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A estrutura da escola: uma perspectiva multidimensional

“A escola civiliza o homem, oferecendo-lhe ambientes novos e formando nele novos hábitos de vida em sociedade. A escola humaniza despertando a consciência e leva o homem a formas superiores de pensamento e de sentimentos. Como instrumento de nacionalização, a escola pública delineia a área física e moral de sua pátria e, unindo os indivíduos em grupos cada vez maiores, dita ao povo seus direitos e deveres de cidadão.”

Helena Antipoff

A escrita de um editorial sempre se apresenta como um desafio. A escolha de artigos para compor o número de uma publicação acadêmica acaba por se tornar um exercício provocativo para aqueles designados a esta tarefa. Não foi diferente neste caso. Selecionou-se uma variedade de textos que, à primeira vista, pareciam pouco relacionados. A epígrafe acima veio, porém, facilitar a empreitada. Presente em um dos artigos deste número, as considerações nela registradas traduzem com clareza a conexão dos textos aqui reunidos. A autora, Helena Antipoff, foi uma educadora que atuou no Brasil no século passado, tendo deixado uma série de ensinamentos em que valoriza o aprendizado dos educandos, dentre eles, os princípios democráticos de autonomia e cooperação.

Por outro lado, uma leitura atenta das reflexões, a partir dos preceitos de Antipoff, permitiu observar que todos os artigos refletem também a natureza complexa da escola. Não se trata de uma novidade. Há muito sabemos da riqueza de relações que são tecidas no interior dos muros desta instituição. Antonio Candido, em seu clássico texto A estrutura da escola, publicado em sua primeira versão nos anos 1950, já nos reportava a esta realidade.

Como instância instituída pela sociedade, a escola possui uma organização interna que espelha o mundo fora dela. Nela se encontram adultos e crianças, a convivência entre sexos, entre crenças religiosas e configurações de poder ali urdidas, além das diferenças de comportamento entre os mais resistentes ou mais disciplinados, revela uma rede tensa e diversificada de interações. Estes agrupamentos, em si mesmos e em seu conjunto, são responsáveis pelo embate de interesses e projetos distintos. Ali se travam experiências de sociabilidade entre pares (SIMMEL, 2014SIMMEL, Georg. Sociología: estudios sobre las formas de socialización. México, DC: Fondo de Cultura Económica, 2014.), constroem-se enfrentamentos ou parcerias que podem se estender para longe dos muros de cada um dos estabelecimentos.

É tarefa da educação, pois, e de seus campos disciplinares dar conta destas disputas a partir de um trabalho pedagógico sensível a esta complexidade (CANDIDO, 1978CANDIDO, Antônio. A estrutura da escola. In: PEREIRA, Luiz; FORACCHI, Marialice M. Educação e sociedade. Rio de Janeiro: Nacional, 1978. p. 107-128.). Por certo, a escola não se constitui apenas por seu caráter instrucional, já que, ademais, como espaço onde se estabelecem relações humanas, ela envolve e articula uma multiplicidade de dimensões.

Numa época em que a área da educação é atingida sistematicamente por políticas públicas controversas, entre elas a recente proposta de mudança do currículo do ensino médio1 1 - A esse respeito consultar o texto - Reforma do Ensino Médio - MP 746/1016i. Texto elaborado por uma comissão de professoras/es da Faculdade de Educação da UFMG, como uma síntese para o debate com estudantes, professoras/es, gestoras/es e com quem se interesse pelo tema. Belo Horizonte, dezembro de 2016. , cumpre alertar sobre os múltiplos aspectos que organizam a vida escolar. Em tempos em que se advoga a causa da chamada Escola sem Partido2 2 - Projeto de Lei que está em fase de tramitação que busca o controle da fala dos professores em sala de aula, a fim de asseverar a neutralidade dos conteúdos escolares. , faz-se necessário atentar para os desvios interessados em reduzir o espaço escolar a mero transmissor de conhecimentos. Nada mais alienante e notadamente incorreto.

Na tentativa de demonstrar as tênues, porém ricas fronteiras entre as dimensões que compõem a estrutura da escola, as quais desqualificam pensamentos rasos sobre as práticas pedagógicas, esta edição da revista Educação e Pesquisa contempla uma série de reflexões oportunas. Grande parte dos artigos resultam de investigações de caráter qualitativo, estudos de caso, análise de discursos, levantamentos e intervenções sobre os subcampos da educação, apontando simultaneamente para as perspectivas macro e micro.

Pode-se ressaltar também a importância que todos os artigos atribuem ao aspecto do discurso, oral ou escrito, bem como a testemunhos, representações ou análises que corroboram a compreensão de que a escola não só transmite a herança cultural, mas sobretudo produz e constrói o novo.

Neste sentido, sendo ainda relativamente jovem, a pós-graduação em educação tem demonstrado isso. Conseguiu ao longo de um período de quarenta anos construir um escopo de conhecimentos que resultam em estratégias de melhorias ou de apoio a decisões que envolvem uma quantidade expressiva de profissionais e seu alunado. E é neste espectro largo e produtivo que as reflexões que ora publicamos se encontram.

O artigo A pós-graduação e a pesquisa sobre/na educação básica: relações e proposições, na contramão do que se divulgou no Plano Nacional de Pós-Graduação de 2011-2020, traz um relato acerca de amplo material de pesquisa que está à disposição das autoridades. Não obstante, os autores alertam que esse saber constituído vem sendo sistematicamente desqualificado. Assim, a análise da produção acadêmica dos programas de pós-graduação em educação revela-se crucial tanto para os estudos na área das políticas educacionais, quanto para sua operacionalização. Adverte-se, então, que a agenda governamental do PNPG 2011-2020 não faz uso e não reconhece o que vem sendo produzido neste campo, legitimando lamentavelmente intervenções instituídas de fora para dentro ou de cima para baixo em prejuízo de setores e agentes educativos.

Chamando a atenção para problemas que a educação no Brasil poderá sofrer nos próximos anos, o artigo Tecnologías de gobierno en la formación de profisionales de la salud en una universidad tradicional relata a experiência de uma racionalidade técnica implantada em cursos de nível superior na área da saúde, no Chile. Tal prática, apoiada por uma formação pelas competências, parece descaracterizar o profissional docente que logra construir uma educação cidadã e republicana. A ênfase nos aspectos de uma governabilidade baseada na eficiência, estreitamente relacionada aos processos de globalização do capital, às lógicas de mercado e da competitividade são estratégias que pouco a pouco avançam neste universo, anteriormente visto sob a perspectiva das relações humanas mais individualizadas.

Noutra vertente e problematizando a reflexão acima, o artigo Conocimiento pedagógico: explorando nuevas aproximaciones traz uma reflexão sobre o Programa de Fortalecimento de la Formación Inicial Docente no Chile, ao considerar as qualidades requeridas de docentes para a formação de indivíduos habilitados ao pensamento complexo, com capacidade para atuar em contextos de diversidade e em situações de vulnerabilidade econômica e social. Englobando vários aspectos, o programa aposta na complexificação do pensamento pedagógico, permitindo estar aberto a situações incertas e carregadas de valores, tal como ocorre nos estabelecimentos escolares, com a intenção de se orientar para o amálgama de experiências ali construídas.

Nesta mesma linha de raciocínio, Atividades de monitoria: uma possibilidade para o desenvolvimento da sala de aula e Estratégias de intervenção do serviço social nas políticas de escolarização: uma análise contemporânea são artigos que dialogam entre si. O primeiro reserva espaço para uma discussão acerca do trabalho colaborativo entre alunos e professores no processo de ensino e aprendizagem, ao passo que o segundo, a partir de uma visão multidisciplinar destes mesmos processos, atesta o avanço das investigações em que se ressaltam aspectos positivos de uma educação a partir da interação e reflexão dos agentes da comunidade escolar. Mais especificamente, este último artigo revela o instrumento privilegiado de intervenção em políticas de escolarização dedicadas a um legítimo combate às desigualdades de rendimento. Um ambiente colaborativo e um diagnóstico bem realizado acerca das dificuldades de aprendizagem de setores prejudicados pelos altos índices de vulnerabilidade social conferem solidez ao modelo educativo aberto ao debate e às necessidades singulares de cada espaço/tempo.

As reflexões contidas em (Des)vinculações de Planos Municipais de Educação metropolitanos com outros instrumentos de gestão local da educação e em Sentidos de política e/de gestão nas pesquisas sobre a escola contribuem com este debate lançando luz às fragilidades que podem acometer os estabelecimentos educativos. Segundo seus autores, a compreensão de que planos e projetos municipais da educação seriam suficientes para uma gestão eficaz não passa de um falso diagnóstico. Para eles, os PMEs deveriam tecer parcerias constantes com os Planos de Desenvolvimento da Educação, com os Projetos Político-Pedagógicos das escolas e com as Leis do Orçamento. Ou seja, elementos que comporiam um retrato mais perto do real das escolas brasileiras na perspectiva de uma gestão qualificada. Trabalhando com os dados da região metropolitana do Rio de Janeiro, os autores revelaram a nítida tendência à baixa cooperação intermunicipal, prática distante dos desafios educacionais que implicam uma gestão conjunta e articulada com as cidades próximas. No texto Sentidos de política e/de gestão nas pesquisas sobre a escola retoma-se a ideia da complexidade do cotidiano escolar e os enormes desafios da heterogeneidade e pluralidade de experiências ali vividas. Para seus autores, a ausência de políticas públicas educacionais que abordem as particularidades e as ações dos sujeitos envolvidos em cada contexto escolar contribuem para a reprodução de desigualdades. Em síntese, tal discussão torna-se profícua ao salientar as práticas cotidianas como criação de múltiplos sujeitos e a multidimensionalidade dos desafios escolares.

Decerto, a estrutura da escola envolve afetos e emoções, reflete patologias sociais, reproduz disparidades e, nesta qualidade, urge dar atenção aos esforços de pesquisa de caráter multidisciplinar. Exemplo disso encontra-se na entrevista concedida pelo professor Pierre Delion, intitulada Tratar e educar o autismo: cenário político atual, realizada pelos professores Maria Cristina Machado Kupfer e Rinaldo Voltolini, que aborda as relações interdisciplinares tendo como foco a medicina, a psicologia e a pedagogia de forma modelar. Explicita-se, assim, uma prática desenvolvida por grupos de profissionais que têm refletido sobre o autismo, buscando trazer para a comunidade escolar alternativas menos invasivas. Destaca-se o momento em que se diz que “se, de um lado, podemos notar em nosso contexto atual uma tendência do meio pedagógico a pender em direção à lógica médico-psicológica que se pretende dominante no caso específico do trabalho com as crianças autistas, por outro, torna-se curioso acompanhar as reflexões de um médico fazendo o caminho inverso e sublinhando a importância de não se perder de vista o caráter educativo na abordagem com essas crianças.”

Em sintonia com tais preocupações, os artigos A medicalização da educação: implicações para a constituição do sujeito/aprendiz e Las emociones en el profesorado: el afecto y el enfado como recursos para el disciplinamento lançam um olhar mais cuidadoso ao observar as síndromes de Transtornos de Espectro Autista e o Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade como parte da condição moderna, podendo, como tal, ser tratadas sem o uso de medicamentos. Com a coragem de fugir dos consensos estabelecidos, volta-se a atenção para estratégias mais humanas, mais interativas entre pedagogia e psicologia, num legítimo esforço de auscultar a dor e a dificuldade no plano da coexistência humana.

Problemas relativos ao rendimento escolar e dificuldades de aprendizagem podem ser revistos a partir de esforços conjuntos da comunidade escolar envolvendo professores, alunos e familiares, entre outros agentes, como se depreende nos artigos acima, mas que, sem dúvida, também ocorrem nas políticas públicas dos livros didáticos, situação retratada pelo artigo Dificuldades de aprendizagem nos manuais e materiais didáticos em Portugal. Ademais, na mesma direção, o artigo O encontro reflexivo como possibilidade de intervenção clínica em instituição educacional e grupo comunitário atesta a capacidade de ouvir e repensar as relações e as parcerias possíveis entre agentes da educação, sejam eles pais, docentes, discentes e administradores públicos.

Mas isso não é tudo. Há ainda a oportunidade de apresentar outros debates que envolvem a estrutura complexa da escola. Por exemplo, os textos relativos à variável gênero e sexualidade retratam o quanto novos esforços de pesquisa, em tão pouco tempo, aportaram uma sólida bagagem de conhecimentos. É expressivo observar o ritmo com que este marcador da diferença, o sexo, vem crescendo e assumindo maior relevância no campo da gestão pública e nas discussões sobre violência escolar e familiar.

O artigo Sobre a legitimação do campo do gênero na ANPEd vem a calhar ao confirmar a percepção mencionada acima. Trata-se de um trabalho bem-sucedido de quantificar e qualificar as reflexões realizadas na ANPEd nos anos de 2000 a 2011, visibilizando o estado da arte destes estudos. Como argumentam as autoras, observa-se que este campo de investigação se ampliou e se fortaleceu mas ainda, sustentam elas, carece de legitimidade.

Um pequeno conjunto de três artigos, a saber: Inclusão de mulheres camponesas na universidade: entre sonhos, desafios e lutas; Escola do campo: relação entre conhecimentos, saberes e culturas e, por fim, Escrita e leitura de diários na formação de professores para escolas rurais em Minas Gerais (1948-1974), se debruça sobre a educação nas regiões agrícolas, tendo como sujeitos de pesquisa as docentes. Estes estudos sinalizam práticas e processos de empoderamento feminino a partir das pesquisas universitárias.

De modo mais específico, o artigo Disidencias sexuales en el sistema escolar chileno: represión e invisibilización alerta e dá apoio a medidas socioeducativas em espaços ainda carregados de preconceitos e conservadorismos. As experiências de discriminação, de bullying e de homofobia são marcas dolorosas que resultam, em muitos casos, na evasão escolar, na constituição de identidades reprimidas ou, ainda, na violência. Como diria Antonio Candido, seriam necessárias práticas pedagógicas capazes de assegurar o equilíbrio das tensões entre os diversos atores, para que tais diferenças não venham a se tornar desigualdades.

Se a partir da leitura destes textos buscamos exemplificar a natureza complexa, multidimensional, plural e tensionada dos espaços escolares, não se poderia esquecer a existência da esfera religiosa nos ambientes educativos. Seja na escola rural ou em escolas do campo, seja nos cursos de pedagogia de grandes centros urbanos, há forte e inegável presença da religião no cotidiano institucional. Para contemplar esta problemática, o artigo Religião, formação docente e socialização de gênero demonstra como a crença religiosa atravessa a vida dos agentes escolares, e é capaz de orientar condutas que competem com os conhecimentos científicos e seculares produzidos pela universidade. Tal estudo instiga novos e maiores aprofundamentos nesta área de investigação.

Por fim, cumpre dizer que este editorial visou registrar as múltiplas dimensões que a estrutura da escola oferece ao olhar do pesquisador bem como do administrador público. Formação docente, continuada ou inicial, conflitos entre diversos agrupamentos sociais no interior da escola, projetos pedagógicos que se enfrentam e que aos poucos vem tomando protagonismo, gestão escolar, cooperação entre comunidade escolar e extraescolar, afetos e patologias sociais, desigualdades escolares foram os temas trabalhados nestas dezessete reflexões, salientando a complexidade das instituições de ensino na atualidade.

Decerto, esta não é novidade para os estudiosos da área. Todavia, vale o recurso didático da repetição, que nos auxilia na batalha discursiva entre aqueles que pregam uma escola puramente instrucional e aqueles que lutam por uma escola cidadã e republicana. Instância da criação e da produção do novo. Espaço de respeito às diferenças e, ao mesmo tempo, pautado pelo apreço à liberdade e à igualdade de direitos.

Boa leitura.

Maria da Graça Jacintho Setton
Editora assistente de Educação e Pesquisa

Referências

  • CANDIDO, Antônio. A estrutura da escola. In: PEREIRA, Luiz; FORACCHI, Marialice M. Educação e sociedade. Rio de Janeiro: Nacional, 1978. p. 107-128.
  • SIMMEL, Georg. Sociología: estudios sobre las formas de socialización. México, DC: Fondo de Cultura Económica, 2014.
  • 1
    - A esse respeito consultar o texto - Reforma do Ensino Médio - MP 746/1016i. Texto elaborado por uma comissão de professoras/es da Faculdade de Educação da UFMG, como uma síntese para o debate com estudantes, professoras/es, gestoras/es e com quem se interesse pelo tema. Belo Horizonte, dezembro de 2016.
  • 2
    - Projeto de Lei que está em fase de tramitação que busca o controle da fala dos professores em sala de aula, a fim de asseverar a neutralidade dos conteúdos escolares.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017
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