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Escolarização no Brasil: articulando as perspectivas de gênero, raça e classe social

Schooling in Brazil: articulating the perspectives of gender, race, and social class

Resumos

Este artigo apresenta os resultados de um experimento de articulação das dimensões gênero, raça e classe social no estudo da dinâmica da escolarização no Brasil, com base nos microdados do Censo Demográfico 2000. O nível de escolarização é medido por meio da média de anos de estudo realizados com aprovação pela população de 10 anos ou mais. O estudo evidencia que essas três dimensões produzem efeitos que não podem ser simplesmente adicionados, porque obedecem a lógicas distintas. À medida que se passa das gerações mais velhas para as mais novas, as mulheres passam da condição de inferioridade à de superioridade em termos de média de anos de estudo, ao passo que a população negra mantém-se em posição de inferioridade, em relação à população branca, em todas as idades, embora com alguma redução no nível de desigualdade. Por sua vez, as desigualdades educacionais relacionadas com as diferentes posições na ocupação, tomadas aqui como indicadores de classe, aparecem como as mais acentuadas, e isso tanto na população masculina como na feminina, tanto na população branca como na negra. O texto reforça, assim, a importância e a viabilidade de se articular, no estudo da escolarização, as dimensões gênero, raça e classe social, como recomendado pela literatura sobre a questão.

Brasil; Escolarização; Gênero; Raça; Classe social


The article presents results of an experiment in articulating the dimensions of gender, race, and social class in the study of the dynamics of schooling in Brazil based on the micro-data of the 2000 Demographic Census. The level of schooling is measured from the average years of study successfully completed by the population aged 10 or more. The study reveals that these three dimensions produce effects that cannot be simply added to each other, because they follow different logics. As we move from the older generations to the younger, women go from a situation of inferiority to one of superiority in terms of average years of schooling, whereas the black population maintains a position of inferiority in relation to the white population across all age groups, although with some reduction in the degree of inequality. In their turn, educational inequalities as related to the professional occupation, taken here as an indication of social class, appear as the most pronounced, both in male and female populations, and among blacks and whites. The text therefore reinforces the importance and possibility of articulating in the study of schooling the dimensions of gender, race, and social class, as recommended in the literature on the subject.

Brazil; Schooling; Gender; Race; Social class


ARTIGOS

Escolarização no Brasil: articulando as perspectivas de gênero, raça e classe social* Correspondência: Alceu Ravanello Ferraro R. Dona Laura, 924, apto. 201 90430-090 – Porto Alegre – RS E-mail: aferraro@adufrgs.ufrgs.br

Schooling in Brazil: articulating the perspectives of gender, race, and social class

Alceu Ravanello Ferraro

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Correspondência Correspondência: Alceu Ravanello Ferraro R. Dona Laura, 924, apto. 201 90430-090 – Porto Alegre – RS E-mail: aferraro@adufrgs.ufrgs.br

RESUMO

Este artigo apresenta os resultados de um experimento de articulação das dimensões gênero, raça e classe social no estudo da dinâmica da escolarização no Brasil, com base nos microdados do Censo Demográfico 2000. O nível de escolarização é medido por meio da média de anos de estudo realizados com aprovação pela população de 10 anos ou mais. O estudo evidencia que essas três dimensões produzem efeitos que não podem ser simplesmente adicionados, porque obedecem a lógicas distintas. À medida que se passa das gerações mais velhas para as mais novas, as mulheres passam da condição de inferioridade à de superioridade em termos de média de anos de estudo, ao passo que a população negra mantém-se em posição de inferioridade, em relação à população branca, em todas as idades, embora com alguma redução no nível de desigualdade. Por sua vez, as desigualdades educacionais relacionadas com as diferentes posições na ocupação, tomadas aqui como indicadores de classe, aparecem como as mais acentuadas, e isso tanto na população masculina como na feminina, tanto na população branca como na negra. O texto reforça, assim, a importância e a viabilidade de se articular, no estudo da escolarização, as dimensões gênero, raça e classe social, como recomendado pela literatura sobre a questão.

Palavras-chave: Brasil – Escolarização – Gênero – Raça – Classe social.

ABSTRACT

The article presents results of an experiment in articulating the dimensions of gender, race, and social class in the study of the dynamics of schooling in Brazil based on the micro-data of the 2000 Demographic Census. The level of schooling is measured from the average years of study successfully completed by the population aged 10 or more. The study reveals that these three dimensions produce effects that cannot be simply added to each other, because they follow different logics. As we move from the older generations to the younger, women go from a situation of inferiority to one of superiority in terms of average years of schooling, whereas the black population maintains a position of inferiority in relation to the white population across all age groups, although with some reduction in the degree of inequality. In their turn, educational inequalities as related to the professional occupation, taken here as an indication of social class, appear as the most pronounced, both in male and female populations, and among blacks and whites. The text therefore reinforces the importance and possibility of articulating in the study of schooling the dimensions of gender, race, and social class, as recommended in the literature on the subject.

Keywords: Brazil – Schooling – Gender – Race – Social class.

Este trabalho representa um experimento de articulação das perspectivas de gênero, raça e classe social no estudo da escolarização no Brasil. Pode parecer uma temeridade o propósito de articular, num único estudo, essa tríplice perspectiva, quando qualquer uma delas tomada individualmente envolve questões teórico-conceituais e metodológicas da maior complexidade. É por isso que se fala em experimento, no sentido de tentativa.

Em estudo publicado originalmente em 1988 (Scott, 1995), encontram-se elementos importantes para a abordagem aqui pretendida. Primeiramente, a autora dava como fato, já no final dos anos 1980, o interesse pela consideração das categorias classe, raça e gênero por parte de pesquisadoras feministas que queriam "inscrever as mulheres na história". Esclarecia ainda que o interesse por essas três categorias assinalava, de um lado, "o envolvimento do(a) pesquisador(a) com uma história que incluía as narrativas dos(as) oprimidos(as) e uma análise do sentido e da natureza de sua opressão" e, de outro, "uma compreensão de que as desigualdades de poder estão organizadas ao longo de, no mínimo, três eixos" – classe, raça e gênero. Em terceiro lugar, fazia um alerta de sumo interesse para o objetivo aqui perseguido: "a litania 'classe, raça e gênero' sugere uma paridade entre os três termos, mas, na verdade, eles não têm um estatuto equivalente". E justificava dizendo que, ao contrário da categoria classe, que tem seu fundamento na elaborada teoria de Marx (e seus desenvolvimentos ulteriores) sobre a determinação econômica e a mudança histórica, raça e gênero não carregam associações semelhantes. Por fim, em relação especificamente a gênero dizia que "seu uso implicou uma ampla gama tanto de posições teóricas quanto de simples referências descritivas às relações entre os dois sexos".

A partir da época desse texto de Scott, 1988, multiplicaram-se os estudos enfocando duas ou as três dimensões referidas. A título de exemplo, pode-se referir o estudo de Michel W. Apple (1987) sobre currículo; o de Diane Reay (1991) sobre a escola primária; o de P. Christie e A. Gordon (1992) sobre a política educacional na África do Sul pós-apartheid e o de Mariano F. Enguita (1996) sobre a ação de classe, gênero e etnia na educação. Quanto ao Brasil, pode-se destacar os estudos de Fúlvia Rosemberg (1993) sobre a relação de raça e gênero com analfabetismo; de Fúvia Rosemberg e Edith Piza (1995/1996) sobre as relações de gênero e de raça na produção de desigualdades educacionais; de Marília Pinto de Carvalho (1999; 2004), sobre a trajetória de vida e a prática pedagógica da professora Aida e sobre o papel do desempenho escolar na construção da identidade racial de meninos e meninas.

A essa dificuldade de ordem teórico-conceitual, que consiste no fato de as dimensões gênero, raça e classe social não terem um estatuto equivalente ou de cada uma delas ter sua especificidade, é preciso adicionar os desafios de ordem metodológica, inerentes à utilização de dados censitários, como no presente estudo. Na verdade, este estudo se constitui em mais um passo numa série de experimentos realizados com base nos censos demográficos, enfocando ora gênero e alfabetização, como no artigo "Gênero e alfabetização no Brasil de 1940 a 2000: a história quantitativa da relação" (Ferraro, 2009a); ora gênero, raça e escolarização, como no artigo "Gênero, raça e escolarização na Bahia e no Rio de Janeiro", com base no Censo 2000 (Ferraro, 2009b); ora ainda escolarização indígena, como no artigo "Alfabetização e escolarização indígena no Brasil segundo o Censo Demográfico 2000" (Ferraro; Schäfer, 2009).

Este artigo propôs-se introduzir também a dimensão classe social, além das dimensões gênero e raça, no estudo da escolarização, mas mantendo como fonte o Censo 2000. Se tal opção tem, por um lado, o inconveniente de não se valer de fonte mais atualizada, como seria a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2008 (PNAD 2008), tem, por outro, a vantagem de assegurar melhor a comparabilidade nessa sequência de estudos. Além disso, a categorização das posições na ocupação da PNAD 2008, informação-chave no que se refere à dimensão classe social, não coincide com a categorização do último censo, o que compromete a comparabilidade. Para compensar a desvantagem acima apontada, serão apresentados, ao final, alguns dados da PNAD 2008, no sentido de mostrar as alterações verificadas de 2000 para 2008, mas mantendo o Censo 2000 como base do presente estudo. De qualquer forma, o interesse primeiro não é oferecer a estatística mais atualizada, mas captar o movimento nas relações que as dimensões gênero, raça e classe mantêm com escolarização por meio das sucessivas gerações presentes no último levantamento censitário.

Gênero e escolarização

Há que enfrentar, aqui, algumas questões preliminares. Por que não se limitar a trabalhar com a variável sexo? Qual a utilidade de se recorrer à categoria gênero? E, ainda, gênero em que sentido?

Obviamente, os recenseadores perguntam sobre o sexo das pessoas, não sobre o seu gênero. Por isso, as tabelas e gráficos construídos a partir dos dados assim obtidos classificam as pessoas segundo o sexo, não segundo o gênero. São os(as) pesquisadores(as) que introduzem gênero como uma categoria analítica.

Em relação ao Brasil, no final dos anos 1980 Cristina Brusquini e Tina Amado (1988) constatavam que os estudos sobre mulher e os estudos sobre educação pouco se tinham beneficiado dos conhecimentos acumulados em cada uma dessas duas áreas. Decorrida pouco mais de uma década, Fúlvia Rosemberg (2001) chegava a conclusão semelhante:

Em síntese, este balanço, amplo em extensão, mas ainda preliminar, sobre a produção de conhecimentos relativos à educação, mulher e relações de gênero parece indicar pequeno avanço da década de 1990 em relação à década anterior. (p. 65)

No que se refere à pequena importância dada à educação na agenda feminista brasileira, Rosemberg (2001) tinha o seguinte entendimento:

Tem sido difícil ao movimento e teoria feministas enfrentar o desafio de interpretar, simultaneamente, um modelo de dominação de gênero e indicadores de escolaridade que apontam igualdade de acesso/permanência no sistema escolar entre homens e mulheres ou mesmo superioridade feminina, especialmente nos países subdesenvolvidos. (p. 65)

As restrições postas pelo feminismo francês de final dos anos 1980 e início dos 1990 ao termo gênero não conseguiram evitar que ele acabasse por se impor de maneira generalizada, mesmo que sem um acordo sobre o seu significado exato. Não se pretende entrar, aqui, nessa disputa em torno do significado do termo. Almeja-se apenas dizer em que sentido ele é utilizado no presente estudo. Para tal fim, parte-se da conhecida distinção feita por Linda Nicholson (2000) "de um lado, 'gênero' foi desenvolvido e é sempre usado em oposição a 'sexo', para descrever o que é socialmente construído em oposição ao que é biologicamente dado". E acrescenta a autora que, nesse caso, "'gênero' é tipicamente pensado como referência a personalidade e comportamento, não ao corpo; 'gênero' e 'sexo' são, portanto, compreendidos como distintos" (p. 9). A autora se inclina para o segundo significado, que ela formula nos termos seguintes:

De outro lado, "gênero" tem sido cada vez mais usado como referência a qualquer construção social que tenha a ver com a distinção masculino/feminino, incluindo as construções que separam corpos "femininos" de corpos "masculinos". (p. 9)

Ainda que com consciência das implicações, optou-se por trabalhar com o primeiro sentido do termo gênero, isto é, tomando-o "em oposição a sexo, para descrever o que é socialmente construído em oposição ao que é biologicamente dado". Parece que faz mais sentido, na análise de uma tabela censitária que classifica a população por sexo, apelar para a categoria social analítica gênero por oposição ao termo sexo enquanto referido "ao que é biologicamente dado".

Pensa-se que esse uso do termo gênero permite que se trabalhe com a variável sexo, como utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em seus levantamentos censitários e amostrais, e que, ao mesmo tempo, se introduza a categoria analítica gênero, justamente com o fito de contraditar o determinismo biológico na explicação das desigualdades sociais e educacionais entre homens e mulheres. Parece que essa opção acompanha o entendimento predominante nas ciências sociais a esse respeito:

Representando o aspecto social das relações entre os sexos, gênero é um conceito que se distingue do conceito biológico de sexo. A questão de se, e até que ponto, os aspectos biológicos dos sexos são pertinentes à compreensão do gênero é popularmente controvertida, mas dentro das ciências sociais a questão é encarada, de maneira ampla, como resolvida – a organização social é o fator esmagadoramente preponderante. (Walby, 1996)

O que se disse acima esclarece como se pode trabalhar com a variável sexo, assim como empregada, por exemplo, nos censos demográficos, a qual permite classificar a população em homens e mulheres, e, ao mesmo tempo, recorrer à categoria analítica gênero, para significar que eventuais desigualdades encontradas (sociais, educacionais...) entre aqueles e estas serão resultado de determinações sociais, não biológicas.

Dito isso, passa-se à análise da trajetória da escolarização de homens e mulheres por meio das sucessivas gerações presentes no Censo Demográfico 2000. Tal enunciado pode parecer contraditório. Com efeito, trata-se de uma abordagem transversal e não longitudinal. Mas a desagregação da população por grupos de idade, convertidos por sua vez em gerações sucessivas, produz efeito semelhante ao que se obteria pelo cálculo da média de anos de estudos em censos sucessivos, o que seria impraticável para o conjunto de variáveis consideradas neste estudo.

A Tabela 1 possibilita duas observações preliminares, de natureza estritamente demográfica. Em primeiro lugar, salta aos olhos o fato de que o contingente populacional torna-se cada vez menor à medida que se retrocede das gerações mais novas para as mais velhas. Isso é resultado de dois fatores: do crescimento demográfico, que veio tornando cada nova geração mais numerosa do que a anterior, e da mortalidade diferencial, que age com peso crescente e cumulativo na medida em que se vai das gerações mais novas para as mais velhas.

Em segundo lugar, a pequena vantagem numérica dos homens na geração 1980/1990 (17,64 milhões de homens contra 17,36 milhões de mulheres) cede logo lugar, na geração anterior (1970/1980), a uma pequena vantagem numérica das mulheres (14,99 milhões contra 14,71 milhões de homens), vantagem esta que se torna progressivamente maior à medida que se passa para as gerações mais velhas, atingindo o máximo na geração nascida até 1920, onde o número de mulheres (1.067.423) representa uma vez e meia (1,53) o número de homens sobreviventes com 80 anos ou mais (696.871). Obviamente, isso é resultado da taxa diferencial de mortalidade entre homens e mulheres.

O Gráfico 1 possibilita duas observações principais quanto à escolarização. A primeira é que as médias mais elevadas de anos de estudo encontradas em 2000 na geração 1970/1980 (7,8 anos de estudo para as mulheres e 7,0 para os homens) representam aproximadamente três vezes as médias apuradas nas gerações de homens e mulheres nascidos(as) até 1920; duas vezes as médias nas gerações de 1930/1940 e uma e meia vez as médias nas gerações 1940/1950. Isso significa que, na medida em que se passa das gerações mais velhas para as mais novas, a média de anos de estudo aumenta tanto entre homens como entre mulheres. A segunda observação, a mais marcante, refere-se à inversão histórica na relação entre sexo e escolarização. Com efeito, a pequena vantagem masculina em termos de média de anos de estudo apurada nas gerações mais velhas cede, primeiramente, lugar a um momento passageiro de paridade ou igualdade das médias de anos de estudo de mulheres e homens (geração 1950/1960), abrindo, em seguida, lugar para uma crescente superioridade das médias femininas de anos de estudo em relação às médias masculinas, com diferença máxima na geração 1970/1980. As médias menores e a diferença menor entre as médias masculina e feminina na geração 1980/1990 deve-se ao fato de que, no momento do Censo, parte dessa geração ainda cursava o Ensino Fundamental obrigatório, e outra parte, o Ensino Médio e primeiros anos do superior. A geração de 1950/1960 merece destaque por ser aquela que marca o ponto do cruzamento das trajetórias diferenciadas das médias masculina e feminina de anos de estudo. A igualdade ou paridade, portanto, só se realiza no cruzamento das duas trajetórias, não como estado ou situação duradoura.


Essa segunda observação exige que se aprofunde o assunto, o que pode ser feito buscando-se responder a uma questão histórica, que pode ser assim formulada: por que a vantagem masculina nas gerações mais velhas (até 1920, 1920/30, 1930/40 e 1940/50) é tão pequena na Tabela 1 e no Gráfico 1 quando as estatísticas (seja de alfabetização, seja de escolarização) para o conjunto dos homens e o conjunto das mulheres acusam acentuada superioridade masculina? A razão é simples e pode ser exemplificada facilmente. Tomemos a geração nascida até 1920, destacando, dentro desta, as pessoas nascidas entre 1906 e 1913, grupo que, no recenseamento 1920, contava de 7 a 14 anos. Pois bem, nesse grupo, em 1920, a taxa de alfabetização das meninas (19,35%) já quase igualava a taxa dos meninos (20,2%) (Brasil, 1920). Esses dados indicam com clareza que para se traçar e entender o movimento histórico de inversão na relação entre sexo e escolarização é necessário levar em conta que esse movimento ou tendência vem de longa data – pelo menos do início do século XX, provavelmente da segunda metade do século XIX. Essa quase equalização das taxas femininas de alfabetização e escolarização em relação às taxas masculinas, captada já no recenseamento de 1920, converteu-se, a partir do Censo 1940, em superioridade feminina, a começar pelos grupos de 5 a 9 e 10 a 14 anos naquele censo (Brasil, 1940), até se estender, no Censo 2000, a todos os grupos abaixo de 45 anos ou abaixo de 50 anos, dependendo do indicador utilizado (alfabetização ou média de anos de estudo). Se os pesquisadores e pesquisadoras em educação demoraram a tomar consciência da mudança, isso não significa que ela não viesse ocorrendo desde longe no tempo.

Os resultados acima encontrados sobre a relação entre gênero e escolarização no Brasil vão na direção dos achados de Marília Pinto de Carvalho (2003, p. 186), para quem, ao longo dos últimos 40 anos do século passado, assistiu-se não só a uma "ampliação muito grande do acesso à escola", mas também a uma "inversão entre os grupos de sexo indicando que as mulheres foram as maiores beneficiadas". Segundo os dados analisados pela autora, essa inversão em favor das mulheres se manifesta em termos tanto de média de anos de estudo cursados quanto de taxa de analfabetismo.

O que se acaba de dizer pode ser exemplificado com dados do último quartel do século XIX, os quais mostram que esse movimento forte de escolarização da mulher vem de longa data, embora ela continuasse ainda, por bastante tempo, em condição de inferioridade em relação ao homem. Com efeito, em 1875, as meninas representavam, em relação à matrícula total, os seguintes percentuais em alguns estados: 44,4% no Rio Grande do Sul, 37,9% em São Paulo, 34,9% no Pará, 29,1% na Bahia, 21% em Minas Gerais e 19% no Amazonas (Almeida, 1989). Ora, no estado de Minas Gerais, onde, em 1875, as meninas representavam apenas 21% da matrícula total, decorridos apenas 14 anos (1889), elas já alcançavam 34,4% da matrícula total em escolas primárias.

Uma coisa são os valores e pretensões da sociedade votante e mandante, que define ou acha que pode definir a casa e a família como o lugar e a ocupação da mulher; coisa bem diferente são as concepções, os valores e as práticas efetivas de pais e meninas quanto à escola(rização). Se a relação entre mulher e escola mudou, essa mudança certamente tem a ver não com sexo (com os aspectos biológicos que distinguem homens e mulheres), mas com gênero (com as mudanças nas concepções e valores a respeito da mulher e de seu lugar e papel na sociedade, assim como nas relações sociais entre homens e mulheres).

Raça e escolarização

Em relação ao termo raça, a questão conceitual é complexa, por envolver também cor e etnia. No Brasil, até 1980, os censos demográficos, quando incluíram o item no questionário, referiram-se sempre apenas a cor, distinguindo no Censo 1980 quatro categorias: branca, preta, parda e amarela. A partir do Censo Demográfico 1991, o IBGE incluiu uma quinta categoria, indígena, passando-se então a falar de cor ou raça, em vez de simplesmente de cor. No Censo 2000, as cinco categorias de cor ou raça do questionário para a autoclassificação das pessoas investigadas foram assim definidas: Branca – para a pessoa que se enquadrou como branca; Preta – para a pessoa que se enquadrou como preta; Amarela – para a pessoa que se enquadrou como de raça amarela de origem japonesa, chinesa, coreana etc.; Parda – para a pessoa que se enquadrou como parda ou se declarou mulata, cabocla, cafuza, mameluca ou mestiça; Indígena – para a pessoa que se declarou como indígena ou índia (Brasil, 2000)1 1 . Devido ao limite posto à extensão do texto, omitiu-se aqui breve histórico do conceito de raça que constava no texto original, a começar pelas teorias biológicas de raça do século XIX, como o Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, de Arthur de Gobineau, de 1853/55, e Da luta das raças, de L. Gumplowicz, do ano de 1882, cuja influência se manifestou, no Brasil, em obras como História da literatura brasileira, de Sílvio Romero, de 1888, Os sertões, de Euclides da Cunha, de 1902, e Populações meridionais do Brasil, de Oliveira Vianna, de 1920, entre outras. .

Dada a complexidade da análise, optou-se por considerar, neste estudo, apenas as pessoas autodeclaradas brancas, pretas ou pardas, agrupando-se as pretas e pardas na categoria "negras", o que já constitui prática frequente nas pesquisas sociais em geral e nas educacionais em particular.

O Gráfico 2, elaborado a partir da Tabela 2, permite analisar, por meio das sucessivas gerações recenseadas no ano 2000, a trajetória da relação que brancos(as) e negros(as) mantêm com a escolarização medida por meio da média de anos de estudo concluídos com aprovação. Tal análise pode ser feita de vários pontos de vista. Primeiramente, tomando-se como ponto de partida a geração das pessoas nascidas até 1920, observa-se que cada nova geração, tanto de brancos(as) como de negros(as), foi adicionando à geração anterior praticamente a mesma quantidade de anos de estudo, de sorte que as duas linhas do Gráfico 2 apresentam movimento ascendente, mas mantendo entre si aproximadamente a mesma distância, de aproximadamente 2 anos de estudo, entre brancos(as) e negros(as), com exceção da geração 1980/1990, ainda em fase de escolarização fundamental e média quando da realização do Censo 2000. Vista a coisa sob esse ponto de vista, a distância ou desigualdade entre brancos(as) e negros(as) quanto a anos de escolarização realizados com aprovação manteve-se constante em todo o período que vai da geração até 1920 à geração 1970/1980 – cerca de 2 anos de estudo de diferença.


Analisado o Gráfico numa outra perspectiva (em termos relativos, agora), a distância que separa a população negra em relação à branca em termos de anos de estudo é progressivamente menor à medida que se passa da geração até 1920 a geração 1970/1980. Com efeito, a média de anos de estudo da população branca na geração até 1920 (3,1), que representava 2,6 vezes a média de anos de estudo da população negra da mesma geração (1,2), cai sucessivamente para 2,0 vezes na geração de 1930/1940, para 1,5 vez na geração 1950/1960 e finalmente para 1,3 vez na geração 1970/1980. Sob esse aspecto, a desigualdade entre os dois grupos populacionais diminui à medida que se passa das gerações mais velhas para as gerações mais novas, excetuada a geração 1980/1990, ainda em fase de escolarização fundamental e média.

Mas não se pode perder de vista que, sob qualquer ângulo, a desigualdade entre negros(as) e brancos(as) quanto à escolarização está presente em todas as gerações recenseadas no Censo 2000, desde a mais velha (nascidos até 1920), até as mais novas (nascidos nas décadas de 1970/1980 e 1980/1990). Confrontando esses resultados com os apurados no item anterior, pode-se concluir que a ação ou determinação da variável cor ou raça obedece a uma lógica distinta daquela que rege a relação entre sexo e escolarização no Brasil.

Os dados da Tabela 2 e do Gráfico 2 vão na mesma direção de muitos estudos realizados no Brasil, que demonstram a continuidade das desigualdades raciais no país. Assim, por exemplo, em estudo que teve por base tanto o Censo 2000 como uma série de PNADs (1995/2001), Jaccoud e Beghin (2002) mostram, entre outras coisas: que um indivíduo negro médio tem uma renda per capita que corresponde a menos de metade daquela de um indivíduo branco brasileiro médio; que a taxa de analfabetismo é, em todas as PNADs analisadas, sempre muito mais elevada entre negros do que entre brancos; que os negros têm entre 2 e 2,5 anos de estudo a menos do que os brancos, assim como também taxas mais baixas de escolarização.

Gênero, raça e escolarização

Analisa-se agora, com base na Tabela 3 e no Gráfico 3, a relação cruzada das variáveis sexo e cor ou raça com escolarização. O Gráfico 3 revela duas coisas:

• de um lado, que a inversão apurada na relação entre sexo e escolarização se verifica em ambas as categorias de cor ou raça, isto é, tanto entre brancos(as) como entre negros(as);

• de outro, que a desigualdade de aproximadamente 2 anos de estudo apresentada pela população negra em relação à branca, verificada em todos os grupos de idade da geração até 1920 à geração 1970/1980, mantém-se tanto entre homens como entre mulheres.


Em outras palavras, o tratamento conjugado de sexo e cor ou raça em sua relação com escolarização permite verificar que cada uma dessas duas variáveis obedece a uma lógica distinta. Com efeito, a desigualdade entre homens e mulheres se inverte a partir da geração 1950/1960, enquanto que a desigualdade de cor ou raça (entre brancos(as) e negros(as)) se mantém constante em termos absolutos (aproximadamente 2 anos de estudo), embora, em termos relativos, se torne menor a cada geração.

Classe social e escolarização

Em relação ao termo classe social o pesquisador se defronta com duas questões básicas, que podem ser assim formuladas: continua tendo sentido o conceito de classe social no estudo das relações sociais? Se a resposta à primeira pergunta for afirmativa, então: qual a teoria de classe a ser adotada na pesquisa?

Comecemos com a primeira pergunta. Para o sociólogo Alain Touraine (1991)2 2 . É minha a tradução das citações do autor. , as sociedades verticais (up ou down), chamadas de sociedades de classes, teriam cedido primazia às sociedades de tipo horizontal, marcadas pela relação centro-periferia (in ou out). Note-se que o autor escreveu após a derrocada da União Soviética e a derrubada do muro de Berlim. Nas suas palavras, já estávamos vivendo, então, em 1991,

[...] a passagem de uma sociedade vertical, que nos habituamos a chamar de sociedade de classes, com pessoas situadas em cima e outras pessoas embaixo, para uma sociedade horizontal onde o importante é saber se a gente está no centro ou na periferia. (p. 8)

Ainda segundo o autor:

Em outro tempo as pessoas que se encontravam embaixo estavam profundamente persuadidas de que podiam inverter a sociedade em nome de um outro modelo, como dizem ainda os últimos sustentadores desse discurso, os alternativos. (p. 8)

E o mesmo autor esclarece:

Se ontem a gente propunha ainda uma outra sociedade qualificada de anarquista, de socialista, de comunista, a questão hoje não é mais de estar up or down [em cima ou embaixo] mas in or out [dentro ou fora]: aqueles que não estão in querem estar, do contrário eles estão no vazio social. Não há modelo alternativo, o que muda tudo. (p. 8)

Cinco anos depois do texto de Touraine, Serge Paugam (1996), na introdução à obra por ele organizada sob o título de L'éxclusion, l'état des savoirs (A exclusão, o estado do conhecimento), observava que o termo exclusão acabara tornando-se, nos últimos dez anos, "uma noção familiar, quase banal", o que teria feito dela uma noção pouco utilizada. Para o autor, os partidos de esquerda ofereciam resistência ao uso do termo, seja por entenderem que ele remetia à ideia de lumpenproletariat, do qual não se podia esperar a revolução, seja porque ele se afastava, pelo menos na visão de Lenoir3 3 . Serge Paugam (1991) refere-se a René Lenoir como a pessoa "a quem com frequência se reconhece o mérito de haver inventado esta noção [de exclusão] em 1974" (p. 8). , de uma visão dialética de luta de classes. Por tudo isso, segundo Paugam (1996), a noção de exclusão teria sido rejeitada, tendo entrado em "fase de sono", só retornando com força, agora com ares de um novo paradigma, a partir do início da década de 1990, justamente quando se dá a publicação do artigo de Alain Touraine (1991) referido anteriormente.

François-Xavier Merrien (1996) chega a referir-se ao termo exclusão como "nascido" na França (...en France, où est né le terme exclusion) (p. 42). No Brasil, decorridos apenas três anos do referido estudo, mostrou-se que tanto o termo como o conceito de exclusão eram bem mais antigos do que pensava Merrien, aparecendo com clareza já na obra de Marx (Ferraro, 1999).

Em texto do mesmo ano, Marlene Ribeiro (1999) aprofundava a crítica ao conceito do termo exclusão, colocando em debate "algumas possibilidades e limites" no uso dessa categoria. Para a autora, se, por um lado, é no interior da "nova questão social" que ganha força o conceito de exclusão, por outro, "é justamente nesse contexto e nessa singularidade do conceito" que estão os seus maiores limites. E contrapondo-se à tese já citada de Touraine, diz que, "mais do que nunca, vivemos o momento da luta de classes em que a correlação de forças está favorável ao capital", o que, no entanto, "não pressupõe que as camadas populares tenham perdido a capacidade de lutar e de tomar iniciativas". Nesse sentido, o principal limite do termo exclusão estaria, segundo a autora, no uso que dele se faz, seja abstraindo-se das relações de classe, seja em substituição ao paradigma de classes sociais.

Em trabalho mais recente, intitulado Marx e a exclusão, Avelino da Rosa Oliveira (2004) chegou a uma conclusão que se contrapõe tanto ao pretenso novo paradigma de Paugam quanto ao modelo de sociedade horizontal pautado pelo in ou out de Touraine. Diz:

[...] assim é possível compreender que o conceito de exclusão só adquire sentido no interior de uma totalidade complexa, orientada na perspectiva da sociedade de classes. (p. 144)

Nesse sentido, a noção de exclusão não afasta nem substitui a noção de classe social; muito pelo contrário, é o conceito ou paradigma de classes que continua evidenciando como "a exclusão e inclusão subordinada já são percebidas como processos inerentes ao sistema do capital", por definição um sistema de classes sociais.

Não se trata, portanto, de optar ou pela categoria exclusão ou pelo paradigma de classes sociais, mas de (re)situar o fenômeno da exclusão massiva e das novas formas de inclusão subordinada, que caracterizam o atual momento histórico, dentro do marco teórico do paradigma de classes sociais, este, sim, central, seja na materialidade do sistema capitalista, seja no estudo deste.

Estabelecida, assim, a atualidade do paradigma de classes, cumpre também esclarecer que tal resgate se dá com base na teoria marxiana de classes, o que responde à segunda pergunta acima formulada. Seria impraticável percorrer aqui todas as diferentes abordagens sobre o fenômeno das classes sociais. O elemento fundamental para o conceito marxiano-engelsiano de classes poderá ser encontrado quase ao final do Livro III de O capital, no curto e inacabado capítulo intitulado "As classes". Ali Marx (s/d) diz primeiro o que é que constitui e, a seguir, o que é que não constitui as classes. O que constitui as classes:

Vimos ser tendência constante e lei do desenvolvimento do modo capitalista de produção separar cada vez mais do trabalho os meios de produção e concentrar em constelações cada vez maiores os meios de produção dispersos, ou seja, converter o trabalho em trabalho assalariado e os meios de produção em capital. (p. 1012; grifos meus)

A essas duas classes fundamentais – capitalistas ou proprietários dos meios de produção versus assalariados, Marx (s/d) acrescenta a classe dos proprietários de terra, classe que é o resultado da "conversão de toda propriedade fundiária à forma adequada ao modo capitalista de produção" (p. 1013). Mesmo incompleto, o curto texto de Marx deixa claro que o que faz dos assalariados, dos capitalistas e dos proprietários de terra membros das três grandes classes sociais não é nem a renda nem a fonte diferenciada de renda, mas a forma de inserção no modo de produção capitalista, que segrega, num lado, os detentores dos meios de produção, e no lado oposto, aqueles que são possuidores apenas de sua força de trabalho, que põem à venda no mercado em troca de um salário.

Em outras palavras, o conceito marxiano de classes rejeita por antecipação o conceito corrente que define classes com base na renda ou em indicadores de consumo, como automóveis, número de peças do domicílio, eletrodomésticos etc. Na concepção marxiana, a definição de classes se dá com base na forma de inserção no processo de produção, com destaque, de um lado, para os proprietários dos meios de produção e compradores de força de trabalho, e de outro, para os possuidores e vendedores de força de trabalho – os trabalhadores assalariados. A terceira classe, dos proprietários fundiários, resulta da e submete-se a essa relação fundamental do modo capitalista de produção entre capitalistas e assalariados. O argumento de que, desde Marx, a classe operária fabril cedeu crescentemente lugar ao setor terciário, dos serviços, não prova o enfraquecimento da relação fundamental entre capital e trabalho assalariado – fabril ou outro. As outras classes que Marx distingue em suas obras, como a pequena burguesia e o campesinato, definem-se por sua relação com as duas classes fundamentais: a capitalista e a dos trabalhadores assalariados.

É fato reconhecido que esse conceito de classe social incomoda. E incomoda precisamente porque, ao colocar o fundamento da estrutura de classes no modo de produção, não no consumo (teorias de estratificação social), acaba por situar a "luta de classes" no núcleo do próprio conceito de classes sociais, o que sempre aterrorizou a burguesia, para quem a divisão de classes não passa de um mal-entendido. É Marx (1982) quem esclarece isso em As lutas de classe em França:

A frase que correspondia a esta imaginária abolição das relações entre classes era fraternité, a fraternidade universal, o amor entre os irmãos. Esta cômoda abstração dos antagonismos de classes, esta conciliação sentimental dos interesses de classe contraditórios, esta visionária elevação acima da luta de classes, a fraternité era na verdade a palavra-chave da revolução de Fevereiro [de 1848]. As classes estavam divididas por um simples mal-entendido. Em 24 de Fevereiro, Lamartine baptizou assim o governo provisório: "un gouvernement qui suspend ce malentendu terriblle qui existe entre les différentes classes" [um governo que acaba com esse mal-entendido terrível que existe entre as diferentes classes]. O proletariado de Paris regalou-se nesta generosa embriaguez de fraternidade. (p. 48; grifos do autor)

Conforme já esclarecido acima, em suas pesquisas o IBGE não trabalha com o conceito de classe social. Consequentemente, também não estará preocupado com a operacionalização do conceito, o que demandaria dos organizadores uma tomada de posição relativamente às diversas teorias de classe. O que os pesquisadores têm tentado fazer é construir indicadores de classe a partir de determinadas informações (sobre posição na ocupação, renda etc.), levantados seja pelos censos, seja por pesquisas amostrais. É fácil, por exemplo, construir uma hierarquia de renda, dividindo a população em quintis de renda familiar per capita, como no estudo de Castro (2009, tabelas 2, 4 e 6 ), ou em tercis de renda, chamando-os de classe alta, média e baixa, como no estudo de Osório (2009, Tabelas 1 a 4 ), ou, ainda, classificar a população em N categorias de salários-mínimos, como no estudo de Queiroz (2003, Tabela 6 ) sobre vestibular e desigualdades raciais. Essa linha de procedimento significa adesão a posturas teóricas que se contrapõem à teoria marxiana de classes. Optou-se, aqui, por trabalhar com um indicador censitário na expectativa de que permita pelo menos uma aproximação ao conceito marxiano de classes. Tal indicador foi buscado na variável censitária posição na ocupação. Não por se imaginar que isso resolva todos os problemas; trata-se de uma tentativa, de um experimento.

Em relação a esse ponto, deseja-se lembrar interessante observação feita por Rosemary Crompton (1989) em seu estudo sobre classe e gênero. Ressalvando que não tinha a pretensão de oferecer uma definição "correta" de classe social, ela sugere que uma das dificuldades no debate sobre classe e gênero estaria precisamente no fato de que "diferentes pesquisadores trabalham com diferentes definições de 'classe', embora nem sempre tal fato seja reconhecido" (p. 567). No texto, a autora analisa o que chama de modelo neomarxista de classe de Eric Wright e a classificação neoweberiana de classe de Goldthorp, com o seguinte esclarecimento: "na construção de seus modelos de classe, o ponto de partida para ambos, Wright e Goldthorp, é a divisão do trabalho" (p. 570). No Brasil, quem se tem dedicado a analisar e aplicar o modelo neomarxista de Wright é José Alcides Santos (2002; 2007).

Feito esse esclarecimento pode-se passar à consideração da Tabela 4 e do Gráfico 4. A primeira coisa a esclarecer é por que a média de anos de estudo encontrada na categoria Aprendiz ou estagiário sem remuneração se configura relativamente elevada em comparação com as médias apresentadas particularmente pelas categorias Empresário e Empregado com carteira assinada. Tal fato se explica por dois motivos: primeiro, pela própria exigência de um patamar mínimo de escolaridade para quem quiser ser admitido na condição de aprendiz ou estagiário(a); segundo, pelo fato de se tratar de um grupo extremamente jovem, por isso mesmo relativamente mais escolarizado do que as demais categorias de posição na ocupação, que compreendem pessoas de 10 anos a 80 ou mais anos de idade.


Subsequentemente, importa destacar a enorme disparidade entre as diferentes categorias de posição na ocupação que figuram na Tabela 4 e no Gráfico 4. Com efeito, a média de anos de estudo, que atinge o máximo de 10,2 anos na categoria Empregador, baixa sucessivamente para 8,3 anos na categoria Empregado com carteira de trabalho assinada, até o mínimo de 2,2 anos de estudo na categoria Trabalhador na produção para o próprio consumo – uma relação aproximada de 5/1 entre os extremos.

A categoria Empregado com carteira de trabalho assinada é a mais numerosa (22,25 milhões) e compreende subcategorias das mais diversas, que vão desde altos executivos no setor privado e ocupantes de altos cargos no setor público até trabalhadores no setor privado e funcionários públicos semiqualificados e não qualificados. É evidente que a variação em termos de anos de estudo entre esses dois extremos deve ser acentuada.

Voltando à Tabela 4 ; a primeira observação que se impõe é que, por maiores que sejam os desníveis entre elas, todas as cinco categorias nominadas de Empregado, Conta própria ou Trabalhador doméstico apresentam sempre índices inferiores ao da categoria Empregador. Dentre aquelas, apenas a categoria Empregado com carteira de trabalho assinada ultrapassa, em média (8,3 anos), os 8 anos de escolarização obrigatória estabelecida pela Constituição (Ensino Fundamental completo). Todas as demais categorias situam-se abaixo do patamar de 8 anos de escolarização, a começar pelos 15,5 milhões que compõe a categoria Empregado sem carteira de trabalho assinada, com uma média de 7,2 anos de estudo, seguida, por sua vez, por quase igual número de trabalhadores situados na categoria Conta própria (15,1 milhões), com uma média de 6,1 anos de estudo. Com níveis bem mais baixos de escolarização, totalizando cerca 4,8 milhões, figuram os trabalhadores domésticos, com ou sem carteira assinada, com médias, respectivamente, de 5,0 e 4,8 anos de estudo. No nível mais baixo da escala estão os quase 2 milhões reunidos na categoria Trabalhador na produção para o próprio consumo, com não mais de 2,2 anos de estudo em média, o que representa pouco mais de ¼ do que a Constituição estabelecia, no ano 2000, como mínimo em termos de direito público subjetivo, isto é, Ensino Fundamental com duração de 8 anos4 4 . A Lei n. 11.274, de 6 de fevereiro de 2006, ampliou para 9 (nove) anos a duração do Ensino Fundamental, com matrícula obrigatória a partir dos 6 (seis) anos de idade. .

Classe social, gênero, raça e escolarização

Trata-se agora de captar a ação conjunta de classe, raça e gênero sobre a escolarização medida pela média de anos de estudo concluídos com aprovação por cada pessoa de 10 anos ou mais. Os grupos de idade convertidos em gerações entram como variável de controle. No fundo, trata-se de colocar em realce a determinação (ou não) de cada uma e do conjunto das dimensões classe, raça e gênero sobre a escolarização (média de anos de estudo) nas diferentes gerações presentes na população do Censo 2000. Se há quem acha que classe explica tudo, há também quem entende que classe não explica nada. Além disso, se as dimensões classe, raça e gênero não têm o mesmo estatuto científico, conforme se viu antes, é necessário pelo menos que se tente decifrar o enigma, ou seja, captar o que cada uma dessas dimensões tem de específico na determinação dos diferentes níveis de escolarização. A Tabela 5 e o Gráfico 5 foram planejados precisamente com esse objetivo.


Como já se disse, a dimensão classe social será abordada a partir da variável censitária posição na ocupação; a dimensão gênero, a partir da variável sexo; a dimensão raça ou étnico-racial, a partir da variável censitária cor ou raça. Esta última dimensão fica limitada, neste estudo, às categorias mulher branca, mulher negra, homem negro, homem branco, resultando a categoria negros(as) da soma de pretos(as) e pardos(as). As observações oportunizadas pela Tabela 5 e Gráfico 5 podem ser organizadas em termos de cada uma das três dimensões referidas.

A dimensão gênero

Com uma única exceção (Não remunerado em ajuda a membro do domicílio), em todas as demais categorias de posição na ocupação, desde a de Empresário até a de Trabalhador na produção para o próprio consumo, as mulheres, tanto brancas como negras, apresentam médias de anos de estudo nitidamente mais elevadas do que os homens de mesma posição na ocupação e de mesma cor ou raça. A vantagem feminina é mais acentuada nas categorias Empregado sem carteira assinada e Conta própria, que somam juntas quase metade (30,6 milhões) da população ocupada (63,8 milhões), como se pode conferir na Tabela 4 . Na categoria Empregado sem carteira assinada, as médias femininas de anos de estudo ultrapassam as médias masculinas em quase três anos de estudo, tanto entre brancas(os) como entre negras(os): mulher branca – 9,9; mulher negra – 7,9; homem branco – 7,2 e homem negro – 5,1 anos de estudo.

A desigualdade de gênero quanto à escolarização, que historicamente pesara em desfavor da mulher, converte-se, agora, a favor dela. Sempre de acordo com a Tabela 5 e o Gráfico 5, essa inversão é de tal ordem que a mulher negra chega a superar o homem branco em termos de média de anos de estudo nas seguintes categorias de posição na ocupação: Empregado com carteira de trabalho assinada, Empregado sem carteira assinada, Trabalhador doméstico com carteira de trabalho assinada e Trabalhador doméstico sem carteira de trabalho assinada. Essas quatro categorias somam 2/3 do total de pessoas ocupadas (22,2 milhões, 15,5 milhões, 1,5 milhões e 3,4 milhões, respectivamente), como se pode conferir na Tabela 4 .

A dimensão raça

Analisando-se, agora, o Gráfico 5 na perspectiva das duas categorias construídas a partir da variável censitária cor ou raça, tem-se um padrão constante que pode ser assim expresso: vantagem, em termos de anos de estudo, tanto das mulheres brancas sobre as mulheres negras quanto dos homens brancos em relação aos homens negros, em todas as categorias de posição na ocupação, com uma única exceção. A exceção é a categoria Não remunerado em ajuda a membro do domicílio, que reúne pouco mais de 3,3% das pessoas ocupadas, em que negras e negros levam vantagem em relação a brancas e brancos, respectivamente, o que pode estar significando que, somente na falta de qualquer outra alternativa, pessoas brancas de ambos os sexos se sujeitam a esse tipo de ocupação. Em outras palavras, para 96,7% das pessoas ocupadas mantém-se de pé a histórica desigualdade em desfavor das pessoas negras de ambos os sexos quanto à escolarização medida pela média de anos de estudo.

A dimensão classe social

A determinação da variável posição na ocupação não se dilui de forma nenhuma no cruzamento com as variáveis sexo e cor/raça. Ao contrário, ganha realce. Com efeito, a Tabela 5 e Gráfico 5 permitem ver com clareza duas coisas: de uma lado, que existe uma hierarquia acentuada entre as diferentes posições na ocupação, a começar pela categoria Empregadores, quanto ao nível de escolarização medida por meio da média de anos de estudo; de outro, que essa hierarquia se mantém basicamente para ambos os sexos e ambos os grupos de cor ou raça (brancos(as) e negros(as)). Ou seja: vantagem de brancos(as) sobre negros(as) e vantagem feminina em todas as categorias de posição na ocupação, exceção feita da categoria Não remunerado em ajuda a membro do domicílio, única em que os homens, tanto brancos como negros, levam vantagem sobre as mulheres de mesma cor ou raça.

Mas há algo que surpreende. De um lado, nas categorias Empregador e Conta própria, que somam cerca de 17 milhões de pessoas, a relação cruzada de sexo e cor ou raça com escolarização produz uma hierarquia, em termos de anos de estudo, em que se tem, ao mesmo tempo, superioridade feminina e superioridade da população de cor ou raça branca. A hierarquia resultante em termos de média de anos de estudo é a seguinte:

1º Lugar – mulher branca;

2º Lugar – homem branco;

3º Lugar – mulher negra;

4º Lugar – homem negro.

De outro lado, em todas as quatro categorias de empregados e trabalhadores assalariados, com ou sem carteira assinada (Empregado com carteira de trabalho assinada, Empregado sem carteira de trabalho assinada, Trabalhador doméstico com carteira de trabalho assinada e Trabalhador doméstico sem carteira de trabalho assinada), as quais representam cerca de 2/3 da população ocupada, a relação de gênero é tão forte que chega a se sobrepor à de cor ou raça, a ponto de a mulher negra superar o homem branco em cada uma dessas quatro categorias, tendo-se a seguinte ordem:

1º Lugar – mulher branca;

2º Lugar – mulher negra;

3º Lugar – homem branco;

4º Lugar – homem negro.

Não há dúvida de que o nível de escolarização é um indicador de igualdade/desigualdade social. Mas não é o único, talvez nem o mais importante, ao contrário do que sustentam aqueles que querem explicar a desigualdade econômica a partir principalmente da desigualdade educacional. Entre estes, destaca-se Langoni (1973), o qual, ao tempo do milagre econômico durante o Regime militar, via na distribuição da educação o determinante principal da desigualdade no Brasil. O autor do presente texto é da opinião de que seria no mínimo precipitado tomar a vantagem estatística das mulheres em relação aos homens quanto à educação escolar como prova de superação e até de inversão de sinal na desigualdade social que, historicamente, tem marcado em desfavor das mulheres as relações de gênero. Sucessivos debates com estudantes sobre esse ponto têm sugerido que às mulheres são exigidos níveis de escolarização relativamente mais elevados do que aos homens para o mesmo posto de trabalho, especialmente se a competição envolve também a mesma remuneração. Tais observações vão na direção do que sustentava Mariano Enguita, já em meados da década de 1990, em relação ao que ele chamava de desiguais resultados das políticas igualitárias europeias. Segundo o autor, na fase de sua vida em que deve tomar decisões fundamentais sobre sua trajetória escolar, uma jovem depara-se com três cenários possíveis: a própria escola, o lar e o emprego. Na opinião de Enguita (1996), dentre essas três alternativas, a escola é "a mais igualitária e a que melhores resultados produzirá para sua autoestima", porquanto "lar significa trabalho doméstico e subordinação, e emprego quer dizer salário baixo, qualificação escassa e discriminação, tanto mais quanto antes se incorpore a eles". E o autor esclarece que, em contraposição ao lar e ao emprego, a escola

[...] é o único lugar onde, aos menos por um tempo, poderá medir-se com os homens e o será pelos mesmos parâmetros – ou quase – que os homens, até o ponto de permitir-lhe mostrar e demonstrar que é igual a eles e inclusive melhor do que eles. (p. 16)

No entanto, penso que o aspecto principal do texto de Enguita (1996) é o que segue, apresentado na forma de contraponto:

Por outro lado, uma mínima visão e previsão do mercado de trabalho lhe dirá que seus possíveis empregos normalmente estão nos setores terciário e quaternário, que costumam requerer uma educação formal superior, e que, para conseguir o mesmo emprego que o homem, precisará de mais e melhores capacidades e/ou credenciais do que ele, motivo pelo qual a decisão mais adequada de sua parte é armar-se, enquanto possa, de conhecimentos e diplomas. (p. 16, grifo meu)

Em relação às considerações de Enguita, faço a seguinte ponderação: se, de um lado, poderia parecer precipitado tomarem-se as palavras do autor como a explicação da crescente vantagem feminina no campo da educação, de outro, poderia configurar-se um desperdício o descarte sumário da hipótese levantada pelo autor citado.

Em síntese, de uma análise atenta do Gráfico 5 emergem com clareza pelo menos quatro coisas: 1) que a determinação mais forte das desigualdades educacionais procede da variável posição na ocupação (tomada aqui como indicador de classe), valendo isso tanto para a população masculina como para a feminina, tanto para a população branca como para a negra; 2) que as determinações de gênero e de cor ou raça não se diluem ao se introduzir a dimensão classe social, ou seja, que as dimensões gênero e cor ou raça mantêm, cada uma, a sua determinação específica; 3) que o poder de determinação de gênero e cor ou raça parece ser mais intenso no conjunto das categorias de trabalhadores assalariados (classe trabalhadora no sentido estrito) do que entre empresários e trabalhadores por conta própria; 4) que, por fim, da análise da ação conjugada das dimensões gênero, cor ou raça e classe social sobre a escolarização das diferentes gerações presentes no censo emerge com clareza a necessidade de se atentar para a especificidade de cada uma dessas dimensões.

Fica um desafio a se enfrentar na continuidade da pesquisa. Há três categorias, principalmente, que demandam maior desagregação: a dos empregadores, a dos trabalhadores com certeira assinada, onde está situada, por assim dizer, a "elite" da classe trabalhadora, inserida no mercado formal de trabalho assalariado, e a daqueles(as) que desenvolvem atividades por conta própria, onde se concentra a pequena burguesia.

O Gráfico 6 mostra o resultado da desagregação da categoria Empregadores segundo o número de empregados. Note-se, porém, que, para evitar identificação dos empregadores em tal ou qual Unidade da Federação e particularmente em tal ou qual município, o número máximo especificado fica em "11 ou mais empregados". Tal procedimento garante a não identificação dos capitalistas no sentido marxiano (os grandes proprietários de meios de produção), mas não esconde o fato de que todos os grandes empregadores/proprietários de meio de produção estão dentro dessa subcategoria de empregadores com 11 ou mais empregados.


Esse Gráfico 6 permite ver com clareza como a média de anos de estudo entre empregadores varia em razão direta do número de empregados, valendo isso para todas as quatro categorias de sexo e cor ou raça, obedecendo à ordem encontrada no Gráfico 5: mulheres brancas, homens brancos, mulheres negras, homens negros. Para cada uma dessas quatro categorias, a média de anos de estudo aumenta na medida em que se passa de empregadores com 1 empregado até a categoria de empregadores com 11 e mais empregados.

A PNAD 2008

São apresentados aqui alguns resultados na PNAD 2008, com o objetivo de captar o movimento da escolarização a partir do Censo 2000. Tais resultados foram obtidos mediante processamento dos microdados da referida PNAD (Brasil, 2008). Considerando que a categorização das posições na ocupação nessa PNAD não coincide com as categorias utilizadas no Censo 2000, o estudo comparativo limita-se, nesta parte, à consideração das dimensões gênero e cor ou raça. O estudo limita-se também, aqui, a confrontar a geração 1988/1998, que na PNAD 2008 tinha 20 a 29 anos de idade, com a geração 1970/1980, a qual também tinha 20 a 29 anos quando da realização do Censo 2000. A questão é simples: qual o ganho, no oitênio 2000/2008, em termos de anos de estudo, para a geração 1978/1988 em relação à geração 1970/1980?

O ganho, no oitênio em questão, foi bastante elevado, variando de +2,9 a +3,3 anos de estudo. Foi maior entre negros(as) do que entre brancos(as), diminuindo, mesmo que em pequena medida, a desigualdade racial quanto à escolarização. Tendo-se como referência os dados da Tabela 3 para a geração 1970/1980 do Censo 2000 e os resultados obtidos da PNAD 2008 para a geração 1978/1988, foram da seguinte ordem os ganhos no período 2000/2008 em termos de média de anos de estudo:

• Mulheres brancas: aumento de 8,6 para 11,5 anos de estudo (+ 2,9);

• Homens brancos: aumento de 8,0 para 10,9 anos de estudo (+ 2,9);

• Mulheres negras: aumento de 6,7 para 9,9 anos de estudo (+ 3,2);

• Homens negros: aumento de 5,9 para 9,2 anos de estudos (+ 3,3).

O ganho no oitênio foi proporcionalmente maior para mulheres negras e homens negros do que para mulheres brancas e homens brancos, diminuindo assim em quase meio ano de estudo a desigualdade de negros(as) em relação a brancos(as). Manteve-se, porém, no mesmo nível a desigualdade de gênero, com ganho igual entre homens e mulheres de mesma cor ou raça. Tais resultados vêm aguçar a expectativa em relação ao Censo 2010.

Conclusão

Antes de qualquer conclusão, é necessário repetir que o trabalho aqui desenvolvido não pretendeu ser mais do que um experimento ou tentativa de articulação das dimensões gênero, raça e classe social com a escolarização, recorrendo-se, para tanto, a processamentos originais dos microdados do Censo Demográfico 2000.

Dito isso, retomam-se, agora, a título de conclusão, alguns pontos que parecem merecer atenção especial.

Em primeiro lugar, com todos os limites inerentes ao estudo, seja pela complexidade das dimensões envolvidas, seja pela própria extensão admissível num artigo, os resultados revelam que não é inviável perseguir-se o objetivo de articular, no estudo da escolarização, as perspectivas de classe social, de gênero e de raça. Parece que a dificuldade a enfrentar na construção de bons indicadores de classe social a partir dos dados censitários não deveria levar a se ignorar essa possibilidade.

Em segundo lugar, vale salientar que as dimensões gênero, cor ou raça e classe social produzem efeitos que não podem ser simplesmente adicionados. Isso equivale a dizer que os efeitos que essas três dimensões produzem na escolarização estão ou podem estar obedecendo a lógicas distintas. Além disso, se classe social não explica tudo, seria um equívoco imaginar que as dimensões gênero e cor ou raça o possam fazer, isoladamente ou em conjunto. Com isso não se quer significar que cada estudo individualmente deva considerar essas três dimensões. Quer-se apenas dizer que o coletivo das pesquisas deveria dar conta desse conjunto de dimensões – gênero, raça e classe.

Em terceiro lugar, em que pese a pregação insistente, nas últimas décadas, da nova e pretensamente definitiva morte de Marx e de sua teoria de classes sociais, os resultados analisados neste trabalho mostram que a dimensão classe social continua a exercer influência determinante no campo da educação. Por isso, nem a dificuldade que se tem em construir bons indicadores de classe social com base nos censos demográficos e, de modo geral, com base nas estatísticas oficiais, justificaria que se abandonasse a perspectiva de classes sociais no estudo da educação.

Como já se observou antes, resta um quarto desafio. Trata-se de tentar algum tipo de desagregação dentro das categorias Empregadores e Empregados com carteira assinada e Conta própria. A ideia é que, sem se comprometer o conceito de classe social com que se vem trabalhando, se consiga, de um lado, separar grandes empregadores de pequenos e médios e, de outro, desagregar, da massa de empregados com carteira assinada, aqueles assalariados que comporiam a classe média, particularmente a classe média alta. Não há como antecipar em que medida isso será realizável. De maneira semelhante, haveria que tentar uma caracterização melhor da pequena burguesia, presente principalmente na categoria de atividades por conta própria.

Recebido em 03.01.10

Aprovado em 04.05.10

Alceu Ravanello Ferraro é professor titular aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e pesquisador do CNPq. Desenvolve atualmente suas atividades de ensino e pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Educação da mesma UFRGS na condição de docente convidado. Tem produzido principalmente sobre analfabetismo/alfabetização e escolarização no Brasil.

* Trabalho desenvolvido com apoio financeiro do CNPq. As tabelas e os gráficos deste artigo foram elaborados mediante processamento dos microdados do Censo Demográfico 2000, obtidos do IBGE em CD-ROM, no que se contou com a participação de Jasom de Oliveira, bolsista de Apoio Técnico do CNPq. O texto, apresentado em Latin American Studies Association: International Congress, Rio de Janeiro, 11 a 14 de junho de 2009, foi revisto e, em algumas partes, resumido para publicação como artigo.

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  • Correspondência:
    Alceu Ravanello Ferraro
    R. Dona Laura, 924, apto. 201
    90430-090 – Porto Alegre – RS
    E-mail:
  • 1
    . Devido ao limite posto à extensão do texto, omitiu-se aqui breve histórico do conceito de raça que constava no texto original, a começar pelas teorias biológicas de raça do século XIX, como o Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, de Arthur de Gobineau, de 1853/55, e Da luta das raças, de L. Gumplowicz, do ano de 1882, cuja influência se manifestou, no Brasil, em obras como História da literatura brasileira, de Sílvio Romero, de 1888, Os sertões, de Euclides da Cunha, de 1902, e Populações meridionais do Brasil, de Oliveira Vianna, de 1920, entre outras.
  • 2
    . É minha a tradução das citações do autor.
  • 3
    . Serge Paugam (1991) refere-se a René Lenoir como a pessoa "a quem com frequência se reconhece o mérito de haver inventado esta noção [de exclusão] em 1974" (p. 8).
  • 4
    . A Lei n. 11.274, de 6 de fevereiro de 2006, ampliou para 9 (nove) anos a duração do Ensino Fundamental, com matrícula obrigatória a partir dos 6 (seis) anos de idade.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Nov 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 2010

    Histórico

    • Recebido
      03 Jan 2010
    • Aceito
      04 Maio 2010
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