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Crianças na educação infantil: a escola como lugar de experiência socialI I - Agradecemos o apoio da Pró-Reitora de Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da FAPEMIG.

Resumo

O artigo apresenta uma análise das experiências de crianças de 4 e 5 anos na instituição de educação infantil. A categoria experiência foi tomada das teorias de François Dubet (1996), Walter Benjamin (1984, 2011a, 2011b) e dos estudos sociais da infância (SARMENTO 2002, 2008; CORSARO 2002, 2009, 2011, dentre outros/as). O estudo de caso foi desenvolvido em uma instituição pública de educação infantil, contou com a participação de dezoito crianças e duas professoras, e utilizou registros em caderno de campo e registros audiovisuais como forma de captar as ações das crianças. Desse modo, identificou-se que as crianças na instituição articulam diversas lógicas de ação nas relações que estabelecem entre si e com os adultos, baseadas nas dimensões integradora, de estratégica e de subjetivação – essenciais à noção de experiência social. O texto discute a necessidade de considerar as crianças no contexto de relações reguladas pelos adultos ao se utilizarem as categorias da ação social para o estudo das experiências vividas pelas crianças nessa instituição escolar. As análises apresentam leitura interpretativa de tais experiências, expressas por meio tanto da linguagem verbal como do que aparece nos corpos dos meninos e das meninas. Verificou-se ainda que, ao vivenciar as experiências na instituição, as crianças o fazem articulando-as a outras experiências de suas vidas, imprimindo-lhes o caráter de continuidade.

Crianças; Infância; Educação infantil; Ação social; Experiência social

Abstract

This article presents an analysis of the experience of children aged four to five years in an early childhood education institution. The category of experience was taken from the theories of François Dubet (1996)DUBET, François. Sociologia da experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1996., Walter Benjamin (1984BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984. 2011aBENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica: arte e política. v. 1. São Paulo: Brasiliense, 2011a. 2011b)BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. v. 3. São Paulo: Brasiliense, 2011b., and early childhood social studies (SARMENTO (2002SARMENTO, Manuel Jacinto As culturas da infância nas encruzilhadas da 2ª modernidade. Braga: Universidade do Minho. Centro de Estudos da Criança, 2002. (Mimeo). Disponível em: <www.iec.minho.pt/cedic/textos de trabalho>. Acesso em: maio 2011.
www.iec.minho.pt/cedic/textos de trabalh...
, 2008SARMENTO, Manuel Jacinto. Sociologia da infância: correntes e confluências. In: SARMENTO, Manuel Jacinto; GOUVÊA, Maria Cristina Soares (Org.). Estudos da infância: educação e práticas sociais. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 17-39.; CORSARO 2002CORSARO, Willian Arnold. A reprodução interpretativa no brincar ao “Faz de conta” das crianças. Educação Sociedade & Culturas,Porto, n. 17, p. 113-134, 2002., 2009CORSARO, Willian Arnold. Reprodução interpretativa e cultura de pares. In: MÜLLER, Fernanda; CARVALHO, Ana Maira Almeida (Org.). Teoria e prática na pesquisa com crianças: diálogos com Willian Corsaro. São Paulo: Cortez, 2009. p. 31-50., 2011CORSARO, Willian Arnold. Sociologia da infância. São Paulo: Artmed, 2011., among others). The case study was conducted in a public early childhood education institution and involved 18 children and two teachers, used audiovisual recordings and notes records in a field diary to capture the children’s actions. The children in the institution articulated different logics of action in the relationships with each other and with adults, which were based on the integrative, strategic and subjective dimensions, which are essential to the concept of social experience. The article discusses the need to consider children in the context of relationships regulated by adults when one uses the categories of social action for the study of children’s experiences in early childhood education institutions. The analyses present an interpretation of such experiences, which are expressed through both the verbal and body languages of boys and girls. When experiencing the institution, children articulate such experience to their other life experiences, imprinting on them the character of continuity.

Children; Early childhood; Early childhood education; Social action; Social experience

Introdução

Observa-se, na produção acadêmica brasileira do campo da educação, especialmente na relativa à educação infantil, expressivo crescimento dos estudos com crianças e sobre suas experiências no ambiente educacional. Tais estudos expressam transformações ocorridas nas políticas públicas para a infância e as crianças, resultando na expansão da cobertura do atendimento educacional a crianças entre 0 e 5 anos, o que tem se configurado como espaço de investigação das interações entre as crianças e entre elas e os adultos. Ao mesmo tempo, emerge um movimento do próprio campo acadêmico das ciências sociais em que a possibilidade de expressão dos diferentes sujeitos sociais passa a ser considerada como condição para a compreensão efetiva da vida social e das experiências individuais e coletivas.

Com o desenvolvimento de pesquisas orientadas por referencial sociológico, os estudos sobre a educação infantil em nosso país têm focalizado inúmeros aspectos e os diferentes atores e pontos de vista sobre as experiências no ambiente de cuidado e educação das crianças de 0 a 5 anos. A consideração das crianças como atores se apresenta não apenas como resultado de processos sociais de transformação das formas de compreensão das crianças e da infância (ou das infâncias) – expressas na produção de conhecimentos sobre a sociedade e sobre a escola –, mas também como resultado de um empenho em superar as condições de invisibilidade das crianças como atores sociais (SARMENTO, 2008SARMENTO, Manuel Jacinto. Sociologia da infância: correntes e confluências. In: SARMENTO, Manuel Jacinto; GOUVÊA, Maria Cristina Soares (Org.). Estudos da infância: educação e práticas sociais. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 17-39.).

Este texto1 1 - Este artigo foi elaborado com base na pesquisa realizada para a dissertação de mestrado de um dos autores, defendida em agosto de 2013, intitulada: “A gente vem brincar, colorir e até fazer atividade”: a perspectiva das crianças sobre a experiência de frequentar uma instituição de Educação Infantil. analisa as experiências vivenciadas cotidianamente por crianças de quatro/cinco anos em uma instituição pública de educação infantil2 2 - Para este artigo, retomamos as análises dos dados da pesquisa, ampliando o referencial teórico com a inclusão da categoria experiência social, desenvolvida por François Dubet. . As análises aqui apresentadas buscaram fundamentação teórica em autores/as de vários campos disciplinares, como os da sociologia (DUBET, 1996DUBET, François. Sociologia da experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.; DUBET; WIEWIORKA, 1995DUBET, François; WIEWIORKA, Michel. Penser le sujet:autour d’Alain Touraine. Colloque de Cerisy. Fayard, 1995. (Introdução).), da sociologia da infância (SARMENTO; PINTO, 1997SARMENTO, Manuel Jacinto; PINTO, Manuel. As crianças e a infância: definindo conceitos, delimitando o campo. In: PINTO, Manuel; SARMENTO, Manuel Jacinto. As crianças, contextos e identidades. Braga: Universidade do Minho. Centro de Estudos da Criança. Bezerra, 1997.; CORSARO, 2002CORSARO, Willian Arnold. A reprodução interpretativa no brincar ao “Faz de conta” das crianças. Educação Sociedade & Culturas,Porto, n. 17, p. 113-134, 2002., 2009CORSARO, Willian Arnold. Reprodução interpretativa e cultura de pares. In: MÜLLER, Fernanda; CARVALHO, Ana Maira Almeida (Org.). Teoria e prática na pesquisa com crianças: diálogos com Willian Corsaro. São Paulo: Cortez, 2009. p. 31-50., 2011CORSARO, Willian Arnold. Sociologia da infância. São Paulo: Artmed, 2011., dentre outros/as), da filosofia (BENJAMIN, 1984BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984., 2011aBENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica: arte e política. v. 1. São Paulo: Brasiliense, 2011a.; 2011bBENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. v. 3. São Paulo: Brasiliense, 2011b., dentre outros/as) e da área da educação infantil (CAMPOS, 2008CAMPOS, Maria Malta. Por que é importante ouvir a criança? A participação das crianças pequenas na pesquisa científica. In: CRUZ, Silvia Helena Vieira. A criança fala: a escuta de crianças em pesquisas. São Paulo: Cortez. 2008. p. 35-42.; ROCHA, 2008ROCHA, Eloisa Acires Candal. Por que ouvir crianças? Algumas questões para um debate científico multidisciplinar. In: CRUZ, Silvia Helena Vieira (Org.). A criança fala: a escuta de crianças em pesquisas. São Paulo: Cortez, 2008. p 43-51.; SILVA; VIEIRA, 2008SILVA, Isabel de Oliveira; VIEIRA, Lívia Maria Fraga. Educação infantil no Brasil: direitos, finalidades e a questão dos profissionais. Belo Horizonte: FAE/UFMG, 2008.; dentre outros/as).

A pesquisa foi desenvolvida por meio da metodologia do estudo de caso, (SARMENTO, 2003SARMENTO, Manuel Jacinto. O estudo de caso etnográfico em educação. In: ZAGO, Nair et al.Itinerários de pesquisa: perspectivas qualitativas em sociologia da educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 137-179.), tendo como principais instrumentos para a produção e coleta de dados: a observação participante, o desenho articulado com a oralidade, fotografias produzidas pelas crianças (também conjugadas com suas falas), os registros das falas das crianças em momentos informais e em entrevistas, e os registros em caderno de campo.

O cruzamento dos dados obtidos por esses diferentes instrumentos de pesquisa foi realizado com o objetivo de viabilizar a construção de uma descrição densa (GEERTZ, 2008GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. 1. ed. 13. reimpressão. Rio de Janeiro: LTC, 2008.) acerca das experiências das crianças dentro da instituição de educação infantil. Os dados foram sistematicamente triangulados, uma vez que, metodologicamente, conforme sugere Rocha (2008)ROCHA, Eloisa Acires Candal. Por que ouvir crianças? Algumas questões para um debate científico multidisciplinar. In: CRUZ, Silvia Helena Vieira (Org.). A criança fala: a escuta de crianças em pesquisas. São Paulo: Cortez, 2008. p 43-51., na investigação com crianças, faz-se necessário articular vários instrumentos de escuta aliados a diferentes suportes, de modo a oportunizar a expressão de suas demandas, interpretações e significados de suas experiências por meio de diferentes linguagens.

A construção dos dados foi realizada ao longo de sete meses de 2012 em uma Unidade Municipal de Educação Infantil (UMEI) de Belo Horizonte. Os sujeitos participantes do estudo são dezoito crianças de quatro/cinco anos (oito meninas e dez meninos), além de duas professoras que atuavam diariamente com esse grupo. Todas as crianças estavam, naquele momento, regularmente matriculadas, sendo que apenas uma delas frequentava a instituição desde o berçário. As demais vivenciavam seu primeiro ano na UMEI Rosa dos Ventos.

Por questões de ordem ética, o nome da instituição foi substituído por um nome fictício escolhido pelas professoras e coordenadora da instituição. O mesmo procedimento ético foi adotado com os participantes. Os nomes fictícios foram negociados com as professoras e com as crianças, de modo que cada uma poderia sugerir o pseudônimo com o qual seria identificada neste trabalho. No caso das crianças, esse processo ocorreu de duas formas: um grupo apropriou-se facilmente da proposta de substituição do nome e sugeriu substitutos sem a nossa interferência. Nesse grupo, as crianças adotaram os nomes dos pais e ou de parentes e familiares próximos a elas. Para um pequeno grupo de crianças, oferecemos ajuda para a escolha, sugerindo-lhes que optassem por pseudônimos que se iniciassem com a primeira letra dos respectivos nomes (procedimento esse que foi seguido de uma explicação de que, toda vez que o nome escolhido aparecesse na pesquisa, tratar-se-ia da criança em questão). Após a escolha dos pseudônimos das crianças, os mesmos foram informados aos pais3 3 - Outro procedimento ético, conforme exigência legal e do Comitê de Ética da UFMG, refere-se à solicitação de autorização dos pais e familiares das crianças por meio de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). na reunião de encerramento do primeiro semestre de 2012.

Construindo outro olhar acerca da experiência infantil

O estudo da experiência infantil – como distinta, mas nem por isso menor do que a dos adultos (BENJAMIN, 1984BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984.) – requer a superação da ideia de que as crianças são seres sociais que pouco participam no próprio processo de socialização. Para Sarmento e Pinto (1997SARMENTO, Manuel Jacinto; PINTO, Manuel. As crianças e a infância: definindo conceitos, delimitando o campo. In: PINTO, Manuel; SARMENTO, Manuel Jacinto. As crianças, contextos e identidades. Braga: Universidade do Minho. Centro de Estudos da Criança. Bezerra, 1997., p. 20), considerar meninos/as como atores sociais implica o reconhecimento da “capacidade de produção simbólica por parte das crianças e a constituição das suas representações e crenças em sistemas organizados, isto é, em culturas”. Assim, consideramos que, no contexto das relações entre as crianças e os adultos (intergeracionais) e entre as próprias crianças (intrageracionais), os/as pequenos/as são seres ativos, isto é, possuem agência. São notavelmente interativos/as, principalmente nas relações que estabelecem entre si, nos ambientes sociais que partilham, estabelecendo, desse modo, culturas particulares também conhecidas como cultura de pares (CORSARO, 2009CORSARO, Willian Arnold. Reprodução interpretativa e cultura de pares. In: MÜLLER, Fernanda; CARVALHO, Ana Maira Almeida (Org.). Teoria e prática na pesquisa com crianças: diálogos com Willian Corsaro. São Paulo: Cortez, 2009. p. 31-50.).

Corsaro (2009)CORSARO, Willian Arnold. Reprodução interpretativa e cultura de pares. In: MÜLLER, Fernanda; CARVALHO, Ana Maira Almeida (Org.). Teoria e prática na pesquisa com crianças: diálogos com Willian Corsaro. São Paulo: Cortez, 2009. p. 31-50. compreende que as crianças assimilam criativamente informações do mundo adulto para construírem culturas singulares. Para ele, as culturas de pares infantis são entendidas como “um conjunto de atividades ou rotinas, artefatos, valores e preocupações que as crianças produzem e partilham na interação com os seus pares” (CORSARO, 2009CORSARO, Willian Arnold. Reprodução interpretativa e cultura de pares. In: MÜLLER, Fernanda; CARVALHO, Ana Maira Almeida (Org.). Teoria e prática na pesquisa com crianças: diálogos com Willian Corsaro. São Paulo: Cortez, 2009. p. 31-50., p. 32). Esse autor desenvolveu uma abordagem sobre a socialização infantil que considera a ação social das crianças nesse processo como mais interativa do que passiva ou meramente reprodutiva, cunhando a expressãoreprodução interpretativa (CORSARO, 2002CORSARO, Willian Arnold. A reprodução interpretativa no brincar ao “Faz de conta” das crianças. Educação Sociedade & Culturas,Porto, n. 17, p. 113-134, 2002.; 2009; 2011):

O termo interpretativa captura os aspectos inovadores da participação das crianças na sociedade, indicando o fato de que as crianças criam e participam de suas culturas de pares singulares por meio da apropriação de informações do mundo adulto de forma a atender aos seus interesses próprios enquanto crianças. O termo reprodução significa que as crianças não apenas internalizam a cultura, mas contribuem ativamente para a produção e a mudança social. (CORSARO, 2009CORSARO, Willian Arnold. Reprodução interpretativa e cultura de pares. In: MÜLLER, Fernanda; CARVALHO, Ana Maira Almeida (Org.). Teoria e prática na pesquisa com crianças: diálogos com Willian Corsaro. São Paulo: Cortez, 2009. p. 31-50., p. 31).

Nessa perspectiva, as crianças são consideradas seres sociais mergulhados, desde cedo, em uma rede social já constituída e que, por meio do desenvolvimento da comunicação e da linguagem, constroem modos peculiares de apreensão do real. Ao associar isso ao alargamento de seu contexto de interações sociais, as crianças ampliam suas possibilidades de assimilar o mundo que as rodeia, expandindo, assim, as culturas de pares e reconstruindo a cultura adulta (CORSARO, 2002CORSARO, Willian Arnold. A reprodução interpretativa no brincar ao “Faz de conta” das crianças. Educação Sociedade & Culturas,Porto, n. 17, p. 113-134, 2002.). Essa perspectiva conduz à percepção das crianças como atores competentes nas interações entre si e com os demais grupos de idade da sociedade, por meio das quais produzem culturas que expressam e, ao mesmo tempo, reconstroem a experiência infantil.

Por se tratar de um estudo desenvolvido numa instituição escolar, voltado para a compreensão do ponto de vista das crianças relativamente às próprias experiências nesse ambiente, consideramos pertinente atermo-nos ao conceito deexperiência no âmbito da sociologia contemporânea, particularmente, os estudos de François Dubet. A sociologia da experiência é fortemente tributária da sociologia da ação de Alain Touraine, autor a quem os sociólogos da infância de tradição francófona devem a acepção de ação social das crianças.

Como tem sido largamente difundido, os estudos sociais da infância que se desenvolveram no último quartel do século XX, embora com abordagens diferenciadas – ora com foco na dimensão estrutural da infância nas sociedades (estudos macrossociológicos) ora com foco nas experiências (ações) das crianças (estudos interpretativos) em diferentes espaços –, fizeram-no com o objetivo de superação das abordagens sociológicas que focalizaram as crianças como objeto da ação socializadora dos adultos, portanto, como elemento secundário pertinente a campos de estudo como a sociologia da família ou da educação (SIROTA, 2001SIROTA, Regine. Emergência de uma sociologia da infância: evolução do objeto e do olhar. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 112, p. 7-31, mar. 2001.; SARMENTO, 2008SARMENTO, Manuel Jacinto. Sociologia da infância: correntes e confluências. In: SARMENTO, Manuel Jacinto; GOUVÊA, Maria Cristina Soares (Org.). Estudos da infância: educação e práticas sociais. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 17-39.). As abordagens da infância como categoria estruturante da vida social e da criança com papel ativo sobre a estrutura e as relações sociais em geral resultam da crítica à noção clássica de socialização que expressa não apenas a assimetria, mas a negação de que os mundos de vida das crianças possuem sentidos e significados que precisam ser perguntados a elas (CAMPOS, 2008CAMPOS, Maria Malta. Por que é importante ouvir a criança? A participação das crianças pequenas na pesquisa científica. In: CRUZ, Silvia Helena Vieira. A criança fala: a escuta de crianças em pesquisas. São Paulo: Cortez. 2008. p. 35-42.; ALDERSON, 2008ALDERSON, Priscilla. Children as researchers: the effects of participation rights on research methodology. In: CHRISTENSEN, Pia; JAMES, Allison (Ed.).Research with children: perspectives and practices. 2. ed. London: Routledge, 2008. p. 271-290.). Ou seja, as crianças são sujeitos de experiências, de ações – perspectiva muito difundida entre autores dos estudos sociais da infância, mas pouco discutida e problematizada no âmbito da sociologia geral. Atribuir às crianças a capacidade de ação social, como tem sido largamente aceito por sociólogos da infância e por pesquisadores do campo da educação, significa considerar que elas constroem sentidos subjetivamente visados nas ações concretas que empreendem (COHN, 1982COHN, Gabriel. (Introdução sobre Max Weber). In: WEBER, Max.Sociologia. São Paulo: Ática, 1982. Coletânea organizada por Gabriel Cohn.). Nessa direção, considera-se que as crianças agem em relações sociais no interior das quais suas ações são regulamentadas por um sistema de normas comuns que torna possível aos diversos atores reconhecerem-no como válido (LADRIERE, 1971LADRIÈRE, Jean. La philosophie sociale: la philosophie contemporaine. Firenze: La Nueva Italia, 1971. p. 250-266.). Nossas indagações, construídas em diálogo com o campo sociológico da ação e por meio da observação das crianças e das relações entre elas e com os adultos, permitiram-nos identificarexperiências na acepção de um trabalho das crianças no próprio processo de desenvolvimento e de construção dessas relações, com consequências para si mesmas e para as demais crianças e adultos. Procuramos, no entanto, compreendê-las sem desconsiderar a assimetria entre adultos e crianças na instituição educacional e na sociedade como um todo, especialmente no que ela preserva de responsabilidade adulta pelas novas gerações.

Nessa direção, o conceito de experiência social, como aquele que busca, segundo Dubet (1996)DUBET, François. Sociologia da experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1996., uma teoria de alcance médio, que não pretende encontrar explicações que abarquem a totalidade das situações sociais – mas que também não se prende a dimensões parciais das relações entre o ator e o sistema –, pareceu-nos útil para a compreensão do que foi observado e ouvido no período de convivência com crianças em uma instituição de educação infantil. Na construção desse conceito, Dubet propõe uma teorização que não abandona completamente as ambições da sociologia clássica e, ao mesmo tempo, supõe serem insuficientes as elaborações posteriores que procuraram explicar as ações sociais e suas relações com o sistema. Para o autor, a noção de experiência é a

[...] menos inadequada para designar a natureza do objeto que se acha em alguns estudos empíricos em que as condutas sociais não aparecem redutíveis a puras aplicações de códigos interiorizados ou a encadeamentos de opções estratégicas que fazem da ação uma série de decisões racionais. (DUBET, 1996DUBET, François. Sociologia da experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1996., p. 93).

Nessa teoria, o autor confere centralidade à ideia de que o ator social não está totalmente socializado. Isso decorre de sua compreensão de que os sistemas sociais contemporâneos apresentam, ao mesmo tempo, diferentes lógicas (às vezes, contraditórias) e de que, ao ator compete o trabalho de articulá-las em suas ações sociais. Com essa afirmação, o autor quer dizer que, nas sociedades contemporâneas complexas, as ações ocorrem como possibilidades dadas por esse mesmo sistema, que se expressa de múltiplas formas e não apenas como um projeto de integração a ser obtido pela socialização de seus membros. A integração, como projeto da sociologia clássica, especialmente aquela desenvolvida por Durkheim e Parsons, continuaria presente em toda sociedade, sem a qual não haveria possibilidade de constituição identitária, seja coletiva ou individual. Já as formulações contemporâneas, desenvolvidas em face da incapacidade do pensamento clássico de oferecer explicações para os problemas das sociedades “pós-industriais”, segundo Dubet, apresentam visões parciais das relações entre ator, ação social e o sistema.

Na construção do conceito de experiência social, Dubet (1996)DUBET, François. Sociologia da experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. vai então considerar, além do paradigma clássico, o da ação social como integração, duas matrizes das correntes de pensamento contemporâneas: o paradigma da comunicação, em que a ação é interação e linguagem, e o paradigma da racionalidade, em que a ação é estratégia e utilidade.

No paradigma clássico, ator e sistema social se fundem por meio da ideia de papéis e de socialização, esta última subdividida em socialização primária e socialização secundária. Nessa direção, o sistema social ou a sociedade expressa a unidade dos processos identitários, das concorrências e da cultura, articulados pelo Estado-nação. Essa é, inclusive, a razão pela qual a sociologia nasce contra a ideia de sujeito, na medida em que cada indivíduo se constitui em uma versão subjetiva do sistema social a que pertence. É por meio da socialização que a sociedade vem a se constituir como uma segunda natureza para cada um dos indivíduos de um grupo, assegurando a integração de cada um ao sistema. Para Dubet, nas sociedades contemporâneas, essa unidade rompeu-se. Os indivíduos identificam-se por diferentes formas de pertencimento, tornando-se necessário introduzir a dualidade onde a sociologia clássica colocou a unidade de estrutura e de história (DUBET; WIEWIORKA, 1995DUBET, François; WIEWIORKA, Michel. Penser le sujet:autour d’Alain Touraine. Colloque de Cerisy. Fayard, 1995. (Introdução).; DUBET, 1996DUBET, François. Sociologia da experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.). O autor conclui que a dimensão de integração e as demais lógicas convivem nos sistemas sociais contemporâneos. Para ele, no entanto, tais dimensões não podem ser mobilizadas como definição do indivíduo e do sistema, mas como suas lógicas, que são operadas pelos sujeitos em diferentes circunstâncias.

O que o autor denomina a lógica da estratégia refere-se às situações em que os atores se veem em condições de concorrência, agindo e explicando suas ações nesse registro. Trata-se da expressão do sistema social como um campo concorrencial, em que os atores avaliam as suas possibilidades de influenciar os demais e assegurar a satisfação de seus interesses. Essa lógica opera tanto no campo econômico, em que a sociedade é vista como um mercado, quanto no campo político, em que a luta por poder e reconhecimento é o que orienta as ações dos indivíduos e grupos.

Já a lógica da subjetivação expressa a distância que os atores podem tomar do sistema social por meio da atividade crítica, da reflexão, que revela que eles não são redutíveis aos papéis nem operam unicamente em razão de seus interesses, adotando um ponto de vista diferente da integração e da estratégia. Suas possibilidades de expressão relacionam-se diretamente ao grau de liberdade presente no sistema social, que possibilitará determinado grau de distanciamento de si e da sociedade, em uma atividade crítica e reflexiva. Nessa direção, o que o autor denomina de lógica da subjetivação ou lógica do sujeito ocorre sempre contra (em tensão com) as lógicas da integração e de estratégia.

Para ele, cada uma das abordagens relaciona-se a uma dimensão dosistema e da ação, as quais ele vai associar a lógicas presentes nas sociedades contemporâneas. Ele concebe o sistema como plural, comportando essas dimensões, que são heterogêneas, porém não hierárquicas. Essa heterogeneidade de mecanismos que determinam as lógicas da ação é que permite que se fale em ator (e não apenas em agente). Isso porque, se não há um princípio central que une ator e sistema (como a interiorização do social pelo ator, na versão clássica), e se o sistema é concebido por várias dimensões, coloca-se como exigência para o ator a construção de uma coerência da experiência e de uma capacidade de ação própria. Para Dubet, nas sociedades complexas, em razão das identidades não estarem dadas pela tradição, há um espaço de liberdade, que permite ao ator afastar-se das demais lógicas – da integração e do interesse – e exercer a crítica, no sentido de construir algo que não se encaixa em nenhuma delas, constituindo-se no espaço de subjetivação.

Segundo o autor, a experiência social é o trabalho do ator para articular as lógicas presentes no sistema, a qual exige do analista uma postura fenomenológica, uma vez que não há um a priori, como se poderia supor numa lógica dos papéis que fundem ator e sistema social. Ao contrário, a experiência é umtrabalho do ator.

Buscando uma abordagem em que as experiências das crianças em uma instituição de educação infantil fossem tomadas a partir dos pontos de vista dos/as meninos/as que a frequentam, consideramos possível pensar em termos da articulação de lógicas de que a escola (como um sistema de ação de adultos e crianças), embora regulada pelo grupo etário dos adultos, dispõe, uma vez que é parte do sistema social mais amplo, que encerra uma multiplicidade de lógicas, conforme desenvolvido acima.

Consideramos pertinente, no entanto, não realizar uma transposição direta e mecânica dessa abordagem teórica ao estudo sociológico das crianças. Por um lado, a escola não repercute simplesmente (embora reproduza em muitos aspectos) as lógicas tais quais as lógicas do sistema social em que se insere. Por outro, é preciso considerar que estamos tratando de crianças pequenas, em fase inicial de frequência à escola. A teoria da experiência social tal como construída por Dubet expressa o pensamento sociológico em que o ator é o sujeito adulto, aquele que não apenas assegura o funcionamento da sociedade, mas também luta por poder e reconhecimento e exerce (ou pode exercer), como dito acima, a crítica. A primeira ressalva a ser feita a uma transposição direta da teoria (o que inclui as análises que, embora não mobilizem a ideia de lógicas de ação, definem a criança como ator social) para a análise das experiências das crianças refere--se ao fato de que a escola é uma instituição em que pesa a dimensão integradora – embora não exclusivamente – de oferecer um conjunto de experiências e conhecimentos que se constituam na formação básica dos indivíduos de nossa sociedade. Assim, a regulação exercida na escola, desde as leis e normas que a instituem até aquela que no cotidiano responsabiliza os adultos pelos processos que ali ocorrem, está sendo considerada por nós como condição na qual as experiências de adultos e de crianças transcorrem no cotidiano escolar. Além disso, não consideramos pertinente transpor, para a ação das crianças, a noção de ação social tal qual desenvolvida para os sujeitos adultos, ancorada na dimensão cognitiva, na capacidade de expressão verbal e na responsabilidade pelos seus atos. Entendemos que as expressões ator social e mesmoexperiência social devem relativizar a autonomia a elas inerente (ainda que o seja também em relação aos adultos). No que se refere à ideia de experiência social aqui desenvolvida, cumpre ainda ressalvar que, para Dubet, a forma privilegiada de compreensão das experiências sociais é o discurso, na medida em que os sujeitos tendem a explicar e a expor seus pontos de vista conforme os sentidos de suas ações, expressando, assim, em que lógica operaram em determinadas situações. Não acreditamos que este seja o caso das ações das crianças. Se, por um lado, concebemos as crianças como potentes, como capazes de interferir nos ambientes de relações em que se encontram a partir de uma perspectiva própria, nós as concebemos no seu complexo universo de relações entre elas e com os adultos e dentro da regulação institucional, no caso, a regulação da escola.

Assim, para as análises das experiências das crianças no ambiente escolar, compartilhamos com os estudiosos da infância e das crianças a crítica à sociologia que as excluiu do pensamento sobre a vida social e a sociedade que as vem abordando de forma secundária nos estudos sobre as instituições, especialmente a família e a escola. Além disso, compreendemos que as crianças participam ativamente do próprio processo de socialização, em um contexto relacional entre pares caracterizado por normas, códigos e práticas que, embora condicionados pela cultura geral e sistema de ação mais amplos, encerram o que tem sido considerado uma cultura da infância ou cultura de pares. Compreendemos também que, por serem crianças, encontram-se em uma fase inicial do processo de desenvolvimento humano (físico, afetivo, social, cultural e cognitivo), no qual a linguagem verbal não se apresenta como a forma privilegiada de comunicação e apreensão do mundo, do outro e de si mesmas. Além disso, consideramos que as lógicas de ação identificadas por Dubet para a compreensão da ação social e dos sujeitos (experiência social) podem constituir-se em lente para a apreensão da experiência das crianças, mas não se aplicam em sua totalidade, especialmente no que concerne à prevalência da dimensão cognitiva, seja na articulação entre meios e fins, seja nas ações de afastamento dos papéis que subvertem o esperado naquele contexto. Compreendemos que as crianças vivem o ambiente da educação infantil (e os demais de que participam) de forma inteira, mobilizando ao mesmo tempo as dimensões cognitiva, afetiva e motora nas relações e em sua interpretação das situações.

Com essa perspectiva, consideramos necessário mobilizar outras abordagens da experiência das crianças, na medida em que, nessa fase da vida, as formas de se expressarem e de serem tocadas pelo que ocorre nos ambientes em que estão envolvem a dimensão corporal (COUTINHO, 2012COUTINHO, Ângela Scalabrin. O corpo dos bebês como lugar do verbo. In: ARROYO, Miguel Gonzales; SILVA, Maurício Roberto da (Org.).Corpo-infância: exercícios tensos de ser criança; por outras pedagogias dos corpos. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 250-258.; BUSS-SIMÃO, 2012BUSS-SIMÃO, Márcia. A dimensão corporal entre a ordem e o caos: espaços e tempos organizados pelos adultos e pelas crianças. In: ARROYO, Miguel Gonzales; SILVA, Maurício Roberto da (Org.). Corpo-infância:exercícios tensos de ser criança; por outras pedagogias dos corpos. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 259-279.). Além disso, embora a noção de experiência social indique que as ações não se reduzem ao papel e às interações (paradigmas presentes, mas insuficientes), há elementos e formas de expressão da experiência das crianças que ultrapassam a ideia de lógica de ação, exigindo uma leitura de suas manifestações no corpo.

Outro aspecto que se nos apresentou de forma bastante forte foi a mobilização, pelas crianças, de situações, histórias e narrativas externas ao ambiente escolar, compondo um continuum que buscamos compreender por meio das noções de experiência desenvolvidas por Walter Benjamin (1984BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984.; 2011aBENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica: arte e política. v. 1. São Paulo: Brasiliense, 2011a.; 2011bBENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. v. 3. São Paulo: Brasiliense, 2011b.).

Benjamim (1984)BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984. desenvolveu uma teoria que nos auxilia a distinguir a experiência dos mais velhos (que, de acordo com esse autor, está em vias de extinção) e a dos/as pequenos/as. Para ele, a repetição contém uma importância fundamental na experiência da criança: “a repetição é a alma do jogo, nada alegra-a [à criança] mais do que o mais uma vez” (BENJAMIN, 1984BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984., p. 74). Assim, enquanto o adulto narra sua experiência com êxito, a criança, ao repetir o fato vivido, a recria incessante e intensamente: “O adulto, ao narrar uma experiência, alivia seu coração dos horrores, goza novamente uma felicidade. A criança volta para si o fato vivido, começa mais uma vez do início” (BENJAMIN, 1984BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984., p. 75). O autor parte do pressuposto de que “toda e qualquer experiência mais profunda deseja insaciavelmente, até o final de todas as coisas, repetição e retorno, restabelecimento de uma situação primordial da qual nasceu o impulso primeiro” (BENJAMIN, 1984BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984., 74-75).

Além disso, o pensamento benjaminiano enfatiza a relação existente entre a experiência e o ato narrativo. O autor afirma que a narração é cada vez mais escassa na contemporaneidade como resultado da pobreza das experiências. Benjamin entende que o ato de narrar é um processo coletivo que exige troca entre os sujeitos.

Para Machado (2010)MACHADO, Marina Marcondes. A criança é performer. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 35, n. 2, p. 115-138, maio/ago. 2010., a criança compartilha a vida social com o adulto, mas com uma forma particular de ser e estar no mundo. A criança possui formas não representacionais de vivenciar suas experiências e, portanto, haveria nos/as pequenos/as uma aderência (corpórea) às situações que vivenciam. Existe na experiência da criança, alerta-nos Machado, “uma ‘aderência às situações’ que a impede de representar o mundo: ela não o representa, ela o vive” (MACHADO, 2010MACHADO, Marina Marcondes. A criança é performer. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 35, n. 2, p. 115-138, maio/ago. 2010., p. 128). Conforme a autora:

A criança é um ser-no-mundo permeado de limitações, dadas pela imaturidade de seu corpo e pela moldura oferecida na convivência com a cultura ao seu redor, sobre o que é permitido ou não para uma criança por ali, mas é uma pessoa desde a mais tenra idade apta a dizer algo sobre tudo isso: diz algo em seu corpo, gestualidade, gritos, choro, expressões de alegria e consternação, espanto e submissão. Esses dizeres em ação, essas atuações no corpo, mostram-se repletas de teatralidade: pequenas, médias e grandes performances, ações de suas vidas cotidianas que encarnam formas culturais no ser total da criança; ações visíveis e também invisíveis aos olhos do adulto. (MACHADO, 2010MACHADO, Marina Marcondes. A criança é performer. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 35, n. 2, p. 115-138, maio/ago. 2010., p. 126).

Essa abordagem permite perceber o corpo das crianças como lócus da “experiência subjetiva vivida”, tal como sugere Coutinho (2012)COUTINHO, Ângela Scalabrin. O corpo dos bebês como lugar do verbo. In: ARROYO, Miguel Gonzales; SILVA, Maurício Roberto da (Org.).Corpo-infância: exercícios tensos de ser criança; por outras pedagogias dos corpos. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 250-258.. Essa autora, ao analisar as ações dos bebês no interior de uma creche, propõe que o conceito de corpo como experiência subjetiva vivida “exige aproximação às suas manifestações corporais” (COUTINHO, 2012COUTINHO, Ângela Scalabrin. O corpo dos bebês como lugar do verbo. In: ARROYO, Miguel Gonzales; SILVA, Maurício Roberto da (Org.).Corpo-infância: exercícios tensos de ser criança; por outras pedagogias dos corpos. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 250-258., p. 246). A pesquisadora ainda salienta que “[...] as crianças lançam mão do corpo para comunicar--se, interagir, experimentar, e o fazem de modo intencional” (COUTINHO, 2012COUTINHO, Ângela Scalabrin. O corpo dos bebês como lugar do verbo. In: ARROYO, Miguel Gonzales; SILVA, Maurício Roberto da (Org.).Corpo-infância: exercícios tensos de ser criança; por outras pedagogias dos corpos. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 250-258., p. 251).

Assim, no âmbito da investigação, continuidade, aderência às situações e expressividade corporal, ao lado de um trabalho de articulação de diferentes possibilidades (lógicas de ação), foram categorias essenciais para percepção e análise das experiências vividas pelas crianças no interior da instituição de educação infantil.

Compreendendo as lógicas que orientam a ação (e a experiência) das crianças

Conforme dito anteriormente, na instituição de educação infantil, as dimensões integradora, estratégica e de subjetivação — essenciais à noção de experiência social (DUBET, 1996DUBET, François. Sociologia da experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.) — fazem-se presentes. As relações que ocorrem nesse contexto educacional são reguladas pelos adultos, ao mesmo tempo em que são também geridas por decisões tomadas pelas próprias crianças conforme situações que ocorrem ou são desencadeadas por elas.

As crianças de 0 a 5 anos frequentam uma etapa da educação básica com características específicas, em que estão presentes, na sua regulamentação — e, em alguma medida, na cultura profissional que vem sendo desenvolvida —, as dimensões do brincar e do cuidado. Além disso, como observado pela sociologia contemporânea, nas sociedades complexas, não é mais possível falar de um indivíduo totalmente socializado, mesmo quando nos referimos aos adultos. No caso das crianças, essa dimensão de indivíduo não socializado é inerente à condição infantil, o que faz com que, aliado às características de que se reveste essa etapa da educação, o papel de aluno (ou ofício de aluno) esteja ausente ou fragilmente presente. Ainda assim, na experiência dessas crianças, está presente uma variedade de ritos, temporalidades e regras próprias do ambiente educacional.

Na perspectiva das crianças, expressa em suas produções (desenhos e fotografias) e em suas falas, a UMEI era percebida como um espaço que as introduz no universo da escolarização e que, portanto, labora (mesmo que de forma ainda pouco sistemática) na construção do ofício de aluno. Nesse sentido, a UMEI se configura como um espaço de aprendizagens escolares que tem como tarefa principal efetivar uma iniciação/introdução das crianças no universo escolar. Tal afirmação torna-se mais visível nas falas de algumas delas:

Venho escrever, brincar e fazer desenho; essas coisas. (Marcelo – 05/08/2012)

Figuras 1 e 2
- Fotos produzidas por Gabriel

Ah, escrever, fazer atividade e brincar no parquinho de cima ou no de baixo. Brincar é no parquinho. As outras coisas a gente faz na sala.

(Ana – 05/08/2012)

Estudar! Aprender as coisas... brincar! Aqui tem muitos brinquedos!

(Maria Clara – 06/08/2012)

Por meio das entrevistas com as crianças, foi possível perceber que as situações vividas por elas na instituição tais como “escrever”, “fazer atividade” e “aprender” predominam sobre outras vivências, tais como brincar e desenhar. A mesma predominância também apareceu nos desenhos e nas fotografias por elas produzidas:

Pesquisador: – Gabriel, das coisas que você tirou foto que você faz aqui na UMEI, quais são as que você mais gosta?

Gabriel: – Estudar!

Pesquisador: – E o que você estuda?

Gabriel: – Eu aprendo as letras, escrevo, desenho, aprendo os números! (06/09/2012)

Figura 3
Maria Clara desenha “Eu e meus amigos na UMEI”

Se, por um lado, a instituição é percebida pelas crianças como um espaço que tem por objetivo iniciá-las no universo escolar, por outro, elas demonstram que, na UMEI, dispõem também da possibilidade de se relacionarem socialmente com outras crianças, conforme percebemos nos dizeres de algumas delas:

A gente vem e fica ali dentro. Dentro da nossa sala! Lá tem os brinquedos que eu brinco com meus colegas! (Marcelo – 05/08/2012).

Eu venho brincar com os brinquedos! Eu também gosto de brincar de filhote com os colegas! A gente brinca de carro. A gente gosta mais disso! (Márcio – 05/08/2012).

Na sala da Bruna. Lá, lê livros; brinca com amiguinhos! (Guilherme – 06/08/2012).

A gente vem pra brincar! A gente brinca no parquinho, de esconde-esconde de pique! (Patrícia – 06/08/2012).

As fotografias produzidas por nossos interlocutores também elucidam essa assertiva acerca das relações entre as crianças da turma:

Figura 4
Foto produzida por Marcelo

Pesquisador: E quem são as pessoas que você falou que fotografou e de que você gosta?

Marcelo: Todos os colegas, mas eu gosto mais do João, da Ana, da Paula Beatriz e do Gabriel!

A maioria das relações sociais vividas pelas crianças com seus pares ocorre na sala de aula, o que não quer dizer que outras relações entre pares não aconteçam em outros espaços da instituição:

Figura 5
: Brenda desenha as pessoas da UMEI de que ela mais gosta

Brenda: Toma, Sandro, terminei.

Pesquisador: O que você desenhou Brenda?

Brenda: Essa é a Bruna, essa sou eu e aqui está a Ana, a Jéssica e a Carina.

Pesquisador: Onde vocês estão?

Brenda: Na sala de vídeo, brincando com o jogo do pano e da bola.

Essa noção de que o espaço/tempo da instituição de educação infantil se configura como um ambiente no qual as crianças têm a possibilidade de se encontrar com seus pares extrapola as relações entre as crianças da mesma sala de aula e expande-se para as relações sociais vivenciadas com as crianças de outras turmas.

Na instituição na qual foi realizada a pesquisa, as práticas das professoras incorporam elementos em que a ação e a liberdade das crianças constituem-se em um valor no contexto de um projeto educativo que extrapola a transmissão de conteúdos, focalizando o que tem sido chamado de formação e desenvolvimento das crianças nas diferentes dimensões do desenvolvimento humano: social, cultural, afetivo, motor e cognitivo. O episódio a seguir ilustra essa perspectiva:

As crianças estão confeccionando um cartão para o Dia das Mães. A professora Bruna havia planejado a atividade em dois momentos: primeiro, seria feita uma pintura a dedo em um coração pelas crianças e, após a secagem do cartão (que tinha silhueta de coração), seria colada numa espécie de dobradura em formato de flor suspensa por um palito de picolé. Como já estavam se dispersando, a professora, após negociar com a turma, interrompe a atividade e sugere que elas escolham alguns brinquedos enquanto a tinta dos cartões seca. Ana então interpela a professora:

– Bruna! Eu não quero brincar não! Eu quero tudo! – a professora olha para a menina e, sem muito entender, pergunta:

– Como assim? Tudo o quê?

– Tudo, Bruna! Quero fazer o cartão! – a professora então deixa que a menina termine a confecção de seu cartão.

Ana ficou sentada sozinha por aproximadamente vinte e cinco minutos terminando seu cartão, enquanto as demais crianças da turma brincavam livremente pela sala de aula, mesmo depois de a professora lhes explicar que, após a brincadeira, todas elas terminariam seus cartões. A menina recusou inúmeros convites dos/as colegas que insistiam em chamá-la para brincar. Ana se mantinha sentada e concentrada na confecção de seu cartão. (Notas do caderno de campo, 11/05/2012).

A ação de Ana parece evidenciar seu total envolvimento com a situação, e isso por meio da criação de um objeto/artefato provavelmente carregado de afeto. Nesse momento, ela propôs e viveu um isolamento do grupo. Todo o seu corpo estava na atividade – na confecção do cartão –, que provavelmente se ligava às possíveis experiências posteriores a serem vividas no momento da entrega do cartão para a mãe. Contado o tempo de realização da primeira etapa da atividade (quando todas as crianças participaram e que durou aproximadamente 25 minutos) e o tempo que a menina ficou sentada sozinha concentrada na feitura de seu cartão (que girou em torno de 25 minutos), totalizam--se cinquenta minutos aproximadamente, o que contraria o imaginário coletivo presente nas instituições de educação infantil, segundo o qual as crianças possuem pouca concentração e, por isso, as atividades têm de ser rápidas.

Figura 6
A professora permite que Ana termine seu cartão enquanto as outras crianças brincam.

Figura 7
Ana termina seu cartão sozinha, enquanto as demais crianças brincam.

Nessa atividade, Ana não foi a única criança a construir uma lógica própria para suas ações. Marcus, também de forma peculiar, expressa engajamento na atividade e a associação a possíveis experiências posteriores na entrega do cartão para sua mãe:

Marcus acaba de confeccionar a primeira parte de seu cartão e, a pedido da professora, vai brincar, para que sua pintura seque e ele retorne para terminar o cartão. Ao se dirigir à caixa de brinquedos, o menino pega um aparelho telefônico que ali está para utilização por parte das crianças e inicia uma conversa (de faz de conta) com sua mãe:

– Alô, mãe? Estou fazendo um cartão pra você! Quando chegar eu te dou, está bem? Tchau, beijo. (Notas do caderno de campo – 11/05/2012).

Tanto Ana quanto Marcus demonstraram, por meio de suas ações, cada um a seu modo, os sentidos de confeccionar um cartão para suas mães. Possivelmente, um envolvimento afetivo já no momento de sua realização possibilitou ainda maior dedicação por se tratar de algo que poderia ser ampliado nas experiências posteriores de entrega do objeto.

Situações como as descritas acima revelam que as possibilidades que as crianças têm de articular, em um trabalho, diferentes lógicas de ação (DUBET, 1996DUBET, François. Sociologia da experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1996.) presentes na educação infantil, cuja regulação não fixa cumprimento de programas preestabelecidos, o que favorece que os ritmos da turma incorporem as mudanças de rotas decorrentes dos interesses e ações das crianças. A escola pesquisada, sistema de ação no qual se encontram, oferece espaço para que suas ações adquiram sentidos subjetivos, ora se aproximando, ora se afastando daquilo que foi previsto pela professora.

Veremos que as crianças fazem escolhas estratégicas que as colocam em situações que desejam, não atendendo sempre às orientações da professora. As crianças questionam o ritmo ou mesmo os conteúdos de aprendizagem, trazendo para a cena da sala de aula elementos que não apenas não foram previstos pela professora, mas que, em grande medida, permanecem-lhe desconhecidos, configurando--se em ações das relações entre as crianças, com sentidos e significados pertinentes às subjetividades infantis. No entanto, entendemos que as ações, em que as escolhas – tanto de permanecerem integradas cumprindo o papel de alunos que realizam as tarefas previstas pela professora (mesmo quando estas contam com a participação das crianças em forma de sugestões), quanto de exercerem a crítica e trazerem elementos inclusive de sua experiência externa para a escola e a de, estrategicamente, burlarem o que os adultos lhes oferecem – expressam uma das dimensões da experiência mais ou menos favorecida pelas formas de organização do cotidiano da escola. Em outro episódio, percebemos como as crianças vão construindo lógicas estratégicas de ação frente ao trabalho (neste caso proposto pela professora) que envolve a aquisição/ampliação da linguagem escrita:

A professora Bruna inicia uma brincadeira com massinha de modelar. Pede que as crianças escolham uma bolinha de massa. Em seguida, entrega-lhes um palitinho de picolé e sugere que elas criem o que quiserem.

Enquanto as crianças brincam, a professora corrige os cadernos de para casa. Assim que termina a correção, Bruna interfere na brincadeira de massinha: sugere que cada criança faça a primeira letra do nome. Àqueles/as que não conseguiram, ela pede para fazerem uma letra qualquer que eles/as queiram. A grande maioria consegue construir a letra inicial de seu nome e, assim que as constroem, são desafiados/as pela professora a escolherem outra letra e modelarem-na com a massinha. Após várias construções, Bruna desafia as crianças a modelarem a primeira letra de meu nome: a letra S. As crianças começam a tentar e, nesse sentido, Júlio demonstra maior competência e criatividade frente ao desafio: levanta-se da mesa, coloca a massinha em cima da letra S, que está no painel da parede, e começa a modelá-la. A partir disso, as crianças começam a usar essa técnica para construírem suas letras. Em dado momento, a professora propõe uma modificação na atividade: solicita que as crianças, agora, deixem as massinhas e, em uma folha de papel, escrevam as letras que foram esculpidas. Todos/as realizam a atividade, sendo que aqueles/as que têm mais facilidade são incentivados/as pela professora a ajudarem os/as que têm dificuldades. Paula, Beatriz e Ana, após escreverem as letras de seus nomes, perguntam-me se eu gostaria de vê-las escreverem também as letras de meu nome. Respondo-lhes positivamente, e as meninas então começam a esboçar em suas folhas as letras de meu nome. (Notas do caderno de campo – 14/05/2012).

Figura 8
Júlio esculpe a letra s posicionando a massinha no mural da sala.

Nesse episódio, observamos: a) o envolvimento da quase totalidade das crianças com as situações que são caracterizadas pela ludicidade – a professora começa a atividade com massa de modelar, material geralmente associado à brincadeira, e não diretamente com a folha de papel; b) o envolvimento das crianças nas atividades desafiadoras (a professora vai gradativamente levando a brincadeira de massinha para a construção de escritas); c) o envolvimento da totalidade das crianças presentes; d) a intenção, por parte da professora, de tornar a atividade mais significativa para as crianças; e) a ampliação da atividade por parte das crianças (Ana, Paula e Beatriz escrevem as letras dos próprios nomes e perguntam ao pesquisador se gostaria de vê-las escreverem também as letras do nome dele); f) as estratégias construídas pelo grupo de crianças para modelarem as letras que julgavam mais difíceis, como a letra S que não estavam previstas a priori, pela professora.

Em nossas instituições de educação infantil, é recorrente a ideia de que a função dessa etapa da educação é preparar as crianças para a escolarização nos níveis subsequentes. Nessa perspectiva, a tarefa dita pedagógica da instituição tem sido frequentemente entendida como a proposição de exercícios e atividades (em folhas de papel), geralmente realizados de modo mecânico e pautados na prática de instrução, em sentido restrito, das crianças. Presenciamos inúmeras situações em que elas se envolviam de modo peculiar em situações nas quais havia como objetivo da professora o aprofundamento, pelas crianças, do processo de apropriação da linguagem escrita.

No episódio acima, a ação de desenvolver uma técnica para modelar a letra S, construída por Júlio, é apropriada pelas demais crianças, que veem nessa ação a possibilidade de resolver a situação-problema proposta pela professora. A partir das considerações de Dubet (1996)DUBET, François. Sociologia da experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1996., percebemos que, de acordo com a complexidade da proposta da professora (que vai gradativamente da modelagem com massinha para práticas de escrita), as ações das crianças ocorrem como possibilidades construídas a partir dessa mesma proposta e que são expressas por elas de múltiplas formas. Desse modo, observa-se que as crianças utilizam a estratégia de copiar a ação do colega, de modo a encontrar “os meios para as finalidades pretendidas nas oportunidades abertas pela situação” (DUBET, 1996DUBET, François. Sociologia da experiência. Lisboa: Instituto Piaget, 1996., p. 123).

As ações das crianças, no entanto, são tanto mais presentes quanto mais o ambiente da instituição de educação infantil (em sua dimensão relacional) proporciona e permite suas escolhas. Em outras palavras, a participação das crianças nas situações que dizem respeito à construção de suas próprias experiências está condicionada (embora não de forma absoluta) pelos limites que são dados pelos adultos que organizam os contextos relacionais de educação e cuidado.

A sutileza complexa que permeia a experiência infantil

Os elementos que foram apreendidos na pesquisa permitiram refletir sobre a complexa sutileza presente na experiência das crianças. O acompanhamento e análise de suas experiências sociais evidenciaram que elas buscam compreender aquilo que vivenciam (ou vivenciaram) na relação com outras crianças, com adultos e ou com o mundo cultural circundante (em seus aspectos materiais e simbólicos). A experiência das crianças extrapola o imediato e mobiliza tanto situações passadas (pela via da memória) quanto futuras, desencadeando ações tanto no campo individual (pessoais) quanto coletivo (no grupo de pares), e elas passam a compartilhar não apenas a experiência atual, mas a anterior e a futura por meio da brincadeira. Assim, observa-se uma expansão das situações – das experiências das crianças – no tempo e nas relações.

Desse modo, as crianças criam uma forma própria de interação dentro do grupo de pares, com base nas experiências vividas. A experiência infantil se diferencia daquela vivida pelo adulto, na medida em que a experiência das crianças tem como característica a reiteração (SARMENTO, 2002SARMENTO, Manuel Jacinto As culturas da infância nas encruzilhadas da 2ª modernidade. Braga: Universidade do Minho. Centro de Estudos da Criança, 2002. (Mimeo). Disponível em: <www.iec.minho.pt/cedic/textos de trabalho>. Acesso em: maio 2011.
www.iec.minho.pt/cedic/textos de trabalh...
), uma espécie de retorno ao fato vivido (BENJAMIM, 1984BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984.). Nesse sentido, pode-se dizer que a repetição é uma das características da experiência das crianças.

Essa repetição deriva da adesão das crianças às circunstâncias vividas, uma vez que, conforme salienta Machado (2010MACHADO, Marina Marcondes. A criança é performer. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 35, n. 2, p. 115-138, maio/ago. 2010., p. 128), haveria, na experiência da criança, uma “aderência às situações”, de modo que ela não representa o mundo, mas o vive. Desse ponto de vista, a criança retorna ao fato vivido para construir (ou reconstruir) outra via de representação do mundo (distinta da dos adultos). Nessa perspectiva, as crianças constroem campos de experiência, ou seja, um domínio dentro do grupo de pares em que as ações sociais delas nascem e são conduzidas pelas experiências (passadas, presentes e futuras) de uma ou mais crianças do grupo:

A professora inicia a roda com a música da serpente. As crianças começam a se arrastar pelo chão da sala e, em dado momento, amontoam-se umas sobre as outras. Após cantarem e brincarem com a música, a professora Bruna convida as crianças a se sentarem e inicia a roda de conversa. Começa perguntando a Jonas se ele estava sentindo dor por causa da batida de cabeça no chão. Antes de o menino responder, Gabriel e Marcus discutem novamente. Marcus fala que Gabriel não sabe brincar e que o tinha machucado na hora em que as crianças se amontoavam. A professora tenta mediar a discussão garantindo que ambos tenham direito à fala. Em dado momento da fala de Marcus, Marcelo olha fixamente para a boca do menino e grita:

– Nossa, você tem uma cárie!

A partir de então, o tema da discussão passa a ser doenças e mal-estar. Marcelo, em seu momento de fala, comenta que, quando viajou com sua mãe, ao comer um biscoito, sentiu-se mal e vomitou o ônibus todo. Em seguida, as outras crianças começam a relatar algumas situações em que tinham vomitado. Marcelo, então, levanta-se de seu lugar e, de pé, começa a interpelar a professora com sua primeira pergunta:

– Toda criança vomita?

A professora lhe solicita que se sente, e o menino retorna ao seu lugar. Não satisfeito, após alguns segundos, levanta-se novamente e parte em direção à professora e outra vez pergunta:

– Por que a gente vomita?

A professora discute o assunto com a turma, mas não explora o tema proposto por Marcelo de modo mais acentuado. (Notas do caderno de campo – 21/05/2012)

Esse episódio apresenta-nos elementos do que estamos denominando campos de experiências construídos pelas crianças no interior da instituição de educação infantil, nos quais observamos uma expansão do vivido por uma delas, a qual desencadeia relatos e outras situações no grupo. O fato de Marcelo se levantar e aproximar-se da professora, associado a sua expressão de dúvida ao realizar as perguntas, é revelador da importância do tema vômito para o menino. Seus questionamentos se expressam em sua corporeidade ao se levantar, caminhar em direção à professora e cruzar seus braços para tentar obter uma resposta (o que, no caso, não ocorreu).

A situação relatada por Marcelo – de ter se sentido mal no ônibus – transforma-se em uma experiência para o grupo, uma vez que, quando o menino insere o elemento vômito na roda de conversa, o assunto do grupo muda para mal-estar e doenças, conforme revela o episódio acima. Relatar situações vividas em diferentes tempos e contextos constitui-se em uma possibilidade frequente no ambiente escolar observado. Ao narrar para sua professora e para os colegas de turma o fato vivido por ele na viagem, Marcelo faz com que uma experiência individual se torne uma experiência coletiva. Nessa etapa da educação infantil, em que as crianças já desenvolveram e utilizam a linguagem oral de forma a comunicar suas ideias, elas tomam um lugar de sujeitos, em que suas experiências são internalizadas, expressas e divididas com os outros.

A lembrança da ânsia de vômito faz com que o menino mobilize a memória para sua narração no momento da roda de conversa. A postura do garoto nesse episódio, como se pode observar nas duas fotografias a seguir, torna mais forte sua indagação, evidenciando que ele pergunta à professora “de corpo inteiro”.

Figura 9
Marcelo pergunta à professora

Figura 10
Marcelo insiste em respostas com a professora

Percebemos que as crianças ajustam vivências anteriores àquelas ocorridas na UMEI, também às situações que elas preveem ou desejam viver em momentos futuros. As ações das crianças, ao mesmo tempo em que dão origem aos campos de experiência, também se configuram como resultantes da combinação das experiências. Com isso, queremos enfatizar que a construção de campos de experiência com base nas ações sociais das crianças as leva a construírem novas ações dentro do grupo de pares. Isso porque os/as pequenos/as combinam experiências passadas e as que vislumbram no futuro com o que é vivido no tempo presente pelas mesmas. O episódio abaixo expressa esse sentido:

As crianças chegam de manhã e, como de costume, logo que entram, retiram prontamente suas agendas das mochilas e colocam-nas sobre a mesa da professora. Assim que o fazem, sentam-se e vão brincar nas mesinhas de Lego. A professora Mariane está encapando uma caixa de papelão e, devido a isso, presta pouca atenção às crianças. Em dado momento, um grupo de crianças (Carina, Guilherme, Patrícia e Brenda) que brincava em uma das mesas inicia uma conversa. Patrícia começa o diálogo argumentando com os colegas:

– Eu estou doida pra entrar de férias! Nas férias, eu vou viajar!

– Pra onde? – interpela Guilherme.

– Vou pra casa da minha avó! Lá é muito divertido! Eu brinco um tantão, vejo meus primos, é muito bom! – responde Patrícia.

– Minha avó mora perto de casa! É a mãe do meu pai! Mas não precisa viajar! – acrescenta Brenda.

– A minha avó também! – responde Guilherme.

Brenda se levanta, vai até a caixa de brinquedos e pega um prato de plástico. Retorna e pede aos amigos que enfileirem as cadeiras para começarem a brincar de ônibus. As outras crianças, ao verem a organização dos colegas, acrescentam novas cadeiras e envolvem--se na brincadeira de viajar de ônibus. A professora não vê a organização das crianças e continua a embalar a caixa de papelão. (Extraído das filmagens de campo – 08/06/2012).

O fato de Patrícia estar “doida pra entrar de férias” para visitar a casa de sua avó faz com que a menina se lembre de outras vezes em que realizou essa viagem. Essa narrativa desencadeia nas outras crianças uma reflexão sobre a proximidade entre as suas residências e as de seus avós, como bem afirma Brenda ao dizer: “Minha avó mora perto de casa! É a mãe do meu pai! Mas não precisa viajar”. Percebe--se que – tanto nesse episódio quanto naquele em que Marcelo busca atribuir sentido a uma experiência vivida anteriormente – memória e narração são aspectos mediante os quais as crianças transformam a experiência individual em uma experiência coletiva para o grupo de crianças.

Brenda, na impossibilidade de realizar uma viagem até a casa de sua avó, uma vez que esta reside próxima à casa da neta, propõe-se a realizá-la em forma de brincadeira, quando sugere às crianças enfileirar as cadeiras simbolizando um ônibus. As demais crianças enriquecem o enredo quando se envolvem na ação desencadeada pelo grupo (Carina, Guilherme, Patrícia e Brenda). O entrave entre a experiência da menina que viaja e a da menina que não o faz para visitar a casa dos avós é o detonador para as crianças construírem um novo enredo para as brincadeiras; isso devido à adesão de Brenda e das demais crianças envolvidas no episódio às situações (passadas, presente e futuras) vivenciadas por elas.

Figura 11
As crianças conversando sobre a viagem à casa dos avós.

Percebemos que a experiência de Patrícia motiva Brenda a realizar a construção de uma brincadeira (viajar de ônibus para a casa da avó). A menina organiza todo o ambiente e só depois comunica às outras crianças do grupo. Sua corporeidade revela muito da experiência ao se levantar, buscar o prato que serviu de volante na caixa de brinquedos e organizar as cadeiras para construir o ônibus. Coutinho (2012COUTINHO, Ângela Scalabrin. O corpo dos bebês como lugar do verbo. In: ARROYO, Miguel Gonzales; SILVA, Maurício Roberto da (Org.).Corpo-infância: exercícios tensos de ser criança; por outras pedagogias dos corpos. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 250-258., p. 242) fala-nos da importância de se considerar o corpo das crianças como local de inscrição do verbo, isto é, “como componente da ação social” e compreende a corporeidade das crianças como lócus da experiência subjetiva vivida. No mesmo sentido, Buss-Simão (2012BUSS-SIMÃO, Márcia. A dimensão corporal entre a ordem e o caos: espaços e tempos organizados pelos adultos e pelas crianças. In: ARROYO, Miguel Gonzales; SILVA, Maurício Roberto da (Org.). Corpo-infância:exercícios tensos de ser criança; por outras pedagogias dos corpos. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 259-279., p. 270) enfatiza que “o corpo está na base de toda experiência social das crianças e na construção de suas relações”.

Considerações finais

As crianças, na instituição de educação infantil, estabelecem uma conexão com experiências vividas fora da instituição educativa. Essa continuidade das experiências vivenciadas na instituição de educação infantil com as experiências extraescolares pode ocorrer tanto com situações anteriores quanto com possíveis experiências posteriores àquelas vivenciadas no interior da UMEI, o que denota uma expansão relacional e temporal das mesmas. As situações observadas indicam que as crianças empenham-se em extrair um sentido mais profundo de suas experiências pessoais.

As crianças, no contexto observado, demonstraram agir de modo a introduzir nas relações entre elas e com as professoras seus interesses e indagações. Ao mesmo tempo, evidenciam orientar-se pelas ações e narrativas dos colegas, o que permite identificar que elas de fato se encontram em relações sociais no interior das quais constroem os sentidos de suas ações. Elas mobilizam, nesse ambiente, tanto a memória afetiva quanto o desejo de expressar e receber afeto, as lembranças alegres e as dolorosas e – em um trabalho (componente essencial da experiência social) – inserem-nas na experiência do grupo, articulando–as com competência às lógicas instituídas pela professora. Dessa forma, elas integram-se às atividades propostas pela professora e, ao mesmo tempo, afastam-se de seus objetivos iniciais, conferindo outros sentidos para as situações.

Assim, consideramos que o movimento atual de compreender as crianças menos pelas suas faltas do que pela sua positividade e agência na cena social – seja da perspectiva da consideração de que produzem culturas, seja por meio da filosofia que compreende a ação das crianças como experiência densa, revelando a construção de uma narrativa ou da sua inscrição, por meio da análise sociológica, como ator social – encontra ressonância nas situações observadas e descritas, tanto quanto se pode descrever, em termos adultos, a experiência infantil. Ao mesmo tempo, consideramos importante enfatizar – tanto quanto a agência das crianças – que a instituição educacional acolhe crianças sob os cuidados dos adultos educadores, cabendo a eles a responsabilidade pela regulação das relações e ações nesse ambiente. Com isso, afirmamos o desejo e a busca por construir uma escola democrática e que se constitua em espaço de expressão das crianças e reconhecemos sua capacidade de ação social em um contexto no qual os adultos são os outros dessas ações e relações e, nessa condição, são os responsáveis por elas.

Consideramos que a explicitação e compreensão das experiências das crianças no ambiente da educação infantil é importante para o processo de sensibilização dos/as profissionais e pesquisadores/as da infância e da educação infantil no que concerne à alteridade das crianças. Essa sensibilização pode repercutir positivamente na organização e no planejamento de ações educativas que tenham como eixo as próprias crianças e as especificidades que envolvem seus processos de constituição como seres humanos (BUSS-SIMÃO, 2012BUSS-SIMÃO, Márcia. A dimensão corporal entre a ordem e o caos: espaços e tempos organizados pelos adultos e pelas crianças. In: ARROYO, Miguel Gonzales; SILVA, Maurício Roberto da (Org.). Corpo-infância:exercícios tensos de ser criança; por outras pedagogias dos corpos. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 259-279.).

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  • 1
    - Este artigo foi elaborado com base na pesquisa realizada para a dissertação de mestrado de um dos autores, defendida em agosto de 2013, intitulada: “A gente vem brincar, colorir e até fazer atividade”: a perspectiva das crianças sobre a experiência de frequentar uma instituição de Educação Infantil.
  • 2
    - Para este artigo, retomamos as análises dos dados da pesquisa, ampliando o referencial teórico com a inclusão da categoria experiência social, desenvolvida por François Dubet.
  • 3
    - Outro procedimento ético, conforme exigência legal e do Comitê de Ética da UFMG, refere-se à solicitação de autorização dos pais e familiares das crianças por meio de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
  • I
    - Agradecemos o apoio da Pró-Reitora de Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da FAPEMIG.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2014
  • Aceito
    21 Out 2014
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