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Editorial

EDITORIAL

O conjunto de artigos presente no número de EDUCAÇÃO e PESQUISA que apresentamos possibilita que o leitor encontre alguns eixos importantes para compreender o que tem sido a preocupação dos pesquisadores no momento. Entre outros que certamente podem ser seguidos pelo leitor, apontamos como um dos eixos dos esforços de superação do estado atual das pesquisas em Educação a urgente necessidade de se transpor a repetição da defesa deste ou daquele direito do cidadão e passar a práticas e tomadas de posição que possibilitem a efetivação desses direitos. Outro eixo que apontamos, e em torno do qual se organizam alguns trabalhos presentes neste número, é o da não submissão às perspectivas dominantes para a busca de soluções reais para os problemas encontrados na escola.

Qualquer eixo que o leitor persiga em sua leitura certamente o levará a perceber o compromisso dos autores em fazer avançar os domínios em que trabalham, ilustrando bem o que é um exercício de investigação.

Com a publicação dos artigos neste número, a revista EDUCAÇÃO e PESQUISA reafirma seu compromisso em divulgar trabalhos que não sejam apenas reinscrições de autores em linhas de conhecimento já definidas, mas resultados de um aprendizado sólido do que já foi produzido em cada domínio e a consequente busca de produção de contribuições efetivas para o avanço teórico/prático.

É assim que, exemplificando a disposição para ir além da defesa do direito à escolarização, Ana Cristina Richter e Alexandre Fernandez Vaz abordam a educação infantil no artigo Momentos do parque em uma rotina de educação infantil: corpo, consumo, barbárie. A partir de observação sistemática e entrevistas, os autores vão desvendando os modos de incidir sobre os corpos nos momentos em que as atividades saem dos limites da sala de aula. Apontam para o desenvolvimento de apreciações feitas durante este período da rotina escolar e hipotetizam sobre suas possíveis consequências. Indicam ainda as maneiras como, pela linguagem, os comportamentos vão sendo moldados, sem espaços para particularidades.

No decorrer do artigo, os autores vão assumindo a postura de que é necessário ir além da regulação expressa em gestos e palavras para se passar à interpretação do que as crianças fazem durante o tempo em que estão no parque.

A conveniência de não se submeter a uma tendência única está presente em Oralidade, alfabetização e leitura: enfrentando diferenças e complexidades na escola pública, de Claudemir Belintane, que toca na necessidade de se trabalhar na alfabetização demonstrando mais interesse nas necessidades da criança do que em obedecer a uma teoria predominante e homogeneizante.

O autor apresenta o resultado de uma pesquisa que busca conhecer a cultura oral de crianças de primeira série consideradas com dificuldades de aprendizagem. Após conhecer essa cultura, preconiza o desenvolvimento de um ensino baseado na transição da cultura oral para a cultura escrita. O estudo centrou-se nos impasses oriundos dessa transição e apontou para os limites das propostas centradas na escrita e no fornecimento de uma cultura supostamente oral que encaminha para a escrita, como é o caso do tradicional construtivismo. Sem se fechar em uma única perspectiva teórica, o autor propõe que, a partir de um conhecimento mais aprofundado da cultura na qual a criança foi formada até a chegada na primeira série, sejam organizados programas que atendam mais particularizadamente suas necessidades.

Também procurando avançar para além da defesa dos direitos humanos, Douglas Verrangia e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva indicam, no artigo Cidadania, relações étnico-raciais e educação: desafios e potencialidades do ensino de Ciências, caminhos para efetivá-los propondo temas que permitam aos cidadãos uma educação engajada na luta pela equidade social. Os autores buscam compreender como tem se dado historicamente o ensino das Ciências Naturais e propõem temas que possibilitem atingir a educação almejada para a efetivação desses direitos. Em direção a uma prática que efetive o direito a uma educação equânime, os autores definem um conjunto de temas por meio dos quais se articulem cidadania, educação das relações étnico-raciais e ensino de Ciências.

Em Estigma e discriminação vividos na escola por crianças e jovens órfãos por Aids, de Eliana Miura Zucchi e outros, o leitor vai encontrar mais uma demonstração do compromisso na busca da efetivação de práticas que extrapolem a repetição de bandeiras em defesa ao direito à escolarização para todos. Partindo da percepção de que pessoas afetadas pela Aids estão sujeitas à restrição dos direitos humanos, os autores investigam situações em que o estigma aparece em ambiente escolar.

Utilizando resultados de entrevistas, os autores fizeram um mapeamento das circunstâncias em que aparecem episódios de estigma. Paralelamente, verificaram a fragilidade da escola em trabalhar com diferentes matizes de estigma, como as relacionadas à etnia, à pobreza, entre outras. Mediante tais constatações, os autores chamam a atenção para a criação de programas que supram a ausência de um trabalho de prevenção que inclua aqueles que já convivem com HIV/Aids, bem como com outros tipos de situações estigmatizantes.

Comprovando mais uma vez que alunos de graduação também fazem pesquisas em condições de passar pelos critérios de qualidade estabelecidos pela universidade, Gabriela de Andrade Rodrigues colabora neste número com o artigo Pedagogias queer e libertária para educação em cultura visual, resultante de sua pesquisa de Iniciação Científica.

Trata-se de artigo escrito a partir da desobediência a perspectivas dominantes. A autora, longe de submeter-se a perspectivas teóricas majoritárias, ousadamente inova ao propor a compatibilização entre a pedagogia queer e a pedagogia libertária, e ainda aproximando as duas da educação em cultura visual. No que a própria autora escreve no texto pode-se entrever um caminho para a produção de qualidade: "Ressalta-se também importância de perceber toda teoria pedagógica como uma proposta e não um dogma".

Coerente com essa posição, a autora defende a transposição do pensamento não binário, próprio a pedagogia queer, para o domínio das artes. Do mesmo modo que naquela a heterossexualidade não seria uma referência oposta às outras manifestações, nesta a noção de belas artes não seria o outro lado de todas as outras artes. O próprio conhecimento, de acordo com o ponto de vista defendido pela autora, seria tomado como fluido.

No âmbito da administração da educação também um artigo propõe a efetivação na prática de direitos conquistados. Trata-se da participação estudantil nas instâncias organizativas proporcionada pelo regime de autonomia das escolas portuguesas, tema desenvolvido no artigo Participação escolar: representações dos alunos do 3º ciclo de Aveiro (Portugal), de Ana Paula Pedro e Caridade Maria A. L. dos S. Pereira. Após pesquisa realizada com alunos de 8º. e 9º. anos, as autoras concluem que a ocupação deste espaço político de formação por parte dos alunos é ainda incipiente.

Embora se compreenda a importância de tal participação para o aprendizado da vida democrática e o exercício da cidadania ativa, o que fica demonstrado pelo estudo das autoras é que, para além do espaço franqueado por meio de uma legislação, é necessário ainda proporcionar aprendizagem acerca do mesmo. Trata-se, portanto, de mais um artigo que incide sobre a necessidade de se superar a repetição de um direito, no caso o de participação nas instâncias politico-administrativas, e se passar a uma atuação formativa para que essa participação se efetive, uma vez que, enquanto direito, ela já está regulamentada.

Em A educação, a política e a administração: reflexões sobre a prática do diretor de escola, Vitor Henrique Paro traz à cena um personagem pouco estudado no campo educacional, mesmo quando se trata da área de administração escolar: o diretor de escola. O autor põe em diálogo, estabelecendo os devidos contrastes e tomando posição, a concepção de administração escolar que se aproxima do modelo de gestão empresarial e aquela que a entende como um modo específico de administração, uma vez que não perde de vista o fato de que se trata de uma instituição cujo fim último é a formação de sujeitos.

Visando extrapolar a repetição de posicionamentos sobre a valorização do diretor filiados à tendência de valorização da administração em geral, Paro, além de manifestar estranhamento diante da baixa frequência de estudos sobre o papel do diretor escolar, tendo em vista que ele administra uma instituição de natureza diferente das empresas capitalistas, tece considerações sobre a importância da participação da comunidade escolar na escolha do diretor e da administração colegiada.

Outro texto que aborda a administração é El componente liderazgo en la validación de un modelo de gestión escolar hacia la calidad, de Pablo López Alfaro. O autor relaciona a incorporação de elementos próprios da administração, em especial relacionados à liderança, tanto nas empresas quanto nas instituições educacionais. Com foco na realidade chilena, no período de desenvolvimento que o país experimenta, no qual as empresas incorporam a preocupação com o papel da liderança, o autor se propõe a dar a conhecer elementos da gestão escolar e sua importância para o desenvolvimento da qualidade em educação.

Valendo-se da análise psicométrica de respostas de questionários, López Alfaro chega à conclusão de que, para se obter êxito nos objetivos educacionais estabelecidos por uma instituição, o componente liderança é de fundamental importância na gestão escolar.

Enfocando o ensino e a aprendizagem, Nadia Aparecida de Souza e Evely Boruchovitch apresentam o estudo Mapas conceituais e avaliação formativa: tecendo aproximações. Assumindo a importância do mapa conceitual como ferramenta de formação por favorecer a regulação do ensino e a autorregulação da aprendizagem, as autoras fazem uma pertinente revisão teórica dos estudos que tratam do assunto.

A discussão inicia historiando os procedimentos e objetivos da avaliação e vai demonstrando as mudanças de concepções nesse domínio. Em seguida, passa a apresentar as reflexões em torno dos mapas conceituais e as possibilidades de serem utilizados como avaliação formativa, acompanhando a evolução dos procedimentos de avaliação.

Além dos trabalhos apresentados até aqui, a revista EDUCAÇÃO e PESQUISA oferece ao leitor textos que se dedicam ao estudo da obra de Hannah Arendt. Trata-se de quatro artigos selecionados entre os que foram apresentados no Colóquio Hannah Arendt: educação e o mundo moderno, realizado em outubro de 2009, por iniciativa do Grupo de Estudos em Filosofia e Educação da FE/USP. Seu propósito foi o de congregar pesquisadores e estudantes interessados no pensamento político de Hannah Arendt e, em especial, na sua interface com a educação. Em suas seis seções, ao longo de dois dias, estiveram presentes mais de 250 estudantes de graduação e pós-graduação. As palestras de abertura e encerramento ficaram a cargo de dois dos mais renomados estudiosos e tradutores das obras de Hannah Arendt no Brasil, respectivamente os professores doutores André Duarte e Adriano Correia, cujos artigos integram este dossiê, sendo o primeiro em colaboração com Maria Rita de Assis César. Além destes, participam Vanessa Sievers de Almeida e José Sérgio Carvalho, um dos organizadores do evento. As mesas contaram ainda com a presença de professores e pesquisadores de Brasília e do Rio Grande do Sul, além da apresentação de trabalhos de graduandos, mestrandos e doutorandos da FE/USP.

Maria Rita de Assis César e André Duarte, em Hannah Arendt: pensar a crise da educação no mundo contemporâneo, assim como Adriano Correia em Natalidade e amor mundi: sobre a relação entre educação e política em Hannah Arendt, incidem sobre o tema da crise na educação a partir do texto em que a autora estudada trata do assunto, intitulado justamente Crise na educação.

Os dois artigos, cada um à sua maneira, colocam questões que permitem pensar a educação, e mais exclusivamente a sala de aula tal como ela se apresenta na contemporaneidade. De acordo com a perspectiva da autora estudada, o papel da educação é a conservação do mundo e a apresentação de suas estruturas aos jovens. Estes, por sua vez, se um dia forem instados a transformar o mundo, saberão o que estão transformando e por que devem fazê-lo. Tal ponto de vista ajuda a refletir sobre a desapropriação, ou a negação do acesso, tanto do saber como da política, a que podem estar submetidos os alunos que frequentam as escolas hoje. Os autores dos artigos, apoiados nas ideias de Arendt, contribuem para a percepção de que, na contemporaneidade, sob uma simulação de oferta de conhecimento, confundido com informação, e de politização, reduzida à apropriação e reprodução de frases emblemáticas, se procede a um distanciamento e a uma desresponsabilização por parte do jovem em relação ao mundo.

Nesse mesmo eixo pode ser lido o texto de José Sérgio Carvalho, A liberdade educa ou a educação liberta? Uma crítica das pedagogias da autonomia à luz do pensamento de Hannah Arendt. O autor procura compreender, à luz do pensamento de Arendt, o vínculo que geralmente se faz entre os objetivos da educação e os ideais de liberdade e autonomia. No desenvolvimento do artigo, o autor vai alertando para as construções de unanimidades na superfície de discursos correntes e oferece ao leitor exemplos de expressões emblemáticas que podem ser usadas a título de uma demonstração de politização. O autor tece considerações sobre expressões que vão se cristalizando no cotidiano, tais como formação para a cidadania e educação de qualidade, defendendo que carecem de análise em profundidade a fim de se verificar com que significados estão sendo tomados nos diferentes contextos em que são usadas.

Além de oferecer uma importante possibilidade de reflexão sobre as diferenças entre os objetivos da educação e da política, o artigo, como os dois anteriores, permite refletir sobre o que se está oferecendo ao jovem hoje sob os rótulos de conhecimento, autonomia, qualidade etc.

Colabora com muita pertinência para essa reflexão o artigo A distinção entre conhecer e pensar em Hannah Arendt e sua relevância para a educação, de Vanessa Sievers de Almeida, que trabalha sobre a ideia de que a sociedade moderna, e a escola como parte dela, privilegia o conhecer em detrimento do pensar. A autora nos chama a atenção para as consequências de uma educação que busca resultados comprováveis, por meio do conhecimento, resumido a informações desacompanhadas de reflexão. Os exemplos trazidos de Arendt para a reflexão, a partir da experiência dessa autora com atitudes políticas totalitarizantes e das escolhas feitas por certos intelectuais nesses períodos, apontam quão catastrófica pode ser a insistência em se praticar uma educação que relega o pensar a planos menores por não apresentar resultados palpáveis. A reflexão da autora é mais uma contribuição para a busca de um pensamento sobre os problemas da educação associado aos conhecimentos sobre ela, e não apenas a um conhecimento disponível para a aplicação harmonizada em todas as situações.

Valdir Heitor Barzotto

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Maio 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 2010
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