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A passagem da educação infantil para o ensino fundamental: tensões contemporâneas

The passage from early childhood education to fundamental education: contemporary tensions

Resumos

No contexto da ampliação do ensino fundamental para nove anos, o artigo relata como foi vivida, por um grupo de crianças, a transição de uma escola de educação infantil para uma de ensino fundamental em Belo Horizonte. O processo de construção e análise dos dados da pesquisa baseou-se na abordagem interpretativa da sociologia da infância e na etnografia interacional. Verificou-se que as práticas educativas que assumiram centralidade na educação infantil e no ensino fundamental se estruturavam em torno da brincadeira e do letramento, mas situadas diferencialmente nos dois segmentos. Na escola de educação infantil, a centralidade do brincar esteve presente na organização das rotinas institucionais. No entanto, tendo em vista sua condição de sujeitos inseridos em uma cultura grafocêntrica, as crianças voltaram-se para a apropriação da língua escrita, engajando-se individual e coletivamente em diversos eventos de letramento. Ao inserir-se no ensino fundamental, as crianças depararam-se com um hiato entre as experiências desenvolvidas na educação infantil e as práticas educativas da nova escola: o brincar foi situado em segundo plano. Argumentamos que a falta de diálogo presente na organização do sistema educacional brasileiro em relação aos dois primeiros níveis da educação básica se refletiu no processo de desencontros vivenciados pelas crianças pesquisadas. Nesse sentido, a investigação, ao ter como foco o registro da experiência infantil, evidenciou a necessidade de uma maior integração entre o brincar e o letramento nas práticas pedagógicas da educação infantil e do ensino fundamental, ambas dimensões centrais da cultura infantil contemporânea.

Educação infantil; Ensino fundamental; Transição; Cultura de pares


In the context of the extension of fundamental education to nine years, the article describes how the transition from an early childhood education school to an elementary school was experienced by a group of children in Belo Horizonte. The process of construction and analysis of the research data was based on the interpretive approach of the sociology of childhood, and on interactional ethnography. It was observed that the educational practices that gained central role in early childhood education and in fundamental education were structured around play and literacy, but situated differently within the two segments. For early childhood education, the centrality of play has been present in the organization of institutional routines. However, due to their condition as subjects inserted in a graphocentric culture, children turned to the appropriation of written language, engaging individually and collectively in various literacy events. When coming into fundamental education, children faced the chasm between the experiences developed in early childhood education and the educational practices of their new school: playing was put in second place. We argue here that the lack of dialogue between the first two levels of basic education observed in the organization of the Brazilian education system is reflected in the troubled processes experienced by the children studied. In this sense, the investigation, by having its focus on the recording of children's experiences, revealed the need for better integration of playing and literacy in the pedagogical practices of early childhood education and of fundamental education, both of them central dimensions of contemporary child culture.

Early childhood education; Fundamental education; Transition; Peer culture


ARTIGOS ARTICLES

A passagem da educação infantil para o ensino fundamental: tensões contemporâneas1 1 . As autoras agradecem aos comentários e sugestões do professor William Corsaro em relação às análises aqui apresentadas.

The passage from early childhood education to fundamental education: contemporary tensions

Vanessa Ferraz Almeida Neves2 2 . Apoio às autoras: Capes, CNPq, Fapemig e Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. ; Maria Cristina Soares de Gouvêa; Maria Lúcia Castanheira

Universidade Federal de Minas Gerais

Correspondência Correspondência: Vanessa Ferraz Almeida Neves R. Agenor Goulart Filho, 90 31310-360 - Belo Horizonte / MG E-mail: vfaneves@gmail.com

RESUMO

No contexto da ampliação do ensino fundamental para nove anos, o artigo relata como foi vivida, por um grupo de crianças, a transição de uma escola de educação infantil para uma de ensino fundamental em Belo Horizonte. O processo de construção e análise dos dados da pesquisa baseou-se na abordagem interpretativa da sociologia da infância e na etnografia interacional. Verificou-se que as práticas educativas que assumiram centralidade na educação infantil e no ensino fundamental se estruturavam em torno da brincadeira e do letramento, mas situadas diferencialmente nos dois segmentos. Na escola de educação infantil, a centralidade do brincar esteve presente na organização das rotinas institucionais. No entanto, tendo em vista sua condição de sujeitos inseridos em uma cultura grafocêntrica, as crianças voltaram-se para a apropriação da língua escrita, engajando-se individual e coletivamente em diversos eventos de letramento. Ao inserir-se no ensino fundamental, as crianças depararam-se com um hiato entre as experiências desenvolvidas na educação infantil e as práticas educativas da nova escola: o brincar foi situado em segundo plano. Argumentamos que a falta de diálogo presente na organização do sistema educacional brasileiro em relação aos dois primeiros níveis da educação básica se refletiu no processo de desencontros vivenciados pelas crianças pesquisadas. Nesse sentido, a investigação, ao ter como foco o registro da experiência infantil, evidenciou a necessidade de uma maior integração entre o brincar e o letramento nas práticas pedagógicas da educação infantil e do ensino fundamental, ambas dimensões centrais da cultura infantil contemporânea.

Palavras-chave: Educação infantil - Ensino fundamental - Transição - Cultura de pares.

ABSTRACT

In the context of the extension of fundamental education to nine years, the article describes how the transition from an early childhood education school to an elementary school was experienced by a group of children in Belo Horizonte. The process of construction and analysis of the research data was based on the interpretive approach of the sociology of childhood, and on interactional ethnography. It was observed that the educational practices that gained central role in early childhood education and in fundamental education were structured around play and literacy, but situated differently within the two segments. For early childhood education, the centrality of play has been present in the organization of institutional routines. However, due to their condition as subjects inserted in a graphocentric culture, children turned to the appropriation of written language, engaging individually and collectively in various literacy events. When coming into fundamental education, children faced the chasm between the experiences developed in early childhood education and the educational practices of their new school: playing was put in second place. We argue here that the lack of dialogue between the first two levels of basic education observed in the organization of the Brazilian education system is reflected in the troubled processes experienced by the children studied. In this sense, the investigation, by having its focus on the recording of children's experiences, revealed the need for better integration of playing and literacy in the pedagogical practices of early childhood education and of fundamental education, both of them central dimensions of contemporary child culture.

Keywords: Early childhood education - Fundamental education - Transition - Peer culture.

O processo de escolarização da infância engaja as crianças em práticas educativas específicas, com tempos e espaços diferenciados, posicionando-as em lugares socialmente demarcados e distintos. A transição entre a pré-escola e o ensino fundamental é um momento crucial na vida das crianças, e suas implicações para membros de diferentes grupos sociais têm sido objeto de estudo ao longo das últimas décadas, adquirindo destaque na produção acadêmica nacional e internacional. Diversos estudos buscam compreender os significados da transição entre os distintos espaços de socialização da criança (vide Corsaro, Molinari, 2005; Moss, 2008; Petriwskyj, Thorpe, Tayler, 2005; Rosemberg, Borzone, 2004, Vogler, Crivell, Woodhead, 2008; Kramer, 1992; Castanheira 1991).

Recentemente, a ampliação do ensino fundamental brasileiro para nove anos, com a promulgação da Lei Federal 11. 274 (Brasil, 2006) e a discussão acerca da obrigatoriedade escolar para pessoas de 4 a 17 anos (PL 414/2008; PL 06755/2010) reforçam a relevância e o interesse por essa temática. Ao analisar a Lei 11. 274, Santos e Vieira (2006) e Kramer (2006) consideram que a ampliação da obrigatoriedade escolar convoca pesquisadores, educadores e legisladores a investigar como a educação infantil e o ensino fundamental se relacionam articulando discursos e práticas educativas no sentido de compreender as especificidades das experiências dos diversos sujeitos sociais envolvidos nesse processo. A nosso ver, estudos sobre diferenças e similaridades entre as práticas educativas desenvolvidas cotidianamente nesses contextos podem subsidiar o diálogo entre esses atores ao ampliar a compreensão de entraves, rupturas e/ou continuidades vividas pelas crianças nesses espaços. Tendo em vista essa necessidade e considerando as tensões resultantes do estabelecimento de novas leis sobre a escolarização da infância no Brasil, examinamos semelhanças e diferenças entre a pré-escola e o ensino fundamental conforme vivenciadas por algumas crianças na passagem entre esses níveis de ensino.

Permanências e deslocamentos nos encontros entre a educação infantil e o ensino fundamental

Peter Moss (2008) indica quatro possibilidades de relacionamento entre a educação infantil e o ensino fundamental. A primeira caracteriza-se por uma subordinação da primeira. A educação infantil teria, então, como função preparar as crianças para um melhor desempenho no ensino fundamental. A segunda caracteriza-se por um impasse, em que ambos os níveis de ensino recusam um, definindo-se a partir de uma negação recíproca. A terceira possibilidade, preparando a escola para as crianças, inverte o modelo preparatório no sentido de adotar práticas da educação infantil no ensino fundamental, adaptando a escola desse nível de ensino às crianças. A visão de um lugar de encontro pedagógico é a quarta possibilidade apontada e defendida por Moss. Nessa, as práticas e concepções de ambos os níveis de ensino são integradas a partir do reconhecimento de suas diferentes histórias e concepções.

Corsaro e Molinari (2005) descrevem um processo que corresponderia ao quarto modelo descrito acima, ao tratar da transição entre os dois níveis de ensino na cidade de Modena, Itália. Em sua pesquisa foi identificada a continuidade nas atividades pedagógicas, especialmente nas artes e letramentos, a manutenção do mesmo grupo de crianças e professores, a integração entre as famílias e professores, a participação ativa das crianças, como fatores determinantes do sucesso do processo de transição, sustentados na política educacional do país.

Outra pesquisa que analisa esta transição foi a desenvolvida por Rosemberg e Borzone (2004), contemplando o contexto argentino. Essas autoras analisaram as semelhanças e diferenças nas interações discursivas entre professoras e alunos nos dois níveis de ensino, avaliando que as interações discursivas na escola de educação infantil correspondem em maior medida a um processo de colaboração, enquanto no ensino fundamental relacionam-se mais a um processo de transmissão do conhecimento guiado pela sequência iniciação-resposta-avaliação (Mehan, 1979).

No contexto brasileiro, algumas pesquisas sinalizam um processo de impasse na transição entre a educação infantil e o ensino fundamental (vide Castanheira, 1991; Machado, 2007; Motta, 2010; Sant'Ana, Assis, 2003; Wild, 2009). Tais impasses foram localizados, principalmente, na entrada das crianças no ensino fundamental, caracterizado por um maior controle corporal e desenvolvimento de atividades de caráter repetitivo. Uma das tensões identificadas ao se fazer o levantamento e análise de publicações acerca desse tema é sobre o lugar do letramento e alfabetização nesses dois níveis de ensino.

Em Belo Horizonte, a ampliação do ensino fundamental ocorreu a partir da implementação do Programa Escola Plural, em 1994 (Miranda, 2007). Entretanto, observa-se que há ainda pouco conhecimento sobre a escolarização de crianças de 6 anos no ensino fundamental e as questões postas a professoras, escolas, às próprias crianças e famílias tanto nessa rede de ensino como em outras redes de ensino brasileira. Nas próximas seções apresentaremos resultados de um estudo de caso desenvolvido com o objetivo de examinar a natureza da relação entre esses dois níveis de ensino, conforme manifestada nas práticas educativas desenvolvidas em uma turma da educação infantil e do ensino fundamental.

A abordagem teórico-metodológica, os participantes e o local da pesquisa

A pesquisa fundou-se em uma abordagem etnográfica e foi realizada em uma escola de educação infantil e uma de ensino fundamental da rede municipal de Belo Horizonte. A maioria das crianças pesquisadas morava nas vilas empobrecidas ao redor do bairro de classe média onde essas escolas estavam localizadas. O trabalho de campo aconteceu durante o ano de 2008 (educação infantil) e no primeiro semestre de 2009 (1º ano do ensino fundamental). Os dados da pesquisa incluem anotações no diário de campo; gravações em vídeo das salas de aulas; gravações em áudio de entrevistas informais e semiestruturadas com professoras, crianças e suas famílias; e artefatos escritos usados e/ou produzidos nas salas de aulas.

O processo de construção e análise dos dados baseou-se na abordagem interpretativa da sociologia da infância (Gaskins, Miller, Corsaro, 1992; Corsaro, 2005) e na etnografia interacional (Baker, Green, 2007; Castanheira et al., 2001). Tem-se como pressuposto que as crianças, em suas ações coletivas, expressam o diálogo com a cultura mais ampla da comunidade em que vivem e a cultura de pares, em um processo definido por Corsaro (2005) como de reprodução interpretativa. Ou seja, as crianças, individual e coletivamente, não apenas se apropriam3 3 . O conceito de apropriação toma como referência a perspectiva da psicologia sócio-histórica, que o compreende como o processo através do qual o indivíduo, ao longo de seu desenvolvimento e de forma ativa, internaliza as práticas culturais historicamente construídas pela humanidade (Leontiev, 1978). dos significados do mundo, internalizando valores e normas culturais, como também contribuem para a produção e mudança desses significados. Tal processo se dá mediado pela linguagem e pelas rotinas culturais.

Tendo como referência os pressupostos da perspectiva interacional, buscou-se conhecer como, no interior da sala de aula, os participantes utilizaram os tempos e espaços para definir como, com quem, quando e onde desenvolvem as atividades. Por um lado, apropriando-se da cultura escolar4 4 . Para Vinao Frago (1995, p. 68), a cultura escolar seria " un conjunto de teorías, ideas, principios, normas, pautas, rituales, inercias, hábitos y practicas - formas de hacer y pensar, mentalidades y comportamientos - sedimentadas a lo largo del tiempo en forma de tradiciones, regularidades y reglas de juego... " . Simultaneamente, constroem, no diálogo com a cultura escolar, a cultura de pares, esta entendida como as atividades, rotinas, artefatos, valores e interesses construídos e compartilhados pelo grupo geracional na interação social (Corsaro, 2005).

Contextualizando a escola de educação infantil

A escola de educação infantil pesquisada iniciou suas atividades em 1997. A professora da turma, Paula, trabalha nessa escola desde o seu início. As crianças tinham três horas semanais de aulas de artes com outra professora, Júlia. Conforme depoimento dado em entrevista, o trabalho de ambas centrava-se no desenvolvimento das habilidades de socialização das crianças, tais como autonomia, negociação de conflitos, ajuda mútua, construção da história do grupo e sua coesão. Em direção a esses objetivos, Paula acompanhava o Projeto Político Pedagógico da escola, organizando a rotina diária, usando todos os espaços disponíveis na instituição.

Iniciamos a análise dos dados a partir das seguintes perguntas: como o dia a dia do grupo está organizado? Quando, onde e quais atividades são desenvolvidas pelo grupo? Realizamos, assim, um mapeamento das atividades desenvolvidas e dos espaços utilizados pela turma. O Gráfico 1 representa a rotina de atividades vivida pelo grupo. Tomamos o dia 13/08/08 como representativo do que predominava nos demais dias de aula.


O Gráfico 1 permite visualizar as atividades realizadas pela turma e seu tempo de duração. Essas atividades eram realizadas em vários espaços da escola: sala de aula, oficina de artes, pátio e cantina. No dia 13/08/08, as crianças puderam brincar com ou sem interferência direta das professoras (39,6% do tempo total), e participaram de rodas de conversa (16,1% do tempo total). Esse uso do tempo seguiu o padrão identificado no cotidiano dessa turma, levando à conclusão de que o dia a dia da turma era organizado, principalmente, em torno das brincadeiras (entre 26% e 64% do tempo total) e das rodas de conversa (entre 5% e 25% do tempo total).

Os alunos engajavam-se ativamente com as atividades propostas pelas professoras. Entretanto, a convivência diária com as crianças indicou um grande interesse pelo uso e reflexão sobre a escrita. Assim, examinamos como o letramento estava presente nessa sala de aula, fosse este promovido pelas professoras ou demandado pelas crianças. Apresentamos, a seguir, a Tabela 1, que contém uma taxonomia da presença da escrita nessa sala de aula. A primeira coluna apresenta os suportes de localização dos textos escritos. A segunda traz uma classificação dos gêneros desses textos. A terceira e a quarta indicam, respectivamente, os produtores e os destinatários desses textos.

A Tabela 1 possibilita ver que a escrita estava presente na sala de aula em diversos suportes e gêneros textuais e que diferentes participantes eram produtores ou destinatários de textos escritos. Embora o trabalho educativo enfatizasse o brincar, Paula criou um ambiente com grande presença da escrita, além de entregar atividades escritas para serem feitas em sala ou em casa pelas crianças. Como se pode ver pela análise das duas últimas colunas da Tabela 1, a principal autora da sala de aula era a professora, e as crianças foram posicionadas como principais destinatárias da sua escrita.

Na próxima seção, mudamos nosso foco de análise e examinamos como as crianças respondiam e participavam desse ambiente letrado. Para isso, analisamos alguns eventos de letramento (Heath, 1983), em que as crianças manifestaram o interesse pela aprendizagem da língua escrita, engajando-se em sua produção espontaneamente. Esse aspecto se destacou nas observações diárias realizadas nessa turma.

"Deixa eu escrever no seu caderno?"

O primeiro evento de letramento analisado, "Amanda escrevendo no diário de campo", é apresentado na Tabela 2, em relação às atividades desenvolvidas pelo grupo no dia 13/08/08. A primeira coluna da tabela exibe os espaços ocupados pela turma, a segunda registra as atividades realizadas e a sua duração, e a terceira registra os movimentos de Amanda. Ela constituiu nosso elemento pivô ou tracer unit (Castanheira, 2004). Ao acompanhar os seus passos e observar como ela se posicionava em relação ao que acontecia à sua volta, pudemos conhecer o interesse e a natureza da participação das crianças no ambiente e nas atividades organizadas pela professora e na interação com seus pares e materiais disponibilizados.

Como se pode ver pelos registros feitos na coluna da direita, tanto Paula quanto Júlia situaram as atividades propostas em relação a atividades anteriores, construindo uma história do grupo com as crianças. Elas incentivaram uma participação ativa das crianças nas rotinas da turma, contribuindo com sugestões e sendo responsáveis pela organização dos espaços da escola. Amanda afirmou-se como membro da turma através de sua participação nas atividades daquela sala de aula. Ao mesmo tempo, ela expressou seu interesse em relação à língua escrita, criando e aproveitando as oportunidades disponíveis para se apropriar dessa linguagem: comparou seu nome com o de Antônio, escreveu no diário de campo da pesquisadora, escutou atentamente a história e jogou forca com suas colegas e professora. As outras crianças também demonstraram interesse pela linguagem escrita: Iris, ao tentar escrever seu nome em letra cursiva no diário de campo; outras meninas jogando forca; todo o grupo, ao participar atentamente da leitura da história.

Passamos a análise das ações realizadas por Amanda durante os 38 minutos de brincadeiras livres, na Oficina de Artes. Esse período está indicado em cinza na Tabela 2 do Mapa de Eventos, Abaixo, na Figura 1, as fotografias criadas a partir do vídeo registram as ações desenvolvidas por Amanda nesse período de brincadeira livre. As linhas de número 1 e 2 apresentam sequência de suas ações em contraste com as ações das outras crianças nas linhas 3 e 4. Em uma linha do tempo, apresentamos a marcação dos minutos, ligando-os aos quadros do vídeo.


Logo no início da aula de artes, Amanda solicitou à pesquisadora: "Deixa eu escrever no seu caderno?", antes que Júlia chamasse a turma para a roda de conversa. Nesse momento inicial, ela registrou algumas das letras que estão na primeira linha do caderno de campo (Figura 2). O restante do registro feito por ela foi feito depois da pintura, quando o grupo teve permissão para brincar dentro e fora da Oficina de Artes (linhas 3 e 4, Figura 1). Nesse momento, Amanda solicita novamente permissão para escrever e fica absolutamente absorta nessa atividade por trinta e três minutos. À sua volta havia o barulho das brincadeiras e conversas de seus colegas, contudo ela não olhou nem conversou com as duas meninas que se aproximaram dela (linha 2, Figura 1). Experimentar com a escrita foi uma das oportunidades que Amanda teve para expressar seu interesse por seus usos e significados.


Amanda investiu uma energia considerável nessa escrita. Ela escreveu organizadamente da esquerda para a direita, dentro das margens e seguindo as linhas horizontais da página. Desenhou uma linha vertical, no que parece ser uma tentativa de criar uma coluna como as que aparecem no diário de campo. De acordo com Kress (1997), um dos primeiros elementos que a criança precisa aprender a controlar ao aprender a escrever relaciona-se com a forma e disposição do texto na página. Esse é um dos aspectos convencionais da escrita que Amanda deu mostra de estar observando e exercitando. Ela igualmente demonstrou conhecimento sobre o sistema alfabético, usando vinte e duas das letras existentes em nosso alfabeto. Em sua escrita, algumas letras aparecem sempre na posição correta (A, B, D, H, I, J, O, S, T e X) e outras aparecem tanto na posição correta quanto invertidas (C, E, F, G, L, N, P, R, U, V e Y). Ela utiliza apenas letras maiúsculas, forma usada pelas professoras. Amanda estava ciente do princípio de repetição das letras em palavras e textos: a letra 'A', primeira letra do seu nome, repete-se vinte e cinco vezes, seguida da vogal 'E', repetida dezesseis vezes. Na segunda linha, ela passa a caneta repetidas vezes sobre algumas letras e, na sexta, escreve o próprio nome. Seu envolvimento nessa atividade surpreende pela sua intensidade e duração, expressando os conhecimentos adquiridos por Amanda sobre a escrita até aquele momento.

Assim como Amanda, no dia a dia da sala de aula, outras crianças engajavam-se em atividades exploratórias da escrita sem demanda explícita da professora. Durante os momentos de brincadeiras livres, elas constantemente escreviam em pequenos pedaços de papel, dobrando-os em forma de envelopes com o objetivo de fazer cartas para Paula, para os colegas e para seus familiares. Essas cartas incluíam letras, garatujas, desenhos e colagens de diferentes formas, em uma criação de duas e três dimensões. Suas tentativas de apropriação dos usos sociais da escrita incluíam, portanto, um movimento de recriação dos aspectos formais deste tipo de produção. Além disso, as crianças rotineiramente experimentavam escrever os próprios nomes e os dos colegas, como no evento a seguir:

Após uma pintura na oficina de artes, há o momento de brincadeiras livres. Duas meninas escrevem no quadro de giz que fica do lado de fora da sala. Marcela escreve o nome de um colega, "CARLOS", e pede que Miriam adivinhe qual nome ela escreveu. Miriam olha para o nome, mas não responde. Marce-la chama Bruno, que responde corretamente. Marcela sorri, balançando a cabeça afirmativamente. Bruno se afasta. Miriam escreve "TADE" e Marcela rapidamente lê "

Tadeu

". Marcela chama Bruno novamente, que diz: "

É Amanda

". Marcela balança a cabeça negativamente e diz: "

Não. É Carlos e Tadeu

". Bruno volta a brincar com Lúcio. Miriam apaga os dois nomes. Antônio se aproxima do quadro e escreve o próprio nome corretamente. Miriam tenta apagá-lo, ao que Antônio diz: "

Não apaga o meu

". Marcela escreve novamente "CARLOS" e "TÁDE". Ela olha para o quadro por alguns segundos, apaga o acento agudo e pergunta a Miriam: "

Tá certo, não tá?

". Miriam balança a cabeça afirmativamente. Marcela escreve "MA", apaga as letras e se dirige a Miriam: "

Vamos fazer maior?".

Ela, logo a seguir, escreve "CARLOS". Antônio apaga a escrita da colega. Marcela diz: "

Eu não apaguei o seu

". Ela escreve novamente e Antônio apaga. Marcela escreve mais uma vez, falando: "Não

apaga, tá?

". Antônio apaga e olha para ela. Miriam pede ajuda da professora, que pede para Antônio parar. Marcela escreve o próprio nome corretamente e conta o número de letras. Iris se aproxima do quadro e escreve "C". Miriam apaga a escrita de Iris, que grita: "

Para!

". Iris desenha seis círculos pequenos e os apaga. Marcela escreve "CARLOS" ao lado do seu nome, circulando-os. Iris escreve "IARAIA" e, logo abaixo, escreve "RARAIA", apagando rapidamente. Renata se aproxima, desenhando um pequeno balão com garatujas, como os balões das histórias em quadrinhos. As crianças continuam escrevendo e apagando nomes, letras e números por mais algum tempo. (Anotações do Diário de Campo. Duração do evento: 20 minutos. 4/08/08)

Nesse evento, as crianças não estavam escrevendo aleatoriamente. Os nomes próprios constituem uma importante característica da identidade dos sujeitos, e, nesse momento, a escrita mediou processos de construção da identidade das crianças, a construção de uma "identidade letrada", bem como o estreitamento dos laços de amizade entre Marcela e Miriam.

As interações entre as crianças tornaram-se importantes fontes de informação para a aprendizagem de Marcela, mesmo que em alguns momentos seus colegas se mostrassem menos capazes que ela. Tal foi o caso de Miriam e Bruno, ao não reconhecerem os nomes dos colegas, Apesar disso, Marcela se apoiou na escrita dos pares e expandiu seu conhecimento, criando o que Vygotsky (2002) conceituou como zona de desenvolvimento proximal. Outra característica da interação de Marcela com seus pares foi seu esforço em assumir o papel de professora.

Observamos que as crianças não apenas repetiam o que estava sendo formalmente ensinado, mas criativamente se apropriaram da escrita para atender às próprias demandas e curiosidades. Elas demonstraram, com suas ações, a importância que o letramento tinha para seu grupo, integrando o brincar e a escrita, ao entretecer as culturas de pares e a cultura escolar (Barbosa, 2007). Esse trabalho simbólico das crianças foi igualmente primordial no momento de entrada para o ensino fundamental.

Enquanto as crianças davam mostra do seu interesse pela escrita, por outro, as atividades desenvolvidas por elas não eram objeto de intervenção da professora. Paula não fazia nenhum comentário específico sobre as tentativas de escrita das crianças. Por um lado, com essa forma de trabalho, as crianças não foram pressionadas a produzir uma resposta correta, o que proporcionou um ambiente de experimentação e o desenvolvimento de hipóteses sobre a linguagem escrita. Por outro, as crianças não tiveram muitas oportunidades de refletir de maneira mais sistematizada sobre alguns aspectos do sistema alfabético, embora fizessem perguntas a esse respeito à professora e à pesquisadora.

Entrando no ensino fundamental: "Essa escola é muito, muito, muito grande... "

A escola de ensino fundamental foi criada em 1996, no atual prédio da escola de educação infantil descrita na seção anterior. Em 1997, ela muda-se para um novo prédio, mais amplo, construído a partir de uma demanda da comunidade. Ela possui dezessete salas de aula, laboratório de ciências, sala de informática, biblioteca-polo, ginásio poliesportivo, quadra coberta e dois pátios internos. Tais características não passaram despercebidas pelas crianças, que se referiam à escola como sendo "muito, muito, muito grande". Além do tamanho, chamou a atenção das crianças a ausência de brinquedos nos pátios e na sala de aula.

O primeiro mês de aulas foi dedicado à organização das professoras e da escola como um todo (uma nova direção assumiu a escola em janeiro, a coordenadora do 1º ciclo era novata na instituição, e havia três vagas para professoras no turno pesquisado), o que trouxe certa instabilidade no cotidiano institucional. Tal instabilidade pôde ser sentida em algumas situações particulares, como, por exemplo, na distribuição de turmas entre as professoras (definida formalmente apenas em uma reunião no dia anterior ao começo das aulas), nos momentos de entrada das crianças do turno e também nas mudanças das professoras responsáveis pelas crianças no início do 1º Ciclo. Durante o primeiro mês de aulas, três professoras assumiram a turma pesquisada: Sílvia, responsável pelo processo de alfabetização e letramento das crianças, a professora de matemática e a professora de educação física.

Sílvia estava retornando à sala de aula após quatro anos na direção da escola. Assim, esse foi um mês de readaptação de Sílvia à posição de professora. Nesse sentido, podemos afirmar que o processo de transição estava posto tanto para as crianças quanto para a professora, o que trouxe consequências para as formas de participação dos membros no contexto da sala de aula.

Buscando entender a inserção das crianças em um novo espaço escolar, realizamos um mapeamento das atividades desenvolvidas e dos espaços utilizados pela turma, a fim de tecer comparações entre esse novo espaço e as experiências anteriores na educação infantil. O resultado da análise de um dia observado está representado no Gráfico 2.


O Gráfico 2 torna visível a organização do tempo e espaço no dia 9/02/09. O uso do tempo e do espaço estruturou-se através da realização de atividades xerocadas (Figura 3) na sala de aula: 53,4% do tempo total. Nesse dia, as crianças permaneceram na sala de aula por 86% do tempo total.


Destacamos, a partir das análises do primeiro mês de aulas, alguns aspectos característicos da forma de organização da turma pesquisada: (i) as filas aconteceram em todos os momentos que as crianças se deslocaram pela escola, sugerindo que nesse espaço as crianças teriam menor autonomia para circular entre esses espaços e que, portanto, a professora exerceria um controle maior sobre os alunos nesses momentos; (ii) as carteiras eram individuais, em filas, voltadas para a professora e o quadro negro, e não favorecendo o contato entre os alunos, já que esses deveriam se concentrar nas atividades realizadas individualmente; (iii) as brincadeiras entre as crianças foram permitidas principalmente no momento do recreio, o que trouxe uma das atividades mais valorizadas na educação infantil para um segundo plano; (iv) o espaço em que as crianças ficaram mais tempo foi a sala de aula (entre 42% e 86% do tempo total); (v) à medida que acabavam a merenda, as crianças poderiam ir para o pátio, o que significou que algumas crianças não merendavam todos os dias, uma vez que estavam ansiosas por brincar; (vi) algumas crianças traziam lanche individual; (vii) os artefatos culturais disponíveis na sala de aula tornaram-se reduzidos quando comparados aos disponibilizados na educação infantil (Tabela 3). Tais aspectos, considerados em conjunto, representam uma ruptura em relação às práticas escolares vivenciadas pelas crianças na educação infantil.

Nesse quadro comparativo, percebem-se dois elementos característicos da cultura escolar do ensino fundamental que estavam ausentes na educação infantil. Em primeiro lugar, a variedade de artefatos culturais na sala de aula foi muito menor que na sala da educação infantil, e, consequentemente, as atividades possíveis em cada espaço foram diferenciadas. As crianças que já haviam terminado uma atividade deveriam esperar sentadas por seus colegas, como podemos observar no Gráfico 2. Ao retomarmos os eventos do dia 13/08/08, na educação infantil, fica claro que o tempo de espera entre as atividades era praticamente inexistente, uma vez que as crianças poderiam, ao finalizar alguma atividade coletiva, buscar outros materiais e brinquedos ali presentes.

O segundo elemento que gostaríamos de salientar é o uso individual dos materiais. Na sala da educação infantil, o uso coletivo dos diversos materiais permitiu que todas as crianças tivessem acesso igual às atividades propostas, bem como foi construída uma lógica de convívio coletivo própria da cultura escolar daquele espaço. No ensino fundamental, era esperado que as crianças trouxessem seus materiais de casa e, quando isso não acontecia, sua participação nas atividades poderia ser comprometida.

Nesse mesmo sentido, a realização das atividades seguiu, em grande medida, uma lógica individual de apropriação do conhecimento: "Cada um tem que fazer o seu. Não pode olhar do colega", foram frases que se repetiram com frequência ao longo das aulas. Sem dúvida, a construção de relações mais solidárias entre as crianças em direção à formação de um grupo de aprendizagem ficou comprometida. Outro aspecto que merece atenção é a distinção social que se faz destacar na posse de alguns objetos (mochilas novas ou velhas, material escolar completo ou não etc.). Assim, as práticas escolares reproduziram no interior da instituição uma demarcação da origem social das crianças. Tais distinções apareciam de maneira menos evidente entre as crianças na turma da educação infantil, uma vez que todas usavam os materiais de maneira coletiva.

No intuito de analisar quais atividades xerocadas eram propostas para a turma, realizamos uma classificação das mesmas (Tabela 4), tornando clara a concepção de aprendizagem que permeou as relações entre as professoras e as crianças no início do ensino fundamental.

Observamos que o número de atividades voltadas especificamente para a apropriação do sistema de escrita das crianças (oito) foi o mesmo que o de atividades voltadas para o treino das habilidades de coordenação motora e discriminação visual. Contudo, o tempo dedicado a esse treino foi maior, padrão observado ao longo do primeiro mês de aulas. Assinalamos que o treino grafomotor ocupou a centralidade desse processo através de atividades que propiciaram poucos desafios cognitivos para as crianças (Figura 3).

Uma diferença marcante entre a sala de aula da educação infantil e a do ensino fundamental refere-se à presença da escrita nesta última no primeiro mês de aulas, conforme pode ser observado na Tabela 5.

Nesse primeiro mês, nota-se que houve uma diminuição da variedade de gêneros textuais disponíveis às crianças em relação à educação infantil, e a professora continuou sendo a principal autora da escrita no ensino fundamental. Assim, as práticas educativas centraram-se no treino grafomotor e na produção de comportamentos considerados adequados: permanecer sentado a maior parte do tempo, conversar pouco com os colegas, seguir as orientações dadas e esperar todos acabarem as atividades.

Buscando entender a forma de participação das crianças nesse contexto, mudamos o foco da análise na próxima seção. Apresentamos um evento em que, a princípio, a ênfase da análise havia recaído sobre a realização da atividade de coordenação motora, bem como sobre a longa espera. Entretanto, a possibilidade de transcrever a filmagem desse dia deu visibilidade ao processo de construção da cultura de pares.

"Quem quer sorvete?"

O ritmo lento das atividades e as longas esperas provocaram momentos de confusão na turma, visíveis quando as professoras chamavam atenção das crianças. Por outro lado, essa forma de trabalho também propiciou momentos valiosos para a construção da cultura de pares. Assim, o processo de adaptação no ensino fundamental incluiu dois movimentos paralelos, intimamente relacionados, a apropriação da cultura escolar e a construção da cultura de pares. As crianças, no processo de adaptação à nova escola, iniciaram tal construção a partir do estabelecimento ou manutenção das relações de amizades entre si, através da troca de materiais e merendas e pela ajuda mútua na realização das atividades, mesmo não sendo oficialmente permitido pelas professoras.

Um elemento importante na construção da cultura de pares foi a criação individual e coletiva de novos sentidos para as atividades propostas pelas professoras. Foi o que aconteceu, por exemplo, durante o evento "Ligando formas iguais" (9/02/09). As crianças foram solicitadas a ligar os sorvetes iguais, passar o lápis no tracejado dos cones, colorindo-os de laranja, e colorir os sorvetes da cor que quisessem (Figura 3). Baseando-nos apenas nas notas do diário de campo, nós interpretaríamos esse evento como um momento em que a falta de sentido propiciada pela atividade xerocada e a espera foram os elementos essenciais. No entanto, a possibilidade de rever e transcrever as filmagens trouxe novos elementos para a pesquisa.

Na Tabela 6, organizamos a transcrição desse evento a partir do momento em que as crianças começaram a realizar a atividade individualmente. Na primeira coluna, está a marcação do tempo, de acordo com a filmagem. Na segunda coluna, apresentamos as interações entre as crianças. Na terceira coluna, registramos as interações da professora com a turma e com algumas crianças individualmente. Essas colunas estão subdivididas entre os sujeitos e suas falas e ações. Na última coluna, tecemos alguns comentários.

A análise da Tabela 6 torna visíveis os dois planos de interação na sala de aula: o da construção da cultura de pares, caracterizado pelas falas e ações das crianças entre si e aquele em que a professora controla as interações com a turma. Percebe-se que Sílvia e as crianças posicionaram-se de maneiras diferentes nas interações discursivas em sala de aula. A professora volta-se para os objetivos imediatos da atividade proposta, que se relacionam à cultura escolar daquela instituição. Nesse sentido, os sorvetes desenhados na folha são vistos pelo ângulo dos pontilhados a serem cobertos e dos espaços a serem coloridos. Para além do treino grafomotor, as crianças necessitam aprender a seguir as instruções dadas e a organizar adequadamente o caderno.

Por outro lado, as crianças se apropriaram da atividade xerocada, transformando-a em um suporte material para suas interações, em que o brincar assumiu papel fundamental. Os significados atribuídos aos desenhos, através da construção coletiva de uma sorveteria, ampliaram os objetivos imediatos da atividade. A imaginação, como uma função da consciência, surge inicialmente no contexto social, da ação da criança sobre os objetos. Portanto, a dimensão simbólica presente no ato do brincar (Vygotsky, 2002) é essencial, uma vez que a criança inventa novas e imprevisíveis relações entre diversos objetos.

A brincadeira do sorvete demonstra uma reprodução interpretativa do mundo adulto pelas crianças no interior da cultura de pares. As crianças introduziram novos elementos no contexto imediato da sala de aula ao reproduzirem simbolicamente relações comerciais de um produto valorizado por elas. No processo de construção da cultura de pares, Corsaro argumenta que as crianças "desenvolvem uma identidade coletiva com uma ênfase naquilo que elas, enquanto crianças, têm em comum" (Corsaro, 1985, p. 66, grifos no original. Tradução nossa). Torna-se claro que o fato de todas estarem iniciando o ensino fundamental posicionou-as como novatas naquele espaço, sendo esse um forte elemento que as uniu enquanto um grupo. Coletivamente, através de suas falas e ações, as crianças iniciaram a construção da ponte que as ajudou a atravessar a passagem entre a educação infantil e o ensino fundamental.

Considerações finais

Acompanhar a trajetória de um grupo de crianças em sua transição da educação infantil para o ensino fundamental significou uma aproximação com o cotidiano escolar de duas instituições de ensino. Verificamos que as práticas educativas que assumiram centralidade na educação infantil e no ensino fundamental se estruturavam em torno da brincadeira e do letramento, mas situadas diferencialmente nos dois segmentos. A transição entre tais práticas, sem dúvida, caracteriza a tensão entre esses dois níveis de ensino. Na escola de educação infantil pesquisada, a centralidade do brincar esteve presente na organização das rotinas institucionais, com os usos do tempo e do espaço estruturados em torno dessa atividade. No entanto, tendo em vista sua condição de sujeitos inseridos em uma cultura grafocêntrica, as crianças voltaram-se para a apropriação da língua escrita, engajando-se individual e coletivamente em diversos eventos de letramento. Na análise do cotidiano da sala de aula evidenciou-se que a cultura de pares daquele grupo de crianças foi caracterizada tanto pelo desenvolvimento de brincadeiras como pela investigação dos usos e sentidos da língua escrita de forma sistemática, mesmo não tendo sido este o objetivo proposto pela professora da turma.

Ao inserir-se no ensino fundamental, as crianças depararam-se com um hiato entre as experiências desenvolvidas na educação infantil e as práticas educativas da nova escola. Assim é que o brincar, um dos elementos centrais da cultura de pares e do cotidiano da educação infantil, foi situado em segundo plano no contexto da sala de aula. Verificou-se um desencontro entre o interesse das crianças pelo brincar e a cultura escolar deste segmento da educação básica. As práticas educativas da escola de ensino fundamental, ao longo do primeiro mês de aula, organizaram-se em torno da repetição de atividades de treino psicomotor, tomadas como pré-requisitos para a apropriação do sistema de escrita. Contudo, observou-se que as crianças, nas interações entre os pares, desenvolviam uma apropriação ativa (Leontiev, 1978). Ou seja, não apenas repetiram o que estava sendo formalmente ensinado, mas criativamente produziram novos significados, de acordo com suas demandas e curiosidades.

Argumentamos que a falta de diálogo presente na organização do sistema educacional brasileiro em relação aos dois primeiros níveis da educação básica refletiu-se no processo de desencontros vivenciados pelas crianças pesquisadas na passagem da educação infantil para o ensino fundamental. Nesse sentido, a investigação, ao ter como foco o registro da experiência infantil, evidenciou a necessidade de uma maior integração entre o brincar e o letramento nas práticas pedagógicas da educação infantil e do ensino fundamental, ambas dimensões fundamentais da cultura infantil contemporânea. Parafraseando Magda Soares (1999), podería-mos pensar em práticas educativas na educação infantil e no ensino fundamental em que houvesse um "brincar letrando" ou um "letrar brincando", em direção ao estabelecimento de uma relação de parceria entre esses segmentos da educação básica.

Recebido em: 30.09.2010

Aprovado em: 29.11.2010

Vanessa Ferraz Almeida Neves é professora municipal de Belo Horizonte, doutora em Educação pela UFMG e pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Infantil (NEPEI/UFMG).

Maria Cristina Soares de Gouvêa é professora associada da Faculdade de Educação - UFMG, pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Historia da Educação (GEPHE/UFMG) e do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Infantil (Nepei/UFMG). Bolsista de produtividade 1-D CNPq. E-mail: crisoares43@yahoo.com.br

Maria Lúcia Castanheira é professora associada da Faculdade de Educação - UFMG e diretora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale/UFMG). E-mail: lalucia@gmail.com

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  • Correspondência:
    Vanessa Ferraz Almeida Neves
    R. Agenor Goulart Filho, 90
    31310-360 - Belo Horizonte / MG
    E-mail:
  • 1
    . As autoras agradecem aos comentários e sugestões do professor William Corsaro em relação às análises aqui apresentadas.
  • 2
    . Apoio às autoras: Capes, CNPq, Fapemig e Prefeitura Municipal de Belo Horizonte.
  • 3
    . O conceito de apropriação toma como referência a perspectiva da psicologia sócio-histórica, que o compreende como o processo através do qual o indivíduo, ao longo de seu desenvolvimento e de forma ativa, internaliza as práticas culturais historicamente construídas pela humanidade (Leontiev, 1978).
  • 4
    . Para Vinao Frago (1995, p. 68), a cultura escolar seria "
    un conjunto de teorías, ideas, principios, normas, pautas, rituales, inercias, hábitos y practicas - formas de hacer y pensar, mentalidades y comportamientos - sedimentadas a lo largo del tiempo en forma de tradiciones, regularidades y reglas de juego... "
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011

    Histórico

    • Recebido
      30 Set 2010
    • Aceito
      29 Nov 2010
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