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No Vale da Alma: o pessoal e o arquetípico em Dias de Abandono, de Elena Ferrante

The Vale of Soul: Personal and archetypal aspects in The days of Abandonment, by Elena Ferrante

Resumo

O artigo propõe uma discussão sobre o papel da imagem em diferentes teorias psicológicas a partir de uma leitura do romance Dias de abandono, de Elena Ferrante. Os aspectos míticos e cotidianos da figura da “pobre coitada” [poverella] tal como aparece no texto são abordados em sua ambivalência, considerando tanto a pertinência e as dificuldades de uma abordagem psicanalítica clássica quanto a eventual adequação da teoria dos arquétipos de C. G. Jung para a compreensão do fenômeno no contexto da narrativa. O artigo propõe, então, a psicologia arquetípica de James Hillman, Patricia Berry e Rafael López-Pedraza como a referência teórica mais apropriada para a análise, na medida em que reconhece a dimensão transpessoal e transgeracional da imagem sem submetê-la a uma interpretação estruturalista.

Palavras-Chave:
Elena Ferrante; psicologia arquetípica; James Hillman; C. G. Jung

Abstract

The article proposes a discussion on the role of images in different psychological theories from a reading of the novel The Days of Abandonment, by Elena Ferrante. The mythical and mundane aspects of the figure of the “poor thing” [la poverella] as it appears in the text are approached in their ambivalence, considering both the pertinence of a classical psychoanalytic approach and the adequacy of C. G. Jung's theory of archetypes to understand the phenomenon in the context of the narrative. The article then projects the archetypal psychology of James Hillman, Patricia Berry, and Rafael López-Pedraza as the most appropriate theoretical reference for the analysis, recognizing transpersonal dimension of the image, but without submitting it to a structuralist interpretation.

Keywords:
Elena Ferrante; archetypal psychology; James Hillman; C. G. Jung

Riassunto

L’articolo propone una discussione sul ruolo dell’immagine in diverse teorie psicologiche partendo da una lettura del romanzo I Giorni dell’abbandono, di Elena Ferrante. Gli aspetti mitici e quotidiani della figura della “poverella”, così come compare nel testo, sono affrontati considerando tanto la pertinenza e le difficoltà di un approccio psicanalitico classico, quanto l’eventuale adeguamento della teoria degli archetipi di C.G. Jung ai fini della comprensione del fenomeno nel contesto della narrativa. L’articolo propone dunque la psicologia archetipica di James Hillman, Patricia Berry e Rafal López-Predaza quale riferimento teorico più appropriato per l’analisi, nella misura in cui riconosce la dimensione transpersonale e transgenerazionale dell’immagine senza sottoporla ad un’interpretazione strutturalista.

Parole chiave:
Elena Ferrante; psicologia archetipica; James Hillman; C. G. Jung

As grandes teorias a respeito da psique têm sido mobilizadas para a análise de fenômenos literários ao menos desde que Sigmund Freud (2019FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2019 [1900]. [1900]) estabeleceu uma relação entre a linguagem onírica e o inconsciente pessoal em A interpretação dos sonhos, de 1900. Pouco mais de uma década depois, Carl Gustav Jung, até então um respeitoso discípulo de Freud, deu início à dissidência que teria no conceito de inconsciente coletivo um dos motivos de sua ruptura com o movimento psicanalítico, criando um outro caminho significativo para o aproveitamento das conexões entre a psicologia e a literatura de ficção. Desenvolveram-se, assim, duas importantes inclinações dos estudos da narrativa, que, em versões aprimoradas ou transformadas, continuam em prática até hoje.

Não por acaso, as diferenças entre os dois sistemas teóricos refletiram-se nos objetos de estudo que diferentes correntes críticas enfatizaram. A narrativa de viés biográfico ou confessional (com destaque para as histórias pessoais, em sua rememoração do tempo perdido ou de traumas recalcados) foi privilegiada pelas leituras freudianas e suas sucessoras em linhagem direta. Enquanto isso, a literatura fantástica e a própria mitologia ganharam a atenção da crítica junguiana, em geral voltada para fenômenos peculiares e experiências extraordinárias, assim como o próprio Jung a princípio dedicou sua trajetória clínica inicial ao estudo das psicoses.

Atestando esse último fenômeno, há a notável adesão de autores da ficção científica e de literatura de fantasia à psicologia analítica de C. G. Jung, em uma sequência que vai de J. R. R. Tolkien a Ursula K. Le Guin. Ao mesmo tempo, o romance psicológico moderno ganhou esse título sobretudo em função de sua exploração de experiências e trajetórias individuais ou familiares, mais associadas ao pensamento freudiano. De modo que, ao propor uma leitura com viés junguiano de uma obra de Elena Ferrante, este artigo tem como um de seus objetivos transpor uma barreira comumente imposta para este tipo de análise.

Pretendo assinalar a presença de um componente arquetípico nas narrativas da autora, capaz de criar uma dialética entre a experiência pessoal e um fenômeno psíquico atravessado por forças impessoais e estranhas à experiência cotidiana individual. O enfoque será um caso de depressão, um “vale da alma” habitado por uma figura improvável que assume um papel ambíguo e amplamente discutido pela própria autora em entrevistas a respeito de sua obra. Mais exatamente, o caso a ser analisado é o da imagem da “pobre coitada” (a poverella) tal como aparece no romance Dias de abandono (I Giorni Dell'abbandono), de 2002.

Trata-se, por um lado, de compreender como símbolo (no sentido junguiano do termo, ou seja, capaz de apontar um caminho futuro) aquilo que a um primeiro olhar e a um olhar psicanalítico se apresenta como um sintoma (uma defesa regressiva contra uma realidade indesejada). Porém, mais especificamente, a noção de imagem arquetípica, tal como elaborada na ensaística de James Hillman, deve ganhar maior ressonância, inclusive naquilo em que ela se afasta de concepções tradicionalmente associadas à escola junguiana clássica, de viés estruturalista, nas quais o simbólico tornou-se motivo de estudos e projetos estabilizadores de seus significados.

Com isso, a abordagem não presume nem conclui que a perspectiva freudiana e a junguiana sejam mutuamente excludentes, de modo geral, e muito menos no caso particular estudado. Em se tratando das narrativas de Ferrante, veremos como uma se acrescenta à outra e a preserva, ou seja: como o sintoma neurótico pode ser entendido também como imagem que ultrapassa a experiência pessoal em direção ao arquetípico, e assim tem seu papel na vida anímica do indivíduo ressignificado. Pois entendo que há pontos de contato e interseção entre a psicanálise clássica e a psicologia junguiana, e que algumas propostas da psicologia arquetípica ou pós-junguiana de James Hillman, Patricia Berry e Rafael López-Pedraza são apropriadas para identificá-los.

Exemplarmente, pode ser mencionado o ensaio de Patricia Berry (2014aBERRY, Patricia. A neurose no rapto de Deméter/Perséfone. In: BERRY, Patricia. O corpo Sutil de Eco: contribuições para uma psicologia arquetípica. Tradução de Marla Anjos e Gustavo Barcellos. Petrópolis: Vozes, 2014a. p. 29-48.), intitulado A neurose no rapto de Deméter/Perséfone, que realiza em sentido inverso o movimento a ser realizado aqui: recorre a instrumentos da crítica freudiana para analisar uma narrativa mítica. Um componente “realista” é assim observado no mito, o que será bastante útil para observarmos o que há de mitológico no cotidiano depressivo de uma protagonista de Ferrante.

Não se presume, porém, que a apreensão do elemento mítico na prosa da autora seja inédita. O tema surgiu, por exemplo, na análise de Um amor incômodo, por Tiziana de Rogatis (2016ROGATIS, Tiziana de. Metamorphosis and Rebirth: Greek Mithology and Initiation Rites in Elena Ferrante’s Troubing Love. In: BULLARO, Grace Russo; LOVE, Stephanie V. (org.). The Works of Elena Ferrante: Reconfiguring the Margins. Nova York: Palgrave Macmillan US, 2016. p. 185-206. ), tendo como ponto de partida justamente o mito de Deméter e Perséfone. Luiza Larangeira da Silva Mello (2021MELLO, Luiza Larangeira da Silva. Descida ao inferno: identidade, mobilidade e formação em A Vida Mentirosa dos Adultos, de Elena Ferrante.Fênix - Revista de História e Estudos Culturais, v. 18, n. 1, p. 131-154, jan./jun. 2021.), por sua vez, referiu-se à descida ao inferno de Ulisses para tratar das relações da prosa ferrantina com a moldura do romance de formação. Pretendo estabelecer uma relação em rede com tais esforços críticos, oferecendo uma perspectiva que os torne complementares, considerando também a pertinência da leitura com viés psicanalítico de Fabiana Secches (2020SECCHES, Fabiana. Elena Ferrante: uma longa experiência de ausência. São Paulo: Claraboia, 2020.).

A primeira parte do texto será dedicada à uma breve discussão teórica sobre o papel da imagem em diferentes escolas de pensamento da psicologia. Assim, será possível definir com maior exatidão o que é caracterizado por Hillman como uma imagem arquetípica. A segunda parte será dedicada à análise do romance de Elena Ferrante, com especial enfoque nas aparições da “pobre coitada” na narrativa e nas demais referências da autora a esta figura. Com isso, espero tornar possível uma reavaliação das interações entre o pessoal e o arquetípico no âmbito da literatura ficcional.

Imagem e significação em Freud, Jung e Hillman: a psique como poiesis

É importante, de início, observarmos uma diferença básica entre o método de interpretação dos sonhos tal como proposto por Freud e aquele que seria decorrente das reflexões de Jung. No primeiro caso, teríamos um inconsciente que se expressa através de uma linguagem cifrada, e, portanto, com alegorias, que ao mesmo tempo ocultam e revelam um significado reprimido, vindo este à tona através da livre associação no trabalho analítico. Um dos casos mais conhecidos e esclarecedores é o do Homem dos Lobos e seu sonho com uma matilha amedrontadora e silenciosa, cuja origem estaria na autoridade paterna tal como o indivíduo a experimentara em sua infância. A interpretação tem, então, um caráter regressivo: remonta à história pregressa e esquecida do sonhador, onde estariam soterrados os elementos para os quais ela funciona como um disfarce. Uma vez feito esse movimento, a imagem encobridora pode ser dispensada.

Referindo-se a esse caso pela primeira vez em Sonhos como material dos contos de fadas, Freud chegou mesmo a afirmar que, “se lobo era apenas o primeiro substituto do pai para meu paciente, é de se perguntar se as histórias do lobo que devora os cabritinhos e da Chapeuzinho Vermelho têm outro conteúdo secreto que não o medo infantil do pai” (FREUD, 2010bFREUD, Sigmund. Sonhos com material de contos de fadas. In: FREUD, Sigmund. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schreber”): artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913). Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010b [1913]. p. 291-300. [1913], p. 299). Ou seja: os contos de fadas teriam sido forjados a partir do modelo narrativo oferecido pelas neuroses pessoais, e poderiam, portanto, ser lidos e analisados a contrapelo, de modo a desmascarar tais substituições. A busca de um conteúdo secreto torna-se, assim, a chave para a interpretação literária de matiz psicanalítico, ainda que o segredo da cena primitiva possa se perder no automatismo da repetição, como na leitura que Jacques Lacan faz de um conto de Edgar Allan Poe - porém sem deixar de notar que a investigação freudiana “só pode satisfazer-se ao reencontrar o objeto fundamentalmente perdido” (LACAN, 1998LACAN, Jacques. O seminário sobre ‘A Carta Roubada’. In: LACAN, Jacques. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998 [1956]. p. 13-68. [1956], p. 50).

Justificam-se, portanto, as associações entre o método psicanalítico e o conto investigativo (YANG, 2010YANG, Amy. Psychoanalysis and Detective Fiction: A case of Freud and Criminal Storytelling. Perspectives in Biology and Medicine, v. 53, n. 4, p. 596-604, set./nov. 2010.): em ambos os casos, estamos lidando com a busca pela solução de um enigma através do recolhimento das pistas fragmentárias decorrentes de seu próprio ocultamento. Ambos os processos se encontram no complexo de Édipo, que utiliza a tragédia edipiana como referência para quadros neuróticos, e ao mesmo tempo nos faz lembrar da dimensão detetivesca da narrativa clássica, reencenada com algumas variações em diferentes relatos de casos clínicos por Freud, bem como em ensaios tão afastados no tempo como Totem e tabu (FREUD, 2012FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. In: FREUD, Sigmund. Totem e Tabu, Contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos. Obras completas, tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012 [1912-1913]. v. 11, p. 13-244. [1912-1913]) e Moisés e o monoteísmo (FREUD, 2018FREUD, Sigmund. Moisés e o Monoteísmo: três ensaios. In: FREUD, Sigmund. Compêndios de Psicanálise e outros textos (1937-1939). Tradução de Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2018 [1939]. p. 13-188. [1939]). O assassinato do pai pelas hordas primitivas, o assassinato do patriarca pelas tribos do êxodo e o assassinato do rei pelo filho em uma encruzilhada são facetas de uma mesma estrutura narrativa recorrente.

Assim como acontece com os contos de fadas, temos construções míticas, antropológicas ou mesmo históricas que espelhariam a cena familiar originária, marcada pelas pressões e repressões da libido na primeira infância. Ao enfatizar variações de um mesmo drama, capaz de situar a origem das neuroses em conflitos dessa esfera, Freud tornou todo um repertório cultural redutível à expressão de complexos cuja origem seria identificável na triangulação entre pai, mãe e criança. Daí as críticas àquilo que foi caracterizado como seu “familismo despótico” por Deleuze e Guattari (2011DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. Tradução de Luiz B. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2011 [1973]. [1973], p. 73-79), ou como sua “falácia parental”, por James Hillman (1996HILLMAN, James. The Soul’s Code: in search of character and calling. New York: Ballantine Books, 1996., p. 63-91). Note-se, porém, que o reducionismo freudiano corresponde às principais linhas de força de seu pensamento, em sua capacidade de eliminar excessos e desmascarar fantasias, como um investigador que não se deixa levar pelas pistas enganosas de um criminoso criativo.

Além disso, relação entre o método psicanalítico e a investigação detetivesca carrega ainda consigo um importante vetor temporal: a perspectiva de restabelecimento de uma ordem perdida. No conto policial, identificar onde e quando aconteceu o desvio da norma e a desordem da polis é também criar condições para um retorno à normalidade; no âmbito da psicanálise clássica, o mesmo efeito se espera da cura de um quadro neurótico, com a eliminação do sintoma cuja origem foi prospectada. É verdade que não se imagina um mero retorno a condições antecedentes, mas se supõe que a atualidade deixará de ser condicionada pelo trauma, com a psique tornada livre dos bloqueios e constrangimentos neuróticos, ainda que estejam sujeitos a sucessivos processos de rememoração e elaboração (Cf. FREUD, 2010aFREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar. In: FREUD, Sigmund. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schreber”): artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913). Tradução e notas de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010a [1914]. p. 193-209. [1914], p. 193-209).

Tendo isso em vista, ficam evidentes algumas implicações do nome que C. G. Jung deu ao livro que marcaria seu distanciamento em relação a Freud. Em Símbolos da transformação (JUNG, 2013cJUNG, Carl Gustav. Símbolos da Transformação: análise dos prelúdios de uma esquizofrenia. Tradução de Eva Stern. Petrópolis: Vozes, 2013c [1952]. [1952]), a ênfase na dimensão transformativa do simbólico não foi casual nem independente das polêmicas do momento: ela apontava para a diferença na maneira como Jung construiria a narrativa de seus casos clínicos, nos quais imagens significativas aparecem em momentos de travessia de uma posição psíquica para outra, sem que nenhuma delas seja considerada segundo um horizonte de normalidade. Há um processo ininterrupto de descoberta de si, sujeito a constantes reviravoltas, ajustes e redefinições, que pode incluir a cura de uma neurose, mas não se detém nesse ponto. Esse processo ele chamou de individuação.

A individuação tem como horizonte um futuro nunca totalmente conquistado, mas que se vislumbra através de sonhos, símbolos e outros recursos terapêuticos. Por isso, Jung construiu sua teoria do símbolo insistindo na ideia de que não se trata de um disfarce, mas de uma “essencialidade desconhecida” (JUNG, 2013aJUNG, Carl Gustav. Psicologia e poesia. In: JUNG, Carl Gustav. O Espírito na Arte e na Ciência. Tradução de Dora Ferreira da Silva e Rubem Siqueira Bianchi. Petrópolis: Vozes, 2013a [1930]. p. 85-108. [1930], p. 96); ou seja, a melhor expressão disponível para um conteúdo impalpável e inapreensível sem essa mediação, aos quais denominou arquétipos. A experiência pessoal seria feita de combinações, oposições e soluções de equilíbrio entre as forças arquetípicas, que uma vez entendida nessa chave se libertam por sua vez da “roupagem personalista” (JACOBI, 2016JACOBI, Jolande. Complexo, arquétipo e símbolo na psicologia de Carl Gustave Jung. Tradução de Milton Camargo Mota. Petrópolis: Vozes , 2016., p. 32). As expressões dessas entidades nas experiências pessoais seriam também indicativas de que o inconsciente não é um repositório encapsulado na psique de cada indivíduo, mas um campo psíquico mais vasto, no qual brotam as consciências individuais, que mantêm seu vínculo com a esfera inconsciente da qual emergem através dos sonhos, dos mitos e outras linguagens simbólicas.

Desse ponto em diante, porém, diferenças significativas se estabeleceram nas leituras de que sua obra foi objeto. Note-se que não estava excluída, por princípio, a possibilidade de um trabalho científico que alcançasse uma descrição mais completa do conjunto existente de arquétipos, e de cada um em particular, assim como permanecia no horizonte destes esforços uma eventual catalogação dos símbolos oníricos (Cf. SHAMDASANI, 2005SHAMDASANI, Sonu. Jung e a Construção da Psicologia Moderna: o sonho de uma ciência. Tradução de Maria Silvia Mourão Neto. Aparecida: Ideias & Letras, 2005.). Assim, um dos principais desdobramentos da escola junguiana teve ênfase estruturalista: foi o esforço de elaboração de uma anatomia da psique (ERDINGER, 1990EDINGER, Edward F. Anatomia da Psique: o simbolismo alquímico na psicologia. São Paulo: Pensamento Cultrix, 1990.), ou de uma cartografia dos arquétipos (MOORE; GILLETTE, 1990MOORE, Robert; GILLETE, Douglas. King, warrior, magician, lover: Rediscovering the Archetypes of the Mature Masculine. San Francisco: Harper, 1990.), ou mesmo de dicionários que ambicionassem o registro da linguagem do inconsciente em sua totalidade. O próprio Jung incentivou, ao menos parcialmente, esse desdobramento com a obra de popularização O homem e seus símbolos, de 1956.

Mas, entre seus leitores e comentaristas, se desenvolveria também em uma tendência contrária: a de presumir a insuficiência de qualquer descrição pretensamente exaustiva de seu conjunto ou mesmo de um arquétipo em particular, voltando-se para uma atenção fenomenológica às criações da psique. Isso se deu, curiosamente, em um desdobramento da teoria junguiana que recebeu o nome de psicologia arquetípica, na qual o adjetivo se refere “mais a um movimento que se faz do que a uma coisa que existe” (HILLMAN, 2018HILLMAN, James. Uma investigação sobre a imagem. Tradução de Gustavo Barcellos. Petrópolis: Vozes, 2018 [1977]. [1977], p. 82). Ao contrário do que o nome pode sugerir, portanto, a psicologia arquetípica mostrou-se pouco interessada em realizar um mapa psíquico com a designação de territórios para os diferentes arquétipos; ela esteve mais atenta à descrição e estímulo dos fenômenos através dos quais o arquetípico se apresenta, ou seja, à sua dimensão anímica, linguística e imagética. Por isso, foi também chamada de psicologia imaginal, embora, para efeito de sua identificação, como uma escola de pensamento, a expressão não tenha chegado a se estabelecer.

Re-visioning psychology, de James Hillman (1976HILLMAN, James. Re-visioning psychology. New York: Harper, 1976.), foi a obra que inaugurou uma defesa consistente das imagens, metáforas e fragmentos da linguagem do inconsciente que adquirem validade por si mesmas, e não em função de um significado oculto que carregam ao substituir um conteúdo reprimido (Freud) ou por seu papel em uma estrutura narrativa dada pela natureza do arquétipo a que se refere (segundo uma determinada ênfase da leitura de Jung). Se, por um lado, essa é uma redefinição do legado junguiano em alguns de seus próprios termos, por outro, ela coloca sua ênfase em uma dimensão criativa da psique, entendida como agente de uma poiesis, na qual a metáfora ganha proeminência, não como enigma a ser decifrado ou índice de um padrão arcaico, mas como produção espontânea e autônoma da atividade autogeradora de alma (HILLMAN, 2022HILLMAN, James. Psicologia Arquetípica: uma introdução concisa. Tradução de Lucia Rosemberg e Gustavo Barcellos. São Paulo: Cultrix, 2022 [1983]. [1983], p. 52).

As imagens arquetípicas, portanto, não fazem referência a um passado esquecido nem a uma estrutura que implica um futuro a ser realizado: são criações momentâneas e inéditas, às vezes, inclusive, urgentes, que interagem com nossos repertórios culturais coletivos e trajetórias individuais, mas preservam até certo ponto o mistério de seu papel em uma circunstância particular. Não são convites à interpretação, tampouco há dicionários em que seus significados possam ser descobertos; o que elas requerem é uma reação imediata do sujeito à imagem, envolvendo uma convivência, um diálogo, ou mesmo uma oposição no qual seu propósito poderá ser desvelado.

Note-se que estamos tratando de um “propósito” com p minúsculo e de múltiplos propósitos alternados. Cada imagem, cada metáfora, indica um caminho distinto e fornece um novo declive no território acidentado de nossa vida psíquica. Aderindo às tradições politeístas que viu serem abandonadas tanto em Freud, com seu culto ao Pai, quanto em Jung, com a centralidade do arquétipo do Si-Mesmo e as exigências de síntese da individuação, Hillman entendia a psique como um campo inconstante de forças em oposição e conflito, locus do atravessamento de diversos agentes sem um sentido teleológico único, mas capaz de adequar-se às demandas variáveis de diversas situações, desde que a capacidade de geração imagética não se deixe embotar pelo compromisso ético de origem monoteísta: “A inerente multiplicidade da alma demanda uma fantasia teológica de igual diferenciação” (HILLMAN, 1976HILLMAN, James. Re-visioning psychology. New York: Harper, 1976., p. 167).

A produção espontânea de imagens na psique, bem como o eventual cultivo de condições para sua emergência, torna-se, então, a prática central da psicoterapia, entendida etimologicamente como “cuidado da alma” ou “atenção à alma”, nunca restrita ao divã ou ao consultório. Hillman chamou esse hábito de soul-making. Podemos identificá-lo tanto em diferentes construções culturais como em variados hábitos particulares, com uma concepção bastante ampliada e democrática do que é ter uma vida psíquica significativa. A própria leitura de textos ficcionais pode ser produtora de alma.

Mas nada disso deve obliterar o fato de que a produção de alma no cotidiano contemporâneo com frequência se dá sob as condições mais opressivas e em situações de extremo estresse, que tornam a ação criativa da psique imprescindível até mesmo para sua própria sobrevivência. É usando um exemplo de uma produção psíquica e imagética em circunstâncias dessa natureza que, afinal, será possível explorar a discussão realizada aqui em mais detalhes.

Frantumaglia: a pobre coitada no vale de lágrimas

Enquanto o estudo da histeria se tornou fundamental para o desenvolvimento da psicanálise em seus primórdios e os quadros esquizofrênicos tiveram um papel semelhante na relação entre prática clínica e teoria para Jung, no caso da psicologia arquetípica o destaque ficou com a depressão (Cf. HILLMAN, 2022HILLMAN, James. Psicologia Arquetípica: uma introdução concisa. Tradução de Lucia Rosemberg e Gustavo Barcellos. São Paulo: Cultrix, 2022 [1983]. [1983], p. 88). Esse é um primeiro vínculo da abordagem com o tema com o romance que será discutido, tal como o experimentaram muitos leitores, pois a sensação de um agudo abatimento depressivo - ou uma “queda brusca de significado”, como diz a narradora - caracteriza seus momentos mais marcantes. Os sintomas definidos pelo mais recente Manual de diagnóstico e estatística dos transtornos mentais (DSM-5) da Associação Psiquiátrica Americana (2013APA - AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and statistical manual of mental disorders. 5. ed. Arlington, VA: American Psychiatric Association, 2013.) estão todos lá: perda de interesse em atividades cotidianas, perda de vitalidade, sentimentos de invalidez e de culpa, dificuldade de concentração e ideações suicidas. Mas existe algo mais. É disso que vamos tratar.

A trama de Dias de abandono, como se sabe, é simples. Olga, a protagonista, de repente de se vê deixada pelo marido em um apartamento em Turim, onde vive com os dois filhos do casal e um cachorro. De resto, sozinha na cidade do norte italiano, para onde havia se mudado por conta da carreira de Mario, ela precisa administrar intensos sentimentos de raiva, rejeição e inveja, enquanto prosseguem as infinitamente exigentes tarefas cotidianas. Em determinado momento de exaustão e desespero, passa a conviver com fantasias relacionadas à uma figura de sua infância napolitana, descrita como a poverella, ou a “pobre coitada”, na excelente tradução de Francesca Cricelli para a edição brasileira. Essa imagem enfim se dissipa após os episódios que encaminham o romance para seu desenlace.

Como foi notado, as aparições da poverella nos fornecerão a oportunidade de abordar o romance em uma perspectiva psicológica. Para isso, cabe, antes de tudo, assinalar as condições específicas de emergência do fenômeno no romance, aproveitando as entrevistas de Ferrante. Nelas, a questão da solidão da protagonista é ressaltada - ou, mais exatamente, seu isolamento. “Eu queria acompanhar momento a momento a contração do espaço em torno dela, tanto o real quanto o metafórico [...] Eu queria que Turim e Nápoles, embora distantes e diferentes, coincidissem como locais destituídos de comunidade, pano de fundo para indivíduos atordoados pelo sofrimento.” (FERRANTE, 2016bFERRANTE, Elena. Frantumaglia: a writer’s journey. New York: Europa Editions, 2016b., p. 77). Nesses trechos, dois pontos nos interessam, em especial: a equalização entre o lugar do presente no norte italiano e do passado no sul do país, eliminando qualquer chance de um tratamento idealizado deste último, e a questão do encolhimento do espaço metafórico - um desencantamento do mundo - nos dois espaços, que diz respeito aos aspectos extraordinários da imagem da poverella.

Ambos os fatores estão certamente vinculados: se a destituição de um senso de comunidade é semelhante em Nápoles e Turim, o mesmo acontece com a ausência de símbolos, mitos e ritos disponíveis para atravessar um período de luto e uma experiência de perda. No entanto, precisamos ter isso em vista não para contrapor esses dois espaços a um terceiro, situado mais no passado ou mais além, no qual os vínculos comunitários e um patrimônio simbólico estaria à mão. Uma abordagem do texto pelo viés da psicologia arquetípica requer esta ênfase: há certa pobreza de símbolos estabelecidos que é considerada inerente ao humano, sem que um repertório de arquétipos universais possa solucionar esta carência. Há, ao mesmo tempo, uma infinita criatividade poética da própria psique, tanto a pessoal como a coletiva, sempre capaz de produzir imagens e metáforas de acordo com as necessidades do momento, aproveitando os recursos da memória e da invenção.

Vejamos, então, como a imagem específica de que vamos tratar aparece e evolui no decorrer do romance. A primeira referência a ela se dá com uma lembrança, logo no começo do texto, pouco depois de Olga ser subitamente informada pelo marido de que ele estava considerando deixá-la. Após o susto, ela tenta retomar a calma para dar a ele tempo de repensar a decisão; porém, não consegue manter a tranquilidade por muito tempo, e a menção surge exatamente quando ela se vê perdendo o controle de suas emoções: “Lembrei de uma figura obscura de minha infância napolitana, uma mulher grande, enérgica, que vivia em nosso prédio, atrás da Piazza Mazzini” (FERRANTE, 2016aFERRANTE, Elena. Dias de abandono. Tradução de Francesca Cricelli. São Paulo: Editora Biblioteca Azul, 2016a [2002]. [2002], p. 11). Segue-se uma descrição, em duas etapas, da mulher de Nápoles. Na primeira, ainda casada, ela aparece como uma mãe de três filhos “contente com seus cansaços”, governando a casa “com poucos estalos de palavras alegres”. Mas a história muda quando ela é abandonada pelo marido. A narradora descreve as notícias de seu sofrimento tal como chegavam a ela na oficina de costura da mãe, através de conversas entre as funcionárias:

A mulher perdeu tudo, até o nome (talvez se chamasse Emilia), se tornou para todos ‘a pobre coitada’, começamos a falar dela desse jeito. A pobre coitada chorava, a pobre coitada gritava, a pobre coitada sofria, dilacerada pela ausência do homem vermelho suado, com olhos verdes de perfídia (FERRANTE, 2016aFERRANTE, Elena. Dias de abandono. Tradução de Francesca Cricelli. São Paulo: Editora Biblioteca Azul, 2016a [2002]. [2002], p. 12).

É interessante notar como, tanto no deslizamento do nome próprio para o apelido, quanto na imagem do marido vermelho e de seus olhos verdes pérfidos, o tom da narrativa oscila entre o realismo e o conto de fadas, certamente influenciada nesta passagem pelo olhar e a escuta infantis. A “pobre coitada”, ou poverella, facilmente se torna aqui uma espécie de figura lendária - mas isto de maneira alguma lhe confere, até o momento, uma dimensão arquetípica, e muito pelo contrário. Nessa primeira lembrança, tudo o que extrapola a dimensão pessoal pode ser reduzido a ela novamente por um gesto analítico, que desmascare imagens encobridoras de uma realidade recalcada, tal como a leitura a contrapelo dos contos de fadas por Freud os restitui a um drama familiar cotidiano. A “pobre coitada” exibe o estatuto de um símbolo genérico do abandono e da tristeza feminina, e por isso o aparecimento de sua imagem é mais exatamente um sintoma, um mecanismo de defesa da narradora contra a realidade em que ela própria se antevê: “Também por esta lembrança continuei a me comportar com Mario exibindo uma reflexão afetuosa” (FERRANTE, 2016aFERRANTE, Elena. Dias de abandono. Tradução de Francesca Cricelli. São Paulo: Editora Biblioteca Azul, 2016a [2002]. [2002], p. 13).

Em sua primeira participação no romance, portanto, a poverella funciona como um sinal de alarme que restitui por um instante as forças de Olga, na tentativa de contornar a ameaça da perda. Mas só por um instante. Essas oscilações ocupam longos trechos do livro, até que, no pior dos dias, o da mais aguda depressão e vazio de sentido, quando Olga se vê com os filhos precisando de cuidados urgentes no quarto ao lado, o cachorro ganindo de dor no escritório por causa de um possível envenenamento pelo vizinho, e ela própria sem condições de administrar a situação aterradora, a imagem da mulher napolitana surge novamente no texto. Agora, mais exatamente, não como uma lembrança, mas como um delírio.

“Apoiava os pés descalços sobre o corpo de Otto, tinha uma cor esverdeada, era a mulher abandonada da Piazza Mazzini, a pobre coitada, como chamava a minha mãe.” (FERRANTE, 2016aFERRANTE, Elena. Dias de abandono. Tradução de Francesca Cricelli. São Paulo: Editora Biblioteca Azul, 2016a [2002]. [2002], p. 109). Olga afirma que a aparição permanece apenas o suficiente para lhe tirar o fôlego. Pouco depois, porém, a voz da mulher emerge novamente, em meio ao vórtice de ações imprecisas e precipitadas com que Olga busca remediar o caos em sua casa, ao mesmo tempo em que eventualmente cede à mais completa inércia: “Vá à casa de Carrano [...] Peça ajuda a ele”. Carrano é o vizinho violoncelista que teria envenenado o cão, e com isso a narradora se engaja pela primeira vez em uma conversa com a imagem, dizendo que o vizinho poderia parecer uma pessoa inofensiva, mas também seria capaz de coisas horríveis. “Vá, só tem ele no prédio, é o único que pode ajudar”, insiste a poverella. “Você tem pouco tempo. Otto está morrendo.” (FERRANTE, 2016aFERRANTE, Elena. Dias de abandono. Tradução de Francesca Cricelli. São Paulo: Editora Biblioteca Azul, 2016a [2002]. [2002], p. 111).

Olga vai. Esse é um ponto em que a imagem evolui no romance tal como imagens oníricas e similares são tratadas por Hillman: nunca um símbolo a ser interpretado, seja por uma redução analítica ou por amplificação cultural, e sim como uma personificação cuja concretude demanda resposta e diálogo. Pouco depois, quando a pobre coitada surge ativamente pela última vez no texto, suas últimas palavras para a mulher napolitana não trazem indícios de que ela se sinta diante de uma projeção ou delírio. O agradecimento pelo papel que ela assumiu durante a crise é objetivo e tocante. Faz ressoar a observação de Hillman em Healing Fiction: “Quando uma imagem é concebida - totalmente imaginada como um ser vivo outro em relação a mim - então ela se torna um psicopompo, um guia com uma alma dotada da própria limitação e necessidade” (HILLMAN, 2019HILLMAN, James. Ficções que Curam: psicoterapia e imaginação em Freud, Jung e Adler. Tradução de Gustavo Barcellos. Campinas: Verso, 2019 [1983]. [1983], p. 97).

Psicopompo é o guia ou mensageiro capaz de transitar entre o mundo dos mortos e o mundo dos vivos, segundo diferentes tradições míticas, e entre as camadas mais profundas (ou arquetípicas) e mais cotidianas (e pessoais) da psique. Esse é exatamente o lugar que a poverella termina por ocupar na trama de Ferrante: não como um tipo social ou como um arquétipo do inconsciente coletivo, mas enquanto imagem que assume um caráter arquetípico adjetival, não substantivo, vinculada à sua força e função na trama, e não a uma suposta natureza exterior a ela. Imagens arquetípicas seriam aquelas que cumprem uma função semelhante na trama de nossas vidas. Isso implica que não estamos tratando de um grande “arquétipo da Pobre Coitada”, mas de uma imagem com suas limitações e necessidades próprias, gerada espontaneamente pela psique, emergindo em um contexto específico, e que nele esgota sua existência. “A pobre coitada voltou a ser como uma foto antiga, passado petrificado, sem sangue”, afirma a narradora no fim do romance” (FERRANTE, 2016aFERRANTE, Elena. Dias de abandono. Tradução de Francesca Cricelli. São Paulo: Editora Biblioteca Azul, 2016a [2002]. [2002], p. 179).

Tampouco a psique que dá vida à imagem segue uma dinâmica estritamente pessoal ou familiar, como sugeriria a psicanálise freudiana. As projeções individuais de Olga mostram-se intercaladas a outras influências, e por um tipo de porosidade que é um dos temas centrais na obra de Ferrante como um todo. Como exercício, cabe supor mais exatamente o que seria o tratamento da imaginação da pobre coitada como sintoma psicanalítico: o disfarce da lembrança de uma experiência de abandono ainda mais íntima e pessoal do que o convívio com a vizinha daria a entender. Possivelmente, o abandono da própria mãe pelo pai, ou um recorrente sentimento de ausência da figura paterna, que o gesto de Mario lhe reapresentasse. Mas a narrativa não nos conduz nesse sentido regressivo.

A imagem da pobre coitada, portanto, tem relações com experiências particulares da protagonista, mas não pode ser reduzida a uma expressão de traumas recalcados; e possui uma dimensão transpessoal importante, mas que não se refere a um modelo universal ou coletivo estável. Esse é o ponto a ser explorado. Decerto, há mitos e ritos que podem ser mobilizados para explorar as potencialidades da imagem sem restringi-la a uma definição, como a própria Deméter deprimida e neurótica segundo a leitura de Patricia Berry (2014aBERRY, Patricia. A neurose no rapto de Deméter/Perséfone. In: BERRY, Patricia. O corpo Sutil de Eco: contribuições para uma psicologia arquetípica. Tradução de Marla Anjos e Gustavo Barcellos. Petrópolis: Vozes, 2014a. p. 29-48., p. 29-48), que nos remeteria à indistinção entre a confusão mental e epifania dionisíaca segundo López-Pedraza (2002LÓPEZ-PEDRAZA, Rafael. Dioniso no Exílio: sobre a repressão da emoção e do corpo. Tradução de Roberto Cirani. São Paulo: Paulus, 2002., p. 36-37). Mas são as referências à Eneida de Virgílio que se destacam nesse sentido, em diferentes discursos de Ferrante, com destaque para a tetralogia napolitana, onde o poema é objeto de estudos de Lenu, e aparece em uma conversa entre ela e Lila, na qual falam de cidades que perecem quando o amor as abandona.

Quanto a Dias de abandono, é possível supor uma relação deliberada e consciente entre o título do romance e a história de Dido, cujo amor por Enéias se torna símbolo do florescimento de uma cidade e de sua derrocada. Em uma das perguntas que respondeu diretamente sobre o livro, Ferrante afirmou: “A sede do amor varre todas as outras necessidades e motiva todas as nossas ações. Leia o Livro 4 da Eneida [...] Indivíduos e cidades destituídos de amor se tornam um perigo para si mesmos e para os outros” (FERRANTE, 2016bFERRANTE, Elena. Frantumaglia: a writer’s journey. New York: Europa Editions, 2016b., p. 82). Podemos então inferir uma relação com tradição narrativa mediterrânea, com ênfase para as variações em torno do tema da mulher destituída ou abandonada. Isso não necessariamente estabelece uma linha de continuidade histórica nem um vínculo com um repertório comunitário fixo, porém nos dá um caminho para introduzir um tema central na representação da vida psíquica pela autora: a frantumaglia.

Pois, em uma longa e detalhada carta de resposta a uma entrevista, diante de uma menção ao papel da Eneida em seus textos, Ferrante (2017FERRANTE, Elena. Um amor incômodo. Tradução de Marcello Lino. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2017.) entretém a hipótese de que protagonistas como Olga e Delia (de Um amor incômodo) derivariam seu sofrimento da necessidade de conciliação como mitos e modelos culturais arcaicos, porém ainda ativos em suas psiques. Essa seria uma abordagem junguiana tradicional, em que tais modelos e mitos seriam substantivados como arquétipos, e teriam sua universalidade expandida ao inconsciente coletivo de maneira geral. Mas Ferrante prefere evitar o termo “origem”, tal como ele surge na indagação, e afirma que os termos “origem” e “arcaico” possuem um eco que a confunde. Ela propõe, então, outro termo para tratar das situações de sofrimento de suas protagonistas:

Minha mãe me deixou uma palavra de seu dialeto que ela usava para descrever como se sentia quando estava tomada por sensações contraditórias que a dilaceravam. Ela dizia que tinha dentro de si uma frantumaglia, um amontoado de fragmentos. A frantumaglia (ela pronunciava frantummàglia) a deixava deprimida. Às vezes a deixava tonta, às vezes a fazia sentir gosto de ferro na boca. Era uma palavra para uma inquietação indefinível de outro modo, referindo-se a uma multidão de coisas desconexas em sua cabeça, destroços na água turva do cérebro. A frantumaglia era misteriosa, provocava ações misteriosas, era a fonte de um sofrimento não rastreável a uma causa única e bem definida. Quando ela não era mais jovem, a frantumaglia a acordava no meio da noite, a levava a falar consigo mesma e a sentir vergonha disso, sugeriria alguma melodia indecifrável para que ela cantasse até se tornar um suspiro, a afugentava subitamente de casa deixando o forno ligado e o molho fervendo na panela. Com frequência a fazia chorar, e desde a infância a palavra permaneceu na minha mente para descrever, em particular, um acesso de choro sem razão específica: choro de frantumaglia. (FERRANTE, 2016bFERRANTE, Elena. Frantumaglia: a writer’s journey. New York: Europa Editions, 2016b., p. 98-99).

Em termos freudianos, essa seria a reação histérica típica contra uma realidade indesejável, o sintoma neurótico de uma psique doente; para Jung e os junguianos ortodoxos, seria um outro nome para um episódio psicótico, de subjugação à força de um arquétipo destrutivo. Mas a opção de Ferrante, por apresentar o fenômeno como algo destituído de arcaísmos coletivos e sem relação com um trauma originário pessoal, nos afastas de ambas as concepções. Até aqui, portanto, a frantumaglia segue sendo um mistério. Mas não um mistério sem equivalente na obra da própria Ferrante. Na tetralogia napolitana, por exemplo, há ecos da frantumaglia nos episódios de desmarginação de Lila. Esses limiares - em que a capacidade de discernimento da consciência desperta é substituída por uma sensibilidade extrema a influxos psíquicos e ambientais - se tornaram marcas de sua prosa. Enfim, entendo que, além de demonstrações de uma enorme maestria estilística, eles são também descrições de um estado psicológico que foi igualmente central na obra de James Hillman e na psicologia arquetípica de modo geral.

Cabe lembrar a ênfase de Ferrante no choro de frantumaglia, e de como há uma especificidade topográfica envolvida nas perturbações de Olga, que em algumas passagens se diz puxada para baixo. “O futuro - pensei - será todo assim, a vida viva junto ao cheiro úmido da terra dos mortos, a atenção com a desatenção, os saltos entusiastas do coração junto às quedas bruscas de significado”, ela afirma pouco antes do encerramento do romance (FERRANTE, 2016aFERRANTE, Elena. Dias de abandono. Tradução de Francesca Cricelli. São Paulo: Editora Biblioteca Azul, 2016a [2002]. [2002], p. 171). Temos, assim, uma linha do tempo que prioriza sua imagem como um espaço cartográfico, feito de “picos e vales”, sem que a paisagem contenha necessariamente um caminho em direção a uma meta, ou um ponto de fuga que torne possível evitar seu relevo acidentado (Cf. HILLMAN, 1979HILLMAN, James. Peaks and Vales: the soul/spirit distinction as basis for the differences between psychotherapy and spiritual discipline. In: HILLMAN, James. Puer papers. Irving: Spring Publications, 1979. p. 54-74. ). A teleologia da individuação junguiana e a regressão arqueológica da psicanálise, assim, dão lugar a uma temporalidade mais dedicada ao presente e seus arredores.

Mas o que se apresenta nesse presente geográfico, o que ele nos proporciona em termos de elaboração psicológica de nossas dores e traumas? O que temos a fazer neste terreno? A resposta de Hillman veio de uma carta de John Keats ao seu irmão: “Call the world, if you please, the vale of soul-making. Then you will find out the use of the world” (KEATS, 1958KEATS, John. Letter to George and Georgiana Keats. In: KEATS, John. The Letters of John Keats, 1814-1821. Edited by Hyder Edward Rollins. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1958 [1819]. p. 100-104. [1819], p. 101). A elaboração, a criação ou o cultivo da alma, portanto - ou, mais literalmente, o “fazer alma” - adquiriram para no pensamento de Hillman um papel semelhante ao da análise em Freud e o da individuação em Jung. As diferenças entre os três estão dadas, entre outros motivos, pelos vetores temporais, mas creio que só é possível entender as especificidades da abordagem arquetípica por meio de exemplos como o do romance de Elena Ferrante.

Assim, ao entrar em um diálogo com a poverella durante sua passagem pelo vale de lágrimas da fantrumaglia, a psique de Olga estaria produzindo algo que corresponde com exatidão àquilo que Hillman define como uma “imagem arquetípica”. E produzir imagens arquetípicas é produzir alma, ou seja, conferir densidade e profundidade aos eventos e movimentos de nossas vidas a que elas se relacionam, criando toda uma linguagem paralela à da narrativa cotidiana dos acontecimentos, sem que uma exclua a outra, mas permitindo que se enriqueçam mutuamente.

Considerações finais

Um dos grandes desafios enfrentados pela psicologia arquetípica é o de libertar as imagens dos quadros referenciais a que as submeteram as teorias precedentes. No caso de Freud, esse quadro era da história pessoal, com o deciframento do significado mais profundo da imagem encobridora através da análise; no caso de Jung, através da amplificação, tratava-se de identificar o arquétipo do inconsciente coletivo manifestado por uma de suas variações. A imagem arquetípica, porém, prescinde do arquétipo como uma estrutura de significações bem delimitadas e estudadas, ganhando sua adjetivação pela força motriz que carrega consigo.

Patricia Berry, por exemplo, no ensaio Uma abordagem ao sonho, defende que tanto a redução psicanalítica quanto a amplificação junguiana comprometem a capacidade de comunicação da imagem que é uma criação espontânea da psique, e, portanto, corresponde a uma necessidade que só ela própria pode levar até o fim, desde que tenha espaço para isso. A respeito de um homem que sonhou com a mãe lendo uma enciclopédia na cozinha de casa, Berry afirma, a despeito da precipitação de muitos analistas no gesto hermenêutico: “A psique já fez algo, algo está acontecendo na cozinha de sua mãe. Para ele a questão é trabalhar essa imagem (e deixar que essa imagem trabalhe nele) da maneira imaginativa/experimental que puder - o que requer colocar de lado todo julgamento e interpretação” (BERRY, 2014bBERRY, Patricia. Uma abordagem ao sonho. In: BERRY, Patricia. O corpo Sutil de Eco: contribuições para uma psicologia arquetípica. Tradução de Marla Anjos e Gustavo Barcellos. Petrópolis: Vozes, 2014b. p. 69-100., p. 79).

É isto o que vemos acontecer na relação entre Olga e a “pobre coitada” em Dias de abandono. Deve-se ressaltar, porém, que tal movimento estava já inscrito como uma possibilidade no pensamento junguiano. O que Hillman e Berry fizeram foi desdobrar esse tipo de procedimento em conclusões teóricas mais sistematizadas e prescrições práticas mais direcionadas por essa premissa. Assim, a imagem fica destituída de um significado estável e exterior a ela, mas evolui de acordo com um telos próprio, uma inclinação ou propósito específico de cada caso ou apresentação. É a psique guiando a si mesma, e precisando para isso apenas que nós não nos coloquemos em seu caminho.

Em seu romance, Elena Ferrante retrata uma mulher que atravessa um estado de profundo desespero e aguda depressão, sem que o uso de medicamentos ou o recurso a um terapeuta apareça como solução para o caso. Porém, a imagem que surge a princípio como sintoma da crise acaba tendo um papel decisivo em sua dissolução: ela não é peça de um diagnóstico, nem parte de um tratamento, ou então é ambas as coisas, interconectadas como partes de uma história levada adiante em uma relação direta com a imagem. Isso de maneira alguma torna medicamentos e terapeutas dispensáveis, mas mostra como a alma humana possui métodos próprios e inesperados de elaborar suas angústias, mesmo nas circunstâncias de maior isolamento e solidão. A psique tem seus caminhos para produzir a si mesma, para “criar alma”, e a literatura de ficção é certamente uma linguagem privilegiada tanto para representar quanto para incitar este processo.

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  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2022
  • Aceito
    15 Ago 2023
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