 2012., p. 452).
  • 3
    Junito de Souza Brandão registra a presença dos ventos na mitologia grega: “Para os Gregos os ventos eram divindades inquietas e turbulentas, a custo guardados em cavernas profundas nas Ilhas Eólias. Além do rei e deus dos mesmos, Éolo, distinguiam-se quatro tipos de ventos: os do Norte (Aquilão e Bóreas); vento do Sul (Austro); vento da manhã e do Leste (Euro) e o da tarde e Oeste (Zéfiro)” (BRANDÃO, 1986BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega: Volume I. Petrópolis: Editora Vozes, 1986., p. 271). Dentro da trajetória de Ulisses, é a presença de Éolo que determina parte do canto, distanciando-o de Ítaca. Em Astrid Cabral, encontra-se a evocação a essa ação dos ventos.
  • 4
    Como lembra Brandão, “no canto XII, da Odisseia, Ulisses consegue escapar à sedução das Sereias, cuja voz irresistível ‘encantava’ suas vítimas para devorá-las. Como sentiam o ‘desejo’, mas não podiam realizá-lo, por serem peixes, frias, portanto, da cintura para baixo, bebiam o sangue dos que atraíam com seu canto” (BRANDÃO, 1986BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega: Volume I. Petrópolis: Editora Vozes, 1986., p. 247). Nesse sentido, é a característica da sedução própria a esses seres mitológicos que interessa a “Ponto de cruz”.
  • 5
    Um dado curioso corresponde à expectativa que o título despertaria no leitor. Pensar em um livro chamado Ponto de cruz nas estantes de uma livraria na década de 1970 no Brasil facilmente convidaria a um equívoco. A autoria feminina e um título que remete a um manual de costura conduz a um perfil feminino que já vinha sendo questionado no contexto brasileiro pelo menos desde a década anterior. O gesto de buscar “açúcar”, “mel” e um “dedal de amor” no poema alude a essa expectativa, a qual se revela malograda no presente texto e nas demais páginas. Astrid Cabral assume uma postura contrária a que se espera. Consequentemente, denuncia, mesmo que rapidamente, um contexto social que começa a ser modificado para as mulheres.
  • 6
    Essa acepção compõe a antinomia inferus vs superus, o último significando “que se encontra em cima”, de modo que haja dois grupos de deuses na cultura latina: “Di Inferi (deuses do Inferno, do Hades)” e “Di Superi (deuses do Olimpo)” (BRANDÃO, 1986BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega: Volume I. Petrópolis: Editora Vozes, 1986., p. 314). No contexto grego, por sua vez, o “Hades foi dividido em três compartimentos, Campos Elíseos, local onde ficavam por algum tempo os que pouco tinham a purgar; Érebo, residência também temporária dos que muito tinham a sofrer; o Tártaro se tornou o local de suplício permanente e eterno dos grandes criminosos, mortais e imortais” (BRANDÃO, 1986BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega: Volume I. Petrópolis: Editora Vozes, 1986., p. 186).
  • 7
    Como foi apontado ainda por Zucolo (2012ZUCOLO, Nicia Petreceli. Estações do inferno: lírica e angústia em Astrid Cabral. In: LEÃO, Allison (org.). Amazônia: literatura e cultura. Manaus: UEA Edições, 2012. p. 175-187.), “não se pode deixar de considerar que o tu do texto já percorre as regiões do inferno, apenas vai alcançar a outra margem, no próprio inferno, setorializado” (ZUCOLO, 2012ZUCOLO, Nicia Petreceli. Estações do inferno: lírica e angústia em Astrid Cabral. In: LEÃO, Allison (org.). Amazônia: literatura e cultura. Manaus: UEA Edições, 2012. p. 175-187., p. 179). Corrobora-se, assim, que a expectativa de saída não passa de fantasia.
  • 8
    “Eternos metais” segue a mesma inclinação ao apresentar talheres usados pela família, o que conserva, pela ausência, a presença dos antepassados: “Quando levo à boca / a colher com que minha avó / tomava a sua antiga sopa / ou o talher de prata / com que comia o arcaico peixe, / a eternidade dos metais / me assusta e desafia. / Gente, onde jaz minha Vó? / Gente, quede os peixes? / Curvas reintegradas na argila / suas formas no todo se fundiram / enquanto à mão brilham invictas / as rosas dos cabos lavrados”. (CABRAL, 1979CABRAL, Astrid. Ponto de cruz. Rio de Janeiro: Cátedra, 1979., p. 43).
  • 9
    Pela lógica do texto judaico-cristão, a paixão na cruz é seguida da ressurreição. Isso serve de base para se pensar no sofrimento de modo temporário; na penitência como algo aceitável, porque passageira. Em Astrid Cabral, o que se vê é a perenidade da desgraça.
  • 10
    A ideia de arte de que fala Walter Benjamin é aquela em que apenas o artista, inspirado, poderia fixar a imagem de Deus em uma obra. Trata-se, como explica, de uma concepção que abole qualquer valor de técnica. A partir do surgimento da fotografia, essa noção de arte é abalada (BENJAMIN, 1994BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. (Obras Escolhidas, Vol. I), p. 92).
  • 11
    Tomo de empréstimo a expressão de Susan Sontag em seu estudo detalhado sobre a história da fotografia. Conforme a autora, “ao nos ensinar um novo código visual, as fotos modificam e ampliam nossas ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de observar. Constituem uma gramática e, mais importante ainda, uma ética do ver. Por fim, o resultado mais extraordinário da atividade fotográfica é nos dar a sensação de que podemos reter o mundo inteiro em nossa cabeça - como uma antologia de imagens” (SONTAG, 2004SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004., p. 13).
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    09 Fev 2023
  • Aceito
    15 Ago 2023
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