Acessibilidade / Reportar erro

Um Ciclope francês nos trópicos

A French Cyclops in the tropics

Resumo

O estudo parte de duas obras análogas - um livro e um folheto - produzidas no século XVI e que retratam Nicolas Durand de Villegagnon como o Ciclope Polifemo, figura estabelecida por textos clássicos como a Odisseia, de Homero, e o Ciclope, de Eurípides. Através dessa inusitada comparação entre um monstro mitológico e o Cavaleiro de Malta, tanto o poema quanto a gravura presentes no livro e folheto representam Villegagnon e o aviltam por meio de estratégias discursivas. Tal projeto invectivo tem fundamentos em querelas religiosas, políticas e econômicas no contexto do empreendimento conhecido como “França Antártica” na Baía de Guanabara. O francês Durand é transformado em bárbaro e incivilizado, tornando-se tão ameaçador quanto as tribos canibais brasileiras.

Palavras-chave:
França Antártica; huguenotes e católicos no Brasil; Nicolas Durand de Villegagnon; Ciclope; monstrificação do outro

Abstract

The study starts from two analogous works, a book and a pamphlet, produced in the 16th century, which portray Nicolas Durand de Villegagnon as the Cyclops Polyphemus, a figure established by classical texts such as the Odyssey by Homer and Cyclops by Euripides. Through this unusual comparison between a mythological monster and the Knight of Malta, both the poem and the etching represent Villegagnon and vilify him through certain discursive strategies. Such an invective project is grounded in religious, political, and economic quarrels which have taken place in the context of the enterprise known as ‘France Antarctique’ in Guanabara Bay. The Frenchman Durand is transformed into a barbarian and uncivilized figure, becoming as threatening as the Brazilian cannibal tribes.

Keywords:
France Antarctique; Huguenots and Catholics in Brazil; Nicolas Durand de Villegagnon; Cyclops; monstrousness of the other

Résumé

L'étude part de deux ouvrages analogues, un livre et un pamphlet, publiés au XVIesiècle. Ils présentent Nicolas Durand de Villegagnon comme le Cyclope Polyphème, figure mythologique établie par des textes classiques tels que l'Odyssée et le Cyclope d’Euripide. Avec cette comparaison insolite entre un monstre mythologique et le chevalier de Malte, le poème et le pamphlet vilipendent Villegagnon avec un certain nombre de stratégies discursives. Un tel projet d'invective a ses fondements sur des querelles religieuses, politiques et économiques qui ont lieu dans le contexte de l'entreprise connue sous le nom de « France Antarctique » dans la Baie de Guanabara. Le Français Durand est représenté comme un barbare incivilisé, aussi menaçant que les tribus cannibales brésiliennes.

Mots-clés:
France Antarctique; huguenots et catholiques au Brésil; Nicolas Durand de Villegagnon; Cyclope; monstrification de l’autre

Em 1560, circulava por Paris o desenho que representava Nicolas Durand de Villegagnon, figurado como o ciclope Polifemo da Odisseia. O desenho integrava um folheto e um livro redigidos por Pierre Richer. Numa e noutra publicações, os desenhos, que, conquanto distintos, retratavam a mesma figura, eram adornados por dizeres dispostos em diagrama, em que um lado se opunha ao outro, e também de um poema que descreve e comenta a figura e os dizeres que a ornam. Em ambas as publicações, os dizeres e o poema são os mesmos.

Muitas publicações da aurora da Era da Prensa, assim como muitas do século seguinte, eram introduzidas por um poema, frequentemente elegíaco, e, mais frequentemente ainda, adulatório. O que se toma aqui em estudo, contudo, traz a peculiaridade de não ter caráter laudatório, aliás, muito ao contrário: trata-se de um longo vitupério.

Pode-se tomar tanto a gravura como a ilustração do poema quanto o poema como uma descrição da imagem, mas, de uma forma ou outra, trata-se de um poema de caráter ecfrástico que se serve de um vasto acervo erudito para fazer um humor que poderíamos identificar com a mais ferina sátira, dirigido a uma gama de leitores suficientemente erudita para apreender todas as inúmeras referências nele contidas.

A erudição do poema vai desde as referências aos textos clássicos, que, de resto, são citados e manipulados com grande destreza, até formas verbais menos comuns e mais arcaicas. A instrumentalização da erudição envolve o poema numa atmosfera helenística.

O contexto que atravessa a gravura e o poema foi o encontro entre Villegagnon e Richer, no período de sua estada na colônia francesa na Baía de Guanabara. Nessa ocasião, Villegagnon ficou conhecido como vice-rei do Brasil, apesar de esse título não ter realmente existido (MÁRIZ, 2008MÁRIZ, Vasco. Villegagnon: Herói ou vilão? História, v. 27, n. 1, p. 51-76, 2008.).

É bem conhecido que, em 1557, durante o empreendimento da França Antártica, um pequeno grupo de calvinistas franceses veio ao Brasil, esperando estabelecer uma colônia protestante permanente que os protegesse da intolerância que sofriam na Europa (MÁRIZ, 2008MÁRIZ, Vasco. Villegagnon: Herói ou vilão? História, v. 27, n. 1, p. 51-76, 2008.). No entanto, o que no início se apresentou como uma relação amistosa entre os huguenotes e Villegagnon, em menos de um mês era abalado pelas divergências religiosas sobre a Eucaristia (MÁRIZ, 2008MÁRIZ, Vasco. Villegagnon: Herói ou vilão? História, v. 27, n. 1, p. 51-76, 2008.), resultando em uma perseguição a quem não seguia, como Villegagnon, o Catolicismo.

Registraram historicamente a ocupação francesa às margens da Baía de Guanabara Jean de Léry, autor de Viagens à terra do Brasil, de 1578, e André Thevet, com seu livro Singularidades da França Antártica, de 1557THEVET, André. Singularidades da França Antártica: a que outros chamam de América. Tradução de Estêvão Pinto. Brasília: Senado Federal, 2018. . De fato, os dois cronistas franceses vieram ao Brasil naquele século, embora não se tenham encontrado. O primeiro comenta brevemente o caráter de Villegagnon, afinado com a visão crítica de Richer, ambos protestantes e, portanto, concordes com a mesma perspectiva acerca da transubstanciação e da consubstanciação. Thevet, um frei católico, aproxima-se, por sua vez, da perspectiva do cavaleiro de Malta pela religião, e aprova a forma com que exerce sua autoridade.

Embora autores viajantes como Thevet e de Léry “monstrificassem” com mais frequência os nativos americanos, eles também davam a alguns europeus representações teratológicas alegorizadas. Tal monstrificação do europeu pelo europeu fazia quase sempre parte de uma estratégia discursiva de vilanização do inimigo, e, mais raramente, exaltava a potência ameaçadora do próprio europeu que, tal qual um Héracles, deve ser um monstro na lida com outros monstros. Nem sempre os monstros são épicos ou trágicos; por vezes, são cômicos, como no drama satírico O Ciclope, de Eurípides, em que o filho de Poseidon é alvo de troça por sua falha moral e ética, caracterizando-o como selvagem. Guilherme de Farias Rodrigues, em sua dissertação de mestrado (RODRIGUES, 2016RODRIGUES, Guilherme de Farias. O ciclope de Eurípides: Estudo e tradução. 2016. 140 f. Dissertação (Mestrado em Letras Clássicas) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016, ), apresenta uma vasta argumentação de como o caráter cômico do personagem está associado à selvageria e à lascívia. Polifemo não é um ser da pólis, explica, mas um ser distante da cultura, de hábitos distantes não só da civilização, mas da própria cultura (RODRIGUES, 2016RODRIGUES, Guilherme de Farias. O ciclope de Eurípides: Estudo e tradução. 2016. 140 f. Dissertação (Mestrado em Letras Clássicas) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016, ). Tanto a peça de Eurípides e a Odisseia, quanto a gravura de Richer, apresentam um Ciclope incivilizado, incapaz de viver em um governo organizado, que maldiz as leis, antropófago, mas conhecedor da prática de cocção da carne, e com dificuldade em lidar com bebidas alcoólicas. A falta de hospitalidade das duas figuras, Polifemo e Villegagnon, seria mais um ponto em comum, pois Jean de Léry, em suas Viagens à terra do Brasil, registra que o cavaleiro da Ordem de Malta recebe belicosamente os franceses protestantes recém-chegados à América.

Villegagnon é retratado como o ciclope Polifemo em uma gravura feita e descrita por Pierre Richer em Libri duo apologetici ad refutandas naenias (“Dois livros apologéticos para refutar exéquias”). Sob esse título um tanto pretensioso, circulava um livro que era distribuído com o objetivo de denunciar a postura de Villegagnon, de apresentá-lo e representá-lo como um monstro dos mares, que, conquanto filho de Netuno (ou Poseidon), era a síntese da antítese da cultura: desconhecia o fogo, o vinho, a linguagem e tudo o que o teria deslocado do domínio quase estrito da natureza. Os hábitos selvagens de Polifemo descritos na Odisseia são análogos ao comportamento que se atribui a Villegagnon, em que ambas as figuras seriam exageradamente violentas, ignorantes e com o apetite por carne humana (BERBARA, 2020BERBARA, Maria. Sobre o Polifemo de Pierre Richer: a França Antártica e o canibalismo do outro. In: BERBARA, Maria; MENEZES, Renato; HUE, Sheila (org.). França Antártica: ensaios interdisciplinares. Campinas: Editora Unicamp, 2020. p. 225-234.), gerando essa figura limítrofe entre monstro e homem.

A comparação que Richer faz entre Villegagnon e Polifemo intensifica-se em complexidade se considerado que os Ciclopes apresentam, no contexto da Idade Média e da Renascença, uma relação alegórica com a vaidade e com o orgulho, como expõe o capítulo “The Modern Cyclops” do companion Cyclops, de autoria de Mercedes Aguirre e Richard Buxton (2020AGUIRRE, Mercedes; BUXTON, Richard. Cyclops: the mith and its cultural history. 1. ed. New York: Oxford University Press, 2020. ). Através de uma discussão da simbologia de possuir apenas um olho, os autores apontam que:

The cyclops is said to have one eye in its forehead because this wildness of youth takes neither a full nor a rational view of things, and the whole period of youth is roused to a pride like that of the Cyclops. So with the one eye in the head that sees and comprehends nothing but vanity (AGUIRRE; BUXTON, 2020AGUIRRE, Mercedes; BUXTON, Richard. Cyclops: the mith and its cultural history. 1. ed. New York: Oxford University Press, 2020. , p. 425).1 1 “Diz-se que o Ciclope possui um olho em sua testa porque essa selvageria de juventude não comporta uma visão nem completa nem racional das coisas e todo o período da juventude é mobilizado por um orgulho tal qual o do Ciclope. Então, seu único olho na cabeça não vê nem compreende nada além da vaidade.” (tradução nossa).

Na esteira dessa assertiva dos autores do companion (que, de resto, não faz qualquer referência às obras de Richer), pode-se considerar que o poema e as gravuras2 2 Vale lembrar aqui que, conquanto nas duas publicações o poema seja exatamente o mesmo, as gravuras, embora análogas, não o são. coincidem com a perspectiva que Richer tinha do cavaleiro de Malta, esse homem que estaria cego por uma vaidade e um orgulho tão intensos que, qual uma áte, o tornaram próximo de uma selvageria plena.

O sobrenatural que rodeia a figura de Nicolas Durand de Villegagnon não se limita à alegoria do Polifemo, pois o almirante acumulou ainda outras inimizades na colônia francesa e que também tentaram difamá-lo. Após ter proibido que franceses e indígenas mantivessem contato sem uma relação de matrimônio, aplicando punições severas a quem o desobedecesse, provocou uma forte indignação entre aqueles que antes o seguiam (LISBOA, 1834LISBOA, Balthazar da Silva. Annaes do Rio de Janeiro: contendo a descoberta e conquista deste paiz, a fundação da cidade com a historia civil e ecclesiastica, até a chegada d’El Rei Dom João VI; além de noticias topographicas, zoologicas, e botanicas. Rio de Janeiro: Na Typ. Imp. e Const. de Seignot-Plancher e Ca, 1834. Tomo I. 438 p.). Em resposta a sua administração, queriam assassiná-lo e, fracassando na tentativa, difundiram a notícia de que ele possuía poderes prodigiosos que teriam feito adoecer a aldeia com que fazia trocas comerciais (LISBOA, 1834LISBOA, Balthazar da Silva. Annaes do Rio de Janeiro: contendo a descoberta e conquista deste paiz, a fundação da cidade com a historia civil e ecclesiastica, até a chegada d’El Rei Dom João VI; além de noticias topographicas, zoologicas, e botanicas. Rio de Janeiro: Na Typ. Imp. e Const. de Seignot-Plancher e Ca, 1834. Tomo I. 438 p.). Há, portanto, dois processos paralelos e complementares de monstrificação: um alegórico, dependente de estratégias discursivas urdidoras de veracidade, e outro não alegórico, dependente do simbólico e que, à margem do real, é sequioso da produção de um verídico. Ambos operam com o imaginário e o campo da representação, embora ocorram em diferentes níveis do real, do verídico e do verossímil.

Se essa doença desconhecida que acomete os indígenas é retratada qual a peste da Ilíada ou de Tebas, em André Thevet, aliado de Villegagnon, ela ganha outras feições. Em seu livro Cosmografia universal (2009THEVET, André. Cosmografia universal de André Thevet. Rio de Janeiro: Editora Batel, 2009.), o frei descreve que os nativos acreditavam que a doença teria sido um castigo de Tupã, que é lido como Jeová no processo de catequização, por estarem andando em más companhias, os franceses católicos. A crença teria surgido através de boatos feitos por franceses calvinistas em uma disputa de poder que gradualmente se intensificava. Thevet consegue reverter a complexa situação com a ajuda de um intérprete, explicando-lhes que ele era, na verdade, amigo de Tupã. Segundo o frei, os indígenas passam a acreditar então que a doença ter-lhes-ia atingido por terem se enganado quanto ao caráter dos franceses católicos.

Sobre a capacidade de adoecer intencionalmente um povo, Yves D’Évreux, viajante francês autor de Continuação da história das coisas mais memoráveis acontecidas no Maranhão nos anos 1613 e 1614, explica sobre a crença dos ameríndios:

Estes pobres selvagens são tão enlouquecidos quando estão com seus feiticeiros, especialmente os grandes, que crêem firmemente que eles podem enviar doenças, fome e tirá-las quando lhes aprouver, e embora saibam dos próprios feiticeiros que todos eles são embusteiros, não julgam poder curar-se sem que passem pelas mãos de outro (D’ÉVREUX, 2007D’ÉVREUX, Yves. Continuação da história das coisas mais memórias acontecidas no Maranhão nos anos de 1613 e 1614. Brasília: Senado Federal, 2007., p. 283).

Além disso, os hábitos antropofágicos de Polifemo, aqui desdobrados em alegoria de Villegagnon, são comparados por Pierre Richer a outras figuras igualmente monstruosas, apresentadas no livro de viagem de Jean de Léry, os ouetacas3 3 “Desse lugar avistamos uma terra plana na extensão de léguas e que é ocupada pelos Uetacá, índios tão ferozes que não podem viver em paz com outros e se acham sempre em guerra aberta não só contra os vizinhos mas ainda contra todos os estrangeiros. [...] Em suma esses diabólicos Uetacá, invencíveis nessa região, comedores de carne humana, como cães e lobos, e donos de uma linguagem que seus vizinhos não entendem, devem ser tidos entre os mais cruéis e terríveis que se encontram em toda a Índia Ocidental.” (LÉRY, 2007, p. 80). , uma tribo brasileira que espanta o cronista europeu por comer carne humana crua, um traço extremo de barbárie. A comparação entre os ouetacas e Villegagnon é justificada pela associação que se fazia da Eucaristia católica com a teofagia, porque os católicos não comungam de um pão e de um vinho que trazem à memória um Cristo vivo, mas creem que o Corpo e o Sangue de Cristo têm presença real naquelas espécies que, pela epíclese sacerdotal, transubstancializam-se verdadeiramente em essência. Assim, na perspectiva protestante, a fé católica preconiza uma autêntica teofagia, e, sendo Cristo teantropo (Deus e homem a um só tempo), à teofagia soma-se a antropofagia (LESTRINGANT, 1997LESTRINGANT, Frank. O canibal: grandeza e decadência. Tradução de Mary Lucy Murray del Priore. Distrito Federal: Editora UNB, 1997. ). Lestringant (1997LESTRINGANT, Frank. O canibal: grandeza e decadência. Tradução de Mary Lucy Murray del Priore. Distrito Federal: Editora UNB, 1997. ) expõe que:

[...] o colérico Pierre Richer, chefe da missão genebrina e pastor da igreja reformada, escandaliza-se com tal materialismo e compara o adversário aos ouetacas, esses antropófagos da pior espécie que ignoram o cozimento dos alimentos. Léry conclui que, de fato, Villegagnon e seu inane preposto Jean Cointra, carmelita descalço, queriam ‘não apenas grosseiramente, muito mais do que espiritualmente, comer a carne de Jesus Cristo, mas, pior ainda, à maneira dos selvagens ditos Ouë-tacas, eles a queriam mastigar e engolir toda crua’ (LESTRINGANT, 1997LESTRINGANT, Frank. O canibal: grandeza e decadência. Tradução de Mary Lucy Murray del Priore. Distrito Federal: Editora UNB, 1997. , p. 108-109).

Sobre a comparação entre Villegagnon e indígenas convergirem através da monstruosidade e do canibalismo, Maya Suemi Lemos (2020LEMOS, Maya Suemi. A França Antártica como teatro da diferença. In: BERBARA, Maria; MENEZES, Renato; HUE, Sheila (org.). França Antártica: ensaios interdisciplinares. Campinas: Editora Unicamp, 2020. p. 203-224.) explica: “O espelho canibal, como vemos, é deformado: o europeu no qual se reflete a imagem do ameríndio antropófago é mais monstruoso do que o monstro, seus traços abomináveis se distorcem ainda mais na anamorfose especular provida pela experiência com a alteridade” (LEMOS, 2020LEMOS, Maya Suemi. A França Antártica como teatro da diferença. In: BERBARA, Maria; MENEZES, Renato; HUE, Sheila (org.). França Antártica: ensaios interdisciplinares. Campinas: Editora Unicamp, 2020. p. 203-224., p. 212). Nesse sentido, o canibal europeu é ainda mais bestial, pois se afasta da civilidade que um dia experimentou.

Ainda que um dos principais pontos de desavença entre os franceses protestantes e católicos fosse a religião, outros fatores influenciaram para que a querela se desenvolvesse progressivamente, como os diferentes projetos políticos para a colônia. Mendonça (2008MENDONÇA, Paulo Knauss de. No rascunho do Novo Mundo: Os espaços e os personagens da França Antártica. Histórira, v.27, n. 1, p. 143-154, 2008. ) indica que os franceses residentes na França Antártica se dividiram em três grupos com seus respectivos líderes e ocupando áreas distintas na região: “o partido de Villegagnon”, que seguia o projeto de Henriville; “o partido dos pastores calvinistas”, que se caracterizava também pela relação amistosa e distanciada que mantinham com os nativos; e “o partido de Jean Conta”, que se juntou aos indígenas e adotou seus costumes. Ademais, o projeto urbano francês rivalizava com outro, o português, liderado por Mem de Sá, quem mais tarde os expulsaria (VAINFAS, 2020VAINFAS, Ronaldo. Introdução. In: França Antártica: ensaios interdisciplinares. Campinas: Editora Unicamp, 2020. p. 17-51. ), dada a relevância estratégica e comercial da região.

São, pois, diversas as motivações que parecem ter tido as invectivas de Richer contra Villegagnon. Ainda que fosse suficientemente aviltante a representação do personagem como Polifemo, Richer ainda apresenta a imagem acompanhada de um diagrama de ideias e conceitos dispostos de forma a apontar a relação antitética entre uma civilidade, confundida com a própria cultura, e uma barbárie, confundida com a selvageria, qual faziam a retórica e a poética da Antiguidade Ocidental. Aqui, apresentamos, primeiramente, a imagem que consta do folheto de Richer (Figura 1) e, em seguida, a que figura no livro (Figura 2). Note-se que, entre outras várias similitudes, tem sido usado o mesmo clichê para certos elementos de ornamento da figura central.

Figura 1 -
Polifemo de Pierre Richer. In: De venerandissimo ecclesiae sacrificio... adversus Calviniani evangeli, i1, 1562.

Outra representação de Villegagnon como Polifemo, agora de um panfleto de 1561, mas com exatamente os mesmos dizeres, ainda que em outra disposição gráfica:

Figura 2 -
Polifemo de Pierre Richer. In: Petri Richerii Libri duo apologetici ad refutandas nænias, & coarguendos blasphemos errores, detegendáque mendacia Nicolai Durandi qui se Villagagnonem cognominat, 1561RICHERIUS, Petrus. Petri Richerii Libri duo apologetici ad refutandas nænias, & coarguendos blasphemos errores, detegendáque mendacia Nicolai Durandi qui se Villagagnonem cognominat.1561. 235 p. .

Os dizeres das imagens podem ser esquematizados no Quadro 1.

Quadro 1 -
Textos das representações de Polifemo de Pierre Richer

As duas ilustrações que apresentam Villegagnon como Polifemo são análogas e foi breve o lapso temporal entre suas publicações, que distam entre si em apenas um ano. A edição de 1561 consiste num livro de 236 páginas, ao passo que a de 1562 consistia num folheto de apenas 47 páginas, ambos em latim. Berbara (2020BERBARA, Maria. Sobre o Polifemo de Pierre Richer: a França Antártica e o canibalismo do outro. In: BERBARA, Maria; MENEZES, Renato; HUE, Sheila (org.). França Antártica: ensaios interdisciplinares. Campinas: Editora Unicamp, 2020. p. 225-234.) comenta que Richer segue, nas duas gravuras, “a iconografia tradicional do Ciclope: compleição robusta, parcial nudez, único olho no meio da testa. [...] em ambas um Villegagnon/Polifemo em clássico contraposto, apoiado em uma enorme clava e com uma flauta pendurada no pescoço, é figurado um cenário campestre” (BERBARA, 2020BERBARA, Maria. Sobre o Polifemo de Pierre Richer: a França Antártica e o canibalismo do outro. In: BERBARA, Maria; MENEZES, Renato; HUE, Sheila (org.). França Antártica: ensaios interdisciplinares. Campinas: Editora Unicamp, 2020. p. 225-234., p. 229), consonante com as vestes pastoris. Nas duas representações de Villegagnon, o Ciclope é posicionado de forma semelhante, ainda que com distintos tracejados: mostrando a figura de corpo inteiro, com um dos braços apoiados no corpo, o outro segurando um longo cajado, em que parece se firmar, uma das pernas estendida, apoiando o peso do corpo e a outra dobrada, em pose tradicional de retrato. Yobenj Aucardo Chincangana-Bayona (2018CHICANGANA-BAYONA, Yobenj Aucardo. Imagens de canibais e selvagens do Novo Mundo: do Maravilhoso Medieval ao Exótico Colonial (séculos XV-XVII). Tradução de Marcia Aguiar Coelho. 1. ed. Campinas: Editora Unicamp, 2018. ) comenta que essa postura era amplamente reproduzida e sustenta que o gestuário é um significante que reivindica como significação, para usar os termos do pesquisador, “não só com uma posição de importância, mas também com um estado de ânimo da figura representada, seja europeu ou índio: altivo, desafiante nobre e orgulhoso” (CHICANGANA-BAYONA, 2018CHICANGANA-BAYONA, Yobenj Aucardo. Imagens de canibais e selvagens do Novo Mundo: do Maravilhoso Medieval ao Exótico Colonial (séculos XV-XVII). Tradução de Marcia Aguiar Coelho. 1. ed. Campinas: Editora Unicamp, 2018. , p. 189-190).

A gravura apresenta topoi imagéticos que podem ser reconhecidos, por exemplo, em esculturas e vasos produzidos na Antiguidade grega e romana. Assim, a disposição da roupa do Polifemo e a forma com que a veste se ajusta ao seu corpo idealizado e musculoso, os detalhes para registrar os contornos do corpo de forma a não sobrecarregar o desenho com excessos, e a pose. O Ciclope de Richer tem uma postura que se assemelha, por exemplo, à da estátua que recebeu o nome de Soberano helenístico (Figura 3). Tal imagem é evocada por Chicangana-Bayona (2018CHICANGANA-BAYONA, Yobenj Aucardo. Imagens de canibais e selvagens do Novo Mundo: do Maravilhoso Medieval ao Exótico Colonial (séculos XV-XVII). Tradução de Marcia Aguiar Coelho. 1. ed. Campinas: Editora Unicamp, 2018. ), como um modelo de representação imagética que, sendo tópico, concede celeridade na constituição e inteligibilidade na recepção.

Figura 3 -
escultura. In: Do Apolo de Belvedere ao guerreiro tupinambá: etnografia e convenções renascentistas. CHICANGANA-BAYONA, 2006CHICANGANA-BAYONA, Yobenj Aucardo. Do Apolo de Belvedere ao guerreiro tupinambá: etnografia e convenções renascentistas. História, v. 25, n. 2, p. 15-47, 2006. . Museu das Termas de Diocleciano.

As duas gravuras diferenciam-se em alguns dos elementos visuais. Isso fica claro desde as posições espelhadas: na edição de 1562, o corpo de Polifemo está virado para a esquerda, enquanto, na edição de 1561, está inclinado para a direita. Mas distinguem-se sobretudo pelo estilo dos desenhos, nos componentes que preenchem o fundo e na forma em que os elementos textuais estão dispostos, ainda que as palavras sejam as mesmas. A edição de 1561 (aquela em livro) usa uma disposição de clichês mais livre, e, portanto, menos linear, empregando um diagrama com composição ousada e trabalhosa na aurora da prensa.

A representação de Villegagnon segue a tradicional iconografia do selvagem, de resto, recorrente na iconografia acerca dos seres monstruosos do Novo Mundo. Villegagnon-Ciclope é, assim, caracterizado por certa politriquia, notada em seus cabelos e barba longos. É, ainda, eloquente que esteja parcialmente vestido, indicando, talvez, seu hibridismo entre civilizado e selvagem, assim como há, nas imagens, o encontro entre o monstruoso e o não monstruoso. Um bom indício dessa parcial convergência é a presença das cavidades oculares nas quais, aliás, não há olhos. O olho é aquele único de Polifemo. Ainda que os demais Ciclopes tenham dois olhos, as cavidades oculares de Villegagnon Polifemo são a “régua” humana pela qual se mede o prodígio.

Embora não seja o escopo deste artigo, é necessário tecer um breve comentário acerca de toda uma tradição retórica ocidental, cujos primeiros registros são da chamada poesia grega arcaica. Essa tradição envidou notórios recursos discursivos para propor e impor uma equação entre o selvagem (natural) e o bárbaro, em oposição a outra equivalência, entre o cultural e o civilizado.

A observação dos dizeres que compõem as gravuras revela um jogo de palavras de um humor ácido em que, na parte interna da imagem de 1562, o vice-almirante da Bretanha é elogiado e, na parte mais externa, é dito o oposto, vituperando-o. Alguns termos utilizados na inscrição da gravura, na parte externa do diagrama, explicitam o caráter que é atribuído a Villegagnon, algo entre o bárbaro e o selvagem. Esses doestos parecem atingir seu ápice com os qualificativos “anárquico” e “ateu”. Essas características, de fato, também são as mesmas que normalmente são associadas aos ameríndios, como se pode ver no Tratado da terra do Brasil, de 1576, em que o cronista português Pero de Magalhães Gandavo afirma que os gentios brasileiros não teriam em sua língua os fonemas F, L e R pela ausência da Fé, das Leis e de um Rei na sua organização social (GANDAVO, 1576GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: história da província santa cruz, a que vulgarmente chamamos brasil. Brasília: Senado Federal, 2008. 158 p. (Volume 100). Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/188899/Tratado%20da%20terra%20do%20Brasil.pdf . Acesso em: 03 nov. 2021.
https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstrea...
[2008]). E, numa passagem ainda mais emblemática, descreve os aimorés, que, qual os Ciclopes, possuiriam uma dimensão física descomunal, fazendo-os parecer “quase gigantes”. O viajante português enfatiza que o idioma dos aimorés era incompreensível por outras etnias, e que eram canibais, possuíam uma brutalidade animalesca e eram incapazes de viver juntos em uma sociedade organizada (GANDAVO, 1576GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: história da província santa cruz, a que vulgarmente chamamos brasil. Brasília: Senado Federal, 2008. 158 p. (Volume 100). Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/188899/Tratado%20da%20terra%20do%20Brasil.pdf . Acesso em: 03 nov. 2021.
https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstrea...
[2008]).

Além disso, Lestringant (1997LESTRINGANT, Frank. O canibal: grandeza e decadência. Tradução de Mary Lucy Murray del Priore. Distrito Federal: Editora UNB, 1997. , p. 10) aponta que, para alguns autores, como Léry, há a diferenciação entre um “bom” e um “mau” canibalismo: um primeiro em que os aborígenes poderiam ser perdoados por cozer a carne humana, um ato que poderia ser alegórico por representar a vingança da memória de seus parentes, desenvolvida como algum ritual (LESTRINGANT, 1997LESTRINGANT, Frank. O canibal: grandeza e decadência. Tradução de Mary Lucy Murray del Priore. Distrito Federal: Editora UNB, 1997. ); e um segundo, omofágico, e que, tivesse por objeto um europeu ou um ameríndio, era condenável pela barbárie. A omofagia também era associada às figuras das bruxas, representadas por mulheres velhas, corrompidas por esse apetite anormal e justificado pela influência de Satã, e também era relacionada aos judeus (LESTRINGANT, 1997LESTRINGANT, Frank. O canibal: grandeza e decadência. Tradução de Mary Lucy Murray del Priore. Distrito Federal: Editora UNB, 1997. ), em uma equívoca comparação entre a agiotagem e a antropofagia.

A referência, no poema, ao cão (canis), pode trazer à mente do leitor letrado a imagem dos cinocéfalos, que antes figuravam nos relatos de Colombo sobre os povos do caribe. Lestringant (1997LESTRINGANT, Frank. O canibal: grandeza e decadência. Tradução de Mary Lucy Murray del Priore. Distrito Federal: Editora UNB, 1997. ) postula que “Na palavra ‘canibal’ [....] Colombo percebeu confusamente o radical latino canis; donde a assimilação a cinocéfalo” (LESTRINGANT, 1997LESTRINGANT, Frank. O canibal: grandeza e decadência. Tradução de Mary Lucy Murray del Priore. Distrito Federal: Editora UNB, 1997. , p. 30).

Embora conhecedor do fogo, o Ciclope não dominava sua tékhne, e, antropófago (ἀνδροβρώς, no dizer de Eurípides, Ciclope, 93), pode ser considerado um omophágos, qual sereias ou centauros. As imagens do Ciclope Polifemo nas duas publicações de Richer trazem aos olhos do público letrado essa figura, portadora de todos os topoi imagéticos e insígnias do personagem, e são acompanhadas desse sofisticado poema ecfrástico que se apresenta a seguir (Figura 4 e 5), acompanhado de tradução preparada especificamente para este texto.

Figura 4 -
Poema de Pierre Richer. In: De venerandissimo ecclesiae sacrificio ... adversus Calviniani evangeli,i1, 1562RICHERIUS, Petrus. De venerandissimo ecclesiae sacrificio ... adversus Calviniani evangeli, i1. 1562. 47 p.

Para este texto, o poema.

Figura 5 -
Tradução do poema de Pierre Richer

Poema e imagem, semelhantes, quase idênticos, no livro e no folheto, seguem um costume corrente à época de fazer acompanhar as publicações de proêmios, geralmente em versos, cuja erudição legitimasse o conteúdo da publicação. A peculiaridade desse proêmio não é apenas a de contar com uma imagem, ornada de um diagrama que, imediatamente em seguida, é detalhada e explicada por um poema ecfrástico com uma pletora de referências eruditas, muitas vezes com jocosa ambiguidade. O presente artigo buscou apresentar como a combinação desses três elementos pré-textuais constrói um imaginário da figura a ser vituperada, Nicolau Durand de Villegagnon, que, malgrado os esforços envidados por Richer e outros protestantes, inscreveu-se na história do Brasil e da Guanabara.

Referências

  • AGUIRRE, Mercedes; BUXTON, Richard. Cyclops: the mith and its cultural history. 1. ed. New York: Oxford University Press, 2020.
  • BERBARA, Maria. Sobre o Polifemo de Pierre Richer: a França Antártica e o canibalismo do outro. In: BERBARA, Maria; MENEZES, Renato; HUE, Sheila (org.). França Antártica: ensaios interdisciplinares. Campinas: Editora Unicamp, 2020. p. 225-234.
  • CHICANGANA-BAYONA, Yobenj Aucardo. Do Apolo de Belvedere ao guerreiro tupinambá: etnografia e convenções renascentistas. História, v. 25, n. 2, p. 15-47, 2006.
  • CHICANGANA-BAYONA, Yobenj Aucardo. Imagens de canibais e selvagens do Novo Mundo: do Maravilhoso Medieval ao Exótico Colonial (séculos XV-XVII). Tradução de Marcia Aguiar Coelho. 1. ed. Campinas: Editora Unicamp, 2018.
  • D’ÉVREUX, Yves. Continuação da história das coisas mais memórias acontecidas no Maranhão nos anos de 1613 e 1614 Brasília: Senado Federal, 2007.
  • GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: história da província santa cruz, a que vulgarmente chamamos brasil. Brasília: Senado Federal, 2008. 158 p. (Volume 100). Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/188899/Tratado%20da%20terra%20do%20Brasil.pdf Acesso em: 03 nov. 2021.
    » https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/188899/Tratado%20da%20terra%20do%20Brasil.pdf
  • LEMOS, Maya Suemi. A França Antártica como teatro da diferença. In: BERBARA, Maria; MENEZES, Renato; HUE, Sheila (org.). França Antártica: ensaios interdisciplinares. Campinas: Editora Unicamp, 2020. p. 203-224.
  • LÉRY, Jean de. Viagem à Terra do Brasil Tradução de Sérgio Milliet. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2007.
  • LESTRINGANT, Frank. O canibal: grandeza e decadência. Tradução de Mary Lucy Murray del Priore. Distrito Federal: Editora UNB, 1997.
  • LISBOA, Balthazar da Silva. Annaes do Rio de Janeiro: contendo a descoberta e conquista deste paiz, a fundação da cidade com a historia civil e ecclesiastica, até a chegada d’El Rei Dom João VI; além de noticias topographicas, zoologicas, e botanicas. Rio de Janeiro: Na Typ. Imp. e Const. de Seignot-Plancher e Ca, 1834. Tomo I. 438 p.
  • MÁRIZ, Vasco. Villegagnon: Herói ou vilão? História, v. 27, n. 1, p. 51-76, 2008.
  • MENDONÇA, Paulo Knauss de. No rascunho do Novo Mundo: Os espaços e os personagens da França Antártica. Histórira, v.27, n. 1, p. 143-154, 2008.
  • RICHERIUS, Petrus. Petri Richerii Libri duo apologetici ad refutandas nænias, & coarguendos blasphemos errores, detegendáque mendacia Nicolai Durandi qui se Villagagnonem cognominat1561. 235 p.
  • RICHERIUS, Petrus. De venerandissimo ecclesiae sacrificio ... adversus Calviniani evangeli, i1 1562. 47 p.
  • RODRIGUES, Guilherme de Farias. O ciclope de Eurípides: Estudo e tradução. 2016. 140 f. Dissertação (Mestrado em Letras Clássicas) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016,
  • THEVET, André. Cosmografia universal de André Thevet Rio de Janeiro: Editora Batel, 2009.
  • THEVET, André. Singularidades da França Antártica: a que outros chamam de América. Tradução de Estêvão Pinto. Brasília: Senado Federal, 2018.
  • VAINFAS, Ronaldo. Introdução. In: França Antártica: ensaios interdisciplinares. Campinas: Editora Unicamp, 2020. p. 17-51.
  • 1
    “Diz-se que o Ciclope possui um olho em sua testa porque essa selvageria de juventude não comporta uma visão nem completa nem racional das coisas e todo o período da juventude é mobilizado por um orgulho tal qual o do Ciclope. Então, seu único olho na cabeça não vê nem compreende nada além da vaidade.” (tradução nossa).
  • 2
    Vale lembrar aqui que, conquanto nas duas publicações o poema seja exatamente o mesmo, as gravuras, embora análogas, não o são.
  • 3
    “Desse lugar avistamos uma terra plana na extensão de léguas e que é ocupada pelos Uetacá, índios tão ferozes que não podem viver em paz com outros e se acham sempre em guerra aberta não só contra os vizinhos mas ainda contra todos os estrangeiros. [...] Em suma esses diabólicos Uetacá, invencíveis nessa região, comedores de carne humana, como cães e lobos, e donos de uma linguagem que seus vizinhos não entendem, devem ser tidos entre os mais cruéis e terríveis que se encontram em toda a Índia Ocidental.” (LÉRY, 2007LÉRY, Jean de. Viagem à Terra do Brasil. Tradução de Sérgio Milliet. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2007., p. 80).
  • 4
    Referência à fala sacrílega de Polifemo nas Metamorfoses de Ovídio (XIII, 857): quique Iouem et caelum sperno et penetrabile fulmen [sou o que desprezo Júpiter e o ceú, e também o raio penetrante].
  • 5
    Citação da Eneida, de Virgílio (III, 658 [Monstum ...ademptum] e 661 [solamenque mali]). Comentaristas como Gian Biaggio Conte consideram “de collo pendent” um hemistíquio espúrio ou uma interpolação tardia. De fato, o solamen parece ser a segunda parte do aposto presente no verso 660: Lanigerae comitantur oves : ea sola voluptas [ovelhas lanígeras o acompanham: elas são seu único deleite]; esse verso seria completado, em enjambement por solamenque mali [solaz de seu mal]. O autor ou editor que tomou essa passagem a Virgílio desprezou o verso sobre as ovelhas e privilegiou a fístula pendurada ao pescoço, razão pela qual ela consta de ambas as ilustrações.
  • 6
    Citação dos Centos Homéricos [segundo o Manuscrito A], de Santa Eudócia de Heliópolis (401-460), v.1488, descrição de Polifemo.
  • 7
    οὐ γὰρ Κύκλωπες Διὸς αἰγιόχου ἀλέγουσιν / οὐδὲ θεῶν μακάρων (Odisseia, IX, 275-6) [os Ciclopes, de fato, não se importam com Zeus, portador da égide, nem com nenhum dos deuses bem-aventurados].
  • 8
    i.e. pessoa que possui quatro jeiras em tamanho, uma referência ao tamanho descomunal de Polifemo.
  • 9
    Neologismo formado por νεῖκος (discórdia, contenda) e κόλαξ (adulador). Na pronúncia então usada para o grego, o neologismo νεικοκόλαξ /nikokólax/ fazia ressoar o nome de “Nicolau”.
  • 10
    Trocadilho a partir de um dos nomes de Villegagnon, Durand; muito provavelmente uma referência a Johannes Driandus, citado por Otto O. F. Schütz no quarto livro de seus comentários sobre a Vita Davidis Chystraei [Vida de David Chystraeus, um dos primeiros luteranos, que viveu entre 1530 e 1568], de 1720. À página 36, Schütz fala da importância de Johannes Driandus, médico vienense, ao lado de Eberhard Moller (1528-1588, prefeito, i.e., “Consul” de Hamburgo em 1571), como continuadores imediatos de Philippus Melanchton, importante comentarista luterano de Tucídides (mas também de Píndaro, de Sófocles, de Eurípides entre outros). David Chystraeus fora contemporâneo mais novo de Philippus. Aparentemente trata-se de uma referência a uma alegada falsa erudição ou à uma dicção empolada de Villegagnon.
  • 11
    Trocadilho doctor/coctor (doutor/cozinheiro).
  • Parecer Final dos Editores:

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2022
  • Aceito
    15 Ago 2023
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: alea.ufrj@gmail.com