Acessibilidade / Reportar erro

A Córsega ou as servidões da autenticidade

INTERFACE

A Córsega ou as servidões da autenticidade1 1 La Corse ou les servitudes de l'authenticité. Traduzido por Sonia Taborda.

Jean-Louis Fabiani

Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales

1 Como abordar a ilha?

O ângulo geopolítico. A Córsega ocupa uma posição paradoxal no espaço geográfico francês. Não se trata verdadeiramente de um território de além-mar nem de um espaço incluído na continuidade territorial. Os mapas da França, por muito tempo representaram a Córsega aproximando-a da costa meridional do país, arrancando-a de sua ancoragem territorial no golfo de Gênova e negando a proximidade geográfica e cultural que ela mantém com a Itália. O mapa da França apresentado nos créditos do filme Tout va bien, de Jean-Luc Goddard e Jean-Pierre Gorin, situava a Córsega no noroeste de Dunquerque, indicando, melhor que com longos discursos, a situação flutuante da ilha no espaço nacional. A Córsega, como os corsos, sempre permaneceram na periferia, sem que esta seja claramente declarada: ao contrário, a retórica republicana negou regularmente os efeitos próprios da situação insular, antes de mudar de ponto de vista, propondo dispositivos destinados a atenuá-los, até mesmo a suprimi-los. Os habitantes oscilaram regulamente entre uma hiperidentificação aos valores nacionais (como mostra seu engajamento na Resistência, ou, mais comumente, a atração que manifestaram desde sempre pelas carreiras da função pública) e uma desconfiança em relação a decisões centrais.

A vulnerabilidade geopolítica da Córsega é um componente indiscutível de sua história. O período mussoliniano mostrou a realidade da ameaça anexionista bem como a oposição da grande maioria da população à tentação irredentista. Algumas das primeiras reivindicações culturais corsas se desenvolveram incoativamente na esteira do irredentismo. Mas não se deve esquecer uma outra forma de corsismo - muito republicano este - que faz da ilha um objeto de investigação cultural e que a pensa sob a forma de "pequena pátria", na definição que lhe deu o ensino público na virada do século. Assim, constituíram-se, a propósito da especificidade geográfica e cultural da Córsega, discursos e representações com orientações ideológicas diferentes e que coexistem em uma relativa indiferenciação.

Uma "exceção" política. Antes da literatura do século XIX (especialmente Mérimée) e o imaginário turístico do último meio século, as representações da Córsega foram construídas pelos primeiros observadores políticos e militares franceses, nos decênios que se seguiram à anexação à França: eles contribuíram poderosamente para a representação "excepcionalista" da ilha. O comissário Constant, à época da Restauração, escrevia em um de seus relatórios: "o estrangeiro se indaga se ele está na França ou na África, e se as leis feitas pela mais civilizada das nações convêm todas aos costumes agressivos de um povo que poderia, em suas montanhas, ser tomado por árabes do deserto" (citado por Pomponi, 1979, p. 353). Esta visão do ocupante oculta evidentemente o fato de que o Século das Luzes viu, na Córsega, pela iniciativa de Pasquale Paoli, o voto de uma Constituição, em 1755, modificada em 1764: a Córsega "paolista" estava então na vanguarda da preocupação democrática.

A história da Córsega francesa é inicialmente a do impossível controle de um território. Embora a ilha tenha caracteres comuns com outros departamentos rurais do sul da França, desde a chegada dos franceses, instaura-se, entre o centro a periferia, uma relação que prefigura a empresa colonial. As resistências levam a legislações de exceção e à militarização da manutenção da ordem. O episódio recente (1998-1999) e tragicômico só na aparência, que viu o prefeito Bonnet concentrar em suas mãos um poder de exceção de fato, em nome da situação de urgência inaugurada pelo assassinato de seu predecessor, pode assim inscrever-se em uma longa tradição de disposições, escritas ou não-escritas. No curso do século XIX, várias vozes oficiais se ergueram para solicitar a instalação de um "comandante superior" ou de uma autoridade única acima da separação dos poderes. Medidas policiais, judiciais, (como a supressão, em 1801, do tribunal do júri, que foi restabelecido em 1830), ou fiscais especiais fortaleceram essa situação de exceção.

O clientelismo. Os principais elementos do sistema clientelista corso foram fartamente descritos (Pomponi, 1978; Lenclud, 1986). O clientelismo corso se parece a um modelo bastante freqüente no mundo mediterrâneo. É caracterizado por uma relação fundada na troca de serviços (empregos, subvenções, pensões) por um apoio eleitoral. A relação clientelista instala, através de uma série de intermediações, a onipresença do Estado na vida psíquica dos corsos. Este fato torna simultaneamente complexa e ambivalente a relação de oposição ou de resistência ao poder central, que constitui uma constante da história corsa. Muitos fatos recentes só podem ser compreendidos se, na explicação, forem integradasas intermitências psíquicas frente a um poder repressivo e nutridor, odiado e amado no mesmo movimento. Ao contrário do que se poderia pensar ingenuamente, as reivindicações nacionalistas não têm por objeto a separação da França, mas, antes, um aprofundamento da relação, através do reconhecimento institucional da existência do povo corso e da garantia de maior ajuda financeira.

Nessa perspectiva, a relação clientelista não constitui um arcaísmo ou um atavismo, como os ideólogos modernizadores freqüentemente a qualificaram desde a metade do século XIX, mas um indicador da capacidade de adaptação de um sistema de regulação entre um centro e uma periferia. Foi o que mostrou o politicólogo Jean-Louis Briquet em um dos recentes trabalhos (Briquet, 1997). O modelo contemporâneo de funcionamento político-administrativo em escala local não veda a manutenção dos laços de clientela e a organização "clânica" das redes partidárias. Ele "até favorece sua perpetuação" (Briquet, p. 271). As relações privilegiadas que os eleitos mantêm com a Administração permite-lhes manipular as organizações públicas em função dos interesses de sua clientela. A descentralização e a implementação do estatuto especial da coletividade territorial da Córsega a partir da Lei Joxe (1991) contribuíram para a intensificação da concorrência para a apropriação dos recursos, tendo as transformações estatutárias simultaneamente ampliado as capacidades dos 'notáveis' locais para aprová-los diretamente e aumentado seu nível e diversidade. As reformas recentes podem, pois, fomentar os conflitos entre os grupos para terem acesso aos benefícios que elas trazem. Foi assim que a realização das sucessivas reformas de descentralização fortaleceu o poder dos 'notáveis' mais antigamente estabelecidos, ao contrário do imaginavam seus promotores. É claro que a forma modernizada do clientelismo supõe, talvez ainda mais que aquelas que prevaleceram desde a Terceira República, um regime de economia fortemente assistida, estando o essencial dos recursos assegurado pelas transferências do centro (hoje a França, amanhã talvez a União Européia) para a periferia insular. A este título, as prováveis transformações que nascerão do futuro dispositivo legislativo sobre o território insular poderão increver-se inteiramente em uma forma de continuidade neoclientelista, reforçando o espaço de mediação entre os cidadãos e os capitalistas.

Não é necessário estender-se por mais tempo sobre temas bastante bem explorados. Mais interessante é indagar-se sobre duas outras formas da organização social da Córsega, que mais raramente foram abordadas de frente. A primeira diz respeito ao que eu já tive oportunidade de chamar de "o impossível espaço público" na Córsega. A segunda tem a ver com a produção de uma autenticidade cultural como um conjunto de regras sobre o modo pelo qual os corsos têm a capacidade se pensarem de maneira reflexiva.

2 Publicidade e clandestinidade

Os fatos recentes mostraram amplamente: a Córsega é, ao mesmo tempo, uma terra de interconhecimento e uma terra do segredo. O sistema clientelista é fundado na relação de pessoa a pessoa, o que faz com que em uma cidade pequena, todo mundo tenha importância, qualquer que seja sua posição social. Um indivíduo não é definido só por sua situação na estrutura socioprofissional ou em um universo de renome, qualquer que seja: esse fato, aliás, freqüentemente perturba os funcionários continentais lotados na ilha, porque eles não conseguem conceber que seja necessário ter consideração com indivíduos que não desfrutam de nenhum reconhecimento social especial. Uma das dimensões do prestígio social reside também no fato de poder vangloriar-se com o número de seus amigos ou de seus parentes "desconhecidos" nos anuários sociais. Como uma terra onde, por tradição, todo mundo se conhece e onde a importância dos meios de comunicação locais relativamente ao número de ouvintes e de espectadores locais faz crescer tendencialmente o fenômeno, pode ela abrigar tantos segredos e clandestinidade?

Indagou-se pouco, nestes últimos anos, sobre a importância da "cagoule"2 2 N. T.: La cagoule - nome dado ao "Comité Secreto de Ação Revolucionária" (C.S.A.R.), grupo de extrema-direita, ativo de 1932 a 1940. nas formas de se apresentarem que os nacionalistas armados desenvolveram: trata-se de uma encenação destinada principalmente a chocar a imaginação dos cidadãos franceses, ou de uma real incapacidade de afirmar publicamente um ponto de vista? As observações que seguem constituem uma resposta parcial a este aspecto enigmático da vida "pública" corsa. Na Córsega, por um jogo de inversão, tende-se a revelar privadamente um certo número de segredos (especialmente aquele que concerne aos procedimentos de votação), enquanto se tem grande dificuldade de instaurar as condições de um debate democrático.

A despeito de reiteradas tentativas, a Córsega, por muito tempo, caracterizou-se por "costumes" eleitorais particulares: o abarrotamento das urnas, as práticas coercitivas como a distribuição, acompanhada de ameaças de represália, de boletins "à chave", cuja presença era exigida nas urnas, e, ainda, o desrespeito aos procedimentos eleitorais, constituem as figuras mais marcantes desses "costumes". Considerando-se que a vida eleitoral corsa hoje está muito mais próxima das normas eleitorais continentais como nunca conseguiu estar no último quarto de século, não é inútil retomar algumas tradições que continuam a exercer, seus efeitos, talvez menos diretamente que no passado. O sistema clientelista, organizado em torno da oposição entre partitu e contrapartitu exige que a fidelidade a um líder seja indiscutida. Se a filiação do chefe de partido pode mudar no curso do tempo (pôde constatar-se passagens brutais da esquerda à direita em inúmeras ocasiões), a natureza dos laços entre o patrono e seu cliente é fixa: o espaço de deliberação, mesmo que fictício, constituído pela cabine de votação é, nessa configuração simplesmente impensável. A relação de clientela supõe uma forma de fidelidade pública que pode manifestar-se na urna de votação, pela exibição, freqüentemente acompanhada de aplausos, da cédula eleitoral que traz o nome do chefe do partido. Em um regime de generalizado interconhecimento, esse tipo de afirmação, nas pequenas cidades, é, aliás, pura redundância: não informa a outrem nada que ele já não saiba perfeitamente.

Dessa publicidade das intenções de voto não se poderia concluir pela existência de uma Córsega que viveria, conforme os preceitos constitucionais editados por Jean-Jacques Rousseau a propósito da ilha (Rousseau, 1961), na "transparência da fé pública". Se a relação clientelista é uma relação entre duas pessoas, tome ela a forma do intercâmbio, da amizade ou da pertença comum a uma família ou a um grupo, o espaço político toma necessariamente uma forma diferente daquela do espaço público. Na Córsega, os historiadores do sufrágio, notaram muitas vezes que os eleitos pediam o voto de seus eleitores visitando-os em suas casas, postigos fechados, fora de qualquer reunião pública. Era freqüente que os "notáveis" recebessem sem estar bem vestidos, em trajes caseiros. Esses fatos não são anedóticos. E é significativo que, mesmo hoje, as campanhas eleitorais tomem a forma de 'porta-em-porta', mais do que de reunião pública. Quando estão na cidadezinha, os políticos, que, na Câmara ou no Senado, podem ser grandes oradores (há uma verdadeira tradição corsa nesta área), abandonam o recurso à palavra pública e privilegiam a relação individual.

O aparecimento da televisão regional, nos anos 80, ocasionou uma agitação muito violenta entre os políticos corsos. Irrompendo no jogo político local, ela foi, na verdade, percebida como uma ameaça, pois a informação televisiva introduziu uma mediação entre o eleitor e o eleito. À instantaneidade da relação homem-a-homem, na qual a distância social entre o patrono e o cliente é ficticiamente abolida, opõe-se inevitavelmente a dimensão abstrata e despersonalizada da relação televisual com o eleitor. A acusação contra a televisão pelos eleitos traduziu sua surpresa e sua reprovação por ver constituir-se no brilho dos ícones televisuais uma instância de estigmatização do regime usual da política local. Conta-se que, um dia, um eleito regional, queixando-se do calor e da luz desprendida pelos projetores, obrigou a equipe de filmagem presente a registrar suas imagens na penumbra: esta anedota pode ser considerada como uma metáfora da impossível transparência da relação política.

A inexistência de um espaço público político na Córsega é um dado que resiste muito fortemente às transformações históricas, quer se trate das mudanças do mercado do trabalho, ou das mutações da divisão do trabalho entre os sexos. Para ilustrar esta constatação, pode-se tomar a tentativa recente de um grupo de mulheres corsas na base de um Manifesto das mulheres contra a violência, destinado a pôr fim à lei do silêncio (que resultou no fato de que uma pequeníssima parte dos crimes cometidos na ilha é elucidada) e a impor novas formas de circulação do discurso público. O aparecimento dessas mulheres suscitou o ceticismo e a hostilidade dos eleitos bem como dos nacionalistas. Após um sucesso inicial totalmente inédito (mais de 20000 manifestantes, ou seja, quase um de dez habitantes da Córsega, reuniram-se para protestar contra a morte do prefeito Erignac, em 1998), o movimento não encontrou as condições que lhe teriam permitido instalar-se por muito tempo e modificar significativamente as condições do jogo político: as últimas manifestações não tiveram verdadeiro sucesso, e o movimento das mulheres conseguiu capitalizar uma emoção efêmera.

O que convencionamos chamar de o impossível espaço público na Córsega funda-se em um paradoxo: em um regime de interconhecimento generalizado (no qual as idas e vindas de uns e de outros no espaço da cidadezinha nunca passam despercebidos), a opacidade é a regra, e a tomada de posição pública, a exceção. É muito significativo, sob este aspecto que, no debate que agita a opinião pública francesa há alguns anos, os intelectuais e os universitários residentes na Córsega tenham permanecido constantemente silenciosos. A figura do intelectual engajado que assume publicamente suas posições tem incontestavelmente muita dificuldade de se constituir na ilha. O temor de medidas de represália é um dos elementos explicativos desse silêncio, mas não é o único: é no seio de espaços não-públicos que os intelectuais corsos preferencialmente debatem e que eles põem à prova suas construções ideológicas.

À ausência de publicidade pode-se associar a duplicidade que caracteriza, desde muito tempo, a cena política corsa. Notou-se freqüentemente que os eleitos corsos, ostensivamente os mais republicanos (e os mais antinacionalistas), sustentavam secretamente membros de organizações nacionalistas que praticavam o terrorismo. Tal jogo duplo suscitou freqüentemente a reprovação dos membros da administração do Estado lotados na ilha. A disposição a manter simultaneamente duas linguagens, uma em um espaço público, de alguma forma mutilado, que jamais obriga os eleitos a se porem de acordo com seus propósitos oficiais; a outra, no espaço do interconhecimento clientelista, não constitui de maneira alguma uma novidade na vida política corsa.

Ao longo da história da Córsega, os bandidos, de quem os nacionalistas e os grandes delinqüentes de hoje são, em muitos aspectos, continuadores, foram protegidos pelos prefeitos e pela cidadezinha (Gil, 1984). Em alguns períodos críticos, os bandidos se tornaram autônomos e acabaram por se voltar contra as populações e contra o sistema: um bom número de derivações nacionalistas recentes poderiam ser analisadas em função desse esquema de autonomização progressiva. O observador continental pode ficar muito revoltado pelo fato de que inúmeros corsos, que publicamente tinham manifestado sua emoção por ocasião do assassinato do prefeito Erignac, também tiveram compaixão de seu presumido matador, Ivan Colonna. Além da condenação moral de tal duplicidade, é preciso ter-se meios de perceber os mecanismos antropológicos desta ambivalência. A contradição entre a superintegração de uma parte da população relativamente ao aparelho burocrático republicano e a incapacidade da República para se implantar normalmente na Córsega permite explicar a duplicidade corsa como diferente da propensão à deslealdade ou à traição.

Deve-se acrescentar a essa dimensão o fato de que o próprio Estado algumas vezes tornou-se clandestino e assumiu como uma situação adquirida o fato de que as "cagoules" e a noite constituíam um espaço político. Os chargistas não são os únicos a denunciar o aspecto de "co-produção" de que se revestem algumas conferências de imprensa dos nacionalistas na escuridão da noite (pensa-se especialmente na grande reunião de Tralonca). Lionel Jospin pôs em prática sucessivamente duas políticas: a de restabelecimento em marcha forçada do Estado de Direito ao preço de derrapagens do Estado para fora do Direito, e a do diálogo com os nacionalistas que originou o processo de Matignon. Em outras conjunturas, ministros do Interior (srs. Debré e Pasqua, especialmente) puderam simultaneamente sustentar discursos extremamente firmes sobre a necessidade de manter francesa a Córsega e dialogar, na penumbra, com os nacionalistas.

À duplicidade dos corsos corresponde palavra por palavra a duplicidade do Estado. Sem prejulgar resultados da política conduzida atualmente pelo governo, é preciso sublinhar que o "processo Matignon" introduziu uma inovação na história das relações dos corsos com o Estado: o surgimento de um espaço público de diálogo entre todas as partes. Este fato é indiscutivelmente uma verdadeira mudança na política do Estado em relação à Córsega. Isso pressupõe que se reconheça, ao mesmo tempo, que não se pode tratar a Córsega como o conjunto do território francês (o que o poder público fez desde muito tempo, sem no entanto reconhecê-lo) e que as particularidades devem ser tratadas publicamente. Nada indica, por enquanto, que essa mudança de atitude do Estado seja suficiente, como tal, para tirar a Córsega do espaço político semiclandestino no qual uma parte da sociedade insular parece encontrar algumas vantagens. Incumbia, todavia, ao Estado implementar essa providência, que cria, paradoxalmente, as primeiras condições de uma integração da Córsega ao espaço político nacional.

3 Produzir autenticidade

As lutas para a reapropriação cultural constituíram temas inaugurais da mobilização corsa, com a reivindicação ambiental (Fabiani, 1993). O confronto entre o Estado e os nacionalistas, nos anos 80, teve maiormente por objeto a maneira de tratar os dossiês culturais, cujo elemento central, mas não exclusivo, era a questão do ensino da língua corsa. Foi necessário que os militantes culturais e políticos produzissem uma língua e uma cultura corsas que não preexistiam ao nascimento da reivindicação e que colocavam em relevo procedimentos, algumas vezes arbitrários, de unificação e de codificação de elementos dísparatados.

À semelhança do que se passou em outras regiões da Europa meridional, as reivindicações culturais surgidas na Córsega a partir do fim dos anos 60, geralmente tomaram a forma da reapropriação identitária. Como notou Antoine Ottavi:

A cultura corsa viveu muito tempo no descrédito não só por causa da França, que não a conhecia (e que continua a ignorá-la), mas por causa dos corsos. Para eles, a Córsega era, a uma só vez, o lugar de um apego habitualmente lacrimoso e grandiloqüente, ao mesmo tempo que uma região sem interesse. Aqueles que supostamente se ocupavam de cultura corsa eram, muitas vezes, italianizantes, e o que prevalecia em seu ponto de vista era a comparação, dita ou não dita, com a Itália. Dessa comparação decorria que a Córsega não tinha nem arquitetura, nem escultura, nem pintura (Ottavi, 1979, p. 124).

Encontra-se aqui o poder de um estereótipo: a Córsega é uma natureza antes que uma cultura, cuja primeira formulação explícita pode ser encontrada naquele que tematizou a dimensão patrimonial da ilha: Prosper Mérimée. O autor de Colomba via a verdadeira riqueza cultural da Córsega não em edifícios modestos e largamente importados do exterior, mas naquilo que designava como "a pura natureza do HOMEM" (Mérimée, p. 7). Foi esta natureza estranha e vingativa que se tornou o centro da representação dominante que os insulares, bem como seus visitantes, interiorizaram duradouramente.

Os movimentos político-culturais que fizeram da reapropriação identitária o tema central de sua mobilização começaram por contestar essa visão das coisas. A idéia de Mérimée, segundo a qual os "corsos jamais puderam cultivar as artes", associada à constatação da ausência de nomes corsos no panteon dos grandes criadores, é considerada como a expressão de um estigma, efeito histórico das múltiplas formas de dominação às quais a Córsega foi submetida no curso dos séculos. A lógica da inversão dos estigmas permite explicar a maior parte dos posicionamentos reivindicatórios em matéria cultural: a reaquisição (riacquistu) de uma cultura perdida ou denegada é empreendida nesta temática. As formas de expressão que se julga terem sido desvalorizadas pela cultura dominante são objeto de reabilitação e de investimento. Dispositivos cultos de coleta, de decodificação e de comparação são aplicados a objetos outrora considerados vazios de significação cultural ou simplesmente residuais. Trata-se de insistir na originalidade absoluta, no requinte e complexidade das formas culturais locais. O gozo estético se encontra subordinado à colocação de um comentário erudito e necessita da constituição de um corpo de mediadores culturais que freqüentemente mantêm relações ambíguas com o saber reconhecido (seja ele arqueológico, musicológico ou museológico, por exemplo) imitando suas formas de investigação e de comunicação, mas contestando suas pretensões à hegemonia,

Decorre da mesma problemática uma reescrita da história. A imagem da Córsega anterior à emergência dos movimentos identitários é globalmente considerada como inautêntica: a reapropriação supõe uma expropriação original. Mas é comum constatar que o que é exumado, redescoberto, reabilitado, encontra-se transformado pelo fato mesmo da operação de reconstrução que o considera como autêntico. Reconhecem-se aqui as problemáticas "da invenção de uma tradição" (Hobsbawm e Ranger, 1983) ou da "fabricação da autenticidade" (Peterson, 1992). O processo de redescoberta implica inevitavelmente recomposições, colagens e retraduções. Richard Peterson mostrou claramente, no caso da country music americana, que "a autenticidade não é um traço inerente ao objeto ou ao acontecimento declarado 'autêntico': trata-se, na verdade, de uma construção que deforma parcialmente o passado" (Peterson, p. 4) O resultado é sempre uma construção social que repousa sobre uma verdadeira "amnésia da gênese".

Enfim, a reescrita da história que a conduta reaquisitiva implica pode ser constatada em dois níveis: o primeiro é o da concentração da imagem cultural da Córsega em torno da figura do luto, através da importância consagrada à sua expressão, sob a forma dos lamenti e das voceri, em detrimento de várias outras manifestações da vida social. O segundo é o da constituição de uma espécie de mito da autonomia cultural, que tende a fazer do conjunto das formas simbólicas determináveis no espaço insular, a expressão de uma especificidade absoluta. Assim, é feita dupla violência à História. E, curiosamente, o esforço de reapropriação leva a reativar, de uma forma invertida, o estereótipo da "alma corsa", como expressão de uma naturalidade. A busca de uma identidade corsa pura tem por pressuposto a existência de um grupo étnico corso isolado, num momento em que não se pode perceber sua história, muito tempo antes da presença francesa, senão levando-se em conta o jogo complexo da circulação dos homens, dos capitais e das formas culturais no conjunto mediterrânico. Muitas proposições culturais na Córsega se referem mais facilmente a um passado imaginário nutrido por todas as literaturas sobre o colonialismo, do que permitem escrever os argumentos do futuro.

Estas breves notas não têm como objetivo concluir peremptoriamente o assunto da Córsega: já existem, além do mais, demasiadas teorias sobre a Córsega e os corsos, para que seja necessário acrescentar mais uma. Sejam de inspiração soberanística ou autonomista, essas representações, com muitíssima freqüência, fazem pouco caso da História. Utilizando lentamente a oposição entre tradição e modernidade (e principalmente insistindo em uma passagem rápida demais de uma sociedade tradicional a uma sociedade moderna), ignora-se, ao mesmo tempo, a capacidade de formas antigas se adaptarem às novas condições históricas e a novidade radical que a reivindicação de comportamentos tradicionais e autênticos podem constituir. Muitos corsos vivem esquecendo a realidade social de sua ilha. Convém, na hora em que a descentralização pode acentuar-se na Córsega, desenvolver nosso conhecimento sobre a Córsega contemporânea e restaurar as condições de uma história mais rigorosa.

  • ANDRÉANI, Jean-Louis. Comprendre la Corse Paris: Folio Actuel, 1999.
  • BRIQUET, Jean-Louis. La Tradition en mouvement. Clientélisme et politique en Corse Paris: Belin, 1997.
  • CHOURY, Maurice.La résistance en Corse. Tous bandits d'honneur Paris: Editions Sociales, 1973.
  • FABIANI, Jean-Louis. La télé au pays. Production locale des images et représentation politique. In: Actes de la recherche en sciences sociales, n. 71-72, 1988, p. 102-108.
  • FABIANI, Jean-Louis. Protection de la nature et expression de l'identité : l'exemple corse. In: Peuples méditerranéens, n. 62-63, 1993, p. 363-373.
  • FABIANI, Jean-Louis. L'inversion des stigmates. In: Suds et îles méditerranéennes. De l'assistance à l'initiative Corte: Presses de l'Université de Corse, 1994, p. 393-398.
  • FABIANI, Jean-Louis. La République n'a pas su construire en Corse un véritable espace public. Entretien avec Thomas Ferenczi. In: Le Monde, 5 novembre, 1996, p. 16.
  • GIL, José. La Corse entre la liberté et la terreur Paris: La Différence, 1984.
  • GIUDICI, Nicolas. Le Crépuscule des Corses Paris: Grasset, 1997.
  • HOBSBAWM E. et RANGER, T. The invention of tradition Cambridge: Cambridge University Press, 1983.
  • LENCLUD, Gérard. De bas en haut, de haut en bas. Le système des clans en Corse. In: Etudes rurales, n. 101-102, 1986.
  • LENCLUD, Gerard. Des idées et des hommes. Patronage électoral et clientélisme politique en Corse. In: Revue Française de Science Politique, n. 5, 1988.
  • MÉRIMÉE, Prosper. Notes d'un voyage en Corse Paris: Adam Biro, 1989 (réed.).
  • OTTAVI ANTOINE. Des Corses à part entière Paris: Le Seuil, 1979.
  • PETERSON, Richard. La fabrication de l'authenticité: la country music. In: Actes de la Recherche en Sciences Sociales, n. 99, 1992, p. 3-20.
  • POMPONI, Francis. A la recherche d'un "invariant" historique. La structure clanique dans la société corse. In:Pieve e paesi. Communautés rurales corses Paris: Editions du CNRS, 1978, p. 7-30.
  • POMPONI, Francis. Histoire de la Corse Paris: Hachette, 1979.
  • ROUSSEAU, Jean-Jacques. Projet de constitution pour la Corse. In: Oeuvres complètes, tome III Paris: Bibliothèque de la Pléiade, 1964 (1765), p. 901-950.
  • 1
    La Corse ou les servitudes de l'authenticité. Traduzido por Sonia Taborda.
  • 2
    N. T.:
    La cagoule - nome dado ao "Comité Secreto de Ação Revolucionária" (C.S.A.R.), grupo de extrema-direita, ativo de 1932 a 1940.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Jan 2004
    • Data do Fascículo
      Jan 2003
    Programa de Pós-Graduação em Sociologia - UFRGS Av. Bento Gonçalves, 9500 Prédio 43111 sala 103 , 91509-900 Porto Alegre RS Brasil , Tel.: +55 51 3316-6635 / 3308-7008, Fax.: +55 51 3316-6637 - Porto Alegre - RS - Brazil
    E-mail: revsoc@ufrgs.br