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A domesticação de um cabelo problema: o corpo negro como um território em disputa no romance-ensaio de Djaimilia Pereira de Almeida

The domestication of a problematic hair: The black body as a territory in dispute in the novel-essay by Djaimilia Pereira de Almeida

Resumo

Este estudo propõe uma leitura do romance-ensaio Esse cabelo, da escritora angolana Djaimilia Pereira de Almeida. Em termos mais específicos, pretende-se demonstrar que o cabelo afro de Mila, personagem narradora da obra, pode ser compreendido como uma arena de disputa de questões identitárias que envolvem um tensionamento e um trânsito contínuos entre os polos fixos do colonizador e do colonizado. Para tanto, serão discutidas algumas concepções teóricas referentes à negritude e ao racismo propostas por nomes como bell hooks (2019), Claudia Rankine (2021), Frantz Fanon (2020), Grada Kilomba (2019) e Ingrid Banks (2000), bem como reflexões acerca do feminino desenvolvidas por pensadoras como Lucía Guerra (1995), Rita Laura Segato (2014) e Sherry Ortner (1979).

Palavras-chave:
Djaimilia Pereira de Almeida; cabelo afro; feminismo negro; identidades diaspóricas

Abstract

This study proposes a reading of the novel-essay Esse cabelo, by Angolan writer Djaimilia Pereira de Almeida. More specifically, we intend to demonstrate that the afro hair of Mila, the character-narrator of the work, can be understood as an arena of a dispute of identity issues that involves continuous tensioning and transit between the fixed poles of the colonizer and the colonized. To this end, some theoretical conceptions concerning blackness and racism proposed by names such as bell hooks (2019), Claudia Rankine (2021), Frantz Fanon (2020), Grada Kilomba (2019), and Ingrid Banks (2000) will be discussed, as well as reflections about the feminine developed by thinkers such as Lucía Guerra (1995), Rita Laura Segato (2014) and Sherry Ortner (1979).

Keywords:
Djaimilia Pereira de Almeida; afro hair; black feminism; diasporic identities

Resumen

Este estudio propone una lectura de la novela-ensayo Esse cabelo, de la escritora angoleña Djaimilia Pereira de Almeida. En términos más específicos, se pretende demostrar que la cabellera afro de Mila, personaje-narradora de la obra, puede entenderse como una arena de disputa de cuestiones identitarias que implica una tensión y un tránsito continuo entre los polos fijos del colonizador y el colonizado. Para ello, se discutirán algunas concepciones teóricas sobre la negritud y el racismo propuestas por nombres como bell hooks (2019), Claudia Rankine (2021), Frantz Fanon (2020), Grada Kilomba (2019) e Ingrid Banks (2000), así como reflexiones sobre lo femenino desarrolladas por pensadoras como Lucía Guerra (1995), Rita Laura Segato (2014) y Sherry Ortner (1979).

Palabras clave:
Djaimilia Pereira de Almeida; cabello afro; feminismo negro; identidades diaspóricas

Corpos-territórios negros em diáspora: algumas demarcações preliminares

A literatura pode oferecer material riquíssimo no que concerne à problematização do mundo. Isso porque, ainda que a ficção não se configure como uma representação da nossa realidade, ela a (re)apresenta, tornando possível aproximações entre o universo ficcional e o concreto que nos rodeia. Em outras palavras, a produção literária manifesta uma posição frente às configurações da realidade, visto que a palavra, permeada de múltiplos sentidos, é incapaz de ser neutra. Nesse sentido, pode-se dizer que a emergência da ficção de autoria negra já é um posicionamento em um mundo regido pelo Norte global, majoritariamente branco, que deixou sua marca na história pela colonização de populações não-brancas, fato que dita, em grande medida, a produção e a recepção da literatura.

Com o olhar voltado para essa problemática, a importância da escrita de sujeitos subalternizados é inegável, pois esses colocam em pauta uma realidade outra, marcada, muitas vezes, pela violência simbólica e física, resultado da opressão estrutural de uma sociedade que mantém os resquícios do processo de colonização. O papel da literatura na construção da identidade desses sujeitos é fato no âmbito da crítica e teoria literárias. Na segunda metade do século XX, com a emancipação das antigas colônias europeias na África e na Ásia, essa constatação tornou-se incontornável mediante a um crescimento de narrativas nunca antes lidas, criação dos sujeitos até então calados. Antes tinham voz, mas a voz era sufocada pela máscara da opressão colonialista, que dava respaldo a uma narrativa única, a branca.1 1 A simbologia da voz e da fala, como instrumento de poder, por parte dos sujeitos hegemônicos, e de afronta e resistência, por parte dos indivíduos subalternizados, é discutida por bell hooks (2019a, p. 31-39) e por Grada Kilomba (2019, p. 33-46). A partir desse movimento de conquista de uma voz idiossincrática, essa escrita tem ressignificado o cânone, como evidenciado pela consagração de nomes como os de Chimamanda Ngozi Adichie, Onyebuchi “Buchi” Emecheta e Paulina Chiziane, além das brasileiras Maria Firmina dos Reis, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves.

Diretamente relacionado a tal visibilidade, o deslocamento de grupos de indivíduos para a Europa configura também uma decorrência da violência colonial, pois os sujeitos que migram têm dificuldade de garantir a sobrevivência em seus países de origem, os quais foram expropriados durante a colonização. Na Europa e no mundo, a imigração tem dividido opiniões. Se por um lado a massa de homens, mulheres e crianças recém-chegados às ex-metrópoles fortaleceu narrativas e posicionamentos nacionalistas e xenófobos, por outro esse cenário também retirou a mordaça colonial que impossibilita gritos de resistência. Sem o silêncio forçado, os imigrantes e seus descendentes puderam iniciar a discussão sobre condição diaspórica e seus processos de construção identitária, em especial por meio da literatura. Ao discutir a situação específica do contexto caribenho, Stuart Hall oferece elementos para pensarmos os fluxos migratórios vindos das ex-colônias europeias em direção às antigas metrópoles. Segundo o pensador, essas identidades culturais sustentam-se não na diferença binária, que ergue uma barreira incontornável entre o “eu” e o “outro”, mas em uma noção de différance derridiana, “uma diferença que não funciona através de binarismo, fronteiras veladas que não separam finalmente, mas são também places de passage, e significados que são posicionais e relacionais, sempre em deslize ao longo de um espectro sem começo nem fim” (HALL, 2003HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik. Tradução: Adelaine La Guardia Resende, Ana Carolina Escosteguy, Cláudia Álvares, Francisco Rüdiger e Sayonara Amaral. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003., p. 33).

Essa estética diaspórica “impura”, de que nos fala Hall, constitui um elemento-chave na experiência de Djaimilia Pereira de Almeida, escritora nascida em Angola, em 1982, que cedo migrou para Portugal e cujo trabalho literário é marcado pela densidade dos conteúdos e pela natureza sempre provisória de suas afirmações, conforme constatações de Rosa Lima (2020LIMA, Norma Sueli Rosa. Esse cabelo em Luanda, Lisboa, Paraíso: Djaimilia Pereira de Almeida e a experiência do desenraizamento na tentativa de integração. Convergência Lusíada, v. 31, n. 43, p. 12-24, 2020.). Seus personagens são, em grande parte, negros e negras, uma escolha que, segundo a autora, veio da ausência desses na literatura produzida em língua portuguesa. Exemplo dessa preocupação é Mila, a protagonista de Esse cabelo e também alter-ego da autora, criada após a percepção de que havia pouco espaço para personagens femininas negras, o que acarretava uma dificuldade para a escritora em identificar-se com as narrativas de seu país (TODAVIA, 2022TODAVIA. Todavia ao vivo - Lançamento de ESSE CABELO, de Djaimilia Pereira de Almeida. 2022. 1 vídeo (63 min 16s). Publicado pelo canal Todavia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1nIFWz7OyfI . Acesso em: 01 abr. 2022.
https://www.youtube.com/watch?v=1nIFWz7O...
).

Seu primeiro livro, Esse cabelo, inicialmente publicado pela editora portuguesa Teorema, em 2015, e editado no Brasil em 2022 pela editora Todavia, será o objeto de análise deste ensaio. A obra pode ser caracterizada como um romance-ensaio, visto que, misturando narração e reflexão, constrói-se em um entre-lugar do ficcional, da autobiografia e do texto ensaístico (BRITO; TREVISAN, 2021BRITO, Regina Helena Pires de; TREVISAN, Ana Lucia. Representações do sujeito subalterno em contextos pós-coloniais: uma reflexão sobre Esse cabelo e Luanda, Lisboa, Paraíso, de Djaimilia Pereira de Almeida. Verbum, v. 10 n. 2, p.142-154, 2021.; GONÇALVES, 2021GONÇALVES, Bianca Mafra. Para uma filosofia do cabelo: uma análise de Esse Cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida. 2021. Dissertação (Mestrado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021. ), deixando de lado, em diversos momentos, o mundo diegético de Mila para elucidar afirmações, por vezes provisórias, e/ou questionamentos acerca do corpo atravessado por questões de raça e identidade. Esse movimento discursivo enriquece a construção de Mila, visto que a personagem-narradora carrega em seu corpo marcas raciais indissolúveis, manifestando, outrossim, mais uma marca da já mencionada “impureza” do discurso diaspórico.

A narrativa é conduzida em primeira pessoa por Mila, filha de mãe imigrante negra e pai português branco, e versa sobre identidade e sua relação com a história familiar e o território. A configuração de sua família, que a trouxe de África para Portugal aos três anos de idade, é motivo da investigação sobre as origens de seu cabelo afro, objeto de cuidados da mãe e, principalmente, comentários alheios. Nas idas da personagem aos salões de beleza, entre pentes e óleos capilares, o cabelo é constituído, em grande medida, como um signo de identidade para Mila, resultado do território ao qual chama “lar”, assim como das relações que se dão nas andanças e permanências da garota. Tendo como ponto de partida tais reflexões, este estudo tem por objetivo demonstrar como o cabelo afro da personagem-narradora do romance-ensaio configura uma arena de disputa e tensionamento de questões identitárias, que são resolvidas pela autora tanto no nível diegético, através dos episódios vivenciados por Mila, quanto no nível discursivo, a partir da incorporação de reflexões e problematizações que transcendem a esfera do ficcional e aproximam-se do estilo ensaístico.

Apesar da visibilidade adquirida pela escritora no mercado editorial,2 2 Nos primeiros cinco anos de carreira, Djaimilia acumulou diversas distinções, dentre as quais o Prêmio Oceanos 2019, pelo romance Luanda, Lisboa, Paraíso, obtendo o segundo lugar na mesma premiação no ano seguinte, com a narrativa A Visão das Plantas. sua obra tem despertado pouco interesse na crítica acadêmica, sendo elaboradas, até o ano de 2022, apenas duas dissertações de mestrado sobre o romance Esse cabelo e pouco mais de 10 artigos discutindo a produção da escritora, dos quais apenas dois são dedicados exclusivamente à narrativa aqui analisada.3 3 O levantamento acerca das dissertações e dos artigos que discutem a obra de Djaimilia foi realizado no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES (https://catalogodeteses.capes.gov.br/catalogo-teses/#!/) e no Portal de periódicos da CAPES (https://www-periodicos-capes-gov-br.ez127.periodicos.capes.gov.br/), respectivamente, sendo que, no caso deste, foram levados em consideração apenas os periódicos que contam com revisão por pares. Em relação às dissertações, cumpre mencionar a elaboração de um terceiro trabalho que trata do seu romance Luanda, Lisboa, Paraíso, publicado em 2018. Esses trabalhos, em linhas gerais, discutem aspectos diversos, do pós colonialismo e da temática da migração africana para a Europa às relações e percepções de gênero e seu vínculo com o cabelo na escrita de Djaimilia. Assim, vê-se que o foco principal da discussão proposta aqui, o cabelo da personagem Mila, é algo ainda muito pouco explorado, em especial a partir de um recorte que coloca em diálogo essa temática e a perspectiva decolonial.

Na esteira de tais reflexões, o presente trabalho lançará mão de algumas concepções teóricas referentes à negritude e ao racismo propostas por pensadoras/es negras/os, como bell hooks (2019ahooks, bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019a.), Claudia Rankine (2021RANKINE, Claudia. Só nós: uma conversa americana. São Paulo: Todavia , 2021.), Frantz Fanon (2020FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Ubu, 2020.), Grada Kilomba (2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: relatos de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. [Recurso eletrônico].) e Ingrid Banks (2000BANKS, Ingrid. Hair matters: Beauty, Power, and Black Women’s Consciousness. Londres: New York University Press, 2000.), que se propuseram a pensar sobre a realidade de sujeitos negros na sociedade contemporânea, elaborando, também, alternativas de enfrentamento ao racismo e à supremacia branca. Paralelamente a isso, a leitura aqui proposta buscará estabelecer um diálogo com as questões do feminino, em especial aquelas referentes ao corpo, a partir das reflexões desenvolvidas por pensadoras como Lucía Guerra (1995GUERRA, Lucía. La mujer fragmentada: historias de un signo. 3. ed. Santiago de Chile: Editorial Cuarto Propio, 2006.), Rita Laura Segato (2014SEGATO, Rita Laura. Las nuevas formas de la guerra y el cuerpo de las mujeres. Revista Sociedade e Estado, v. 29, n. 2, p. 341-371, 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922014000200003&lng=es&tlng=es . Acesso em: 12 maio 2022.
https://www.scielo.br/scielo.php?script=...
) e Sherry Ortner (1979ORTNER, Sherry B. Está a mulher para o homem assim como a natureza para a cultura? In: ROSALDO, Michelle Zimbalist; LAMPHERE, Louise. A mulher, a cultura e a sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979 [1974]. p. 95-120. ).

Entre pentes e óleos capilares: as marcas da violência na domesticação / colonização do cabelo afro

Antes de nos atentarmos aos aspectos literários de Esse cabelo (2022), queremos abordar, de forma sucinta, o lugar de onde Djaimilia escreve. Nascida em Angola, migrou para Portugal ainda criança, país que colonizou a pátria natal da autora. É a partir da ex-metrópole que ela elucida o conteúdo e a forma de seu primeiro livro de ficção, voltado para o seu cabelo, um marcador estético racial que remete à primitividade no imaginário social branco (KILOMBA, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: relatos de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. [Recurso eletrônico]., p. 127). O espaço de produção de uma determinada narrativa tem sua importância intrínseca à sua historicidade que, no caso português, é marcada pela violência colonialista. Tal violência permanece operante na nação, visto que o Estado ignora seu passado, pois o país “é um lugar de negação, ou até mesmo de glorificação da história colonial” (KILOMBA, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: relatos de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. [Recurso eletrônico]., n.p., grifo da autora), e por esse motivo impede que haja responsabilização pelos feitos passados e torna quase inatingível uma reconfiguração nacional que ponha fim à marginalização dos sujeitos negros. Assim, a escrita de Djaimilia redimensiona a atitude nacional diante do passado, pois, em seus livros, e especificamente em Esse cabelo, a autora faz das trajetórias de imigrantes o seu mote narrativo, movendo-as da margem para o centro.

Na obra, há um fator importante: o pressuposto do qual parte a narradora já nas primeiras páginas, quando afirma: “nada haveria a dizer de um cabelo que não fosse um problema” (ALMEIDA, 2022ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. Esse cabelo. São Paulo: Todavia, 2022., p. 12). Tal afirmação nos leva a crer que esse problema é uma configuração desviante da proposta de identidade concebida e imposta pelo colonizador, aspecto que se observa nitidamente nos trechos em que as cabeleireiras dos salões voltados para público feminino negro dedicando-se a alisar os cabelos de Mila, tecem comentários negativos sobre seu cabelo afro:

(Essa ida a Sapadores fora, na realidade, precedida de um ensaio singular, perto de casa, na dona Esperança, a cabeleireira da avó Lúcia. Inconformada com o estado do meu cabelo, agarrou num secador e numa escova e, no intervalo de pentear a minha avó, esticou duas madeixas por caridade, para provar que não era um caso perdido. “Está a ver? Não lhe digo que a Mila tem um belo cabelo? É só esticar um bocadinho e - veja!”) (ALMEIDA, 2022ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. Esse cabelo. São Paulo: Todavia, 2022., p. 20).

Como podemos notar no excerto, o cabelo de Mila, ao mesmo tempo que configura um problema - por manifestar, no corpo da narradora, o signo do colonizado -, também revela uma potencialidade de se tornar um cabelo “bom”, segundo os padrões de corpo validados pelo colonizador. Esse tensionamento entre o que o cabelo de Mila “é” e o que ele “pode ser” sintetiza aquilo que Homi Bhabha aponta como o caráter complexo de alteridade colonial, “o artifício do homem branco inscrito no corpo do homem negro” (BHABHA, 2013BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2013., p. 84). Assim, o processo de construção e reconhecimento de si operado pela protagonista se dá no entre-lugar, no espaço que separa o “Eu colonialista” e o “Outro colonizado”.

Um segundo fator fundamental da obra jaz na narração de Mila do que lhe é idiossincrático, o seu cabelo, fonte de inúmeros sentidos, individuais e coletivos, construídos por uma mulher negra cercada de fatores externos que, em certa medida, procuram definir sua identidade: sua família, seus amigos, as cabeleireiras, entre outros. Nas primeiras páginas do romance-ensaio, somos levados a crer que o cabelo que lhe pertence possui características específicas que o tornam único:

Talvez o livro do cabelo esteja já escrito, problema resolvido, mas não o livro do meu cabelo, o que me relembraram dolorosamente duas louras falsas quem em tempos o entreguei de passagem para um brushing impossível - e as quais, não menos brutas do que as outras, notando em voz alta que “está todo espigado”, mo esticaram de cima para baixo, lutando contra os próprios braços, a masculinidade de cujos bíceps, inchados sob as batas, foi o tempo inteiro a minha secreta desforra pela tortura (ALMEIDA, 2022ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. Esse cabelo. São Paulo: Todavia, 2022., p. 10, grifo da autora).

Como se percebe no excerto, na perspectiva da personagem narradora, a resolução do “problema” do seu cabelo passa também pela instância discursiva - escrever o livro do seu cabelo -, aspecto que reforça a íntima relação entre ficção e ensaio que, a nosso ver, sustenta a construção de sentido da obra de Djaimilia. O trecho evoca, ainda, outra significação, a de uma certa ideia de masculinidade, aqui assemelhando “a virilidade à capacidade de exercer poder sobre outros, sobretudo através da utilização de força coerciva” (hooks, 2019bhooks, bell. Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva, 2019b. [Recurso eletrônico]., n.p.). Esse exercício do poder masculino sob outros/as é o propulsor da dominação patriarcal, historicamente entendida a partir do binômio natureza-cultura, que atrela o universo feminino à primeira categoria e o masculino à segunda. Nessa lógica, a cultura equivale à “noção de consciência humana (isto é, sistemas de pensamento e tecnologia), por meio das quais a humanidade procura garantir o controle sobre a natureza” (ORTNER, 1979ORTNER, Sherry B. Está a mulher para o homem assim como a natureza para a cultura? In: ROSALDO, Michelle Zimbalist; LAMPHERE, Louise. A mulher, a cultura e a sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979 [1974]. p. 95-120. , p. 100). A natureza, por sua vez, é passível de diversas compreensões, todas marcadas por um nível de inferioridade em relação à cultura. No entanto, cremos que é demasiado simples confinar o gênero feminino aos aspectos fisiológicos do corpo feminino, retirando-o completamente do campo cultural, visto que “a mulher não pode ser destinada totalmente à categoria da natureza, pois é perfeitamente óbvio que ela seja um ser humano maduro dotada de consciência humana exatamente como o homem” (ORTNER, 1979ORTNER, Sherry B. Está a mulher para o homem assim como a natureza para a cultura? In: ROSALDO, Michelle Zimbalist; LAMPHERE, Louise. A mulher, a cultura e a sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979 [1974]. p. 95-120. , p. 105).

Explorando os desdobramentos dessa categoria, torna-se evidente a centralidade do corpo das mulheres nas argumentações que visam respaldar o processo de dominação: o corpo feminino é frequentemente lido através de uma ótica depreciativa, que atrela as mulheres a caracterizações ligadas às noções de fraqueza, inaptividade e/ou selvageria. Nesse prisma, o cabelo afro, como uma das partes possíveis do corpo negro, pode ser entendido como pertencente à natureza, em especial devido a frequente associação do cabelo afro ao selvagem, como explica Grada Kilomba:

a cor da pele de africanas/os passou a ser tolerada pelos senhores brancos, mas o cabelo não, que acabou se tornando um símbolo de “primitividade”, desordem, inferioridade e não-civilização. O cabelo africano foi então classificado como “cabelo ruim” (KILOMBA, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: relatos de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. [Recurso eletrônico]., n.p., grifo da autora).

Sendo considerado incivilizado, esse cabelo se torna objeto de preconceito, pois destoa do padrão de beleza ocidental. Banks (2000BANKS, Ingrid. Hair matters: Beauty, Power, and Black Women’s Consciousness. Londres: New York University Press, 2000.) ainda elabora o argumento de que a textura capilar coopera para essa visão selvagem do afro, pois “o que é considerado desejável é medido em relação aos padrões brancos de beleza, que incluem cabelo comprido e liso”4 4 No original: “What is deemed desirable is measured against white standards of beauty, which include long and straight hair”. (BANKS, 2000BANKS, Ingrid. Hair matters: Beauty, Power, and Black Women’s Consciousness. Londres: New York University Press, 2000., p. 2, tradução nossa). A partir de tal postulado, o cabelo das mulheres negras não pode ser lido como desejável. Assim, transformando a negra em uma Outra pelo seu cabelo, a “civilização” branca, representante da cultura - pois reproduz discursos de superioridade -, determina que há a necessidade de dominar o cabelo afro, por meio de processos artificiais.

O prestígio dado ao cabelo liso advém, portanto, da construção branca de que suas características físicas - e apenas as suas - são belas. Devido à hierarquia social criada pelo racismo, a textura lisa é preferível não somente entre mulheres brancas, mas também entre negras. Os motivos para tal preferência são diversos, abarcando desde a praticidade da manutenção de fios lisos (BANKS, 2000BANKS, Ingrid. Hair matters: Beauty, Power, and Black Women’s Consciousness. Londres: New York University Press, 2000.), o apelo estético - construído através da exposição a referenciais de beleza -, o auto ódio (hooks, 2019ahooks, bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019a.), advindo do fato de as mulheres negras serem “bombardeadas diariamente por uma branquitude colonizadora poderosa que nos seduz para longe de quem somos, que nega a existência da beleza que pode ser encontrada em qualquer forma de negritude que não é uma imitação de branquitude” (hooks, 2019ahooks, bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019a., p. 263-264), até a autodeterminação e livre escolha (KILOMBA, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: relatos de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. [Recurso eletrônico].; RANKINE, 2021RANKINE, Claudia. Só nós: uma conversa americana. São Paulo: Todavia , 2021.).

No romance-ensaio de Djaimilia, fica evidente que, ao longo de sua vida, a preferência pela lisura dos cabelos tem razões cambiáveis, muitas relacionadas à família. É inegável, por exemplo, a importância da figura materna, uma negra angolana, nas diversas fases estéticas do cabelo da personagem. Não por acaso, é por ação da mãe que o crespo se torna característica da garota: à tenra idade de seis meses, Mila tem seu cabelo, até então liso, cortado pela mãe, renascendo crespo e seco. Alguns anos mais tarde, é a mãe que leva Mila para os salões de beleza portugueses a fim de que o crespo da menina seja alisado. Todavia, é também ela que ensina a filha o manuseio e cuidado do afro quando a adolescente opta pelo cabelo natural.

A desumanização do corpo negro, um processo histórico-social que se dá através da naturalização da crença na inferioridade negra, também é encontrada no romance-ensaio de Djaimilia. Ainda na infância, Mila vivencia um episódio sobre o qual relata: “a minha avó branca (de que forma dizê-lo sem soar à novela brasileira?) perguntava-me pelo cabelo. Então, Mila, quando é que tratas esse cabelo? O cabelo era então distintamente uma personagem, um alter-ego presente na sala” (ALMEIDA, 2022ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. Esse cabelo. São Paulo: Todavia, 2022., p. 33, grifo da autora). A caracterização da avó da narradora-personagem contribui para o entendimento de que o ato discursivo produzido acerca da neta está intrinsecamente relacionado à cor da enunciadora, que a posiciona como superior, dando respaldo a seu racismo. Em referência ao cabelo de Mila, o uso do verbo “tratar” coloca em evidência a atribuição de “problema” a esse componente do corpo, retomando, ainda, a possibilidade de salvação dos fios através de um tratamento. O pronome demonstrativo empregado na fala da avó traz maior ênfase a esse postulado, pois, de maneira implícita, está carregado de significações pejorativas acerca do cabelo afro. É desnecessário que a avó acrescente adjetivos: destacando a diferença, aparente na forma e textura destoantes do padrão, “esse cabelo” reúne a ideia de selvageria e inadequação. Tão evidentes estão tais implicações, que a menina negra não demonstra confusão, levando-nos a crer que ela já internalizou a leitura social de seu corpo e raça, percebendo-se como Outra.

Nesse viés, bell hooks (2019ahooks, bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019a.), a partir de um olhar cuidadoso sobre a representação de pessoas negras e como tal fenômeno é utilizado para controlar o corpo negro, em especial no que concerne a construção do referencial de beleza, diz-nos que “a dor de aprender que não podemos controlar nossas imagens [negras], como nos vemos (se nossas visões não forem descolonizadas) ou como somos vistos, é tão intensa que isso nos estraçalha” (hooks, 2019ahooks, bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019a., p. 35). Assim, Mila é incapaz de ditar a interpretação da própria imagem, pois a forma como a neta é vista por sua avó branca foge da esfera privada. Isso se dá pelo fato de que o corpo negro, na sociedade supremacista branca, para usar o termo de hooks, é lido apenas como corpo, ou seja, lhe é negada a possibilidade de constituir-se enquanto pessoa. Aqui, ecoa Frantz Fanon e a sua análise psicológica do encontro hostil do sujeito negro com o branco. Para o psiquiatra e pensador martinicano, “no mundo branco, o homem [sic] de cor encontra dificuldades na elaboração do seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é uma atividade puramente negacional. É um conhecimento em terceira pessoa” (FANON, 2020FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Ubu, 2020., p. 126). Vemos que, ao tomar conhecimento do próprio corpo, o/a negro/a, em um primeiro momento, se encontra confinado/a à lógica branca, pois o mundo já havia sido organizado a partir de uma ótica racista, pela qual o/a negro/a é subjugado/a.

Para além de um aspecto “meramente” estético que traz implicações relevantes ao processo de auto reconhecimento e de pertencimento étnico da protagonista, o cabelo “problema” de Mila assume contornos mais amplos e leva ao debate de questões profundas, em especial quando concebemos, na esteira do pensamento feminista contemporâneo, o corpo feminino como um território em disputa em contextos patriarcais marcados por processos de colonização e escravidão. Ao se debruçar sobre o tema, Lucía Guerra sugere que pensemos o feminino, compreendido aqui como um signo culturalmente construído, como uma territorialidade patriarcal com uma “estrutura de poder que em parte se assemelha àquela estabelecida entre o Sujeito colonizador e o Outro colonizado”5 5 No original: “estructura de poder que parcialmente se asemeja a aquella establecida entre el Sujeto colonizador y el Otro colonizado”. (GUERRA, 2006GUERRA, Lucía. La mujer fragmentada: historias de un signo. 3. ed. Santiago de Chile: Editorial Cuarto Propio, 2006., p. 21, tradução nossa). Nessa ótica, o “signo mulher” configura-se como um elemento simbólico estruturado a partir de eixos dicotômicos (natureza/cultura, corpo/alma, emoção/razão, dentre outros) que não apenas atribuem valores opostos ao masculino e ao feminino, como também tomam essa distinção hierárquica como um argumento, natural e inquestionável, para que os homens exerçam seu pretenso direito de posse e controle sobre as mulheres. Não muito distinto é o ponto de vista sustentado pela antropóloga argentina Rita Laura Segato, ao compreender que o caráter de territorialidade assumindo pelo corpo feminino na cultura patriarcal contemporânea:

nada mais é do que o hidden-script e a precondição para as guerras não convencionais, as novas formas de guerra: o poder atua nessa etapa diretamente sobre o corpo, e é por isso que, a partir dessa perspectiva, é possível dizer que os corpos e seu ambiente espacial imediato constituem tanto o campo de batalha dos poderes em disputa quanto a estrutura onde se penduram e exibem os sinais de sua anexação. (...) Mas o que a nova territorialidade introduz é uma guinada nessa afinidade, pois o corpo torna-se independente dessa contiguidade e desse pertencimento a um país conquistado, e passa a constituir, em si mesmo, terreno-território da própria ação bélica.6 6 No original: “no es otra cosa que el hidden-script y precondición de las guerras no convencionales, las nuevas formas de la guerra: el poder actúa en este estadio directamente sobre el cuerpo, y es por eso que, desde esta perspectiva, es posible decir que los cuerpos y su ambiente espacial inmediato constituyen tanto el campo de batalla de poderes en conflicto como el bastidor donde se cuelgan y exhiben las señas de su anexión. (...) Pero lo que la nueva territorialidad introduce es una vuelta de tuerca en esa afinidad, ya que el cuerpo se independiza de esa contigüidad y pertenencia a un país conquistado, y pasa a constituir, en sí mismo, terreno-territorio de la propia acción bélica”. (SEGATO, 2014SEGATO, Rita Laura. Las nuevas formas de la guerra y el cuerpo de las mujeres. Revista Sociedade e Estado, v. 29, n. 2, p. 341-371, 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922014000200003&lng=es&tlng=es . Acesso em: 12 maio 2022.
https://www.scielo.br/scielo.php?script=...
, p. 352, grifo da autora, tradução nossa).

Quando levamos em conta as já mencionadas violências e brutalidades “masculina” com que agem as cabelereiras dos salões frequentados por Mila, torna-se bastante evidente que, mais que um corpo negro, a personagem - ou, mais especificamente, o seu cabelo - configura um território a ser “domesticado”, a ser “civilizado” ou, valendo-nos dos termos de Segato, um território que deve exibir, sob a forma de fios alisados, os sinais da anexação colonial.

Se, por um lado, podemos constatar que o cabelo de Mila denota o estatuto de território em disputa de sua existência negra, por outro, nos parece lícito afirmar que seu corpo também se configura na narrativa como um elemento identitário em trânsito, um corpo em um contínuo movimento diaspórico que se desloca por entre os distintos salões e as diferentes mãos que “tratam” o seu cabelo:

Visitar salões tem sido um modo de visitar países e aprender a distinguir feições de maneiras, renovando preconceitos. O Senegal são umas mãos hidratadas, Angola um certo desmazelo, uma graça brutal, o Zaire um desastre, Portugal uma queimadura de secador, um arranhão de escova (ALMEIDA, 2022ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. Esse cabelo. São Paulo: Todavia, 2022., p. 80).

Mais do que provocar uma reflexão acerca da sua própria condição identitária, a partir da configuração “híbrida” de sua família, composta por pessoas brancas e negras, o “tratamento” do seu “cabelo problema” levou Mila a uma reflexão mais ampla acerca não apenas do contexto angolano como também de outros países africanos colonizados e, como não poderia deixar de ser, da ex-metrópole de sua terra natal. No que se refere a este último, cumpre observar que, de todos os “países-salões” mencionados pela narradora, apenas a ele é associada uma experiência que traz em si as marcas da violência física - a queimadura no cabelo provocada pelo secador e o arranhão no couro cabeludo provocado pela escova -, fato que reveste a relação da personagem com os salões portugueses de elementos simbólicos bastante significativos se pensarmos nas sequelas deixadas pela violência do processo de colonização. Em outras palavras, ousamos perguntar aqui se os ferimentos causados pelas cabeleireiras lusitanas em alguma medida não reavivam as feridas causadas pelos instrumentos empunhados pelo colonizador nos corpos de africanas e africanos colonizados e se, compreendido dessa forma, tal ato não materializa o processo, sublinhado por Segato, a partir do qual quem vence a guerra (nesse caso colonial) julga-se no direito de “pendurar” no corpo feminino os signos da sua vitória.

A experiência da narradora com seu cabelo e, por conseguinte, com os salões, é bastante complexa, revelando-se como um espaço de memória, na medida em que “A casa assombrada que é todo o cabeleireiro para a rapariga que sou é muitas vezes o que me sobra da África e da história da dignidade dos meus antepassados” (ALMEIDA, 2022ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. Esse cabelo. São Paulo: Todavia, 2022., p. 10), ao mesmo tempo em que assume-se como uma arena de negociação identitária, na qual o tensionamento entre a recusa e a aceitação do cabelo afro é equacionado a partir do contato com outras mulheres negras: “Lembro-me da Tina, da Guiné Conacri, uma rapariga que me trançava nas Mercês e também olhava de lado os portugueses, mas posso matizar este mapa com o anjo de outro dia, a Lena, angolana que me salvou uma tarde” (ALMEIDA, 2022ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. Esse cabelo. São Paulo: Todavia, 2022., p. 80).

A complexidade da reflexão acerca da sua identidade eleva-se a mais alta potência quando a narradora lança mão da histórica fotografia de Elizabeth Eckford,7 7 Na fotografia, feita por Will Counts, fotógrafo do jornal Arkansas Democrat, em 04 de setembro de 1957, a estudante negra de 15 anos se dirige para a entrada da Central High School, caminhando através de manifestantes brancos revoltados com o projeto de integração racial nas escolas. afirmando tratar-se de um autorretrato: “Uma das poucas fotografias em que surjo penteada foi tirada por um Will Counts em setembro de 1957. (...) difícil de explicar é a circunstância de eu ser todas as pessoas do retrato ao mesmo tempo. (...) Vejo que sou a fuga e a perseguição, desfigurada, desfigurando-me” (ALMEIDA, 2022ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. Esse cabelo. São Paulo: Todavia, 2022., p. 67-68). Assim, a foto é um autorretrato, pois ela vê-se em Eckford, mas também na hostilidade das brancas. Fica evidente o embate na sua relação com o cabelo pois o penteado arrumado coexiste com a agressão da tentativa de subjugação do afro, sendo-lhe impossível pô-los fim ou encontrar um meio termo. Contudo - e aqui destaca-se o caráter “impuro” do romance-ensaio de Djaimilia -, esse “problema” que é o cabelo de Mila agora ultrapassa as fronteiras da diegese e atinge a esfera do “real”, trazendo um elemento não ficcional - o caso da estudante negra estadunidense - como elemento de reflexão do discurso da narradora, utilizado como se fosse uma espécie de citação de um texto (visual) de outrem.

Nos capítulos finais de Pele negra, máscaras brancas, Fanon (2020FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Ubu, 2020.) discorre acerca da existência do sujeito negro no mundo branco. Para o martinicano, a princípio o/a negro/a falha em reconhecer-se a si próprio/a como sujeito ao colocar-se em comparação com o branco, alimentando o desejo de ocupar a posição do colonizador. No entanto, Fanon faz a defesa de que é primordial que haja a superação desse fenômeno para que o/a negro/a venha a dizer: “minha pele negra não é depositária de valores específicos” (FANON, 2020FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Ubu, 2020., n.p.). Em entrevista, Djaimilia comentou que “o cabelo é em Esse Cabelo uma metáfora para várias coisas. Mais decisivo é nesse livro o cabelo tomado literalmente: o cabelo com que se nasceu, que se ama, odeia, que execramos ou não, ao qual nos rendemos ou não, que nos humilha ou não, que vencemos ou não” (ALMEIDA, 2021ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. Entrevista com Djaimilia Pereira de Almeida. Língua-lugar: Literatura, História, Estudos Culturais, v. 1, n. 2, p. 174-183, 2021. Disponível em: http://oap.unige.ch/journals/lingua-lugar/article/view/427 . Acesso em: 27 mar. 2022.
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, p. 178), revelando a possibilidade da superação defendida pelo psiquiatra e filósofo. A partir desse “expurgo do senhor”, visto que o sujeito negro passa a rejeitar as crenças/limitações criadas pelo branco, a agora pessoa negra vê-se livre para construir a própria identidade, tornando-se agente do Eu, livre para experimentações.

Em Só nós: uma conversa americana, Claudia Rankine (2021RANKINE, Claudia. Só nós: uma conversa americana. São Paulo: Todavia , 2021.) reflete acerca da ausência de ação de pessoas brancas no que concerne a questões raciais, resultando que os/as negros/as se encontrem sozinhos no enfrentamento ao racismo estrutural, fato já apontado por Fanon décadas antes. Ao longo da obra aqui analisada, vê-se que a jornada da narradora-personagem é bastante solitária, aparentando contar apenas com algum suporte da mãe angolana no que diz respeito à aprendizagem de penteados afro. No capítulo em que Rankine versa sobre o cabelo de mulheres negras, mostrando as articulações da branquitude em relação à negritude, há diversos questionamentos relacionados aos motivos pelos quais mulheres negras alteram o cabelo quimicamente. Ainda que o foco do capítulo seja as negras que se tornam loiras, julgamos importante algumas de suas provocações, como quando, em referência explícita à Fanon, a autora coloca em perspectiva a agência das mulheres negras, propondo que a “desafricanização” do cabelo afro poderia ser lida como algo sobre a naturalidade do ser, e não simplesmente mascarar o auto ódio e a baixa autoestima (RANKINE, 2021RANKINE, Claudia. Só nós: uma conversa americana. São Paulo: Todavia , 2021., p. 285). Para ela,

Talvez a loirice das estudantes seja a ousadia delas diante da propaganda racista preocupada com ideais de beleza. Então as negras loiras estão dentro de uma daquelas equações em que, não importa o que você faz em quaisquer lados do sinal de igual, toda soma resulta em um - este um, o que eu quero (RANKINE, 2021RANKINE, Claudia. Só nós: uma conversa americana. São Paulo: Todavia , 2021., p. 281).

Ainda nos vale o estudo de Ingrid Banks (2000BANKS, Ingrid. Hair matters: Beauty, Power, and Black Women’s Consciousness. Londres: New York University Press, 2000.) sobre a relação direta entre cabelo e atratividade, uma vez que a pesquisadora afirma que o cabelo afro expressa aspectos políticos, culturais e sociais essenciais para a construção de uma identidade negra coletiva. Uma das entrevistadas, Semple, também atribui valores positivos à manipulação estética do cabelo afro:

Penso que o que empodera alguém é a capacidade de fazer escolhas por si próprio/a e de ser autodeterminado/a. (...) Você pode vir de toda uma família de pessoas [que são] totalmente contra alisar o seu cabelo, manipular o seu cabelo em qualquer tipo de forma. Pode ser uma decisão empoderadora dizer: "Sabe de uma coisa? Eu vou fazer uma permanente". [...] é sobre as escolhas e a sua capacidade de fazer essas escolhas é o que traz empoderamento (BANKS, 2000BANKS, Ingrid. Hair matters: Beauty, Power, and Black Women’s Consciousness. Londres: New York University Press, 2000., p. 73, tradução nossa).8 8 No original: I think the thing that empowers one is the ability to make choices for yourself and be self-determined. So if that means that you’re self-determined and you want your hair to be straight, then that can be an empowering thing for you. You can come from a whole family of people [that are] just totally against straightening your hair, processing your hair in any type of way. It can be an empowering decision to say, “You know what, I’m going to go get a perm.” [...] it’s about the choices and your ability to make those choices that brings empowerment.

Assim, vemos que os usos e penteados do cabelo de mulheres negras possuem diversas significações, em uma demonstração de que a individualidade deve ser levada em conta quando se pensa acerca dessa temática.

Às vias de conclusão em Esse cabelo, a narradora compartilha do desejo de permanecer fiel à sua identidade, ainda que essa possa ser diaspórica, no sentido de que transita por muitos espaços:

Penso que o que procurei sempre, além de tentar aprender a responder ao bullying das cabeleireiras, foi viver uma história de fidelidade. (...) Eu procurava a fidelidade, vendo em mim um ponto fixo pelo qual medir a transitoriedade das donas dos salões. Nunca parti: fiquei por cá (ALMEIDA, 2022ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. Esse cabelo. São Paulo: Todavia, 2022., p. 97-98).

Percebemos que Mila busca uma ideia fixa de identidade, porém o seu discurso trai tal concepção, transparecendo, através do emprego de termos como “transitoriedade”, que identidade é antes um processo de construção contínua. A voz narrativa nos diz: “A bem dos meus afazeres capilares provisórios, e por um revisionismo alegre, rendo-me ao pensamento de que encerrei um capítulo, possivelmente o da infância do meu cabelo” (ALMEIDA, 2022ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. Esse cabelo. São Paulo: Todavia, 2022., p. 98), evidenciando que apenas uma parte da sua identidade foi construída, a infância, que aguarda novas fases com alegria e disposição para revisar a si própria, em aquiescência com Fanon, quando diz: “no mundo para onde estou indo, eu me crio incessantemente” (FANON, 2022FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Ubu, 2020., n.p.).

O cabelo afro como agência: redimensionando o próprio corpo-território

Mesmo recente, a produção de Djaimilia Pereira de Almeida já coloca a escritora em um lugar de destaque no cenário da literatura contemporânea de autoria negra produzida em língua portuguesa. Ao lado de tantas outras mulheres, brasileiras e africanas, que consolidaram seus nomes no mercado editorial, a autora de Esse cabelo tem revelado ser uma voz contundente na luta contra a naturalização de uma pretensa supremacia branca. Nesse sentido, já em seu romance de estreia, discutido neste trabalho, o complexo processo de construção da identidade de negros e negras que viveram e/ou herdaram as mazelas do processo de colonização é objeto de um olhar profundo e original.

Nessa obra, conforme buscamos demonstrar, o “cabelo problema” da personagem-narradora Mila torna-se o espaço, físico e simbólico, onde é travada uma violenta disputa identitária. Contudo, tal embate não se limita ao nível diegético, nos diversos episódios vivenciados pela personagem nos salões, operando também no nível discursivo, uma vez que, a todo momento, o desenvolvimento da narrativa é deixado de lado para que se desenvolva uma reflexão sobre as questões de identidade e racismo.

Tomando por base os pressupostos de pensadoras como Lucía Guerra (1995GUERRA, Lucía. La mujer fragmentada: historias de un signo. 3. ed. Santiago de Chile: Editorial Cuarto Propio, 2006.) e Rita Segato (2014SEGATO, Rita Laura. Las nuevas formas de la guerra y el cuerpo de las mujeres. Revista Sociedade e Estado, v. 29, n. 2, p. 341-371, 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922014000200003&lng=es&tlng=es . Acesso em: 12 maio 2022.
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), observamos que, em seu romance-ensaio, a escritora angolana torna visível, no corpo da jovem protagonista ou, mais especificamente, em seu cabelo afro, os procedimentos reiteradamente reproduzidos nas sociedades patriarcais que tomam o feminino como um território a ser dominado e ocupado pelo masculino. No caso específico da narrativa aqui discutida, soma-se a essa violência de gênero os aspectos decorrentes do processo de ocupação colonial, cujas heranças, em larga medida, ainda assolam os povos africanos.

Filha de uma mãe negra e de um pai branco e deslocando-se, ainda criança, de Angola para Portugal, Mila constrói sua identidade sob o signo da diáspora, em um movimento de constante deslize que a posiciona, sempre de forma provisória, em algum ponto no intervalo entre os polos do colonizador europeu e do colonizado africano. O papel desempenhado pelo cabelo da personagem é emblemático nesse contexto, uma vez que, como vimos, ele coloca em jogo a ambiguidade, inerente ao sujeito colonizado, de ser o que ele é - no caso de Mila, um “cabelo problema” -, deixando latente a potência de ser o que o colonizador deseja - um cabelo alisado. Contudo, na sua busca por um cabelo que corresponda à ideia falaciosa de uma identidade dada, a narradora da obra de Djaimilia acaba, no trânsito que a leva aos mais distintos salões de cabeleireiras, por descobrir-se como a única e legítima proprietária desse território identitário que é seu corpo.

Referências

  • ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. Entrevista com Djaimilia Pereira de Almeida. Língua-lugar: Literatura, História, Estudos Culturais, v. 1, n. 2, p. 174-183, 2021. Disponível em: http://oap.unige.ch/journals/lingua-lugar/article/view/427 Acesso em: 27 mar. 2022.
    » http://oap.unige.ch/journals/lingua-lugar/article/view/427
  • ALMEIDA, Djaimilia Pereira de. Esse cabelo São Paulo: Todavia, 2022.
  • BANKS, Ingrid. Hair matters: Beauty, Power, and Black Women’s Consciousness. Londres: New York University Press, 2000.
  • BHABHA, Homi K. O local da cultura Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2013.
  • BRITO, Regina Helena Pires de; TREVISAN, Ana Lucia. Representações do sujeito subalterno em contextos pós-coloniais: uma reflexão sobre Esse cabelo e Luanda, Lisboa, Paraíso, de Djaimilia Pereira de Almeida. Verbum, v. 10 n. 2, p.142-154, 2021.
  • FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Ubu, 2020.
  • GUERRA, Lucía. La mujer fragmentada: historias de un signo. 3. ed. Santiago de Chile: Editorial Cuarto Propio, 2006.
  • GONÇALVES, Bianca Mafra. Para uma filosofia do cabelo: uma análise de Esse Cabelo, de Djaimilia Pereira de Almeida. 2021. Dissertação (Mestrado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021.
  • HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Organização Liv Sovik. Tradução: Adelaine La Guardia Resende, Ana Carolina Escosteguy, Cláudia Álvares, Francisco Rüdiger e Sayonara Amaral. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.
  • hooks, bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019a.
  • hooks, bell. Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva, 2019b. [Recurso eletrônico].
  • KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: relatos de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. [Recurso eletrônico].
  • LIMA, Norma Sueli Rosa. Esse cabelo em Luanda, Lisboa, Paraíso: Djaimilia Pereira de Almeida e a experiência do desenraizamento na tentativa de integração. Convergência Lusíada, v. 31, n. 43, p. 12-24, 2020.
  • ORTNER, Sherry B. Está a mulher para o homem assim como a natureza para a cultura? In: ROSALDO, Michelle Zimbalist; LAMPHERE, Louise. A mulher, a cultura e a sociedade Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979 [1974]. p. 95-120.
  • RANKINE, Claudia. Só nós: uma conversa americana. São Paulo: Todavia , 2021.
  • SEGATO, Rita Laura. Las nuevas formas de la guerra y el cuerpo de las mujeres. Revista Sociedade e Estado, v. 29, n. 2, p. 341-371, 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922014000200003&lng=es&tlng=es Acesso em: 12 maio 2022.
    » https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922014000200003&lng=es&tlng=es
  • TODAVIA. Todavia ao vivo - Lançamento de ESSE CABELO, de Djaimilia Pereira de Almeida. 2022. 1 vídeo (63 min 16s). Publicado pelo canal Todavia. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1nIFWz7OyfI Acesso em: 01 abr. 2022.
    » https://www.youtube.com/watch?v=1nIFWz7OyfI
  • 1
    A simbologia da voz e da fala, como instrumento de poder, por parte dos sujeitos hegemônicos, e de afronta e resistência, por parte dos indivíduos subalternizados, é discutida por bell hooks (2019ahooks, bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019a., p. 31-39) e por Grada Kilomba (2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: relatos de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. [Recurso eletrônico]., p. 33-46).
  • 2
    Nos primeiros cinco anos de carreira, Djaimilia acumulou diversas distinções, dentre as quais o Prêmio Oceanos 2019, pelo romance Luanda, Lisboa, Paraíso, obtendo o segundo lugar na mesma premiação no ano seguinte, com a narrativa A Visão das Plantas.
  • 3
    O levantamento acerca das dissertações e dos artigos que discutem a obra de Djaimilia foi realizado no Catálogo de Teses e Dissertações da CAPES (https://catalogodeteses.capes.gov.br/catalogo-teses/#!/) e no Portal de periódicos da CAPES (https://www-periodicos-capes-gov-br.ez127.periodicos.capes.gov.br/), respectivamente, sendo que, no caso deste, foram levados em consideração apenas os periódicos que contam com revisão por pares. Em relação às dissertações, cumpre mencionar a elaboração de um terceiro trabalho que trata do seu romance Luanda, Lisboa, Paraíso, publicado em 2018.
  • 4
    No original: “What is deemed desirable is measured against white standards of beauty, which include long and straight hair”.
  • 5
    No original: “estructura de poder que parcialmente se asemeja a aquella establecida entre el Sujeto colonizador y el Otro colonizado”.
  • 6
    No original: “no es otra cosa que el hidden-script y precondición de las guerras no convencionales, las nuevas formas de la guerra: el poder actúa en este estadio directamente sobre el cuerpo, y es por eso que, desde esta perspectiva, es posible decir que los cuerpos y su ambiente espacial inmediato constituyen tanto el campo de batalla de poderes en conflicto como el bastidor donde se cuelgan y exhiben las señas de su anexión. (...) Pero lo que la nueva territorialidad introduce es una vuelta de tuerca en esa afinidad, ya que el cuerpo se independiza de esa contigüidad y pertenencia a un país conquistado, y pasa a constituir, en sí mismo, terreno-territorio de la propia acción bélica”.
  • 7
    Na fotografia, feita por Will Counts, fotógrafo do jornal Arkansas Democrat, em 04 de setembro de 1957, a estudante negra de 15 anos se dirige para a entrada da Central High School, caminhando através de manifestantes brancos revoltados com o projeto de integração racial nas escolas.
  • 8
    No original: I think the thing that empowers one is the ability to make choices for yourself and be self-determined. So if that means that you’re self-determined and you want your hair to be straight, then that can be an empowering thing for you. You can come from a whole family of people [that are] just totally against straightening your hair, processing your hair in any type of way. It can be an empowering decision to say, “You know what, I’m going to go get a perm.” [...] it’s about the choices and your ability to make those choices that brings empowerment.
  • Parecer Final dos Editores:

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    07 Abr 2023
  • Aceito
    15 Ago 2023
Programa de Pos-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras -UFRJ Av. Horácio Macedo, 2151, Cidade Universitária, CEP 21941-97 - Rio de Janeiro RJ Brasil , - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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