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Artaud: o umbigo da escrita

Artaud: Writing’s navel

Resumo

Este ensaio apresenta aspectos da experiência de escrita de Artaud a partir de alguns de seus primeiros textos - O umbigo dos limbos e O Pesa-Nervos -, lidos em companhia da teoria dos sonhos de Freud, da noção de escrita em Lacan e dos conceitos de “ausência de livro” e “ausência de obra” de Blanchot. Paralelamente, formula-se um operador de leitura para a obra do escritor, derivado de aproximações e diferenciações entre literatura e psicanálise: o umbigo da escrita.

Palavras-chave
literatura; psicanálise; livro; Antonin Artaud

Abstract

This essay presents aspects of Artaud's writing experience, based on some of his first texts - “Umbilical Limbo” and “Nerve Scales” -, read together with Freud's theory of dreams, the notion of writing in Lacan and the concepts of “absence of the book” and “absence of the work” in Blanchot. At the same time, a reading operator is formulated for the writer's work, derived from similarities and differences between literature and psychoanalysis: the navel of the writing.

Keywords:
literature; psychoanalysis; book; Antonin Artaud

Résumé

Cet essai présente des aspects de l'expérience d'écriture d'Artaud à partir de certains de ses premiers textes - « L’ombilic des limbes » et « Le Pèse-Nerfs » -, lus à la lumière de la théorie freudienne du rêve, la notion d'écriture chez Lacan et la notion d'« absence de livre » et d'« absence de travail » chez Blanchot. Dans le même temps, un opérateur de lecture est formulé pour le travail de l'écrivain, dérivé des similitudes et des différences entre la littérature et la psychanalyse : l’ombilic de l'écriture.

Mots-clés:
littérature; psychanalyse; livre; Antonin Artaud

É frequente, na obra de Antonin Artaud, o entendimento da escrita como meio de apresentação verbal de uma vida, em contraposição à sua representação. Menos que compor uma obra, interessa ao autor dar a ver algo de uma vida manifesta em palavras: “Onde outros propõem obras, eu não pretendo senão mostrar o meu espírito” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 13).

Entre seus primeiros escritos, encontram-se O umbigo dos limbos e O Pesa-Nervos, publicados entre 1925 e 1927 e depois reunidos em um só volume, intitulado O Pesa-Nervos. Atravessadas pela loucura e pelo Surrealismo, sem a eles se reduzir, essas primeiras obras de Artaud encenam uma experiência de escrita limite em face de uma vida excessiva que, no campo da linguagem, deixaria apenas marcas, cicatrizes. Ponto que procuraremos formular como o umbigo da escrita.

O umbigo dos limbos

É possível ler o conjunto de fragmentos de O umbigo dos limbos como uma espécie de prefácio que se prolonga na escrita dos fragmentos de O Pesa-Nervos. Em termos de gêneros textuais, pouco se sustenta nessa obra, porque as formas desviam-se de sua identidade estrutural. Ao longo de O Pesa-Nervos - refiro-me ao livro que se abre com O umbigo dos limbos -, leem-se: um prefácio que se destitui como tal e se prolonga em cada texto do livro; poemas esvaziados de teor poético; cartas a imprecisos interlocutores que são reflexões sobre a escrita; comentários a outras obras, os quais se revelam pensamentos da obra do próprio Artaud; textos descritivos que se transformam em poemas em prosa; uma extensa nota de rodapé em meio a uma carta; um roteiro em que se dissimula um poema de teor onírico e uma série de fragmentos sem marcas de gênero textual específico.

Para além das convenções formais, explicita-se, no prefácio, tratar-se de um livro no qual os textos e a vida de que se animam compõem-se como fragmentos amalgamados de uma hipotética unidade, de que temos apenas pedaços:

A vida é queimar perguntas. Não concebo uma obra isolada da vida. Não amo a criação isolada. Também não concebo o espírito isolado de si mesmo. Cada uma das minhas obras, cada um dos planos de mim próprio, cada uma das florações glaciares da minha alma interior goteja sobre mim. Reconheço-me tanto numa carta escrita para explicar o estreitamento íntimo do meu ser e a castração insensata da minha vida, como num ensaio exterior a mim próprio, que me surja como uma gestação indiferente do meu espírito. [...] Todas estas páginas se arrastam como pedaços de gelo no espírito. Perdoem-me a minha liberdade absoluta. Recuso-me a estabelecer diferenças entre qualquer um dos momentos de mim mesmo. Não reconheço no espírito nenhum plano. [...] E isto é tão pouco um prefácio a um livro, quanto, por exemplo, os poemas que o balizam ou a enumeração de todas as raivas do mal-estar. Isto não é senão um pedaço de gelo mal digerido (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 13-14).

Cada texto do livro é como um pedaço de gelo que se desprendeu, uma inflorescência escrita, vindos de um território distinto do campo da linguagem. São pedaços da “massa informulada” de uma “vida” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 31) que se escrevem. Nessa perspectiva, a obra de Artaud é o que da vida se desprendeu e se literalizou, o que de vivo se cristalizou, um conjunto de marcas na língua do que dela se subtraiu. Cada texto, como um umbigo, atesta o que se desprendeu de seu suposto ponto de origem: os limbos. Entre a vida excessiva e a medida da linguagem, haveria apenas cicatriz.

A respeito da vida que excede a linguagem e, entretanto, só por meio dela se escreve, ainda que como “pedaço de gelo mal digerido”, o conceito lacaniano de real, mais especificamente de “pedaços de real”, pode servir a alguns desdobramentos para o entendimento da obra de Artaud:

Só podemos chegar a pedaços de real. O real, aquele de que se trata no que é chamado de meu pensamento, é sempre um pedaço, um caroço. É, com certeza, um caroço em torno do qual o pensamento divaga, mas seu estigma, o do real como tal, consiste em não se ligar a nada. Pelo menos é assim que concebo o real (LACAN, 2007LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007., p. 119, grifo nosso).

Não se trata aqui de sobrepor o conceito lacaniano à sutil operação de escrita de Artaud, nem de supor que o conceito psicanalítico coincida com uma lógica de escrita do campo literário. Trata-se, antes, de aproximá-los e verificar o que se ilumina em cada um a partir de sua aproximação. O real lacaniano é um conceito de várias facetas que indica, por exemplo, o que do corpo, da realidade e do psiquismo, isto é, da vida, só se presentifica na língua parcialmente, nela se assinalando como traço de negatividade. O real, entretanto, não se reduz a uma categoria puramente negativa. Por exemplo, um pedaço de real pode se fazer sensível como ponto de opacidade na imagem ou como desarticulação ou ausência de sentido nos sistemas simbólicos. O real se presentifica na língua como cicatriz.

Sobretudo em termos de escrita, o real se percebe como aquilo que, participando de um texto sem se deixar enquadrar, tende a fragmentá-lo, a induzir na forma um desvio para o informe. O real cumpre na escrita, ainda, um papel fundamental de exterioridade estruturante, na medida em que se coloca como ponto errático de atração e impossibilidade de ser escrito: “Não há outra definição possível de real que: é o impossível; quando alguma coisa se encontra caracterizada como o impossível, é somente o real; quando alguém colide, o real é o impossível de penetrar” (LACAN, 2016LACAN, Jacques. Lacan in North Armorica. Porto Alegre: Editora Fi, 2016., p. 88).

O real, portanto, ainda que resistindo a toda penetração do sentido e a qualquer compreensão sobre si, não deixa de se enlaçar, como ponto de impossibilidade, com a linguagem e suas formas imagéticas, fazendo-se ponto de resistência, de desarticulação e de opacidade. Impossibilidade que não deixa, entretanto, de ser também causa de novos rearranjos de escrita contínua.

Em si, o real a nada se ligaria por inteiro, mas dele teríamos pedaços, intrusões que se escrevem. Como linguagem que cristalizou ou cicatriz que já não opera pela via do sentido, as palavras tocadas pelo real já quase nada comunicam, mas transmitem-se como excedente visual e sonoro. Nas palavras de Artaud: “pedaço de gelo mal digerido” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 14) que se comporta, em meio à realidade textual, como “grão de irrealidade” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 25); “pequeno nada que está a meio caminho entre a cor da minha atmosfera típica e o extremo da minha realidade” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 77); “pedaços do mundo real” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 51); “segmentos de alma cristalizados” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 46); “mínimo de vida pensante e em estado bruto, - que não chegou até à palavra, mas que é capaz de a alcançar” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 30); “crosta de palavras que cai” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 82).

Também devido ao real se localizar fora dos sistemas simbólicos, os quais tende a desarranjar, a escrita de Artaud é destituída de diferenciações formais. O que seria começo - um prefácio - tem deturpado seu funcionamento textual, e qualquer texto seguinte, um poema, por exemplo, passa a ser começo, prolongando-se, pois tudo, simultaneamente, se articula e se desarticula com o que se furta à palavra. A rigor, O Pesa-Nervos fracassa em seu propósito de ser um livro em sentido convencional, ao destituir cada palavra que avança. O prefácio, não o sendo de todo, se estende em movimento nos textos seguintes, que mais não fazem que medir, contornar, balizar o que resiste a ser escrito. Nesse percurso, o livro constrói o espaço de sua própria ausência. Vai-se tecendo como obra em potência de que só restam palavras a título de pedaço de gelo mal digerido.

Um prefácio, em geral, é um texto que marca a fala do exterior no interior. É curioso que um livro se comporte inteiramente como prefácio; a partir de sua virtual exterioridade, a escrita não faz mais que sinalizar o que se escreveria se o livro de fato pudesse coincidir com aquilo a que visa ser.

O umbigo do sonho

As correlações entre Artaud, o Surrealismo e a Psicanálise são evidentes. Entretanto, a singularidade da escrita artaudiana, sem medida com discursos a ela afins, só se deixa vislumbrar à parte do escrito, mas não sem ele.

A expressão “umbigo dos limbos”, tal como utilizada por Artaud, parece remeter à imagem do “umbigo do sonho”, formulado por Freud em A interpretação dos sonhos. A primeira menção de Freud a essa imagem, que opera como um limite da interpretação de um sonho, surge como uma nota no capítulo “O método de interpretação dos sonhos: análise de uma amostra de sonho” (FREUD, 2019FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos: Obra completa, volume 4. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 143). Trata-se de um texto fundador na obra freudiana em que o psicanalista, a partir da leitura de um dos mais emblemáticos sonhos da psicanálise, o “sonho da injeção de Irma”, demonstra seu método interpretativo e seus limites.

Freud, na referida nota, registra a percepção de que, no texto onírico, a certa altura, evidencia-se, como limite da interpretação, um ponto de resistência a qualquer desdobramento de sentido: “Cada sonho tem pelo menos um ponto em que ele é insondável, um umbigo, por assim dizer, com o qual ele se vincula ao desconhecido” (FREUD, 2019FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos: Obra completa, volume 4. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., p. 143). Algo relevante para se aproximar Freud e Artaud, no que concerne aos limites da leitura e da escrita, é o fato de que o umbigo é não apenas um ponto insondável, mas um ponto que se vincula ao desconhecido. É um ponto ilegível que, entretanto, se liga ao que resiste à leitura e à escrita. Um ponto de inscrição da impossibilidade na cena da escrita e da leitura.

Em uma segunda menção, Freud amplifica a natureza nodal do umbigo do sonho. Como emaranhado no limiar entre a linguagem e o desconhecido em que a linguagem se enraíza, o umbigo não apenas resiste à leitura, mas é centro de irradiação de fios do texto onírico:

Mesmo no sonho mais minuciosamente interpretado, é frequente haver um trecho que tem de ser deixado na obscuridade; é que, durante o trabalho de interpretação, apercebemo-nos de que há nesse ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar e que, além disso, nada acrescenta a nosso conhecimento do conteúdo do sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido. Os pensamentos oníricos a que somos levados pela interpretação não podem, pela natureza das coisas, ter um fim definido; estão fadados a ramificar-se em todas as direções dentro da intrincada rede de nosso mundo do pensamento. É de algum ponto em que essa trama é particularmente fechada que brota o desejo do sonho, tal como um cogumelo de seu micélio (FREUD, 2006FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006. Volume IV., p. 557).

Para Freud, o que se furta à interpretação integral é o desejo que se cifra no emaranhado de sons e imagens do sonho. Como pensamentos emaranhados, saturados de sentidos que cifram o desejo, o umbigo do sonho insere no horizonte da legibilidade algo impossível de ler. O umbigo delimita, assim, um ponto de ligação entre o texto onírico e sua exterioridade. A respeito dessa natureza de conexão e de desconexão da imagem do umbigo, Shoshana Felman, em “Sobrevivência postal, ou a questão do umbigo”, é esclarecedora:

O umbigo marca o lugar sobre o qual incide o corte (durante o parto) do cordão que liga a criança à mãe; em outras palavras, ele marca, ao mesmo tempo, o lugar de conexão e de desconexão entre o corpo materno dando à luz e o recém-nascido. O umbigo do sonho encarna, assim, o modo como o sonho está, todo e de uma só vez, ligado ao desconhecido e desconectado de seu conhecimento, desconectado do conhecimento de sua própria origem (FELMAN, 2012FELMAN, Shoshana. Sobrevivência postal, ou a questão do umbigo. Terceira Margem, v. 16, n. 26, p. 17-44, 2012., p. 31).

O umbigo do sonho é a cicatriz de um ponto ilegível no horizonte legível: lugar de conexão entre a textualidade do sonho e o desconhecido, assinalado pela desconexão de significados.

O umbigo da escrita

A linguagem imagética dos sonhos e os limites de sua significação comparecem na escrita de Artaud, que, entretanto, faz disso experiência de escrita. A aproximação entre o “umbigo do sonho” e o “umbigo dos limbos” é um caminho evidente, mas interessa perceber o que Artaud produz a partir de e à diferença de Freud. Para isso, propõe-se aqui uma terceira formulação, derivada das aproximações e diferenças entre literatura e psicanálise: o umbigo da escrita.

Em uma nota ao texto “Carta ao senhor legislador”, décimo texto de O umbigo dos limbos, Artaud escreve:

Se eu tivesse o que sei ser o meu pensamento, teria talvez escrito O umbigo dos limbos, mas tê-lo ia escrito de uma forma absolutamente outra. Dizem-me que eu penso porque não deixei inteiramente de pensar e porque, apesar de tudo, o meu espírito se mantém a um certo nível e dá de tempos a tempos provas de sua existência, das quais não se quer reconhecer que são fracas e falhas de interesse. Mas pensar é para mim bem diferente de limitar-me a não estar morto, é reunir-se a todos os instantes, é não deixar em nenhum momento de se sentir no seu ser interno, na massa informulada da sua vida, na substância da sua realidade, é sentir sempre o seu pensamento igual ao seu pensamento, sejam quais forem as insuficiências da forma que se é capaz de lhe dar. Mas o meu próprio pensamento, ao mesmo tempo que peca por fraqueza, peca também por excesso. Eu penso sempre a um nível inferior (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 31).

Trata-se de uma nota de rodapé - assim como em Freud a primeira menção ao umbigo do sonho se dá em uma nota de rodapé - que assinala a exterioridade articulada à escrita. Como se fosse preciso expandir as possibilidades, rumar para fora, expandir as margens do livro à procura de captar o que ao livro se furta, Artaud se refere, no livro que podemos ler, a um livro outro que não teria escrito. Cria-se uma espécie de ponto de contato, de emaranhamento entre o livro que lemos e o que só se deixa conhecer como resistência à escrita e, consequentemente, à leitura.

Essa nota à margem do texto, aberta ao desconhecido do próprio livro, se aproximada à noção de umbigo do sonho, e revela algo fundamental sobre o livro de Artaud. A nota participa do livro ao mesmo tempo em que nela se afirma não se ter escrito de fato o livro em sua “forma absolutamente outra” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 31). Para além do ponto de “insuficiência da forma” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 31) do livro que se pode ler, indica-se um livro outro, ausente. No umbigo da escrita do livro, entre presença e ausência, assinala-se o que falta, na medida em que se indica o que excede o livro. Por isso, o “pensamento, ao mesmo tempo que peca por fraqueza, peca também por excesso” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 31).

Não será difícil aproximar a essa nota de Artaud parte do pensamento freudiano a respeito do umbigo do sonho: “emaranhado de pensamentos” [...] “que não se deixa desenredar” (FREUD, 2006FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006. Volume IV., p. 557); “umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido” (FREUD, 2006FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006. Volume IV., p. 557); “ponto em que essa trama é particularmente fechada” (FREUD, 2006FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006. Volume IV., p. 557). Na imagem de umbigo do sonho, Freud encontra uma forma de nomeação para um duplo efeito do que excede a possibilidade de interpretação: por um lado, há o que, na linguagem, se emaranha como excesso de pensamentos, de sentidos, poderíamos ainda dizer; por outro, o nó de pensamentos sobre si fechados produz-se como ponto de opacidade na língua ao resistir a qualquer interpretação. O umbigo do sonho é, simultaneamente, ponto de condensação máxima das possibilidades de significação e furo na rede de sentidos dos textos, que afloram como “pedaços de real” (LACAN, 2007LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007., p. 119). O efeito de tal ponto de emaranhamento é a impossibilidade de ler, embora a leitura não escape a esse ponto de resistência ao sentido.

A nota de Artaud, sendo parte de um texto do campo literário, seria o umbigo da escrita do livro O umbigo dos limbos, ao dele participar, mas dele também se excluir, apontando um lugar de falta de palavras em face da excessiva “massa informulada” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 31). Há excesso de vida como massa informulada, excesso que resta por dizer, em face da forma textual insuficiente. O umbigo da escrita, portanto, seria um ponto opaco à margem do texto, em que as “imagens larvares” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 81) indicam o que excede a palavra possível. Nele, interligam-se interior do texto e seu exterior, presença e ausência de livro.

O umbigo da escrita e a ausência de livro

A ausência de livro é, junto à ausência de obra, um conceito fundamental no pensamento de Maurice Blanchot a respeito do livro e da escrita. Em A conversa infinita 3: a ausência de livro, Blanchot assim define a ausência de livro, a partir de vários autores, entre eles Artaud:

A ausência de livro não é o livro que se desfaz, mesmo se desfazer-se está de certo modo na origem e é a contralei do livro. Que o livro sempre se desfaça (se desarranje) só conduz ainda a um outro livro ou a uma outra possibilidade que não o livro, mas não a ausência de livro. Admitamos que aquilo que obceca o livro (aquilo que o assedia) seria essa ausência de livro de que ele sempre sente a falta, contentando-se em contê-la (mantendo a distância) sem contê-la (transformá-la em conteúdo). Admitamos ainda, dizendo o contrário, que o livro encerra a ausência de livro que o exclui, mas que jamais a ausência de livro se concebe somente a partir do livro e como sua única negação. Admitamos que, se o livro é portador de sentido, a ausência de livro é a tal ponto estranha ao sentido que o não sentido lhe concerne ainda menos (BLANCHOT, 2010BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 3: a ausência de livro. São Paulo: Escuta, 2010., p. 210).

O pensamento blanchotiano do livro permite algumas considerações a respeito da nota de Artaud em meio a O umbigo dos limbos. Na tensão entre livro e sua ausência, um livro atestaria, no limiar interior de seu arranjo simbólico, um umbigo da escrita: ponto interior, entretanto aberto à exterioridade do livro. Ponto paradoxal: cerne de exterioridade que nem se deixa significar, nem surge como ausência de sentido, porque, assim como um “pedaço de real” lacaniano “consiste em não se ligar a nada” (LACAN, 2007LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007., p. 119), a ausência de livro não se liga à palavra pela via dos mecanismos de significação.

O umbigo da escrita seria, assim, um lugar vazio que o escrito procura delimitar, concernir, lugar no qual se vislumbraria a “forma absolutamente outra” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 31) da “massa informulada” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 31) a que um livro visa ser. O umbigo da escrita, que se ramifica ao longo de toda a obra de Artaud, em sua estranheza a toda convenção estético-literária e a todo pensamento de matiz cartesiana, seria, tal como formula Blanchot, “a experiência do ser que é imagem antes de ser objeto, e a experiência da arte que é apreendida pela diferença violenta antes de toda representação” (BLANCHOT, 2010BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 3: a ausência de livro. São Paulo: Escuta, 2010., p. 25). Como imagem que nada objetifica - imagem como sinal de diferença que faz do escrito algo distinto de uma representação - o umbigo da escrita seria a procura de inscrever textualmente a pura exterioridade: “não conto nenhuma história, mas simplesmente desfio imagens, não poderão censurar-me por apenas propor fragmentos” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 21). Como imagem vazia, o umbigo da escrita resiste a toda formulação e só se escreve aos pedaços, turva toda precisão de sentido, suspendendo sobre si todo juízo que queira lhe estabelecer como presença ou negatividade. Por isso, Artaud introduz no escrito uma hesitação sobre o próprio escrito: “teria talvez escrito O umbigo dos limbos” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 31).

Há, nesse dizer, uma nuance de dúvida, mas também uma aposta de que haveria essa escrita, ou ao menos para ela uma abertura, ainda que “de uma forma absolutamente outra” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 31). A experiência de escrita de Artaud, portanto, produz-se na língua como suspensão e aposta de que haveria abertura a uma outra escrita - a escrita do exterior, em que o livro e sua alteridade se conectariam pela escrita de sua desconexão.

No livro como prefácio em aberto, que se vai relançando a cada fragmento em direção à sua forma absolutamente outra, a obra se abre e nada se fecha ou se conclui pela via do sentido. Cada fragmento relança a abertura, no limiar entre a linguagem e sua desrazão: “Não se trata, contudo, de esse pensamento trabalhar no vazio, de cair na desrazão, trata-se sim de produzir-se, de lançar chamas, ainda que loucas. Trata-se de existir. E eu, entre outros, considero que não tenho pensamento” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 29). Mas em que consistiria tal escrita fora da linguagem, fora do pensamento, em sua rigorosa inconsistência? Segundo Blanchot, o choque entre o livro e seu fora, o livro e sua ausência, seria já a escrita fora da linguagem, fora dos parâmetros de objetivação representativa:

Escrever, a relação com o outro de todo livro, com aquilo que, no livro, seria descrição, exigência escriturária fora do discurso, fora da linguagem. Escrever na borda do livro, fora do livro. A escrita fora da linguagem, escrita que seria como que originalmente linguagem tornando impossível todo objeto (presente ou ausente) de linguagem. A escrita não seria então jamais escrita de homem, isto é, jamais tampouco escrita de Deus, quando muito escrita do outro, do próprio morrer (BLANCHOT, 2010BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 3: a ausência de livro. São Paulo: Escuta, 2010., p. 207).

Entre vida e morte, nesse ponto nem humano nem divino, em que já nenhum sentido se apresenta, seja a Psicanálise, seja a Teoria Literária ou algum saber filosófico mais não podem fazer que testemunhar - sem significar - as imagens que se desfiam, atestando o que se lança e relança, da abertura à abertura, em ponto de ilegibilidade:

Dessa escrita ausente do livro e, todavia, em relação de alteridade com ele pode-se dizer que se mantém estranha à legibilidade, ilegível porquanto ler é necessariamente entrar pelo olhar em relação de sentido ou de não sentido com uma presença. Haveria, portanto, uma escrita exterior ao saber que se obtém pela leitura, exterior também à forma ou à exigência da Lei. A escrita, (pura) exterioridade, estranha a toda relação de presença, assim como a toda legalidade (BLANCHOT, 2010BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 3: a ausência de livro. São Paulo: Escuta, 2010., p. 211).

Na exterioridade da escrita de imagens que se desfiam, de imagens que mal se colocam como presença significante e sinalizam seu estatuto de parte sem todo, “pedaço de gelo mal digerido”, Artaud nomeia - com palavras cristalizadas pela ausência de sentido em face do excesso - o que seriam os limbos, de que só se escreve um umbigo:

Um frio intenso, uma abstinência atroz, os limbos de um pesadelo de ossos e músculos, com a sensação das funções estomacais que abanam como uma bandeira nas fosforescências da tempestade. Imagens larvares que se empurram como com o dedo e não têm relação com nenhuma matéria (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 81).

Para além do umbigo, mas não sem ele, Artaud faz avançar a palavra no informe, nos limbos. As imagens larvares do informe, movimentando-se com a desordem corporal sem matéria, participariam de um corpo não sistematizado. Desordem, entretanto, feita imagem medida rigorosamente pela escrita do exterior. Mas Artaud não cessa de relançar a palavra sempre um pouco mais em direção ao aberto. A ideia de um corpo sem órgãos, pensada por Deleuze, por exemplo, surge já em O umbigo dos limbos: “É preciso conhecer o verdadeiro nada desfiado, o nada que já não tem órgãos. […] Eu falo da ausência de buraco, de uma espécie de sofrimento frio e sem imagens, sem sentimentos, e que é como um choque indescritível de abortos” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 34).

A respeito desse corpo, “verdadeiro nada desfiado”, resta sempre indecidível saber se se escreve ou não, pois nele, em si, não haveria sequer imagem ou sentimento, apenas “um choque indescritível de abortos”. Talvez se possa dizer que, se se escrevesse, tal corpo diferiria de si mesmo, pois as palavras introduzem desvios e, mesmo que pouco ou nada signifiquem, são já outra coisa a título do que sequer poderiam desejar representar.

Seria possível fazer aqui uma ressalva: a escrita, mesmo como pura exterioridade, tal como pensa Blanchot, é ainda uma escrita, um sistema de letras, palavras e frases. Transmite, quando muito, pedaços do que não se captura e mal se indica em palavras. Artaud produz para isso pelo menos dois nomes: “umbigo dos limbos” e “Pesa-Nervos”. As palavras, quando muito, tocariam o que as excede, no choque do indescritível nas bordas do livro: “Ponho o dedo no ponto exacto da falha, do inconfessado deslize” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 62). Mas, ao tocar a ferida com palavras, para delas se despossuir, Artaud pretende que se transmita um excedente vivo, do qual as palavras seriam a crosta que decai:

Falam-me de palavras, mas não se trata de palavras, trata-se de duração do espírito. Essa crosta de palavras que cai, não se imagine que a alma não esteja nela implicada. Ao lado do espírito há a vida, há o ser humano em cujo círculo esse espírito volteia, a ele ligado por uma imensidão de fios... (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991.. p. 82).

Como, então, pensar a passagem sutil em que uma escrita se faria a exterioridade que se apresenta em palavras, sem as tomar por sentidos, sem delas fazer objeto, enfim, sem representar?

O Pesa-Nervos: palavra testemunho

Há algo na obra de Artaud que, por se furtar à palavra, resiste ao enquadramento no campo das convenções literárias. Não se pretende aqui uma definição para literatura, mas, seja qual for o entendimento desse campo, a palavra estará em questão. Na obra de Artaud, por exemplo, a palavra faz-se caminho de aproximação do informe pela via da forma metamórfica, que se faz medida “de um nada que se ignora” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 84). Esse caminho, o de um Pesa-Nervos, não escapa ao literário sem nele se enquadrar por inteiro.

Em direção ao entendimento da exterioridade da escrita e do livro em O Pesa-Nervos e O umbigo dos limbos, podemos tomar como primeiro movimento da escrita a seguinte afirmação: “Não deixar passar demasiado a literatura” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 47). Algo se passa literariamente, mas não tudo. Por um ressalto, talvez se possa dizer: junto à palavra literária, algo passaria aquém da palavra, antes de se fazer convenção simbólica, como criação anterior ao pensamento:

Sempre me perturbou essa obstinação do espírito, de querer pensar em dimensões e em espaços, de se fixar em estados arbitrários das coisas para pensar, de pensar em segmentos, em cristalóides, e que cada modo do ser fique coagulado num começo, que o pensamento não seja uma comunicação instantânea e ininterrupta com as coisas, mas que essa fixação e esse gelo, essa espécie de transformação da alma em monumentos, se produza, digamos assim, ANTES DO PENSAMENTO. É evidentemente a melhor condição para criar (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 45).

Fora do campo da arbitrariedade dos signos, visando a uma suposta anterioridade do pensamento, estaria, para Artaud, a melhor condição para o gesto de criar, de que toda obra seria apenas “dejeto”: “O que tomaram pelas minhas obras não eram senão dejectos de mim próprio, aquelas aparas da alma que o homem normal não recolhe” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 58). Nesse resto que se transmite como obra originada “antes do pensamento”, resto não de todo literário, Artaud se recusa a reconhecer O umbigo dos limbos, que não teria, hipoteticamente, escrito.

Essa mesma recusa, talvez, seja indício da exterioridade do que resta escrito tão somente como um “Pesa-Nervos”: “E já lhes disse: nada de obras, nada de língua, nada de palavra, nada de espírito, nada. Nada, a não ser um belo Pesa-Nervos” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 65). Aquele que escreve já pouco se interessa por uma linguagem literária. Da procura do livro, há apenas palavras arbitrárias, coágulos de um começo abortado, que entretanto dão ao excedente corporal da palavra um peso.

À diferença da avaliação do autor sobre seus escritos, talvez se possa perceber neles, se não a “comunicação instantânea e ininterrupta com as coisas” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 45), uma forma de transmissão anterior, exterior ao campo do sentido, mas não sem as palavras de onde o sentido desertou. Uma transmissão das coisas que não se reduzem às palavras, por meio das palavras em estado de dejeto. A esse respeito, Blanchot propõe o que seria uma “lei da transmissão”, segundo a qual a comunicação pela via dos sentidos já não operaria. A lei da transmissão seria um limiar entre o franqueável e o infranqueável, uma afirmação de uma impossibilidade: a “lei da transmissão [...] só se constitui em lei pela decisão de aí faltar: só haveria limite se o limite fosse franqueado, revelado como infranqueável pelo franqueamento” (BLANCHOT, 2010BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 3: a ausência de livro. São Paulo: Escuta, 2010., p. 213).

Uma literatura pode ser, entre outras coisas, um caminho para o limite da linguagem, embora a palavra literária fundada em convenções estéticas nem sempre se preste a dizer o que excede seus limites. O movimento de levar a linguagem para fora de si pode ser recuperado pela própria linguagem literária, mas o que escapa ao literário - o que se faz dejeto - apenas em parte seria recuperado pela palavra. Dessa lógica entre falta (de palavras) e excesso (sem palavras), restaria apenas a medida de um nada: um Pesa-Nervos. Assim, para Artaud, os limbos permanecem nos limbos, e o que deles temos é algo que não se teria escrito ou que só se escreveu como limite, como umbigo da escrita. Nessa acepção, os “limbos”, de que só temos um Pesa-Nervos, seriam um nome-limítrofe, índice de uma impossibilidade de nomeação. Nome que, se por um lado se abre a possibilidades de sentido, interessa menos por isso que pela transmissão de seu excedente, quando escrito. Um nome-limítrofe seria, assim, uma forma de “revelar o infranqueável pelo franqueamento” (BLANCHOT, 2010BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 3: a ausência de livro. São Paulo: Escuta, 2010., p. 213).

Dos limbos, temos o umbigo da escrita do exterior, um “Pesa-Nervos” que lhe serve como indício. Afeitas ao campo da transmissão, tal como pensado por Blanchot, as expressões “umbigo dos limbos” e “Pesa-Nervos” seriam, ainda, nas palavras de Artaud, algo próximo de uma “palavra testemunho”:

Por vezes, bastar-me-ia uma só palavra, uma pequena palavra sem importância, para ser grande, para falar no tom dos profetas, uma palavra testemunho, uma palavra exacta, uma palavra subtil, uma palavra bem macerada na minha medula, surgida de mim, que se mantivesse no extremo último do meu ser, e que, para toda gente, não fosse nada (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 52, grifo nosso).

É no campo das incertezas e apostas, assim como em “teria escrito o umbigo dos limbos” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 31), que Artaud cogita a existência desta palavra que lhe bastaria para dizer o limite do ser. A palavra testemunho seria do campo das incertezas, porque o informe a que visam é afeito ao incerto. Esse recuo incessante nas formulações de Artaud é recorrente em sua escrita: “As palavras a meio caminho da inteligência. Essa possibilidade de pensar em recuo, e de invectivar de súbito o seu pensamento” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 50). Pensar em recuo seria uma forma de induzir nas palavras um ponto de ruptura: limite em que o pensamento se interrompe, em que o sentido silencia e algo se testemunha em “palavra sutil”, mínima palavra medular, exatidão exterior ao sentido:

(decantação) no interior, como a despossessão da minha substância vital como a perda física e essencial (quero dizer, perda do ponto de vista da essência) De um sentido (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 54).

Decantado, despossuído de substância e essência, em estado de perda de significação, o texto pouco comunica. Mas, em lugar de pouco significar, faz signo do pouco, signo em estado de perda, palavra mínima que testemunharia sua exterioridade. Aproximamo-nos uma vez mais do conceito lacaniano de real - palavra testemunho para indicar uma impossibilidade que faz intrusão na língua pela via da ausência de sentido:

O real, tal como nós falamos dele, está completamente desprovido de sentido. Podemos estar satisfeitos, estar seguros que tratamos de algo real só quando já não há nenhum sentido, qualquer que seja. Não há sentido porque não é com palavras que escrevemos o real. É com as pequenas letras (LACAN, 2016LACAN, Jacques. Lacan in North Armorica. Porto Alegre: Editora Fi, 2016., p. 42).

Significar com clareza o conceito de real lacaniano ou a palavra testemunho de Artaud seria falseá-los. Pode-se acessar, entretanto, o que ambas indicam pela via da lógica de decantação formulada por Artaud: dos pontos de inoperâncias da língua frente ao que não se significa, deduz-se que há palavra testemunho de um real em jogo na escrita. Trata-se, portanto, em Artaud e Lacan, de conceitos limites para, a partir da linguagem, indicar o que a ela não se reduz. Que o real não se signifique, não quer dizer que dele não possa haver alguma escrita, mas não uma escrita qualquer. Uma escrita do exterior, talvez. Uma escrita cuja instância já não seria a das palavras, dos sentidos, mas das “pequenas letras” (LACAN, 2016LACAN, Jacques. Lacan in North Armorica. Porto Alegre: Editora Fi, 2016., p. 42).

Uma importante distinção entre escrita e fala, letra e significante (termo a que Lacan prefere em lugar de “palavra”), é não apenas quanto a seus diferentes modos de operação, mas quanto ao lugar em que se manifestam: “A escrita, a letra, está no real, e o significante, no simbólico” (LACAN, 2009LACAN, Jacques. O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009., p. 114). A letra, situada no real, é também ponto de ruptura no sistema simbólico, do qual, entretanto, participa como exterioridade. A letra escavaria, assim, um espaço vazio na língua, delimitaria um litoral no interior da língua, que se abriria a seu fora: a um corpo não sistematizado por nenhuma linguagem.

É possível identificar efeitos da letra, na escrita de Artaud, em que sua escrita decanta, esvazia-se de sentido e se projeta em direção a uma hipotética exterioridade: “Que a língua esteja privada da alma, ou o espírito da língua, e que esta ruptura trace nas planícies dos sentidos um vasto sulco de desespero e de sangue, eis a grande miséria que mina, não a superfície ou a estrutura, mas o TECIDO dos corpos” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 82). Há um efeito de ruptura que traça, que rasga, no campo do sentido, uma ravina de sangue, uma abertura por onde o corpo escoa na língua e coagula no limiar de silêncio das letras.

Quanto à letra, Lacan ainda a associa a uma maneira específica de fazer - um saber fazer convergente com o inconsciente: “a prática da letra converge com o uso do inconsciente” (LACAN, 2001LACAN, Jacques. Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein. In:Outros Escritos. São Paulo: Editora Zahar, 2001. p. 198-205., p. 200). Com esse dizer, Lacan reconhece que um escritor opera com as letras - e com o inconsciente por elas estruturado -1 1 No pensamento de Lacan, “O inconsciente é estruturado como uma linguagem” (LACAN, 2016, p. 75). sem que seja necessário um saber sobre a psicanálise. Ao escritor, basta saber fazer com as letras. Prática que converge com o uso do inconsciente, sem coincidir com o conhecimento da psicanálise. Com isso, entende-se que Psicanálise e algumas literaturas seriam práticas distintas que podem ter afinidades quanto ao uso, digamos, literal do inconsciente.

Mas a letra, no pensamento de Lacan, não se confunde com as unidades de um alfabeto, embora guarde das letras alfabéticas algumas características. Por exemplo, uma só letra é insuficiente para se dizer palavra e nada significa. Uma letra é, na palavra bem formada, índice do informe que se ligou à forma, mas que se pode desprender e, do que foi palavra, restar como letra insignificante. A letra, nessa perspectiva, é o limiar onde a palavra começa, um limiar que resta na palavra como ponto potencial de ruptura no campo do sentido.

A letra lacaniana, por fim, ao traçar um litoral entre campos heterogêneos, faz-se elemento de ligação e de separação entre o campo do corpo e o campo da linguagem. O corpo, por sua vez, se marca na linguagem como impossibilidade, resistência.

Uma prática da letra seria, a cada vez, a insistência de uma linguagem em torno do que a ela resiste. Uma forma de fazer algo, não sem algum saber, com o informe: um “pensar em recuo” (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 50). Pensamento em recuo que aqui aproximamos de um “uso do inconsciente”. Na prática da letra, o informe que resiste seria já a possibilidade da forma que insiste, embora forma alguma capture de todo o informe com que opera.

A respeito dessa experiência bastante singular de escrita, irrepetível em cada obra, Artaud não cessa de produzir palavras testemunho que arrebatariam “ao desconhecido qualquer coisa de real”:

No espaço do instante que dura a iluminação de uma mentira, fabrico-me um pensamento de evasão, lanço-me sobre uma pista falsa indicada pelo meu sangue. Fecho os olhos da minha inteligência, e deixando falar em mim o informulado, dou-me a ilusão de um sistema cujos termos me escapassem. Mas desse instante de erro fica-me o sentimento de ter arrebatado ao desconhecido qualquer coisa de real. Creio em conjurações espontâneas. Nas estradas para que o meu sangue me arrasta, algum dia terei de descobrir uma verdade (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 78).

O sistema cogitado por Artaud, cujos termos lhe escapariam, parece operar de maneira próxima ao campo da letra, que, segundo Lacan, comporta uma face voltada para o sistema simbólico e outra para o que lhe excede e a ele é irredutível. Há a mentira, um pensamento de evasão, as pistas falsas, elementos afeitos ao ardil literário. Mas, por um erro, por uma deriva no interior desse sistema sem termos, “deixando falar” em si “o informulado”, arrebata-se ao desconhecido “qualquer coisa de real”.

Não se trata aqui de fazer coincidir o real de Artaud, o real de Lacan e o desconhecido de Freud, mas tão somente aproximar palavras testemunho de distintas práticas convergentes: “qualquer coisa de real”, “pedaço de real”, “umbigo do sonho”, “umbigo dos limbos”, “Pesa-Nervos”. Sobre todos esses termos que escapariam a um sistema, sobre esses nomes limítrofes que testemunhariam o umbigo da escrita, talvez se possa dizer que convirjam quanto aos usos singulares das letras, de que fazem escrita do exterior. Escrita de cujo ponto para sempre “desconhecido” vai nascendo o livro interminável, que se expande em direção à sua ausência:

Nunca haverá claridade sobre essa paixão, sobre essa espécie de martírio cíclico e fundamental. E contudo ela vive, mas com uma duração de eclipse, em que o fugidio se mistura perpetuamente com o imóvel, e o confuso com essa língua penetrante de uma claridade sem duração. Esta maldição é de um alto ensinamento para as profundidades que ela ocupa, mas o mundo não compreenderá a lição (ARTAUD, 1991ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos. Lisboa: Hiena Editora, 1991., p. 83).

É esse um dos ensinamentos contínuos da exterioridade da escrita e do Livro, para os quais não haverá compreensão que baste, porque de um saber fazer com a exterioridade literal se trata. Para o exterior, não há sentido ou medida que chegue. Na exterioridade de um livro cujas bordas confinam com o infinito, escrita e leitura se expandem entre nomes que não cessam de desaparecer em face do Livro.

Referências

  • ARTAUD, Antonin. O Pesa-Nervos Lisboa: Hiena Editora, 1991.
  • BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 3: a ausência de livro. São Paulo: Escuta, 2010.
  • FELMAN, Shoshana. Sobrevivência postal, ou a questão do umbigo. Terceira Margem, v. 16, n. 26, p. 17-44, 2012.
  • FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro: Imago, 2006. Volume IV.
  • FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos: Obra completa, volume 4. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
  • LACAN, Jacques. Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein. In:Outros Escritos São Paulo: Editora Zahar, 2001. p. 198-205.
  • LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
  • LACAN, Jacques. O Seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2009.
  • LACAN, Jacques. Lacan in North Armorica Porto Alegre: Editora Fi, 2016.
  • 1
    No pensamento de Lacan, “O inconsciente é estruturado como uma linguagem” (LACAN, 2016LACAN, Jacques. Lacan in North Armorica. Porto Alegre: Editora Fi, 2016., p. 75).
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    08 Dez 2022
  • Aceito
    15 Ago 2023
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