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As novas cartas do Brasil: um e-pistolário dos povos indígenas

The new letters of Brazil: An e-pistolary of the indigenous peoples

Resumo

Neste artigo, retomo o conceito de epistolarium, proposto por Stanley (2004), e os modos como essa noção encontra na ideia de carta como ato (LEJEUNE, 2008) um lugar/não-lugar de suas formas e inespecificidades para discutir o que seria a criação de um e-pistolário dos povos indígenas a partir de uma leitura crítica do site/arquivo do projeto “As cartas dos povos indígenas ao Brasil”. Para tanto, defino o que estou chamando de e-pistolário indígena e sua diferença em relação a organização de acervos epistolares de escritores consagrados para defender a ideia de que as cartas escritas pelos indígenas são as novas cartas do Brasil: um caminho para uma discussão sobre a arte postal desses povos e o lugar de suas cartas na literatura e na história do Brasil.

Palavras-chave:
povos indígenas; cartas; epistolário; Brasil

Abstract

In this paper, I return to the concept of epistolarium, proposed by Stanley (2004) and to how this notion finds in the idea of the letter as an act (LEJEUNE, 2008), a place/non-place of its forms and nonspecificity. Thus, I discuss the development of an e-pistolary by indigenous peoples, through a critical analysis of the letters published in the website/archive “As cartas dos povos indígenas ao Brasil” (Letters of the indigenous peoples to Brazil). Initially, I define what I call indigenous e-pistolary, and how its organization differs from epistolary archives of renowned writers. I do so to defend the idea that the letters written by the indigenous people are the new letters of Brazil: a path to a discussion about indigenous postal art and the place of their letters in Brazilian literature and history.

Keywords:
Indigenous peoples; letters; epistolary; Brazil

Resumen

En este artículo retomo al concepto de epistolarium, propuesto por Stanley (2004) y los modos cómo esta noción encuentra en la idea de carta como acto (Lejeune 2008) un lugar/no lugar de sus formas y especificidades, para discutir lo que sería la creación de un e-pistolario de los pueblos indígenas, a partir de una lectura crítica del sitio web/archivo del proyecto “Las cartas de los pueblos indígenas a Brasil”. Para ello, defino lo que llamo e-pistolario indígena, su diferencia en relación con la organización de las colecciones epistolares de los escritores consagrados, para defender la idea de que las cartas escritas por los indígenas son las nuevas cartas de Brasil: un camino para una discusión sobre el arte postal de estos pueblos y el lugar de sus cartas en la literatura y la historia de Brasil.

Palabras claves:
pueblos indígenas; cartas; epistolario; Brasil

Liz Stanley (2004STANLEY, Liz. The Epistolarium: On Theorizing Letters and Correspondences, Auto/Biography, v. 12, n. 3, p. 201-235, 2004. ), no artigo The Epistolarium: On Theorizing Letters and Correspondences, apresenta um modo de pensar os sentidos e artifícios que envolvem as formas da correspondência, discutindo, a partir das cartas de Olive Schreiner (1855-1920), o que seria um epistolário produzido para além da ideia de livro litúrgico, caderno ou coletânea de cartas, mas como uma espécie de portal onde fosse possível ler uma carta por diferentes perspectivas e fontes. Stanley apresenta, também, um modo de pensar no antes e no depois da produção de uma carta, um modo de lidar com seus rascunhos, seus não ditos, com a edição de sua versão final e, inclusive, com as ficções de sua não existência, para montar o que a autora chama de uma comunidade epistolar, uma ética e uma teoria da correspondência.

No Brasil, essa ideia está projetada em muitos estudos que tratam da epistolografia de autores consagrados para pensar a literatura de uma época, bem como em projetos e pesquisas construídas para garantir a memória histórica do país através de missivas de intelectuais, historiadores e grandes figuras do cenário político e literário nacional. Parte dessas missivas, como as cartas dos jesuítas, dos primeiros biólogos, geógrafos e etnólogos que aqui estavam, bem como dos chefes de expedições e, mais recentemente, de comissões de reintegração dos ‘índios” - que contaram ao mundo suas versões sobre os indígenas nos trópicos - foram/são consideradas cartas do Brasil e referenciadas como autênticas representações do arquivo da nossa memória nacional. Há, no entanto, um número ainda insuficiente de pesquisas dedicadas a pensar essa história, ou a criação do seu epistolário, através de uma investigação dos indígenas não somente como o assunto dessas missivas, mas como seus autores.

Quando se trata de pensar as cartas indígenas durante o período colonial ou em qualquer outro período da história do Brasil, além de raríssimas pesquisas no país, “o fenômeno social da invisibilidade é fartamente relatado” (MARTES, 2021MARTES, Ana Cristina Braga. Para se aproximar do invisível. Pessoa A Revista que Fala a sua Língua, 2021. Disponível em: https://www.revistapessoa.com/artigo/3302/para-se-aproximar-do-invisivel . Acesso em: 20 mar. 2023
https://www.revistapessoa.com/artigo/330...
, p. 1). São recentes, por exemplo, as pesquisas e as traduções para a língua portuguesa das cartas emitidas por indígenas durante as guerras holandesas no século XVII.1 1 Pesquisadores como Bartira Barbosa, Franz Obermeier, Ruth Monserrat e Eduardo Navarro são alguns dos estudiosos dessas escritas. Este último trabalhou na tradução para o português das correspondências de indígenas redigidas em tupi durante o período de 1645-1646. Também são recentes as discussões sobre cartas escritas entre o final do século XIX e início do século XX. O que se sabe bem, e o que se sustenta até hoje no imaginário nacional, sobre os indígenas no Brasil, é que esses povos são ágrafos e não possuem relação com qualquer forma de tradição de produção de registros escritos. Um imaginário que desconsidera, com isso, todo um sistema gráfico alternativo à escrita alfabética europeia, que indígenas dominaram e dominam muito bem, além dos modos também alternativos de aprender e ressignificar o código alfabético dos brancos.

As cartas escritas por indígenas, produzidas nas últimas três décadas, são exemplos dessa criação alternativa de códigos de correspondência, que também pode ser pensada como exercício de reelaboração dos sentidos de uma história que ainda não faz parte da grande narrativa literária e política do Brasil - um enfrentamento aos ciclos de silenciamento e invisibilidade radicalmente vividos pelos indígenas. Para ler essas cartas e pensar no que seria um epistolário indígena, reunimos no portal do projeto “As cartas dos povos indígenas ao Brasil”2 2 Projeto financiado pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e que conta com a participação de estudantes de graduação e pós-graduação (mestrado e doutorado) da Universidade Federal da Bahia, Brasil. , sob minha coordenação, 1067 cartas escritas por indígenas3 3 Referência relativa ao dado disponível até o dia 17 de novembro de 2022 no portal Cartas Indígenas ao Brasil. Como ainda estamos catalogando cartas de diferentes períodos da história do Brasil, e o projeto ainda está em andamento (com previsão de finalização em março de 2026), é possível que o número de correspondências seja bem maior do que o informado neste artigo. e publicadas em portais de notícias, em redes sociais e em organizações não governamentais e endereçadas aos presidentes da república, aos ministérios da justiça, aos brasileiros, ao Brasil e ao mundo.4 4 Outros destinatários dessas cartas: organizações internacionais, outros indígenas e indigenistas parceiros dos indígenas, jornalistas e imprensa, governadores, prefeitos e demais poderes públicos. Diferente das cartas pessoais trocadas entre escritores, artistas e intelectuais, essas cartas não são correspondências privadas que se tornaram públicas, ao contrário disso, são registros cotidianos de assassinatos, violação de direitos e outras situações abusivas, tornadas públicas pelos próprios indígenas e definidas por eles como cartas abertas.

Por outro lado, essas cartas são, em parte, o que estou chamando aqui de arte postal dos indígenas, isso porque há movimentos estéticos e políticos de conversação que as antecedem, que resultam delas e que se constroem para além do envio e da espera de suas respostas. Pretendo analisar essas cartas abertas, neste artigo, apresentando o que seria a criação de um epistolário dos povos indígenas. Para tanto, retomo o conceito de epistolarium, proposto por Stanley (2004STANLEY, Liz. The Epistolarium: On Theorizing Letters and Correspondences, Auto/Biography, v. 12, n. 3, p. 201-235, 2004. ), e os modos como essa noção encontra na ideia de carta como ato (LEJEUNE, 2008LEJEUNE, Philipe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Tradução de Jovita G. Noronha e Maria Inês C. Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008.) um lugar/não-lugar de suas formas e inespecificidades, para discutir como um epistolário indígena pode apresentar outras questões à organização de arquivos epistolares de escritores consagrados. Analiso os movimentos e contornos dessa diferença a partir de uma leitura crítica do primeiro arquivo de cartas presentes no site https://cartasindigenasaobrasil.com.br/ para defender a ideia de que as correspondências escritas pelos indígenas são as novas cartas do Brasil: um caminho para uma discussão sobre a prática epistolar desses povos e o lugar de suas cartas na literatura e na história do Brasil.

Sobre epistolarium

Para Liz Stanley (2004STANLEY, Liz. The Epistolarium: On Theorizing Letters and Correspondences, Auto/Biography, v. 12, n. 3, p. 201-235, 2004. ), um epistolarium não é somente um lugar para arquivar cartas e transformá-las em uma espécie de coleção de todas as correspondências de um determinado escritor; também não se restringe às trocas de cartas entre remetentes e seus destinatários. Um epistolarium é um lugar de produção de epistemes, que infunde todos os aspectos da lógica da correspondência. Em seu trabalho com os arquivos de Olive Schreiner (1855-1920), Stanley apresentou a ideia de comunidade epistolar, que consistia em pensar as cartas “restantes” de Olive Schreiner, as cartas fora do arquivo, dispersas pelo tempo e caracterizadas muito mais pelos seus fragmentos, pelos seus rastros e por suas ausências do que por suas versões originais. O que me interessa mais propriamente no seu estudo é o modo como a autora define epistolarium como o lugar/não lugar de correspondências reunidas não só por causa da totalidade do esforço de quem as produziu, mas por tudo o que também não foi possível arquivar, por tudo o que restou de um arquivo. Para Stanley, um epistolarium seria exatamente isso: o que resta dele, porque é improvável que suas dimensões tenham sido totalmente percebidas pelo escritor e ou por seus correspondentes individuais, justamente por conta da natureza fragmentária da carta.

Nesse sentido, a professora e socióloga nos explica que

enquanto a escrita de cartas é caracterizada pela fragmentação e dispersão, a compreensão dos fragmentos restantes de um arquivo requer algum tipo de visão geral; e isso constitui uma tentativa, embora provisória, de compreender um todo que nunca existiu realmente na forma de ‘um todo’ ou ‘de uma coleção’ (STANLEY, 2004STANLEY, Liz. The Epistolarium: On Theorizing Letters and Correspondences, Auto/Biography, v. 12, n. 3, p. 201-235, 2004. , p. 205, tradução minha).5 5 “While letter writing is characterized by fragmentation and dispersal, nonetheless understanding the remaining fragments requires some kind of overview; and this constitutes an albeit provisional attempt to comprehend an entirety that never actually existed in the form of ‘a whole’ or ‘a collection’.”

Pensar em construir um epistolário é também entender essa condição fragmentária das cartas, suas plasticidades e outros suportes de composição e, principalmente, o modo como “as cartas são uma forma em fuga. Elas não contêm evidências da ‘pessoa real’, mas são traços dessa pessoa em uma aparência epistolar representacional particular” (STANLEY, 2004STANLEY, Liz. The Epistolarium: On Theorizing Letters and Correspondences, Auto/Biography, v. 12, n. 3, p. 201-235, 2004. , p. 224, tradução minha).6 6 “Letters are a form in flight. They do not contain evidence of ‘he real person’, but are rather traces of this person in a particular representational epistolary guise (...).” Para Stanley, todas as características de uma carta são conceituais e podem também garantir métodos diferentes de leitura e de produção de epistemologias. Sendo assim, o epistolarium não seria propriamente um lugar de encontro das formas de uma carta, mas o não-lugar delas, o circuito das suas inespecificidades, justamente pela plasticidade dos usos de uma missiva, pelo tipo de partilha e afecções que uma carta pode agenciar, não propriamente como gênero textual, mas como ato (LEJEUNE, 2008LEJEUNE, Philipe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Tradução de Jovita G. Noronha e Maria Inês C. Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008.) e, sendo assim, simulacro da presença (STANLEY, 2004STANLEY, Liz. The Epistolarium: On Theorizing Letters and Correspondences, Auto/Biography, v. 12, n. 3, p. 201-235, 2004. ) de quem as escreve, para quem as destina e de quem as lê.

A ideia da carta como ato aparece na pergunta “a quem pertence uma carta?”, que intitulou a crônica, tão referenciada em discussões epistolográficas, do professor Philippe Lejeune (2008LEJEUNE, Philipe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Tradução de Jovita G. Noronha e Maria Inês C. Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008.). Lejeune, ao apresentar algumas faces paradoxais do que é uma carta, conclui que, por definição, “uma carta tem vários aspectos: é um objeto (que se troca), um ato (que pode ser publicado) (...) e há sempre várias pessoas envolvidas” (LEJEUNE, 2008LEJEUNE, Philipe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Tradução de Jovita G. Noronha e Maria Inês C. Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008., p. 252). A ideia da carta como ato não foi conceitualmente desenvolvida por Lejeune nessa crônica, no entanto, essa pequena passagem do texto provocou algumas instigantes releituras críticas por parte de estudiosos do gênero, como é o caso da leitura do professor Marcos Antonio de Moraes, em seu artigo Edição da correspondência reunida de Mário de Andrade (2009MORAES, Antonio. Edição da correspondência reunida de Mário de Andrade: históricos e alguns pressupostos. Patrimônio e Memória, v. 4, n. 2, p. 1-14, 2009.).

Moraes analisou a ideia de ato como um tipo de representação teatral para demostrar como uma carta pode envolver personagens em cena: “remetente assume ‘papéis’, ajusta ‘máscaras’ em seu rosto, reinventando-se (‘encenação’) diante de seus destinatários. ‘Ato’, igualmente, devido a seu caráter performativo: a mensagem põe em marcha pensamentos, projetos, afeições” (MORAES, 2009MORAES, Antonio. Edição da correspondência reunida de Mário de Andrade: históricos e alguns pressupostos. Patrimônio e Memória, v. 4, n. 2, p. 1-14, 2009., p. 116). Uma noção próxima à ideia de simulacros de presença que, para Stanley (2004STANLEY, Liz. The Epistolarium: On Theorizing Letters and Correspondences, Auto/Biography, v. 12, n. 3, p. 201-235, 2004. ), se conecta ao modo como uma carta assume aparentemente características do seu autor, lhe garantindo ou evocando a sua presença no tempo, ainda que a carta, de certo modo, exista por causa da distância e da ausência de quem fala. O que Moraes chamou de performance e Stanley de simulacro não estaria propriamente nesse não lugar, mas na relação que se cria a partir dele, no modo como uma carta em si embaralha esse jogo de presença e ausência, remetente e destinatário, público e privado.

A carta é a própria relação, diz Stanley, e o simulacro da presença que ela impõe caracterizaria a ideia de epistolarium como o lugar de um tempo presente, porque essa noção de simulacro nas cartas

também faz coisas com e para o tempo: quando uma carta é lida, seu leitor, é claro, sabe que o tempo passou e o 'momento' de sua escrita se foi; mas, ao mesmo tempo, o tempo presente da carta se repete - ou melhor, ocorre - não apenas em sua primeira leitura, mas também nas subsequentes. (...) Este aspecto de 'tempo presente' de uma carta persiste - o eu que escreve está, em certo sentido, sempre escrevendo, mesmo após a morte do remetente e do destinatário; e seu destinatário também está 'sempre ouvindo' (STANLEY, 2004STANLEY, Liz. The Epistolarium: On Theorizing Letters and Correspondences, Auto/Biography, v. 12, n. 3, p. 201-235, 2004. , p. 208, tradução minha).7 7 “Letters also do things with and to time: when a letter is read, its reader of course knows that time has passed and the 'moment' of its writing has gone; but at the same time, the present tense of the letter recurs — or rather occurs — not only in its first reading but subsequent ones too. (...) Letters also do things with and to time: when a letter is read, its reader of course knows that time has passed and the 'moment' of its writing has gone; but at the same time, the present tense of the letter recurs — or rather occurs — not only in its first reading but subsequent ones too.”

O simulacro da presença, a performance do eu/outro que escreve e o tempo presente são modos de definir essa ideia da carta-ato, porque diz dos gestos que produzem o seu antes e depois, suas expansões e o seu para além. Acrescento a essa ideia do tempo presente o tempo da alteridade, próprio das vicissitudes do contemporâneo e característico das tensões e intenções dos lugares de quem fala. São esses os atos presentes em uma carta, são esses vestígios de alguém que chamarei, doravante, de gestos, movimentos, que traduzem o seu antes e depois, os efeitos e os sentidos de sua circulação, ainda que, como muito bem nos alertou Stanley, uma carta não contenha evidências da “pessoa real”, mas, sim, de traços de uma vida, pistas, que podem expressar como a correspondência pode ser.

(...) refratada para frente e para trás em outras versões representacionais de 'uma vida', em fotografias, diários, autobiografias, memórias e biografias (incluindo as de outras pessoas e não apenas as particularidades de quem escreveu as cartas), montando assim uma imagem caleidoscópica deles (STANLEY, 2004STANLEY, Liz. The Epistolarium: On Theorizing Letters and Correspondences, Auto/Biography, v. 12, n. 3, p. 201-235, 2004. , p. 224, tradução minha).8 8 “(...) letters can be refracted back and forth across other representational versions of 'a life', in photographs, diaries, autobiographies, memoirs and biographies (including those of other people and not just the particular letter writer), thereby piecing together a kaleidoscopic image of them.”

O que estou chamando de e-pistolário9 9 Além da ideia de epistolarium da Stanley, a noção “ePistolarium” foi elaborada para nomear um ambiente virtual de pesquisa construído com o objetivo de disponibilizar um corpus de cartas escritas em diferentes línguas por distintos estudiosos do século XVII, que viveram na República Holandesa, para demonstrar como o conhecimento circulava durante o período (RAVENEK; VAN DEN HEUVEL; GERRITSEN, 2017). O “ePistolarium” é uma ferramenta de busca de cartas, construída como parte de uma das seções do projeto Circulation of Knowledge and Learned Practices in the 17th-century Dutch Republic (2013). Uma ideia que se aproxima da proposta inicial de criação do primeiro arquivo de cartas indígenas colocado em circulação com o projeto As cartas dos povos indígenas ao Brasil (UFBA/CNPq). A diferença que acrescento e discuto com a ideia de e-pistolário, a partir e para além desses trabalhos, está na criação de um modo estético/político de ler e acessar as cartas produzidas pelos indígenas e enviadas ao Brasil, um modo de colocar também em discussão o que seria a criação artística e um ambiente virtual de correspondências produzido a partir das diferentes montagens das cartas escritas pelos indígenas. indígena começa por essa remontagem, por essa vontade caleidoscópica, e pelo modo como pretendo apresentar esses gestos-cartas (LIMA COSTA, 2021LIMA COSTA, Suzane. Uma década de cartas dos povos indígenas ao Brasil: correspondências de 2011-2020. BRASILIANA: Journal for Brazilian Studies, v. 10, p. 77-95, 2021.) para colocar em discussão o movimento e a remontagem que as correspondências indígenas podem agenciar quando propostas como cartas abertas, como atos de escrita produzidos no tempo da alteridade.

Notas para um e-pistolário indígena

A ideia de criar um arquivo de cartas escritas pelos indígenas ganhou corpo com as pesquisas coordenadas por mim no âmbito do projeto “As cartas dos povos indígenas ao Brasil” (UFBA/CNPq). Criar o primeiro arquivo virtual de cartas indígenas foi o objetivo central dessa pesquisa que iniciou com o levantamento de mais de 664 epístolas escritas por indígenas e disponíveis como cartas abertas ao Brasil em sites de notícias locais, em arquivos físicos da FUNAI. No decorrer da pesquisa, foram incluídas no portal mais 400 cartas e ainda há um significativo número de missivas que ainda não foram apresentadas na plataforma.

Decidi, inicialmente, fazer um levantamento das cartas escritas no período de 1999-2020. Com o desenvolvimento da pesquisa virtual, os demais pesquisadores envolvidos no projeto,10 10 Participaram dessa etapa da pesquisa os doutorandos Rafael Xucuru-kariri, doutorando no curso de Ciências Sociais (UFBA), Cristina Araripe Fernandes, doutoranda no curso de Literatura e Cultura (UFBA) e a Profa. Dra. Maria Hilda Baquero Paraíso, professora do Programa de Pós-Graduação em história (UFBA). se dedicaram à investigação dos arquivos físicos e encontraram também cartas escritas em outros períodos da histórica do Brasil. Por isso, decidi dividir a pesquisa em três importantes períodos da nossa história literária e política: 1630-1680 (antes do Brasil), 1888-1930 (na nação Brasil) e 1970-2020 (no presente Brasil). Na primeira análise das cartas, fizemos seleção inicial para criação do arquivo dividindo as cartas por assuntos para uma compreensão do pano de fundo cultural e político narrado pelos indígenas nas últimas duas décadas do Brasil. Esse recorte foi montado pelas cartas que compreendiam os anos de 1999-2020:

1) O marco dos 500 anos do Brasil; 2) O acesso da população brasileira à Internet (e a consequente disponibilização das cartas na Web); 3) A entrada do Partido dos Trabalhadores (PT), na presidência do Brasil. Desse modo, selecionamos respectivamente três mandatos presidenciais para análise das cartas: os anos finais do governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso (cartas de 2000 a 2002), os dois mandatos do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (cartas de 2003 a 2010) e o primeiro mandato da Presidenta Dilma Roussef (cartas de 2011 a 2015) (LIMA COSTA, 2018LIMA COSTA, Suzane. As cartas das mulheres indígenas ao Brasil. Revista de Estudos Linguísticos e literários, v. 59, p. 109-123, 2018. ).

A partir desse recorte temporal e político, construímos um dos primeiros critérios para a montagem do arquivo: selecionar as cartas abertas, as cartas que foram publicadas pelos indígenas como manifestos públicos em defesa das terras indígenas, como notas de repúdio às violências vividas, como cartas-denúncias dos assassinatos de lideranças e como manifestos destinados ao povo brasileiro, ainda que algumas dessas cartas tenham tido destinatários diretos, como as cartas para os presidentes Fernando Henrique, Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro. O objetivo dessa primeira seleção era pensar as cartas indígenas como as novas cartas do Brasil, analisando a construção desse destinatário - o Brasil - por parte dos indígenas e como essas cartas poderiam ser lidas como manifestos políticos e/ou como escritos biográficos para uma compreensão dos usos coletivos desse tipo de texto entre os indígenas.

As cartas abertas são cartas públicas comumente lidas como a manifestação de uma pessoa ou grupo de pessoas, dirigidas ao grande público com o objetivo de uma comunicação ampla mais impessoal, por assim dizer, menos íntima. Segundo Stanley (2004STANLEY, Liz. The Epistolarium: On Theorizing Letters and Correspondences, Auto/Biography, v. 12, n. 3, p. 201-235, 2004. ), essas cartas são endereçadas ao “público”, ou seja, a uma coletividade de destinatários; negociam, desse modo, valores e significados compartilhados; são em si pronunciamentos a serem lidos, não a serem respondidos por escrito, mesmo com propósito comunicativo. Diferente desse pressuposto, em suas cartas abertas, os indígenas exigem respostas às tantas questões sobre a demarcação de suas terras, expressando, muitas vezes em detalhes, as violências sofridas nas aldeias e os assassinatos das principais lideranças - temas mais recorrentes nas missivas; exigem, outrossim, posição da comunidade e do destinatário, pedem respostas ao Brasil, aos presidentes. Daí o nosso entendimento de que essas cartas são também cartas-manifestos, cartas-denúncias, cartas de repúdio que possuem, em singulares fragmentos, a voz de um eu-íntimo, ainda que em sua maioria tenham sido escritas e assinadas coletivamente.

O fato de ser uma carta aberta não significa necessariamente que as dimensões privadas deixam de existir, por isso nos dedicamos a pensar quais seriam as figurações desse íntimo nas cartas escritas por um grupo de pessoas, em nome de suas associações, em nome da comunidade, ou seja, como seria pensar essa condição autobiográfica, mesmo em cartas assinadas coletivamente. Esse foi o segundo movimento para a leitura crítica e seleção das correspondências indígenas para o arquivo: investigar os remetentes das cartas, os efeitos de suas vozes autorais, as condições dessa autoria, seus rostos na multidão que assina como povo, ou seja, as dimensões do que poderia ser uma carta íntima de um indígena e do que poderia nos aproximar desse outro pela sua própria biografia e não propriamente pela prática etnográfica.

Isso porque o remetente, da maior parte das cartas que coletamos entre os anos de 1999-2020, era o povo, estávamos lidando com cartas abertas escritas em nome do povo, em nome da comunidade indígena, mas que apresentavam algumas singularidades: eram cartas por vezes assinadas coletivamente, mas escritas em primeira pessoa ou escritas na primeira pessoa do plural, como da autoria do povo, mas assinadas por um cacique, um professor, uma liderança que falava em nome de todos. Assim, dividi os remetentes pelas cartas assinadas individualmente e pelas cartas coletivas e passei a investigar teoricamente os contornos dessa autoria através da projeção de algumas noções próprias das escritas dos indígenas: 1) a ideia de que há um povo-autor que constrói as bases orais da carta; 2) a ideia de que há um tradutor ou transcriador, escolhido pelo povo como aquele que escreverá em língua portuguesa a carta ditada; 3) a ideia de que há um cuidador das palavras de todos, aquele que pode assinar a carta em seu nome, falar em nome de todos, mas que não é “o dono” da correspondência, somente responsável por ela; e 4) a ideia de que há os remetentes individuais, que escrevem e assinam as cartas em seus próprios nomes. Um desenho que, em particular, já nos coloca diante de uma outra noção de epistolário e de um outra ideia de arquivo de cartas, porque em si já subverte um dos principais caracterizadores do gênero postal e cria uma série de tensionamentos para a concepção neoliberal de autoria.

Com todo o material de pesquisa coletado e com as cartas disponíveis no site https://cartasindigenasaobrasil.com.br para o grande público, chegamos à construção do que seria um portal de cartas indígenas que podem ser encontradas através do nome dos remetentes, dos destinatários, dos assuntos ou ano das correspondências e que possuem em suas seções o início de um pensamento sobre como seria um epistolário indígena. Por outro lado, todos os movimentos para a criação desse arquivo, que envolveram processos de seleção e organização temporal e política das cartas, criações de categorias de análise, entendimentos de uma outra ordem epistêmica de sentidos para pensar os modos indígenas de escrever, bem como os complexos pedidos de autorização para publicação das cartas no portal, me levaram a questionar os problemas do mal do arquivo (DERRIDA, 2001DERRIDA, Jacques.Mal de Arquivo: uma impressão freudiana. Tradução de Cláudia de Moraes Rego. Rio de janeiro: Relume Dumará, 2001.), os jogos de poder e os perigos que envolvem certas práticas arquivistas.

Foi assim que pensei em como criar torções nesse arquivo, em como pensar rasuras, montagens e remontagens que pudessem deixar perceptível o antes e depois dessas cartas; em todo um movimento de pesquisa que desse atualidade a esse arquivo para além de uma prática meramente documental e classificatória. Em outras palavras, criar um arquivo de cartas escritas por indígenas exigia que escapasse do próprio arquivo para pensá-lo “enquanto resto e não enquanto documento-momento” (PEDROSA et al., 2018PEDROSA, Célia; KLINGER, Diana; WOLFF, Jorge; CÁMARA, Mario. Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018., p. 31), para uma compreensão de que

os modos de arquivar e de usar o arquivo são modos de leitura que ora podem ser os de um leitor autoritário, organizador, que procure dar sentido fixo ao conjunto, ora os de um leitor nômade, que circule de forma desorganizada pelo material e que procure movimentá-lo estabelecendo novas redes, abrindo os sentidos (PEDROSA et al., 2018PEDROSA, Célia; KLINGER, Diana; WOLFF, Jorge; CÁMARA, Mario. Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018., p. 24).

Aqui começa um pensamento sobre a criação de um epistolário próximo ao sentido proposto por Stanley (2004STANLEY, Liz. The Epistolarium: On Theorizing Letters and Correspondences, Auto/Biography, v. 12, n. 3, p. 201-235, 2004. ), mas, paradoxalmente, distante de suas problemáticas centrais, uma vez que não estamos lidando com cartas de um único remetente, mas com uma coletividade de remetentes, com autores com e sem rostos, e com sujeitos sociais socialmente considerados como esvaziados de subjetividades e, muito vezes, não consideramos os verdadeiros autores das suas próprias correspondências. Que valor teriam suas cartas? Como seria a criação de um epistolário de cartas abertas? Sobre o que os indígenas querem conversar com o Brasil? Por que insistem tanto na escrita dessas cartas? As respostas a essas perguntam exigiam também um pensamento sobre as expansões dessas cartas, sobre seus modos de não caber no arquivo, não apenas para uma definição da arte postal indígena, mas para “achar espectros, elementos significantes na poeira, naquilo que restou de uma experiência irrecuperável” (PEDROSA et al., 2018PEDROSA, Célia; KLINGER, Diana; WOLFF, Jorge; CÁMARA, Mario. Indicionário do contemporâneo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018., p. 21). Tentamos pensar essas questões elaborando uma montagem caleidoscópica dos remetentes dessas cartas: uma montagem criada a partir de suas fotografias, suas narrativas de vida, seus nomes próprios e seus rostos quase impossíveis ao imaginário dos não-indígenas.

Um primeiro movimento para essa montagem foi produzido com a criação da seção “Remetentes” no portal https://cartasindigenasaobrasil.com.br (Figura 1).

Figura 1 -
Print da seção “Remetentes” (Portal Cartas Indígenas ao Brasil, 2021PORTAL CARTAS INDÍGENAS. Homepage do site Cartas Indígenas ao Brasil. Cartas Indígenas ao Brasil, 2021. Disponível em: https://cartasindigenasaobrasil.com.br/ . Acesso em: 20 mar. 2023.
https://cartasindigenasaobrasil.com.br/...
).

Nesse espaço, disponibilizamos as biografias, as cartas relacionadas a cada autor e autora, seus rostos e nomes próprios. Esse foi um primeiro modo de repensar o arquivo, um primeiro experimento, e também um primeiro gesto de autocrítica, que nos fez também pensar nos processos de criação não só das cartas assinadas individualmente, mas das cartas relacionadas a esses remetentes, produzidas em suas pactuações coletivas, ou mesmo das cartas elaboradas como obras abertas, com ilimitadas possiblidades de usos e formas.

Essa outra montagem do arquivo também implicaria em um estudo crítico e conceitual da ideia de carta aberta e de arte postal através do levantamento das obras produzidas pelos indígenas como cartões-postais, cartas-imagens, cartas-vídeos, cartas-painéis ou paginário de cartas. Alguns exemplos significativos desses gestos, dessas cartas-obras, estão presentes no trabalho do artista Makuxi Jaider Esbell e nos efeitos de correspondências presentes em muitas das suas obras, como na criação da sua Carta ao velho mundo (Figura 2).

Figura 2 -
Carta ao velho mundo (Jaider Esbell).11 11 Imagem do autor, disponível em: http://www.jaideresbell.com.br/site/2019/03/20/carta-ao-velho-mundo/. Acesso em: 20 nov. 2022.

Em um levantamento dessas cartas-obras, encontramos correspondências produzidas como cartões-postais, por Denilson Baniwa, como cartas-filmes, pelas cineastas Michele Kaiowá, Graciela Guarani e Patrícia Ferreira Pará Yxapy, como cartas-imagens pela artista Pataxó Arissana e como performances e artes visuais, por Daiara Tukano, ou seja, uma série de desenhos, grafismos, performances, fotografias, telas e um chamado para uma mudança nos modos de pensar o que é uma carta, o que ela pode como objeto artístico, o que ela pode como ato.

São essas cartas que apresentam o tempo da alteridade, o tempo da intenção da presença do outro e, por isso mesmo, têm em sua composição um operador contra, por assim dizer, a ideia de propriedade e pertencimento que a carta íntima, por vezes, sugere. Um e-pistolário dessas cartas também implica em uma revisão da ideia de carta aberta, quando postada pelos indígenas, e uma investigação dos circuitos de recepção dessas cartas e dos modos como os povos usam as redes virtuais como correio.

As novas cartas do Brasil

Muito antes do início da Internet comercial no Brasil, em 1995, os indígenas já produziam singulares redes de correspondência entre si e com os não-indígenas. Uma prática completamente ignorada, inclusive por pesquisadores da história e da literatura do/no Brasil. Essas redes, montadas através dos Movimentos Indígenas Regionais e Nacional, instauraram um circuito de outras narrativas históricas do Brasil, de outras interpretações políticas, que Ailton Krenak (2015KRENAK, Ailton. Encontros - Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, Organização da Coletânea por Sergio Cohn, 2015.) nomeou de a “redescoberta” do Brasil pelos indígenas, a partir da década de 1970.

São parte desse contexto as cartas escritas como resultados dessas pactuações coletivas. Essa cena postal criada pelos Movimentos Indígenas vem sendo mobilizada durante e após reuniões, assembleias, encontros, grandes manifestações públicas de líderes e demais membros de uma comunidade ou em performances políticas que envolvem desde as organizações regionais indígenas no Brasil - como a Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), o Conselho do Povo Terena, a Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (ARPINSUDESTE), a Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL), a Grande Assembleia do povo Guarani (ATY GUASU) ou a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) -, até chegar a Articulação Nacional dos Povos Indígenas (APIB), que congrega todas as grandes organizações do país.

Além das redes postais, veiculadas por essas grandes organizações indígenas, esse outro Brasil também aparece em cartas produzidas por pequenos movimentos de jovens, professores, escritores, indígenas LGBTQIA+, mulheres, mães, caciques e pajés. Algumas dessas cartas fazem parte da agenda política dos movimentos e são produzidas para registrar ações e demandas do grupo, como é o caso da carta do Fórum Social Mundial, de 2002, assinada pela comissão de representantes indígenas:

Porto Alegre, II Fórum Social Mundial, 31 de janeiro de 2002.

Brasileiros,

[...] Como se não bastasse, o presidente FHC continua nos expulsando de nossas próprias terras, como é o exemplo do povo Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. E mais grave, está desrespeitando a Constituição Federal em seu art. 231, que garante aos povos indígenas a demarcação das terras que tradicionalmente ocupam, bem como seu usufruto exclusivo. Portanto, discordamos de todas as iniciativas que visem a compra de terras por governos estaduais, desconsiderando as terras tradicionais (COMISSÃO INDÍGENA, 2002COMISSÃO INDÍGENA. Carta II Fórum Social Mundial. Cartas Indígenas ao Brasil, 2002. Disponível em: https://cartasindigenasaobrasil.com.br/cartas/das-liderancas-indigenas-para-o-mundo/ . Acesso em: 20 mar. 2023.
https://cartasindigenasaobrasil.com.br/c...
).

Outras são produzidas depois de grandes enfrentamentos ou manifestos, de disputas de posse de terras ou assassinatos nas aldeias, como é o caso da carta da Grande Assembleia do Povos Guarani, em 2015:

Tekoha Guasu Guarani e Kaiowa, 24 de junho de 2015

Brasil,

É com profunda tristeza e pesar que mais uma vez comunicamos a todas as sociedades nacionais e internacionais os assassinatos de três crianças indígenas Guarani e Kaiowa pelos fazendeiros, um bebê recém-nascido e três crianças foram incendiadas, e os cadáveres ocultados pelos fazendeiros no Mato Grosso Sul. Nós, povos Guarani e Kaiowá, estamos chorando em LUTO. No dia 24 de junho de 2015, os fazendeiros incendiaram um bebê e 3 as crianças indígenas (...) (GRANDE ASSEMBLÉIA DO POVO GUARANI - ATY GUASU, 2015GRANDE ASSEMBLÉIA DO POVO GUARANI - ATY GUASU. Carta do conselho da Aty Guasu Kaiowá para a Presidente Dilma Rousseff. Cartas Indígenas ao Brasil, 2015. Disponível em: https://cartasindigenasaobrasil.com.br/cartas/de-liderancas-guarani-e-kaiowa-para-brasileiros/ . Acesso em: 20 mar. 2023.
https://cartasindigenasaobrasil.com.br/c...
, n.p.).

Outros trechos de cartas similares foram lançados na homepage do portal “As Cartas dos Povos Indígenas ao Brasil” (Figura 3), também como modo de criar o e-pistolário em fragmentos de missivas enviadas por diferentes povos. Assim, recortamos passagens das cartas e as estampamos na página principal do site, destacando os nomes dos remetentes, data e ano da correspondência, para chamar os leitores a conhecer as correspondências na íntegra:

Figura 3 -
Print da página inicial (Portal Cartas Indígenas ao Brasil, 2021PORTAL CARTAS INDÍGENAS. Homepage do site Cartas Indígenas ao Brasil. Cartas Indígenas ao Brasil, 2021. Disponível em: https://cartasindigenasaobrasil.com.br/ . Acesso em: 20 mar. 2023.
https://cartasindigenasaobrasil.com.br/...
).

Se as primeiras cartas do Brasil, e as tantas coletâneas de cartas consideradas como fundamentais para contar nossa história, são descritas por muitos historiadores como retratos da nossa memória cultural e política, escritas diretamente do front dos descobrimentos, por observadores atentos e seus companheiros (HUE, 2006HUE, Sheila Moura. Primeiras cartas do Brasil: 1551-1555. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2006.), porque não considerar as cartas indígenas (que delimitam territórios, discutem históricas e contemporâneas pautas políticas, ambientais, esteticizam essas pautas, denunciam e repudiam violências, invertem ontologias e reapresentam o que é ser indígena no Brasil) como a tradução de um Brasil completamente desconhecido para muitos brasileiros e, ao mesmo tempo, uma mostra de sua história pela autoria daqueles que nunca tiveram seus nomes próprios inscritos nela? Por que as cartas escritas por indígenas não podem ser consideradas cartas de um Brasil recentemente redescoberto pelos indígenas? Por que não podem ser indicadas como parte fundamental dos estudos da nossa história nas Escolas Básicas ou da literatura brasileira em nossas universidades? Se por um lado dizer que indígenas escrevem cartas é retirar o seu “papel normal” de subalternização na grande história, por outro, afirmar que as cartas escritas por indígenas são as novas cartas do Brasil é, em si, um procedimento político de desmontagem da razão histórica do colonizador, das verdades que instauraram a ideia de que existe um autêntico índio no passado e da busca desse mesmo índio na nossa história presente. O que também significa dizer que “só se expõe - poética, visual, musical ou filosoficamente - à política ao mostrar os conflitos, os paradoxos, os choques recíprocos dos quais toda história é tecida” (DIDI-HUBERMAN, 2016DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontar, remontagem (do tempo). Tradução de Milene Migliano. Caderno de Leituras, v. 47, p. 1-7, 2016, p. 1). Para Didi-Huberman, a desmontagem é o procedimento para essa mostra, que decorre fundamentalmente desse saber das sobrevivências (2016DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontar, remontagem (do tempo). Tradução de Milene Migliano. Caderno de Leituras, v. 47, p. 1-7, 2016). No caso das cartas indígenas, esse saber desloca temporalidades e possíveis pactos da correspondência para perguntar pelos modos de composição de muitos dos momentos históricos do Brasil.

A ideia da montagem/desmontagem desse arquivo de cartas, os conceitos e procedimentos que expus para sua criação, estão expressos neste artigo como notas gerais de uma pesquisa que ainda está em desenvolvimento. Para os desdobramentos dessas notas, pretendo desenvolver o aporte teórico que as próprias cartas apresentam para defender essas correspondências como as novas cartas do Brasil, bem como para responder às perguntas que funcionaram como ponto de partida do projeto “As cartas dos Povos indígenas ao Brasil”, e que ainda reverberam nas noções de autoria, na ideia de epistolário e na própria ideia de Brasil como interlocutor dos indígenas: quem são os indígenas que escrevem cartas? Quem é o Brasil nas cartas dos indígenas? Quem responde às cartas dos povos?

Estamos trabalhando na construção de uma exposição e de um catálogo de correspondências que apresentem em cartas-instalações diferentes respostas a essas questões. A ideia é expor, em diferentes temporalidades, cartas escritas por indígenas que trazem em suas composições imagens de um Brasil ainda pouco pensado, discutido ou referenciado no imaginário público (LUDMER, 2010LUDMER, Josefina. Aquí América Latina. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2010. ). O objetivo central da continuidade da pesquisa é expor essas cartas como “as novas cartas do Brasil”, partindo da própria noção de e-pistolário como uma rede virtual de correspondências formatada a partir das descobertas contemporâneas dos Brasis narrados pelos indígenas. Também pretendemos criar um catálogo comentado dessa exposição, em formato e-book (direcionado para a formação política, cultural e artística de professores e estudantes da Educação Básica), para promover a circulação dessas cartas não só no espaço acadêmico, mas também nas escolas públicas e privadas do Brasil.

O que podem as cartas escritas por indígenas?

Em 2012, escrevi um ensaio a partir de uma pergunta: o que (ainda) podem as cartas?LIMA COSTA, Suzane. O que (ainda) podem as cartas? Interdisciplinar VIII, v. 19, p. 87-98, 2012. Uma pergunta retórica, à época, e não respondida naquele texto, mas que, de certo modo, não foi ignorada por mim. Ao contrário disso, essa pergunta sempre me acompanhou. Todas as vezes que leio uma carta escrita por um indígena, sinto que me reaproximo de muitas possíveis respostas a essa questão, talvez pela maneira como essas cartas questionam nosso próprio tempo da rapidez ou pela forma como tratam de assuntos tão urgentes e, assustadoramente, tão negligenciados.

Vejo os estudiosos da escrita epistolar fascinados pelo que há de mais trivial em uma carta, pelo modo como é possível “puxar conversa” (SANTIAGO, 2006SANTIAGO, Santiago. Ora (direis) puxar conversa! Ensaios literários. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.) com elas e fazer dessa conversa um consagrado lugar de produção de sentidos e de valor para a história e a literatura de um país. Certas cartas podem muito; podem, inclusive, até ser banais. Procurei muito esse trivial entre as cartas indígenas e encontrei repetidos e corriqueiros absurdos: modos não naturais de morrer, disputas e autodemarcação de terras, defesa dos próprios direitos à vida, à sobrevivência, à não violência. Nas cartas indígenas, o trivial é continuar vivo, radicalmente vivo, como bem nos explicou Krenak (2015KRENAK, Ailton. Encontros - Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, Organização da Coletânea por Sergio Cohn, 2015.).

Em futuros estudos epistolares, talvez crie respostas à pergunta que lancei há uma década. Por ora, prefiro apostar na compreensão de que só estuda cartas hoje quem tem um profundo interesse pela “vida”, em suas trivialidades ou em suas urgências, ainda que as cartas, como bem sugeriu Stanley, não tornem evidente “a vida” de ninguém. Talvez a potência esteja justamente nisso.

Agradecimentos:

A autora agradece a Rafael Xucuru-Kariri e às Associações Indígenas pelo apoio recebido durante toda a pesquisa de dados. Agradece também a Jô Lima Costa.

Este artigo apresenta resultados parciais de pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e tecnológico (CNPq). Os editores de Alea agradecem ao órgão de fomento à pesquisa pelo apoio dado à pesquisadora.

Referências

  • COMISSÃO INDÍGENA. Carta II Fórum Social Mundial. Cartas Indígenas ao Brasil, 2002. Disponível em: https://cartasindigenasaobrasil.com.br/cartas/das-liderancas-indigenas-para-o-mundo/ Acesso em: 20 mar. 2023.
    » https://cartasindigenasaobrasil.com.br/cartas/das-liderancas-indigenas-para-o-mundo/
  • DERRIDA, Jacques.Mal de Arquivo: uma impressão freudiana. Tradução de Cláudia de Moraes Rego. Rio de janeiro: Relume Dumará, 2001.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. Remontar, remontagem (do tempo). Tradução de Milene Migliano. Caderno de Leituras, v. 47, p. 1-7, 2016
  • GRANDE ASSEMBLÉIA DO POVO GUARANI - ATY GUASU. Carta do conselho da Aty Guasu Kaiowá para a Presidente Dilma Rousseff. Cartas Indígenas ao Brasil, 2015. Disponível em: https://cartasindigenasaobrasil.com.br/cartas/de-liderancas-guarani-e-kaiowa-para-brasileiros/ Acesso em: 20 mar. 2023.
    » https://cartasindigenasaobrasil.com.br/cartas/de-liderancas-guarani-e-kaiowa-para-brasileiros/
  • HUE, Sheila Moura. Primeiras cartas do Brasil: 1551-1555. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2006.
  • KRENAK, Ailton. Encontros - Ailton Krenak Rio de Janeiro: Azougue, Organização da Coletânea por Sergio Cohn, 2015.
  • LEJEUNE, Philipe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Tradução de Jovita G. Noronha e Maria Inês C. Guedes. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
  • LIMA COSTA, Suzane. O que (ainda) podem as cartas? Interdisciplinar VIII, v. 19, p. 87-98, 2012.
  • LIMA COSTA, Suzane. As cartas das mulheres indígenas ao Brasil. Revista de Estudos Linguísticos e literários, v. 59, p. 109-123, 2018.
  • LIMA COSTA, Suzane. Uma década de cartas dos povos indígenas ao Brasil: correspondências de 2011-2020. BRASILIANA: Journal for Brazilian Studies, v. 10, p. 77-95, 2021.
  • LUDMER, Josefina. Aquí América Latina Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2010.
  • MARTES, Ana Cristina Braga. Para se aproximar do invisível. Pessoa A Revista que Fala a sua Língua, 2021. Disponível em: https://www.revistapessoa.com/artigo/3302/para-se-aproximar-do-invisivel Acesso em: 20 mar. 2023
    » https://www.revistapessoa.com/artigo/3302/para-se-aproximar-do-invisivel
  • MORAES, Antonio. Edição da correspondência reunida de Mário de Andrade: históricos e alguns pressupostos. Patrimônio e Memória, v. 4, n. 2, p. 1-14, 2009.
  • PEDROSA, Célia; KLINGER, Diana; WOLFF, Jorge; CÁMARA, Mario. Indicionário do contemporâneo Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018.
  • PORTAL CARTAS INDÍGENAS. Homepage do site Cartas Indígenas ao Brasil. Cartas Indígenas ao Brasil, 2021. Disponível em: https://cartasindigenasaobrasil.com.br/ Acesso em: 20 mar. 2023.
    » https://cartasindigenasaobrasil.com.br/
  • RAVENEK, Walter; VAN DEN HEUVEL, Charles; GERRITSEN, Guido. The ePistolarium: Origins and Techniques. In: ODIJK, J.; VAN HESSEN, A. (eds.). CLARIN in the Low Countries London: Ubiquity Press, 2017. p. 317-323.
  • SANTIAGO, Santiago. Ora (direis) puxar conversa! Ensaios literários Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
  • STANLEY, Liz. The Epistolarium: On Theorizing Letters and Correspondences, Auto/Biography, v. 12, n. 3, p. 201-235, 2004.
  • 1
    Pesquisadores como Bartira Barbosa, Franz Obermeier, Ruth Monserrat e Eduardo Navarro são alguns dos estudiosos dessas escritas. Este último trabalhou na tradução para o português das correspondências de indígenas redigidas em tupi durante o período de 1645-1646.
  • 2
    Projeto financiado pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e que conta com a participação de estudantes de graduação e pós-graduação (mestrado e doutorado) da Universidade Federal da Bahia, Brasil.
  • 3
    Referência relativa ao dado disponível até o dia 17 de novembro de 2022 no portal Cartas Indígenas ao Brasil. Como ainda estamos catalogando cartas de diferentes períodos da história do Brasil, e o projeto ainda está em andamento (com previsão de finalização em março de 2026), é possível que o número de correspondências seja bem maior do que o informado neste artigo.
  • 4
    Outros destinatários dessas cartas: organizações internacionais, outros indígenas e indigenistas parceiros dos indígenas, jornalistas e imprensa, governadores, prefeitos e demais poderes públicos.
  • 5
    While letter writing is characterized by fragmentation and dispersal, nonetheless understanding the remaining fragments requires some kind of overview; and this constitutes an albeit provisional attempt to comprehend an entirety that never actually existed in the form of ‘a whole’ or ‘a collection’.”
  • 6
    Letters are a form in flight. They do not contain evidence of ‘he real person’, but are rather traces of this person in a particular representational epistolary guise (...).”
  • 7
    Letters also do things with and to time: when a letter is read, its reader of course knows that time has passed and the 'moment' of its writing has gone; but at the same time, the present tense of the letter recurs — or rather occurs — not only in its first reading but subsequent ones too. (...) Letters also do things with and to time: when a letter is read, its reader of course knows that time has passed and the 'moment' of its writing has gone; but at the same time, the present tense of the letter recurs — or rather occurs — not only in its first reading but subsequent ones too.
  • 8
    “(...) letters can be refracted back and forth across other representational versions of 'a life', in photographs, diaries, autobiographies, memoirs and biographies (including those of other people and not just the particular letter writer), thereby piecing together a kaleidoscopic image of them.
  • 9
    Além da ideia de epistolarium da Stanley, a noção “ePistolarium” foi elaborada para nomear um ambiente virtual de pesquisa construído com o objetivo de disponibilizar um corpus de cartas escritas em diferentes línguas por distintos estudiosos do século XVII, que viveram na República Holandesa, para demonstrar como o conhecimento circulava durante o período (RAVENEK; VAN DEN HEUVEL; GERRITSEN, 2017RAVENEK, Walter; VAN DEN HEUVEL, Charles; GERRITSEN, Guido. The ePistolarium: Origins and Techniques. In: ODIJK, J.; VAN HESSEN, A. (eds.). CLARIN in the Low Countries. London: Ubiquity Press, 2017. p. 317-323. ). O “ePistolarium” é uma ferramenta de busca de cartas, construída como parte de uma das seções do projeto Circulation of Knowledge and Learned Practices in the 17th-century Dutch Republic (2013). Uma ideia que se aproxima da proposta inicial de criação do primeiro arquivo de cartas indígenas colocado em circulação com o projeto As cartas dos povos indígenas ao Brasil (UFBA/CNPq). A diferença que acrescento e discuto com a ideia de e-pistolário, a partir e para além desses trabalhos, está na criação de um modo estético/político de ler e acessar as cartas produzidas pelos indígenas e enviadas ao Brasil, um modo de colocar também em discussão o que seria a criação artística e um ambiente virtual de correspondências produzido a partir das diferentes montagens das cartas escritas pelos indígenas.
  • 10
    Participaram dessa etapa da pesquisa os doutorandos Rafael Xucuru-kariri, doutorando no curso de Ciências Sociais (UFBA), Cristina Araripe Fernandes, doutoranda no curso de Literatura e Cultura (UFBA) e a Profa. Dra. Maria Hilda Baquero Paraíso, professora do Programa de Pós-Graduação em história (UFBA).
  • 11
    Imagem do autor, disponível em: http://www.jaideresbell.com.br/site/2019/03/20/carta-ao-velho-mundo/. Acesso em: 20 nov. 2022.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2023
  • Aceito
    15 Ago 2023
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