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Curiosidade: canal de transgressão em O Nome da Rosa

Curiosity: Transgression’s channel in The Name of the Rose

Resumo

Este artigo pretende investigar o vínculo entre interdito e transgressão no romance O Nome da Rosa, de Umberto Eco, buscando demonstrar que essa relação se forma através da dependência. Busca, ainda, analisar a curiosidade como uma das formas pelas quais a transgressão se manifesta frente aos interditos impostos na ficção de Eco, não como uma forma de negá-los, mas de superá-los, potencializando-os. Entende-se que a curiosidade como transgressão é resultado de um primeiro interdito, aquele do riso, sendo analisada tanto quando curiositas quando studiositas. Ainda, compreende-se tais manifestações como excesso, um excesso que leva à morte, ressaltando o seu perigo para o mundo homogêneo. O aporte teórico que embasa este artigo é constituído principalmente pela obra de Georges Bataille, com o apoio de Alberto Manguel e Georges Minois.

Palavras-chave:
romance; interdito; transgressão; excesso; curiosidade

Abstract

This article aims to investigate the relationship between interdiction and transgression in Umberto Eco’s novel The Name of the Rose, aiming to demonstrate that this link is formed through dependence. The paper also seeks to analyze curiosity as one of the channels through which transgression manifests itself in the face of the bans imposed on Eco's fiction, not as a way of denying them, but of overcoming them by enhancing them. It is understood that curiosity as a transgression is the result of a first interdiction, that of laughter, and it is evaluated as both curiositas and studiositas. This expression is considered, also, as excess, an excess that leads to death and destruction, highlighting the danger to the homogeneous world. The theoretical basis of this article is mainly composed of the works of Georges Bataille, with the support of Alberto Manguel and Georges Minois.

Keywords:
Novel; interdiction; transgression; excess; curiosity

Resumen

Este artículo pretende investigar el vínculo entre interdicción y transgresión en la novela El Nombre de la Rosa, de Umberto Eco, buscando demostrar que tal relación se da por medio de la dependencia. Busca aún analizar la curiosidad como una forma a través de la cual la transgresión se manifiesta frente a las interdicciones impuestas en la ficción de Eco, no como una manera de negarlas, sino de superarlas potencializándolas. Se entiende que la curiosidad como transgresión resulta de una primera interdicción, aquella de la risa, siendo analizada tanto como curiositas cuanto studiositas. Se comprende, aún, la curiosidad como exceso, un exceso que lleva a la muerte, resaltando su peligro para el mundo homogéneo. El aporte teórico que basa este artículo es constituido principalmente por la obra de Georges Bataille, con el apoyo de Alberto Manguel y Georges Minois.

Palabras-clave:
novela; interdicción; transgresión; exceso; curiosidad

O Nome da Rosa, romance de Umberto Eco publicado em 1980, vem há mais de 30 anos se mostrando relevante para os estudos literários, capaz de ser fonte para uma multiplicidade de análises cujos enfoques abrangem desde seu cotejo com o texto bíblico até a sua aplicabilidade para o ensino do período medieval. Não obstante a inegável importância dos estudos já realizados, uma obra complexa como O Nome da Rosaaprovamos a propicia ao estudioso literário outros temas igualmente importantes, como a relação entre interdito e transgressão, tendo como fio condutor o tema da curiosidade, questão a ser abordada neste artigo.

Sucesso tanto de crítica quanto de público, o romance, que ganhou em 1986 uma adaptação cinematográfica, aumentando ainda mais sua popularidade, tinha como cenário um mosteiro beneditino no século XIV e relatava, a partir do ponto de vista de um dos personagens, os acontecimentos ocorridos na abadia durante um encontro de diferentes facções católicas. Tal enredo, passível a ser considerado monótono, tornava-se mais apelativo ao público, pode-se conceber, através da inserção de uma série de crimes motivados pela busca de um livro raro de Aristóteles.

Redigido em forma de crônica medieval, a obra relata, além das atribulações de um monge franciscano, Frei Guilherme de Baskerville, ao solucionar crimes ocorridos pouco antes de sua chegada e durante sua estadia no lugar, o embate entre as diferentes facções da igreja. Pode-se argumentar que Umberto Eco estrutura seu romance em dois polos narrativos: um que remete aos fatos históricos e passiveis a verificação, como a discussão da pobreza de Cristo, a disputa de poder entre o papa João XXII e o imperador Ludovico da Baviera e a vida das figuras históricas que pululam a trama, e outro calcado na ficção, na qual se insere a narrativa de Adso de Melk, noviço beneditino, companheiro de viagem e assistente do monge franciscano e ex-inquisidor Guilherme de Baskerville e a busca do último pela verdade dos crimes cometidos e pela posse do segundo tomo da Poética, obra mítica que teria sido escrito por Aristóteles.

O início do romance se dá com a chegada de frei Guilherme ao mosteiro para participar de conclave sobre a pobreza de Cristo, contudo, já no primeiro dia ele é incumbido pelo abade Abbone a solucionar o mistério da morte do monge e mestre miniaturista Adelmo de Otranto. Inicialmente, suspeita-se de assassinato, mas, após suas investigações, frei Guilherme conclui que, na verdade, Adelmo havia cometido suicídio. A solução da morte não traz satisfação alguma ao abade pois, a cada dia, um novo monge é encontrado morto.

Cada nova vítima possuía uma relação com a biblioteca e, a partir desta conexão, o franciscano conclui que a chave para desvendar a série de crimes se encontrava naquele espaço. A Guilherme é dado livre acesso aos monges e aos espaços comunais do lugar, porém ele é proibido de adentrar na biblioteca. Em conversa com outra personagem, o monge Ubertido, lhe é recomendado buscar os responsáveis pelos delitos entre “quem sabe demais, não em quem não sabe nada” (ECO, 1983ECO, U. O Nome da Rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. , p. 84), numa alusão àqueles eruditos que frequentavam o scriptorium, local no qual a entrada para a biblioteca se encontrava.

Percebe-se, dessa forma, que é a biblioteca, e o scriptorium, o espaço central no qual a ação da narrativa de Eco se desenvolve e o interdito do local, e sua resultante transgressão, a força motora que impele a trama do romance. A proibição ao local e o que lá estava guardado eram a chave do mistério da sequência de mortes. No decorrer da trama, frei Guilherme descobre que as mortes eram decorrentes do esforço incansável de certos monges em ter em mãos o segundo tomo da Poética, de Aristóteles.

A fascinação daqueles monges que “vivem entre livros, com livros, pelos livros” (ECO, 1983ECO, U. O Nome da Rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. , p. 137) sobressaía qualquer interdito imposto pelo abade e, dessa forma, aqueles curiosos burlaram a ordem dada, tendo no interdito, e na raiz do seu desejo, o pretexto para a transgressão. Como observa a personagem Adso: “o que para os laicos é a tentação do adultério e para os eclesiásticos regulares é a avidez de riquezas, para os monges é a sedução do conhecimento” (ECO, 1983ECO, U. O Nome da Rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. , p. 215).

Os termos transgressão e interdito podem ser explicados a partir da obra de George Bataille, escritor francês que transitou entre ensaios, romances e poesias. Sua obra abrange literatura, filosofia, sociologia e economia entre outros temas relevantes e controversos em seu período de atividade. Em O erotismo (2014), o autor lida com os temas erotismo e violência, ligando-os a tópicos como morte, religião, tabu, sacrifício e principalmente à transgressão e ao interdito, opondo a subjetividade a abordagem científica, de alguém que olha de fora do problema procurando restringir sua experiência profunda, dizendo que o ideal é que “essa experiência atue apesar dela” (BATAILLE, 2014BATAILLE, G. O Erotismo. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. (Coleção FILÔ, Bataille)., p. 58).

Bataille aborda violência e erotismo a partir das proibições em torno desses assuntos, constatando que o advento do trabalho foi o responsável pela supressão do instinto animalesco, pois esse fez do homem um ser racional. O ser humano, de acordo com o autor, não deixa de ser violento, apenas cerceia sua violência em favor da coletividade, opondo, e favorecendo, forças produtivas aos prazeres improdutivos, ou seja, o excesso. O mundo racional e organizado do trabalho se vincula a um projeto, a um futuro e, assim, é útil ao homem.

Na contramão, existe o instante e o prazer imediato, um descomedimento que representa um perigo à ordem social e, dessa forma, o homem se separou da desordem do mundo violento através de interditos. Esses não são apenas construídos pela coletividade, mas são a sua base. Bataille (2014BATAILLE, G. O Erotismo. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. (Coleção FILÔ, Bataille).) explica que “a coletividade humana, em parte consagrada ao trabalho, se define nos interditos, sem os quais ela não teria se tornado esse mundo do trabalho que ela é essencialmente” (BATAILLE, 2014BATAILLE, G. O Erotismo. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. (Coleção FILÔ, Bataille)., p. 64, grifos do autor).

O interdito, então, se associa a um mundo de regularidade, no qual o prazer é postergado em prol de uma coletividade e está preso assim ao profano, um mundo no qual trabalho, produção e consumo ditam as regras que devem ser seguidas para garantir a comodidade e a segurança da vida social. Dessa forma, o erotismo e os outros movimentos de excesso são regulados por interditos que são, em geral, passivos às mudanças sociais, assim como toda construção humana.

A narrativa de Eco, ao se passar em uma abadia, na qual nem a reprodução sexual nem a morte violenta eram parte da vida monástica, ressalta a regularidade do homogêneo. Essa existência orientada pelo “duplo mandamento do trabalho e da prece” (ECO, 1983ECO, U. O Nome da Rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. , p. 52) direcionada para um bem comum, é evidenciada em O Nome da Rosa pela estrutura dos capítulos, divididos “em sete dias e cada um dos dias em períodos correspondentes às horas litúrgicas” (ECO, 1983ECO, U. O Nome da Rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. , p. 17). Com base nessa construção, percebe-se que a rotina no mosteiro era regida por horários espartanos, dedicados ao trabalho manual ou a contemplação cristã, de forma a não permitir aos monges períodos de excesso.

A rigidez instituída no mosteiro coaduna com a asserção de Bataille sobre o trabalho referida acima. Ainda, de acordo com Vauchez (1995, p. 120 apudPIRATELI; PIRATELI, 2015PIRATELI, M.R; PIRATELI, M.A. As normas da vida monacal na Regra de São Bento: Um estudo sobre o códice beneditino. Actio Revista de Estudos Jurídicos, v.1, n. 25, p. 80-99, 2015, p. 85), a Regra de São Bento, citada ocasionalmente pelas personagens do romance, chama a atenção para os períodos livres, ensinando que “A espiritualidade monástica vê a atividade laboriosa sobretudo como um remédio para a ociosidade, uma das perigosas armadilhas erguidas pelo Maligno àqueles aspiram à perfeição” (VAUCHEZ, 1995, p. 120 apudPIRATELI; PIRATELI, 2015PIRATELI, M.R; PIRATELI, M.A. As normas da vida monacal na Regra de São Bento: Um estudo sobre o códice beneditino. Actio Revista de Estudos Jurídicos, v.1, n. 25, p. 80-99, 2015, p. 85). A Regra, aqui, evidencia o perigo daquilo que não possui finalidade para um mundo voltado para a produção, rechaçando o excedente e, assim, o levando para o domínio da transgressão, ou do sagrado.

Os momentos de transgressão, apesar de se configurarem como momentos de exceção, são essenciais para a organização social, organizando o excedente da produtividade gerada pelo trabalho da esfera homogênea. Essas forças que contestam o funcionamento da vida voltada para o trabalho geram os fenômenos excessivos, provenientes de interditos que cerceiam a violência e que, assim, eclodem num movimento de transgressão.

A conexão que existe na polarização dos termos interdito e transgressão deve ser associada ainda a outra oposição: sagrado e profano. Sobre essa relação, Bataille explica que foi o

Trabalho (que) determinou a oposição entre mundo sagrado e mundo profano. Ele é o princípio mesmo dos interditos que opuseram a recusa do homem à natureza. Por outro lado, o limite do mundo do trabalho, que os interditos apoiavam e mantinham na luta contra a natureza, determinou o mundo sagrado como o seu contrário (BATAILLE, 2014BATAILLE, G. O Erotismo. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. (Coleção FILÔ, Bataille)., p. 138).

Já Roger Caillois (1996CAILLOIS, R. El Hombre y lo Sagrado. Tradución de Juan José Domenchina. México: Fondo de Cultura Económica, 1996.) argumenta que os mundos do sagrado e o do profano “somente se definem rigorosamente um pelo outro. Ambos se excluem e se assumem reciprocamente”1 1 Todas as traduções foram feitas pelos autores deste artigo. No original: “Estos dos mundos, el de lo sagrado y el de lo profano, sólo se definen rigurosamente el uno por el otro. Entrambos se excluyen y se suponen”. (CAILLOIS, 1996CAILLOIS, R. El Hombre y lo Sagrado. Tradución de Juan José Domenchina. México: Fondo de Cultura Económica, 1996., p. 12). Sobre o primeiro, Caillois diz ser um mundo de energias em oposição a um de substâncias, um que concerne a forças enquanto o outro a coisas. Essa definição ecoa a visão de Bataille sobre a edificação do mundo profano no projeto e na sua regularidade, enquanto o sagrado encontra significado na potência do excesso.

Contudo, o estabelecimento de interditos é, de forma alguma, certeza de obediência ou de passividade por parte do sujeito, ao contrário. A oposição entre o mundo da ordem e o da desordem, que fundam a dicotomia interdito transgressão, é também responsável pelo preceito de que todo interdito pode ser transposto.

O mundo do trabalho e da razão é a base da vida humana, mas o trabalho não nos absorve inteiramente e, se a razão comanda, nossa obediência nunca é ilimitada. Por sua atividade, o homem edificou o mundo racional, mas sempre subsiste nele um fundo de violência e, por mais razoáveis que nos tornemos, uma violência pode nos dominar de novo que não é mais a violência natural, que é a violência de um ser de razão, que tentou obedecer, mas sucumbe ao movimento que nele mesmo não pode reduzir a razão (BATAILLE, 2014BATAILLE, G. O Erotismo. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. (Coleção FILÔ, Bataille)., p. 63).

A transgressão é, dessa forma, parte essencial da organização social, ou melhor, de sua desorganização, procurando desorganizar de forma organizada o excedente, pois a própria produtividade gerada pelo mundo homogêneo acaba gerando forças que contestam o funcionamento da vida voltada para o trabalho. Fenômenos excessivos são oriundos de interditos que cerceiam a violência e que, assim, eclodem num movimento de transgressão. Ainda, Bataille aponta a o caráter ilógico dos interditos pois, apesar de proibirem, eles podem ser infringidos e sua transgressão não é somente possível como pode ainda ser prescrita. O autor vai além e afirma que as sociedades são formadas por essas transgressões organizadas juntamente com o interdito.

Assim, fica claro que, apesar dos interditos buscarem refrear o descomedimento, o excesso encontra lugar na sociedade através da transgressão, não como a negação do seu interdito, mas como sua superação, de forma que ao ultrapassá-lo ele é potencializado. Ainda, ao ultrapassar os interditos que regulam e limitam a sociedade organizada, a transgressão expõe, estampando “aquilo que o interdito dissimula” (SALIB, 2001SALIB, M. S. A Disciplina da Transgressão. 2001. 92 f. Dissertação (Mestrado em Letras- Teoria Literária) - Curso de Pós-Graduação em Literatura, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2001., p. 21). Além dos já mencionados erotismo e morte, Bataille (2016BATAILLE, G. A Experiência Interior: seguida de Método de Meditação e Postscriptum 1953: Suma ateológica, vol.1. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2016. (Coleção FILÔ, Bataille).) elenca diferentes fenômenos de excesso, como êxtase, sacrifício, poesia e outros. Mas por quais vias o excesso é manifestado em O Nome da Rosa? Uma delas, o riso, se encontra na lista de Bataille. A questão do riso como manifestação de excesso não é o foco deste artigo, contudo, sua supressão é o estopim que desencadeia a trama detetivesca do romance, e cujo fio condutor é a curiosidade e, portando deve ser brevemente abordada.

Durante toda a narrativa, a personagem Jorge de Burgos, ex-bibliotecário da Abadia, se opôs abertamente ao ato de rir e ao riso em si, aludindo ao seu poder como forma de contestação do medo, o que seria um perigo para a hegemonia da Igreja Católica. Por causa desse seu receio, a personagem, por vários anos, ocultou, na parte mais secreta da biblioteca, o legendário segundo livro da Poética, de Aristóteles, tomo no qual o filósofo grego teria versado sobre a comédia. Seu objetivo era, além de resguardar obra tão rara, retirá-la do mundo, apagando, assim, seu perigo, e apaziguando o desejo dos monges de lê-la. Para Jorge, seria impossível negar o valor da obra, sendo ela de Aristóteles, considerado “sem dúvida [...] o mais sábio de todos os homens” (ECO, 1983ECO, U. O Nome da Rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. , p. 93) e, assim, a solução encontrada por ele foi negar a existência de tal livro. No confronto final entre Jorge de Burgos e Guilherme de Baskerville, quando o último questiona o porquê de ser aquele livro mais danoso que outros, o ex-bibliotecário responde que:

O riso é a fraqueza, a corrupção, a insipidez da nossa carne. É o folguedo para o camponês, a licença para o embriagado. Mesmo a igreja em sua sabedoria concedeu o momento da festa, do carnaval, da feira, essa ejaculação diurna que descarrega os humores e retém de outros desejos e de outras ambições [...] mas desse modo o riso permanece vil, defesa para os simples, mistério dessacralizado para a plebe [...] Mas aqui ... a função do riso é invertida, elevada à arte, abrem-se-lhe as portas do mundo dos doutos. Faz-se dele objeto de filosofia e de pérfida teologia... O riso libera o aldeão do medo do diabo, porque na festa dos tolos também o diabo aparece como tolo, portanto controlável. Mas este livro poderia ensinar que libertar-se do diabo é sabedoria. Quando ri, enquanto o vinho borbulha em sua garganta, o aldeão sente-se patrão, porque inverteu as relações de senhoria: mas este livro poderia ensinar aos doutos os artifícios argutos, e desde então ilustres, com que legitimar a inversão. Então seria transformado em operação do intelecto aquilo que no gesto irrefletido do aldeão é ainda afortunadamente operação do ventre [...] E deste livro poderia partir a fagulha luciferina que atearia no mundo inteiro um novo incêndio: e o riso seria designado como arte nova, desconhecida até de Prometeu, para anular o medo (ECO, 1983ECO, U. O Nome da Rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. , p. 532-533).

Certifica-se então que a proibição de Jorge era no medo da personagem do riso se tornar soberano os simples, abandonando o temor a Deus e a Igreja.

Porém, ao contrário do esperado pelo ex-bibliotecário, ao invés de neutralizar a vontade daqueles que trabalhavam no sciptorium, o interdito apenas o potencializou, adicionando mistério e desejo ao livro proibido de Aristóteles, que, por ser elusivo, já era carregado de mistério e desejo por si só. O excesso de Jorge, ou melhor, seu repúdio à manifestação do riso e a qualquer coisa que o legitimasse, assim como o interdito cria a transgressão, foi o causador da outra manifestação de excesso da qual sofriam os monges da biblioteca do mosteiro.

No início do romance, a personagem Adso faz uma breve descrição de seu mentor e, comentando sobre a sua postura, diz que, com o tempo, ele percebeu “que o que parecia insegurança era ao contrário curiosidade, mas de início eu pouco sabia dessa virtude, que acreditava antes uma paixão da alma concupiscente” (ECO, 1983ECO, U. O Nome da Rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. , p. 26). Chama-se a atenção, nessa passagem, para o termo virtude.

Desde tempos antigos, a curiosidade, ou o desejo de saber, foi tópico de discussões. Aristóteles (1973ARISTÓTELES,-. Metafísica (Livro I e II). Tradução de Vincenzo Cocco. São Paulo: Abril Cultural , 1973. (Os Pensadores, IV).) inicia sua Metafísica afirmando que “Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer” (ARISTÓTELES, 1973ARISTÓTELES,-. Metafísica (Livro I e II). Tradução de Vincenzo Cocco. São Paulo: Abril Cultural , 1973. (Os Pensadores, IV)., p. 211), atribuindo alegria à inteligência, exultando a vida da mente como agradável e a melhor, prevenindo ainda que caso o prazer espiritual não venha da experiência mental de conhecer, o sujeito buscará tipos mais vulgares de prazer. Contudo, a essência virtuosa dessa vontade de saber nunca foi universal.

Alberto Manguel (2016MANGUEL, A. Uma História Natural da Curiosidade. Tradução de Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.) explica que a palavra curiosidade possuiria um sentido duplo: “Positivo, por que a pessoa curiosa trata as coisas com diligência; e negativo, porque a pessoa trabalha para esquadrinhar coisas que são as mais ocultas e reservadas, e que não tem importância” (MANGUEL, 2016MANGUEL, A. Uma História Natural da Curiosidade. Tradução de Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., p. 27). O entendimento do autor é baseado em um dicionário etimológico espanhol de 1611, que foi analisado por Roger Chartier em El nascimiento del lector moderno. Lectura, curiosidade, ociosidade, raridade de 1966. No entanto, é possível afirmar que a curiosidade no romance, e na Idade Média, era vista majoritariamente como vício.

Silvia Magnavacca (2005MAGNAVACCA, S. Lexico Técnico de Filosofía Medieval. Buenos Aires: Miño-y-Dávila, 2005. (Coleção Ideas en debate, Serie Historia Antigua-Moderna).) ensina que, no medievo, essa visão nobre do desejo de conhecer, ou a curiosidade, passou a ser entendida “como a paixão negativa que buscava deleitar-se em um conhecimento vão das coisas. Por isso era considerada nociva, enquanto dispersa e contrária a busca da verdade”2 2 No original: “curiosidad como la pasión negativa que intenta deleitarse en un conocimiento vano de las cosas. Por eso, se le considera nociva, en cuanto dispersa y contraria a la búsqueda de la verdade”. (MAGNAVACCA, 2005MAGNAVACCA, S. Lexico Técnico de Filosofía Medieval. Buenos Aires: Miño-y-Dávila, 2005. (Coleção Ideas en debate, Serie Historia Antigua-Moderna)., p. 190), entendimento que concorda com o ainda mais severo de Isidoro de Sevilha, para quem a “Curiosidade é uma perigosa presunção. Curiosidade é uma ciência danosa. Leva a heresia. Envolve a mente em fábulas sacrílegas”3 3 No original: “Curiosity is a dangerous presumption. Curiosity is a harmful science. It leads to heresy. It embroils the mind in sacrilegious fables”. (MARTIN, 2011, p. 35 apudKOLOS, 2014KOLOS, A. Imagining Otherness: The Pleasure of Curiosity in the Middle Ages. Mirabilia, v. 18, p. 137-150, 2014., p. 149).

Santo Agostinho (1973AGOSTINHO, S. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores ,VI).) preveniu sobre o perigo da curiosidade, afirmando ser ela capaz de afastar o homem de Deus pois “parece ambicionar o estudo da ciência, quando só Vós é que conheceis plenamente tudo!” (AGOSTINHO, 1973AGOSTINHO, S. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores ,VI)., p. 50), ao mesmo tempo em que ele reconhece que o mundo está coberto de insaciáveis curiosidades que podem contaminar a autêntica busca pela verdade. Oportuno observar que o entendimento de Agostinho aqui se assemelha tanto ao de Isidoro de Sevilla quanto ao de Jorge em O Nome da Rosa. Enquanto frei Guilherme buscava a verdade na ciência e na natureza, conectando-as a Deus, as personagens Jorge e Santo Agostinho se referem a uma verdade que somente pode ser encontrada na fé divina. Mais ainda, tanto Santo Agostinho quanto Jorge parecem ter experimentado, quando jovens, o fascínio da transgressão: no caso de Agostinho, remete-se ao célebre caso do roubo das peras e no de Jorge ao roubo do livro perdido de Aristóteles.

Tomás de Aquino, responsável por reinserir as ideias de Aristóteles em uma perspectiva cristã, distinguiu o desejo de conhecimento entre curiositas e studiositas. A última, considerada uma virtude, exalta o exercício de restringir o desejo de saber de forma a não o tornar imoderado, valorizando o comedimento e a busca ordenada pelo saber da verdade divina, sendo, assim, ligada a virtude da temperança, enquanto a primeira, além de representar o desejo descomedido por conhecimentos alheios à Deus, tende a levar o sujeito ao vício da vaidade, desejando conhecer apenas para gabar-se da posse de tal conhecimento.

No romance de Eco, é impossível dizer que os monges que buscavam o livro perdido de Aristóteles o perseguiam por ser o segundo livro da Poética um veículo para a verdade de Deus, sendo que seu autor o teria escrito séculos antes do surgimento do cristianismo. Mais inverossímil ainda é tentar encontrar a qualidade de moderação ligada à studiositas no romance de Eco, no qual os monges estavam dispostos a infringir as regras da abadia, cometer roubos, chantagens e, mais blasfemo ainda dentro do contexto, trocar favores sexuais em ordem de ter em mãos o livro tabu. Sem dúvida, a vontade de saber dos monges estava ligada à curiositas, e não à sua virtude contrária. O que, então, legitimava toda essa imoderação, esse excesso de vontade de conhecimento, toda a audácia de transpor os interditos?

Santo Agostinho, ao narrar sua adolescência, conta um episódio que o atormentou durante toda a sua vida, o roubo das peras. Ao buscar uma justificativa para seu ato, não encontra outra a não ser que as colheu “simplesmente para roubar [...] banqueteando-me só na iniquidade com cujo gozo me alegrara” (AGOSTINHO, 1973AGOSTINHO, S. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores ,VI)., p. 50), e aqui, mais uma vez, volta-se a premissa de Bataille de que o que torna a transgressão tão apelativa é o próprio ato de transgredir seu interdito. O proibido, ao invés de domar o desejo, o aviva, dá coragem ao sujeito de transpor aquilo que talvez ele não se considerasse capaz, ou nem soubesse querer transpor.

Bataille (2014BATAILLE, G. O Erotismo. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. (Coleção FILÔ, Bataille).) afirma que

No extremo, todavia, queremos resolutamente o que coloca nossa vida em perigo. Não temos sempre a força de querê-lo, nossos recursos se esgotam, e por vezes o desejo é impotente. Se o perigo se torna pesado demais, se a morte é inevitável, em princípio, o desejo é inibido. Mas se a sorte nos leva, o objeto que desejamos mais ardentemente é o mais capaz de nos arrastar a loucas despesas e nos arruinar [...] Na medida em que podem (é uma questão - quantitativa-de força), os homens buscam as maiores perdas e os maiores perigos (BATAILLE, 2014BATAILLE, G. O Erotismo. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. (Coleção FILÔ, Bataille)., p. 110).

E é exatamente a aceitação de risco, de exceder, que leva as personagens a perseguirem seus objetos de desejo na abadia. O objeto de desejo de Jorge era a anulação do riso, mas, sabendo ser essa uma tarefa impossível, se contentou com a anulação do conteúdo do segundo livros da Poética, visto por ele como danoso. Ele aceitou o risco de transgredir em ordem de manter prisioneira uma verdade contrária à dele, um contradiscurso que tinha o poder de questionar o discurso de poder da Igreja. Em contrapartida, foi curiosidade a força motriz que impeliu alguns dos monges que trabalhavam no scriptorium e que os encorajou a transgredir os interditos fixados pelo ex-bibliotecário.

A ficção de Eco está repleta de referências à curiosidade, ou ao desejo de saber: “Já não conseguia mais resistir [...] Decidi que não podia continuar mais presa do desejo de saber” (ECO, 1983ECO, U. O Nome da Rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. , p. 228), “o lugar em torno do qual rondavam os curiosos que morreram” (ECO, 1983ECO, U. O Nome da Rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. , p. 364), “ardia de vontade de saber” (ECO, 1983ECO, U. O Nome da Rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. , p. 197), “querendo o bem deles e não a glória da própria curiosidade” (ECO, 1983ECO, U. O Nome da Rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. , p. 215), ou ainda “por que não deveriam arriscar a vida para satisfazer uma curiosidade de sua mente” (ECO, 1983ECO, U. O Nome da Rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. , p. 216). É certo que os incautos que conseguiram ter em posse o livro interditado não estavam cientes de que a morte viria àquele que o tentasse ler, mas sabiam que a empreitada na qual se engajaram não era livre de risco, hipótese respaldada pela última passagem citada.

Diferentemente do riso, manifestação de excesso banida pela personagem Jorge, Bataille não incluiu a curiosidade entre seus fenômenos de excesso, mas, a partir da leitura do autor francês, fica claro que, assim como violência e erotismo, manifestações inerentemente humanas que levam o sujeito a se exceder frente a imposições, no romance de Eco, a curiosidade possui a mesma força transgressora que os fenômenos anteriormente referidos. Curiosidade é algo inato ao homem,4 4 Manguel cita uma passagem de Sêneca que afirma que “A natureza nos deu uma curiosidade inata” (Sêneca, Moral Studies, 1990, v. 2 p. 190-191 apudMANGUEL. Uma História Natural da Curiosidade, p. 48). Em concordância, Anna Kolos se pergunta: “how does one legitimately condemn something that seems so anthropologically natural for the human imagination, and for cognition itself?” (KOLOS, Imagining Otherness: The Pleasure of Curiosity in the Middle Ages, p. 139). mas só é excesso frente ao interdito.

Ainda, assim como o objeto de desejo do erotismo é externo, o mesmo pode ser dito sobre o objeto de desejo do ser curioso, cuja “escolha [...] é dependente não de uma qualidade objetiva desse objeto, mas de algo que toca interiormente no homem, a sua subjetividade” (BATAILLE, 2014BATAILLE, G. O Erotismo. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. (Coleção FILÔ, Bataille)., p.53). A diferença entre o objeto de desejo do erotismo e o da curiosidade é que o do primeiro apela ao corpo e o do segundo à mente. Esse entendimento está presente na filosofia de Santo Agostinho, que conectou curiosidade a um tipo de anseio da alma, chamando-a de concupiscência dos olhos em oposição à concupiscência da carne. Ambos exercidos pelos mesmos sentidos corporais, a primeira, e mais perigosa, tende a “não um apetite de se deleitar na carne, mas um desejo de se conhecer tudo por meio da carne” (AGOSTINHO, 1973AGOSTINHO, S. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores ,VI)., p. 222).

A análise do tópico transgressão neste artigo buscou expor o comportamento dos monges que, durante os sete dias narrados por Adso de Melk, empenharam-se em transpor o interdito levantado e adentrar a biblioteca na busca de um livro, porém, a partir do enunciado de Santo Agostinho, é válido propor uma questão quanto a personagem Jorge em relação ao tópico curiosidade. Agostinho diz que a curiosidade é a concupiscência dos olhos então, quando o sujeito não tem mais olhos para ver, é possível ser curioso?

Percebe-se, durante a leitura do romance, que Jorge era a memória da abadia, mas, implacavelmente, buscava guiar o presente não em direção a um futuro, mas para os dias de glória do passado, mais disposto a suprimir do que vivenciar, repetindo ao invés de inovar, favorecendo o mundo do espírito em detrimento ao mundo natural. Não apenas sua experiência literária era mediada através da leitura de outros monges para ele, mas sua experiência com o mundo externo era limitada, confinado que estava à Abadia, o que pode ter provocado a personagem a se fechar, tornando-o não apenas um cego físico, mas também cego, não à ação de outros, mas à experiência alheia. Aqui, se levanta a hipótese de que, sem poder enxergar, sem poder ser seduzido pelo visual, Jorge se tornou um ser entorpecido, paralisado em relação a condição natural do homem como um ser curioso.

A curiosidade é algo pessoal, intransferível, não pode ser mediada, e a impossibilidade de vivenciá-la pode haver lhe conferido repúdio por aqueles curiosos que o cercavam. Entretanto, tem-se a impressão de que ele nem sempre foi assim. Pelo que frei Guilherme consegue reconstruir e pelo comportamento do próprio Jorge, a personagem poderia ser descrita, além de um ávido leitor, como um pesquisador e rastreador de raridades bibliográficas durante a sua juventude, fato que lhe deu prestígio e o alçou ao cargo ao cargo de bibliotecário. Jorge por certo amava os livros sob seu cuidado e, aqueles que não estavam, ele buscava adquiri-los, independentemente do método.

A descoberta do segundo tomo da Poética, apesar de ter sido mantida em segredo, serviu-lhe não apenas como aspirante à bibliotecário pois veio junto com “um saque que te tornou famoso e estimado aqui na abadia e te fez obter o posto de bibliotecário” (ECO, 1983ECO, U. O Nome da Rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. , p.524), mas ainda deve tê-lo incutido orgulho, uma sensação de superioridade por ter sido ele o único que havia encontrado livro tão raro e tão perigoso em uma velha biblioteca, “onde eu, não tu, fui chamado pela providência para encontrá-la, e trazê-la comigo, e escondê-la por mais anos ainda?” (ECO, 1983ECO, U. O Nome da Rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. , p. 538).

A obra de Bataille é perpassada pela ideia de que o interdito é a força da transgressão, que é ele que lhe dá valor e que, por isso, torna-a irresistível. O desejo de transgredir, explica Bataille, está ligado à proibição da ação de consumar esse desejo, intensificando-o:

O domínio proibido é o domínio trágico, ou melhor, sagrado. É verdade, a humanidade o excluiu, mas para magnifica - lo. O interdito diviniza aquilo cujo acesso proíbe. Subordina esse acesso à expiação - à morte -, mas o interdito não deixa de ser um convite, ao mesmo tempo um obstáculo (BATAILLE, 2016BATAILLE, G. A Experiência Interior: seguida de Método de Meditação e Postscriptum 1953: Suma ateológica, vol.1. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2016. (Coleção FILÔ, Bataille)., p. 19).

Em concordância com a citação acima, Bataille remete a uma outra, de Sade (Sade, Les Cent-vingt journée de Sodome, Introdução apudBATAILLE, 2014BATAILLE, G. O Erotismo. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. (Coleção FILÔ, Bataille)., p. 72), que diz que “Nada contém a libertinagem [...]. A verdadeira maneira de estender e multiplicar seus desejos é impor-lhes limites” e ainda que “Derrubar uma barreira é por si só algo atraente; a ação adquire um sentido que não tinha antes que um terror, que dela nos afasta, a cercasse de um halo de glória” (BATAILLE, 2014BATAILLE, G. O Erotismo. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. (Coleção FILÔ, Bataille)., p.72), adicionando que nada é capaz de reduzir a violência.

Usando ambas as afirmações como modelo, poderia ser inferido que a curiosidade não pode ser também refreada e que quanto maior sua repressão, maior será o seu apelo, caso ilustrado em O Nome da Rosa. Vicio ou virtude, estabelece-se que a curiosidade é também manifestação de excesso. Jorge, certamente, a via como vício, capaz de levar o monge inquisitivo à um caminho contrário aos preceitos da Igreja; Guilherme, ao contrário, como virtude e um meio de alcançar a verdade.

Apesar de desde o princípio da trama frei Guilherme ter se mostrado diligente em sua busca pela solução dos crimes, não apenas por lhe haver sido incumbido da missão, mas também por sua curiosidade, foi a demissão do abade que o incitou a ir atrás do livro em sua última noite na abadia: “Agora o desafio não é somente mim e Abbone, é entre mim e todo o acontecimento, eu não saio destas muralhas antes de ter sabido. Quer que eu parta amanhã? Bem, ele é o dono da casa, mas até amanhã eu preciso saber. Preciso” (ECO, 1983ECO, U. O Nome da Rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. , p. 508). Mais uma vez, Eco nos apresenta uma situação na qual é uma proibição que leva uma personagem a superar seu interdito, levando-a a uma ação transgressora.

Alberto Manguel (2016MANGUEL, A. Uma História Natural da Curiosidade. Tradução de Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.) pondera que, ao mesmo tempo em que “a divindade concedeu ao gênero humano o dom de querer saber mais”, condenou-o por usá-lo, finalizando seu argumento afirmando que “Alguma curiosidade parece ser permissível, curiosidade demais é punida” (MANGUEL, 2016MANGUEL, A. Uma História Natural da Curiosidade. Tradução de Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2016., p. 63). De forma semelhante, George Minois (2003MINOIS, G. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Helena O Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003.) se pergunta se, apesar do riso ter sido dado ao homem pelos deuses, esse “limitado, frágil, será capaz de controlar essa força que o ultrapassa?” (MINOIS, 2003MINOIS, G. História do riso e do escárnio. Tradução de Maria Helena O Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003., p. 26). Substituindo riso por curiosidade, ou mesmo excesso, visto que Minois compreende riso como tal, percebe-se novamente o poder dessas manifestações, algo pernicioso que afronta e perturba o mundo homogêneo.

Seguindo os princípios bíblicos que, em tese, regiam a vida no mosteiro, não é espanto o destino que o lugar teve. Apesar da Regra de São Bento ser referida como o preceito ao qual os monges do lugar pautavam suas ações, sua obediência mal pode ser discernida no romance; o que Eco expõe é uma sequência de violações na qual a luxúria, da carne e da mente, e o excesso, tem curso livre: os monges e noviços leem escondidos manuscritos impróprios, o despenseiro Remigio e seu assistente Salvatore seduzem as moças pobres do vilarejo ao redor do mosteiro com a promessa de comida, o abade disfarça sua ganância com fervor religioso e parte da abadia é controlada por um desejo por conhecimento tão intenso que os leva à ruína.

Na citação na qual Jorge condena o riso, ele faz uma alusão a Prometeu, conhecida personagem da mitologia grega. Nessa, a forma encontrada por Zeus como punição para Prometeu por esse ter roubado dos deuses o fogo do Olimpo e o ter presenteado à humanidade foi dar Pandora de presente para Epimeteu, seu irmão. O pecado de Pandora é também conhecido: por curiosidade abriu o jarro no qual estavam guardadas todas as preocupações e doenças que poderiam causar sofrimento ao gênero humano, libertando-as, restando no fundo do jarro apenas a Esperança. Aqui, é evidenciado o uso da curiosidade como punição e veículo de destruição.

Relevante apontar que a abadia retratada por Eco foi ao chão após sucumbir ao fogo que tomou conta da biblioteca enquanto frei Guilherme e Adso tentavam recuperar o livro de Aristóteles oculto por Jorge. Assim, pode-se argumentar que foi a curiosidade, inicialmente do monge Venâncio, o primeiro a descobrir o local do segundo tomo da Poética, mas que acabou se espalhando entre seus pares, o princípio da derrocada. Caso Jorge não tivesse percebido que Venâncio havia descoberto a existência do livro e estava prestes a roubá-lo, não haveria envenenado o livro causando as mortes investigadas por Guilherme que, por sua vez, não haveria perseguido com tanto ânimo a causa do mistério.

Interessante perceber que, assim como no caso de Prometeu e Pandora, a única coisa restante foi a esperança, também Adso experenciou um sentimento semelhante, certamente não de uma esperança total, mas talvez de uma esperança tênue ao retornar à Abadia e encontrar fragmentos dos livros que seu mestre tanto estimava.

Anos depois, já homem maduro [...] Não resisti à tentação e na volta fiz um longo desvio para revisitar o que sobrara da abadia [...] Remexendo entre os detritos encontrava de vez em quando pedações de pergaminho, caídos do scriptorium e da biblioteca e que sobreviveram como tesouros sepultados na terra, e pus-me a recolhê-los, como se devesse recompor as folhas de um livro [...] Alguns pedaços de pergaminho estavam desbotados , outros deixavam entrever a sombra de uma imagem, de vez em quando o fantasma de uma ou outra palavra. Por vezes encontrei folhas em que frases inteiras eram legíveis, com maior facilidade encadernações ainda intactas [...] Recolhi todas as relíquias que pude encontrar, e enchi dois sacos de viagem, abandonando coisas que me eram úteis para salvar aquele mísero tesouro [...]passei muitas e muitas horas tentando decifrar aqueles vestígios [...] Quando reencontrei, no futuro, outras cópias daqueles livros, estudei-as com amor, como se o fado tivesse me deixado aquele legado, como se ter individuado a cópia destruída tivesse sido um sinal do céu que dizia tolle et lege. No final de minha paciente recomposição desenhou-se para mim como que uma biblioteca menor, signo daquela maior, desaparecida, uma biblioteca feita de trechos, citações, períodos incompletos, aleijões de livros (ECO, 1983ECO, U. O Nome da Rosa. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. , 559-561).

Referências

  • AGOSTINHO, S. Confissões Tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores ,VI).
  • ARISTÓTELES,-. Metafísica (Livro I e II). Tradução de Vincenzo Cocco. São Paulo: Abril Cultural , 1973. (Os Pensadores, IV).
  • BATAILLE, G. O Erotismo Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. (Coleção FILÔ, Bataille).
  • BATAILLE, G. A Experiência Interior: seguida de Método de Meditação e Postscriptum 1953: Suma ateológica, vol.1. Tradução de Fernando Scheibe. Belo Horizonte: Autêntica Editora , 2016. (Coleção FILÔ, Bataille).
  • CAILLOIS, R. El Hombre y lo Sagrado Tradución de Juan José Domenchina. México: Fondo de Cultura Económica, 1996.
  • ECO, U. O Nome da Rosa Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
  • KOLOS, A. Imagining Otherness: The Pleasure of Curiosity in the Middle Ages. Mirabilia, v. 18, p. 137-150, 2014.
  • MAGNAVACCA, S. Lexico Técnico de Filosofía Medieval Buenos Aires: Miño-y-Dávila, 2005. (Coleção Ideas en debate, Serie Historia Antigua-Moderna).
  • MANGUEL, A. Uma História Natural da Curiosidade Tradução de Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
  • MINOIS, G. História do riso e do escárnio Tradução de Maria Helena O Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003.
  • PIRATELI, M.R; PIRATELI, M.A. As normas da vida monacal na Regra de São Bento: Um estudo sobre o códice beneditino. Actio Revista de Estudos Jurídicos, v.1, n. 25, p. 80-99, 2015
  • SALIB, M. S. A Disciplina da Transgressão 2001. 92 f. Dissertação (Mestrado em Letras- Teoria Literária) - Curso de Pós-Graduação em Literatura, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2001.
  • 1
    Todas as traduções foram feitas pelos autores deste artigo. No original: “Estos dos mundos, el de lo sagrado y el de lo profano, sólo se definen rigurosamente el uno por el otro. Entrambos se excluyen y se suponen”.
  • 2
    No original: “curiosidad como la pasión negativa que intenta deleitarse en un conocimiento vano de las cosas. Por eso, se le considera nociva, en cuanto dispersa y contraria a la búsqueda de la verdade”.
  • 3
    No original: “Curiosity is a dangerous presumption. Curiosity is a harmful science. It leads to heresy. It embroils the mind in sacrilegious fables”.
  • 4
    Manguel cita uma passagem de Sêneca que afirma que “A natureza nos deu uma curiosidade inata” (Sêneca, Moral Studies, 1990, v. 2 p. 190-191 apudMANGUELMANGUEL, A. Uma História Natural da Curiosidade. Tradução de Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.. Uma História Natural da Curiosidade, p. 48). Em concordância, Anna Kolos se pergunta: “how does one legitimately condemn something that seems so anthropologically natural for the human imagination, and for cognition itself?” (KOLOSKOLOS, A. Imagining Otherness: The Pleasure of Curiosity in the Middle Ages. Mirabilia, v. 18, p. 137-150, 2014., Imagining Otherness: The Pleasure of Curiosity in the Middle Ages, p. 139).
  • Parecer Final dos Editores:

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    14 Out 2022
  • Aceito
    15 Ago 2023
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