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Ofício de vestibulando: impasses da juventude na transição para o ensino superior

The craft of test taking: youngsters' impasses in the transition to higher education

Resumo

A expansão do ensino superior, observada desde os anos 1990, deu origem a uma primeira geração de jovens que chega à condição de vestibulandos. Esse fenômeno modifica as perspectivas de futuro dos jovens, que alcançam, na década de 2010, a maior longevidade escolar observada na história. No entanto, tensionadas pelas instabilidades políticas e econômicas pós-2015, as expectativas de acesso ao ensino superior são desafiadas em um cenário de incertezas e impasses. Pensando nisso, esta pesquisa baseia-se em um trabalho de campo realizado em Brasília (DF) que contou com visitas a três cursos pré-vestibulares comunitários, a fim de selecionar vinte vestibulandos para entrevistas semiestruturadas. Argumentamos que os jovens percebem a ocorrência de uma ruptura relacionada ao desajuste entre uma postura de estudante vivenciada até então e uma postura esperada de um jovem na preparação ao vestibular – condição a que chamamos de “ofício de vestibulando”. Esse ofício envolve quatro pilares: o engajamento na rotina de estudo, o conhecimento das regras do jogo, a negociação de um projeto familiar e a experiência com as incertezas do futuro próximo. Em maior ou menor grau, todos os entrevistados habitavam um não lugar da transição médio-superior e orbitavam em torno das possibilidades e desafios para construir tal ofício. Como lidam com esses elementos é revelador de impasses vivenciados pela juventude na transição para o ensino superior.

Palavras-chave
Distrito Federal; Ensino superior; Ofício de estudante; Juventude; Itinerários

Abstract

The expansion of higher education observed in Brazil since the 1990s gave origin to a first generation of youngsters that reached the stage of taking higher education entrance exams. This phenomenon transforms the perspectives of the youngsters that reached in the 2010s the highest school longevity in the country’s history. However, put under stress by post-2015 political and economic instabilities, the expectations surrounding the access to higher education have been challenged in a scenario of uncertainty and impasse. With this situation in mind, this research is based on a fieldwork conducted in Brasília (DF) that comprised visits to three community-based pre-exam schools, during which twenty students were selected for semistructured interviews. We argue that the youngsters notice the presence of a rupture related to the misalignment between the student attitude they held so far, and the attitude expected from a youngster preparing him/herself to take higher education entrance exams – a situation we labelled “the craft of test taking”. Such craft stands on four pillars: commitment to a study routine, knowledge of the rules of the game, negotiation of a family project, and the experience with uncertainties regarding their near future. To a greater or lesser degree all interviewees inhabited a no-place of the secondary school-higher education transition, and revolved around the challenges and possibilities to construct such craft. The way in which students deal with such elements is revealing of the impasses experienced by youth in the transition to higher education.

Keywords
Federal District; Higher education; Craft of studying; Youth; Itineraries

Introdução

“Raros estudantes estão prontos para se tornarem verdadeiros profissionais de seus estudos”. Assim o sociólogo Alain Coulon (2008, p. 39)COULON, Alain. A condição de estudante: a entrada na vida universitária. Salvador: UFBA, 2008. descreve a necessidade de os jovens franceses aprenderem a ser estudantes na graduação e, dessa forma, obterem sucesso na vida acadêmica. Mesmo após mais de um decênio no sistema escolar, os jovens são confrontados com novas lógicas quando adentram o ambiente universitário. Quem não se readequa, argumenta o autor, corre risco de fracassar e evadir. Como define Philippe Perrenoud (1995)PERRENOUD, Philippe. Ofício de aluno e sentido do trabalho escolar. Porto: Porto Editora, 1995., o ofício de aluno1 refere-se a uma assimilação das regras explícitas ou implícitas do jogo escolar; por definição, é uma configuração mutável, transformando-se no tempo e no espaço. Diferentes escolas e diferentes etapas de ensino ensejam distintos ofícios de aluno. Assim, tornar-se um universitário, para Coulon (2008)COULON, Alain. A condição de estudante: a entrada na vida universitária. Salvador: UFBA, 2008., requer uma ruptura com o ofício de aluno construído até então e um processo de aprendizado de uma nova forma de ser estudante, em meio ao estranhamento que a transição para o ensino superior proporciona.

Mas, diferentemente do caso francês, os jovens brasileiros não têm a opção de transitar do ensino médio para o superior sem que se interponha entre eles uma barreira inexistente na educação francesa: o vestibular. Aqui, não há ampla garantia de acesso ao ensino superior e os processos seletivos atuam deliberadamente pela exclusão de candidatos menos preparados para as provas, quer seja para ingressar em uma universidade pública, quer seja para obter uma bolsa de estudos ou financiamento no setor privado, quando a própria cobrança de mensalidades nas faculdades particulares já não finca uma barreira de ordem econômica. Essa especificidade do caso brasileiro em relação ao francês impõe um elemento estranho à sociologia francesa: antes de aprender a ser estudante, o jovem brasileiro deve aprender a passar no vestibular. Deve, portanto, construir um ofício de vestibulando.

Estudar esse processo tornou-se mais importante diante das mudanças recentes no sistema de educação superior brasileiro: até o final dos anos 1990, a presença de jovens entre 18 e 24 anos pertencentes aos 40% mais pobres da sociedade era quase inexistente. De 2015 em diante, no entanto, eles têm orbitado em torno de 15% do perfil discente (SENKEVICS, 2021a)SENKEVICS, Adriano Souza. A expansão recente do ensino superior: cinco tendências de 1991 a 2020. In: MORAES, Gustavo Henrique; ALBUQUERQUE, Ana Elizabeth Maia (org.). Cenários do direito à educação. Brasília, DF: INEP, 2021a. p. 199-246. (Cadernos de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais; v. 3).. Embora continuem sub-representados em relação aos seus pares de origem privilegiada, não se pode deixar de reconhecer uma mudança de grande magnitude em um período de aproximadamente vinte anos. Esses jovens constituem uma nova geração de estudantes que alcançam tal longevidade escolar, conhecidos pela literatura como jovens de primeira geração a acessar o nível superior (FELICETTI; MOROSINI; CABRERA, 2019)FELICETTI, Vera Lucia; MOROSINI, Marília Morosini; CABRERA, Alberto F. Estudante de primeira geração (P-Ger) na educação superior brasileiro. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 49, n. 173, p. 28-43, 2019..

Levantamento do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - INEP (2020)INEP. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Relatório do 3 ciclo de monitoramento das metas do Plano Nacional de Educação: 2020. Brasília, DF: INEP, 2020. demonstra que, em âmbito nacional, a taxa líquida de escolarização para a população de 18 a 24 anos superou o patamar de 25% somente depois de 2018. Já no Distrito Federal (DF) – foco deste artigo – é um caso particular dentro da Federação, pois, em sua população da mesma faixa etária, essa taxa cresceu de 37,9% em 2012 para 42,2% em 2019. Trata-se da unidade da Federação com os maiores valores desse indicador e, assim como Santa Catarina, uma das duas que superou o valor referente à meta nacional estabelecida pelo Plano Nacional de Educação (BRASIL, Lei n. 13.005/2014)BRASIL. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação PNE e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, Seção 1, ed. extra, p. 1. 26 jun. 2014. de 33% até 2024. Elevada renda média per capita; os maiores prêmios salariais do diploma superior; profundas desigualdades socioespaciais; grande cobertura de ensino superior (SOUZA; MEDEIROS, 2013;INEP. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Relatório do 3 ciclo de monitoramento das metas do Plano Nacional de Educação: 2020. Brasília, DF: INEP, 2020. ROSA, 2017;ROSA, Thiago Mendes. Diferencial salarial entre os setores público e privado no Distrito Federal. Texto para Discussão Codeplan, Brasília, DF, n. 23, p. 1-37, 2017. INEP, 2020)SOUZA, Pedro Herculano Guimarães Ferreira; MEDEIROS, Marcelo. Diferencial salarial público-privado e desigualdade de renda per capita no Brasil. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 43, n. 1, p. 5-28, 2013., entre outros fatores, configuram Brasília como um local privilegiado para se investigar as conquistas e os limites da expansão do acesso à graduação.

Diferentemente do que se observa com os jovens que realizam a transição para o nível superior – sobre os quais não faltam dados sobre o seu perfil e inúmeras pesquisas atentam para a inclusão proporcionada pela expansão, por exemplo, (VARGAS; PAULA, 2013;JARDIM, Fabiana Augusta Alves; ALMEIDA, Wilson Mesquita. Expansão recente do ensino superior brasileiro: (novos) elos entre educação, juventudes, trabalho? Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 22, n. 47, p. 63-85, 2016. JARDIM; ALMEIDA, 2016;SENKEVICS, Adriano Souza. A expansão recente do ensino superior: cinco tendências de 1991 a 2020. In: MORAES, Gustavo Henrique; ALBUQUERQUE, Ana Elizabeth Maia (org.). Cenários do direito à educação. Brasília, DF: INEP, 2021a. p. 199-246. (Cadernos de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais; v. 3). SENKEVICS, 2021a)VARGAS, Hustana Maria; PAULA, Maria de Fátima Costa. A inclusão do estudante-trabalhador e do trabalhador-estudante na educação superior: desafio público a ser enfrentado. Avaliação, Campinas, v. 18, n. 2, p. 459-485, 2013. –, pouco se sabe sobre aqueles que não alcançam o nível superior, muito embora sejam elegíveis ou tenham efetivamente se candidatado para tal: qual é seu perfil, que importância atribuem ao ensino superior e como vivenciam esse processo de transição. Dado que existe uma gama relativamente restrita de estudos abordando jovens no limiar do acesso (LEÃO; DAYRELL; REIS, 2011;BONALDI, Eduardo Vilar. Tentando chegar lá: as experiências sociais de jovens em um cursinho popular de São Paulo. 2015. 404 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. WELLER; PFAFF, 2012;LEÃO, Geraldo; DAYRELL, Juarez Tarcísio; REIS, Juliana Batista. Juventude, projetos de vida e ensino médio. Educação & Sociedade, Campinas, v. 32, n. 117, p. 1.067-1.084, 2011. BONALDI, 2015;SANTOS, Raquel Souza. E depois da escola? Desafios de jovens egressos do ensino médio público na cidade de São Paulo. 2018. 339 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. TARÁBOLA, 2016;TARÁBOLA, Felipe de Souza. Aspirantes: desafios de estudantes da USP egressos de escolas públicas no contexto do novo tensionamento político-social brasileiro. 2016. 424 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. SANTOS, 2018)WELLER, Wivian; PFAFF, Nicolle. Transições entre o meio social de origem e o milieu acadêmico: discrepâncias no percurso de estudantes oriundas de escolas públicas na Universidade de Brasília. Estudos de Sociologia, Recife, v. 2, n. 18, p. 1-16, 2012., há a necessidade de

se atentar às experiências juvenis na fronteira da transição e ao que ela lhes representa. O objetivo deste estudo, derivado da tese de doutorado de Senkevics (2021b)SENKEVICS, Adriano Souza. O acesso, ao inverso: desigualdades à sombra da expansão do ensino superior brasileiro, 1991-2020. 2021. 437 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2021b., é compreender as vivências, olhares e impasses de jovens egressos do ensino médio brasiliense a respeito da transição para o ensino superior em um dos espaços-tempos mais inclusivos da história nacional. Se, por um lado, o debate a respeito da democratização do acesso foi desde sempre pautado pelo reconhecimento do caráter elitista do nível superior, da seletividade das universidades públicas e do filtro socioeconômico exercido tanto pelos concorridos vestibulares quanto pelas mensalidades do setor privado, por outro lado, não deixa de ser interessante perceber como essas barreiras, filtros e constrangimentos encontram ou não certa debilidade em um cenário que nunca se apresentou como tão favorável ao ingresso desses jovens, ao menos para os parâmetros nacionais. Para tanto, desenvolveremos nosso argumento em torno do conceito, por nós proposto, de ofício de vestibulando.

Metodologia

Esta pesquisa empírica foi desenvolvida em 2018 por meio de questionários e entrevistas. O questionário baseou-se em uma amostra não probabilística e teve o objetivo de levantar características sociodemográficas e educacionais de estudantes de cursos pré- vestibulares comunitários do DF, a fim de selecionar potenciais entrevistados para a etapa seguinte do trabalho de campo. Escolhemos visitar cursinhos comunitários por serem um espaço que reúne jovens de camadas populares mobilizados ao ensino superior.

Três cursinhos – identificados como Alfa, Beta e Gama2 – foram visitados. Em comum, são gratuitos para os frequentadores e dependem de trabalho voluntário por parte dos docentes. O primeiro deles localiza-se em uma região central de Brasília, bem servida de infraestrutura e de transporte público, no edifício de uma faculdade privada, e oferece quatro turmas nos períodos matutino, vespertino e noturno. O cursinho Beta é parte de um projeto social voltado à juventude de territórios vulneráveis, localiza- se próximo ao centro de uma região administrativa de grande porte do DF e tem uma única turma no período noturno. Finalmente, o cursinho Gama também se encontra em uma região administrativa de grande porte, porém, em uma localização periférica, e suas aulas aconteciam exclusivamente aos sábados nas dependências de uma escola pública da região. No conjunto das três instituições, 208 questionários foram respondidos.

A segunda etapa da pesquisa foi constituída de entrevistas seguindo um roteiro semiestruturado com vinte jovens selecionados entre os que responderam ao questionário e concordaram em participar, fornecendo seus contatos3. O objetivo era investigar um conjunto de questões acerca das dificuldades de se obter uma vaga no ensino superior, tais como: quais esforços os jovens têm empregado para efetuar a transição; por quanto tempo têm perseguido o ingresso; com quais custos econômicos, sociais e pessoais; e como suas perspectivas de vida têm sido moldadas diante das possibilidades de sucesso ou fracasso. Para a seleção dos entrevistados, priorizamos egressos do ensino médio e que preferencialmente nunca tivessem ingressado no ensino superior, embora já tivessem experimentado alguma tentativa de acesso. Ainda, a amostra era diversificada escolhendo- se jovens com mais ou menos experiências de tentativas de ingresso e com distintas características adscritas e socioeconômicas, trajetórias escolares e aspirações de curso. O Quadro 1 resume as principais características dos entrevistados.

Quadro 1 –
Perfil dos jovens egressos do ensino médio entrevistados – Distrito Federal, 2018

Há importantes traços que distinguem os perfis, as trajetórias e as perspectivas dos jovens. No entanto, alguns elementos comuns podem ser destacados. Quase todos nascidos de pais migrantes com baixa escolaridade, grande parte dos sujeitos encontram-se às voltas com as angústias, desafios, medos e expectativas do que fazer após a conclusão da educação básica (SANTOS, 2018)SANTOS, Raquel Souza. E depois da escola? Desafios de jovens egressos do ensino médio público na cidade de São Paulo. 2018. 339 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.. Contam com o suporte dos familiares, de seus pares – contemporâneos nas experiências de transição – e dos profissionais dos cursinhos. Quando trabalham, encontram-se em ocupações informais e reconhecidamente provisórias; quando não trabalham, ora negociam com a família uma moratória da entrada no mercado, ora buscam emprego em um cenário de precariedade agravado pela crise econômica. Experiências de frustração na transição do ensino médio ao superior, interpretadas por muitos deles como um choque de realidade após a saída da escola, são um elemento comum às entrevistas que nos possibilitou traçar as linhas analíticas deste texto.

Ofício de vestibulando

Na condição de jovens aspirantes ao ensino superior, a maior parte matriculada em cursinhos populares, todos os entrevistados desta pesquisa encontram-se às voltas com o ofício de vestibulando. O intuito de desenvolver esse conceito não é apontar, apressadamente, quem se enquadra ou não no ofício, mas sim de explorar aproximações ou distanciamentos para com esse modelo de investimento frente à concorrência dos processos seletivos, por meio de quatro pilares discutidos nesta seção.

Não nos furtamos a reconhecer que a pesquisa não versa acerca de uma juventude genérica e inespecífica, mas sim a respeito de um determinado segmento dos jovens brasileiros – aqueles pertencentes a camadas populares, diplomados em nível médio com trajetória escolar parcial ou total na rede pública, moradores da capital federal, mobilizados em torno de um ideal comum: ser aprovados nos exames de ingresso para universidades públicas e/ou entre beneficiários de políticas inclusivas para universidades privadas.

Engajar-se em uma rotina de estudo

Douglas é um rapaz de 19 anos, residente de uma região central de Brasília, que exerce a rotina de estudos mais longa e regrada de todos os entrevistados. Em dias de semana, acorda às 5h30 da manhã, organiza a lancheira e segue para a academia de musculação. Depois, retorna para casa, arruma-se e parte, tomando um ônibus por um curto trajeto. Às 8h00, chega ao cursinho Alfa, onde tem aulas até às 12h20. Almoça no próprio estabelecimento e dedica o período da tarde para estudar por conta própria, utilizando a monitoria sempre que necessário. Às 19h00, volta para casa e prepara as refeições para o dia seguinte. Às 21h00, torna a estudar e segue até à meia-noite. Nas segundas e quartas- feiras, sai mais cedo do cursinho Alfa para comparecer a um segundo cursinho, elitizado e pago, cuja bolsa integral lhe foi concedida pelo excelente desempenho no processo seletivo do primeiro. Aos sábados, comparece novamente ao Alfa para as aulas matinais e segue com os estudos em casa até às 22h00. Aos domingos, finalmente, cumpre alguns afazeres domésticos na parte da manhã e deita-se cedo, às 16h00, dormindo até a manhã do dia seguinte. Sua aspiração: medicina.

Com algumas passagens pela rede privada ao longo da educação básica, apoio da mãe, que tem nível superior completo, dedicação integral aos estudos e a oportunidade de frequentar dois cursinhos bem estruturados, o caso de Douglas parece ser arquetípico de uma trajetória determinada ao sucesso, em que a preparação para o vestibular é o epicentro de sua experiência cotidiana. No entanto, até para Douglas essa rotina é uma novidade. Foi no cursinho onde aprendeu a ter um cronograma de estudos e a buscar incentivos dos pares. Resume a experiência em uma frase: “Todo mundo que está aqui sabe que o prazo para brincar já acabou”.

Há três elementos em sua rotina que são mencionados por vários entrevistados: autonomia, disciplina e foco. Em algum grau, os jovens vestibulandos aproximam-se desse ideal de estudante, de quem é demandada autonomia para se planejar e conduzir seus próprios estudos, disciplina para manter-se fiel aos compromissos e foco no seu objetivo e nos meios de alcançá-lo. Daí decorre uma série de investimentos em torno do processo de preparação: matricular-se em um cursinho e comparecer às atividades; estabelecer uma rotina de estudos para além das aulas; adquirir materiais impressos e digitais; procurar cursos complementares; gastar tempo e dinheiro com transporte e alimentação; e, quando é o caso, conciliar os estudos com o trabalho remunerado e os afazeres domésticos. Como a maioria desses jovens vê o ensino superior como um destino possível, mas não necessariamente provável ou certo, é preciso investir um “esforço descomunal” na consecução desse objetivo, segundo a expressão de Almeida (2009, p. 102)ALMEIDA, Wilson Mesquita. USP para todos? Estudantes com desvantagens socioeconômicas e educacionais e fruição da universidade pública. São Paulo: Musa/Fapesp, 2009..

Nesse contexto, o cursinho apresenta-se como um espaço de socialização propício para o desenvolvimento de uma postura de vestibulando em sintonia com a disputa dos vestibulares. Não necessariamente é o cursinho que a garante, mas a instituição promove tais valores e incentiva determinadas práticas, fornecendo, segundo Luciano, “os meios para se disciplinar”. Essa importância dos cursinhos, já enfatizada por pesquisas anteriores, por exemplo (NASCIMENTO, 2009;BONALDI, Eduardo Vilar. Tentando chegar lá: as experiências sociais de jovens em um cursinho popular de São Paulo. 2015. 404 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. BONALDI, 2015)NASCIMENTO, Eduardo Peterle. Jovens e educação superior: as aspirações de estudantes de cursos pré-vestibulares populares. 2009. 150 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009., ajuda-nos a entender por que alguns jovens que iniciaram os estudos por conta própria resolveram se matricular em um cursinho, mesmo sabendo que isso envolveria investimento de tempo e de dinheiro. Por agora, o ponto central é que o cursinho é entendido ora como um ambiente que lhes permitiu desenvolver certos atributos associados ao sucesso acadêmico, ora como um espaço que canaliza as frustrações com que o jovem teve de lidar na conclusão do ensino médio:

No ano passado, eu não era tão focada como agora. Hoje eu consigo olhar a vida de outra maneira: “Não, tem que ser, tem que focar agora.” Antes, eu não tinha essa mentalidade. (Beatriz, 20 anos, cursinho Alfa, período noturno).

No ensino médio, você meio que é obrigado. Tudo, desde a tua escola, você meio que é obrigado. E aqui [no cursinho], não. Aqui é uma escolha. Você está aqui porque você quer; se você está chegando tarde em casa, é porque você quer. (Luana, 21, Beta, noturno).

Quando a gente chega [no cursinho], [...] a gente já sabe aproveitar essas coisas, a gente já enxerga com outros olhos; coisa que não acontece quando a gente está na escola. (Fabiana, 23, Alfa, matutino).

As menções a uma “escolha”, a “enxergar com outros olhos” e a adquirir uma “mentalidade” indicam que há em curso um processo de o vestibulando se tornar sujeito do próprio estudo. Logo, o que está em questão aqui é menos a dimensão curricular do cursinho e mais sua dimensão formativa. Trata-se de uma formação que tem como premissa uma tensão com posturas que os jovens apresentavam em oportunidades de aprendizagem anteriores, como se lê na fala de Kátia: “Não adianta a gente chegar e falar: ‘Ó, fulano, você tem que estudar, tá? Tipo, estuda, se esforça.’ Não adianta. Às vezes, a pessoa tem que quebrar a cara para aprender”. Nesse contexto, emergem qualidades que a maioria dos jovens não enxergava em si durante a época escolar e que foram possibilitadas pelas experiências de fracasso, revelando um amadurecimento pessoal para além da questão estudantil: são jovens tornando-se um pouco menos jovens do que eram antes.

Engajar-se em uma rotina intensa, dedicada e regrada de estudos não é um feito para qualquer um. Mais do que vontade, é preciso ter condições. E aqueles que não encontram meios objetivos e subjetivos de se tornarem vestibulandos em tempo integral – ou “verdadeiros profissionais de seus estudos” (COULON, 2008, p. 39)COULON, Alain. A condição de estudante: a entrada na vida universitária. Salvador: UFBA, 2008. – sentem a pressão ou o constrangimento dessa não realização. André, por exemplo, não se furtou a denunciar as desigualdades sociais que sente na pele. Contrastou sua experiência com a de um jovem residente no Lago Sul, região elitizada de Brasília, que teria dedicação integral aos estudos (“Eu tenho que trabalhar, eu tenho que pensar na responsabilidade das minhas contas. [...] Sempre tenho que ficar sacrificando.”). Para estar no cursinho, André deve sair mais cedo do trabalho e, com isso, “perder dinheiro” que poderia estar ganhando caso estivesse até mais tarde na rua, como vendedor ambulante no transporte coletivo.

No contexto desta pesquisa, a idealização de um modelo de estudante dedicado de corpo e alma à preparação para o vestibular exerce uma pressão sobre a vida cotidiana dos jovens entrevistados no sentido de atender tais expectativas e impor custos emocionais desse atrito entre o que se espera e o que se pode dar. Fabiana, por exemplo, comparou a dificuldade de se tornar vestibulanda a “dar murro em ponta de faca”, pelo desgaste que o processo de aprendizagem enseja; da mesma forma, Kátia assim descreveu seu dia a dia: “Estudo, durmo e choro.”

Finalmente, Luciano contou que, nos finais de semana, é previsto que ele cumpra algumas obrigações de estudo, mas o jovem relatou ficar à toa e reconhecia seu pouco engajamento. Ironizando, o rapaz afirmou que “o domingo é o dia que eu descanso sem culpa”, já que, no sábado, o seu descanso carrega certa transgressão e remorso – suas energias até podem ser repostas, mas o sentimento de culpa permanece.

Conhecer as regras do jogo

Não existe ingresso no ensino superior brasileiro que preceda a escolha por um curso. Acessar o ensino superior é, em parte, consequência da via que se escolhe para acessá-lo, havendo vários fatores que determinam essa escolha. Vocação, pressão familiar, nível socioeconômico, conveniência geográfica, instituição de vínculo, turno e duração do programa são alguns deles. Investigar essa temática demanda uma pesquisa especialmente dedicada a compreender o que motiva jovens a optar por um ou outro caminho, bem como a nuançar a agência dos indivíduos perante razões estruturais que condicionam, em última análise, aquilo que se apresenta como um desejo ou um anseio. Longe de ter a pretensão de esgotar esse tema, este trabalho traz alguns indícios de como as escolhas de curso por parte dos jovens são ilustrativas da informação que eles têm sobre o modus operandi do ensino superior.

Em matéria de universidade, a UnB (Universidade de Brasília) é a principal opção dos entrevistados. Pelo menos 13 jovens indicaram-na como sua prioridade. A qualidade, o prestígio e a gratuidade são elementos citados com recorrência. Muitos não sabem explicar por que preferem essa universidade, pelo fato de que lhes parece natural tê-la como primeira opção. Essa importância é tamanha que, por vezes, vem antes e acima da escolha de curso. Embora vários entrevistados tenham suas preferências profissionais, essas escolhas poderiam ser substituídas se as alternativas fossem consideradas como mais estratégicas para o ingresso. Esse fenômeno matiza as preferências iniciais dos jovens e sugere certo pragmatismo na escolha dos cursos, como demonstra Almeida (2009)ALMEIDA, Wilson Mesquita. USP para todos? Estudantes com desvantagens socioeconômicas e educacionais e fruição da universidade pública. São Paulo: Musa/Fapesp, 2009. entre estudantes que ingressaram na Universidade de São Paulo (USP).

Entre muitos dos entrevistados, há um senso de apropriação da universidade enquanto um bem público alicerçado em uma visão socialmente construída de direito ao ensino superior. Assim entendido, enfatiza-se uma dimensão vocacional da escolha da carreira: há jovens que aspiram a determinado curso em determinada universidade, não aceitando alternativas (ou pelo menos não em um primeiro momento). A título de exemplo, Paulo, de 19 anos e estudante do período noturno no cursinho Alfa, está convicto de estudar direito, na UnB. Como já havia chegado perto de alcançar seu objetivo, obtendo pontuação para ingressar em todos os cursos menos competitivos que aquele, o rapaz tinha todos os incentivos para mantê-lo. Segundo seu depoimento, não ter ingressado é motivo de frustração; porém, acredita que é uma questão de tempo e basta continuar estudando para passar no vestibular. Na fala dele, assim como na de outros jovens, percebe-se uma noção meritocrática de que o esforço há de ser recompensado. Ao lado disso, a ideologia de mérito que sustentam é alimentada por um conhecimento acerca do próprio desempenho, não se dando em abstrato.

Para certos jovens, particularmente aqueles com mais experiência em cursinhos e processos seletivos, ou com uma escolarização pregressa orientada ao vestibular, essas escolhas vocacionadas são alimentadas por uma leitura informada a respeito das possibilidades de acesso. São vestibulandos que não estão jogando no escuro, uma vez que informação é fundamental para exercer o ofício. A título de ilustração, Douglas e Fabiana pesquisaram previamente qual é o desempenho das instituições de educação superior em avaliações em larga escala: “Eu ia lá procurar onde é que ela está no ranking do MEC [Ministério da Educação]; porque se ela não tivesse uma avaliação boa, você podia pagar tudo, eu não ia” (Fabiana). Não por menos, eles sabem estimar qual é a nota de corte em cada instituição, conhecem os componentes da própria nota e o quanto precisam aperfeiçoar para alcançar a meta.

Nem todos os planejamentos, no entanto, sustentavam-se em um cálculo tão informado dos meios de ingresso. Ivan parecia desconhecer os mecanismos de admissão e declarou não ter interesse em concorrer pela política de cotas (embora tivesse direito a três dos quatro critérios instituídos por legislação federal). Para ele, o diploma universitário é um meio de se credenciar para a carreira policial. Ingressando no nível superior, sua aspiração é ao curso de gestão de tecnologia da informação (TI). Questionado sobre em qual universidade prefere estudar, respondeu: “A que eu vi que tem foi só a Unip [Universidade Paulista], até agora. [...] Mas eu não pesquisei muito. Foi a primeira que eu vi, na Unip; eu falei: ‘Eu vou fazer e tal’”. Ele complementa que não tem interesse na UnB “porque não tem o curso que eu quero; [...] tem, eu acho, Ciência da Computação.” Interessante notar como as respostas de Ivan baseiam-se mais em impressões do que em dados propriamente ditos.

Outro jovem que também apresentou suas aspirações com pouca convicção foi Gabriel. Quanto às escolhas de carreira, o rapaz se mostrou em dúvida entre administração e direito. A primeira, entendida como uma porta de entrada para concursos públicos, é cogitada em virtude de sua experiência em uma agência bancária; a segunda, por incentivo de uma série televisiva sobre direito penal. Porém, o fiel da balança seria o que seu desempenho permitisse: “Administração eu acho mais fácil de conseguir”. A respeito das instituições de ensino superior, também não delimitou sua prioridade: “A que vier, está ótimo”. Para obter uma vaga, o rapaz relatou que tentaria qualquer uma das políticas de acesso: “Eu vou tentar pelo Sisu [Sistema de seleção unificada], pelo Prouni [Portal único de acesso ao ensino superior], pelo Fies [Fundo de Financiamento Estudantil]. [...] Vou tentar tudo; o que vim, está bom”. No entanto, ele desconhece o modo de funcionamento da política de cotas ou referências das notas de corte em cada curso ou instituição.

Essas falas remetem-nos à tese de Kalmus (2010, p. 83)KALMUS, Jaqueline. Ilusão, resignação e resistência: marcas da inclusão marginal de estudantes das classes subalternas na rede de ensino superior privada. 2010. 175 f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2010.: para jovens oriundos de camadas sociais desprivilegiadas, “o jeito é fazer o que dá”, e não o que se quer. Ao mesmo tempo, também reforçam as conclusões de Pierre Bourdieu (2017, p. 350)BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. 2. ed. Porto Alegre: Zouk, 2017. a respeito da necessidade que se torna virtude: “A necessidade impõe um gosto de necessidade que implica uma forma de adaptação à necessidade e, por conseguinte, de aceitação do necessário, de resignação ao inevitável”.

Ora, se para Ivan não faz diferença qual graduação cursar, uma vez que o importante para ele é prestar um concurso público, por que ser tão criterioso quanto à escolha de gestão de TI na Unip sobre Ciência da Computação na UnB? Provavelmente, porque, ao tomar essa decisão, ele arranja uma justificativa para não concorrer à UnB e, assim, dispensar essa opção que lhe demandaria muito mais esforço do que ele poderia investir. Com Gabriel, o mesmo se observa. A certa altura, ele revelou:

Hoje em dia, eu vejo assim, que as pessoas correm muito atrás do ensino superior e tal e que tem que ter o ensino superior. Mas eu acho que, hoje em dia, o curso técnico está ganhando muito dinheiro; [...] ganha até mais que alguém que tenha nível superior. (Gabriel 19, Gama, sabatino).

Por mais que essa opinião possa servir de baliza para o rapaz se orientar nas escolhas profissionais, ela não encontra lastro na realidade. No Brasil – e, em particular, na capital federal – os retornos econômicos médios para o trabalhador de nível superior são bastante superiores aos de quem têm nível médio (OECD, 2020, p. 97)OECD. Organisation for Economic Co-Operation and Development. Education at a Glance 2020: OECD Indicators. Paris: OECD, 2020.. No entanto, a crença de que o curso técnico possa ser mais recompensador pode lhe trazer uma justificativa para não encarar a disputa acirrada para ingressar em universidades gratuitas de prestígio. Trata-se da escolha do possível. Para outros jovens, porém, que investem no ofício de vestibulando com elevadas ambições no sistema educacional, a escolha não chega a ser pelo impossível, mas por forçar os limites das possibilidades, inaugurando em sua geração o acesso a universidades antes inacessíveis. Como saber se essa escolha é possível? Arriscando.

Compor uma primeira geração não significa ser, eles mesmos, o caso pioneiro. A indagação sociológica não reside em narrar as experiências do primeiro e único indivíduo da família a chegar lá, mas sim em interpretar uma mudança estrutural em curso, que afeta e transforma as experiências da coletividade. Nesta pesquisa, quase todos os sujeitos convivem em seus círculos sociais com exemplos concretos de sucesso na transição médio- superior, quer seja entre irmãos mais velhos, colegas de sala ou amigos da vizinhança. Esse ponto reforça a observação de Bonaldi (2015)BONALDI, Eduardo Vilar. Tentando chegar lá: as experiências sociais de jovens em um cursinho popular de São Paulo. 2015. 404 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. a respeito da relevância do capital social nas trajetórias juvenis, uma vez que tais redes atuam como instâncias de socialização, as quais, por sua vez, deflagram oportunidades e dinâmicas importantes para o prolongamento da escolarização ou a inserção no mercado de trabalho.

No decorrer de suas trajetórias de vida, os jovens percebem que a transição médio- superior não está garantida. Agora, mais do que nunca, precisarão assumir determinados caminhos e, para tal, espelham-se nas próprias trajetórias e na de seus colegas. Com base nas entrevistas, percebemos o quão fundamental é o jovem contar com exemplos de sucesso na transição: os casos concretos lhes conferem um senso de realidade na busca por uma vaga ao invés de ser apresentada como algo abstrato. Nesse sentido, o capital social dessa nova geração de vestibulandos mostra-se como essencial para a aquisição de conhecimento sobre os processos seletivos, o desenvolvimento de habilidades para o exercício do ofício de vestibulando e a incorporação de predisposições que posicionem o vestibular como uma meta a ser cumprida.

Negociar um projeto familiar

Entre os vinte entrevistados, nove jovens não exercem atividade remunerada. A não participação no mercado de trabalho (tecnicamente chamada de desocupação) agrupa cenários díspares. Ao que interessa a esta pesquisa, duas condições são valiosas para se compreender a experiência dos jovens: o desemprego e a moratória. De um lado, três deles estão desempregados, porque, embora desocupados, tomam providências para conseguir um emprego, que, aliás, pode vir a ser prioritário sobre o estudo. De outro lado, seis encontram- se em moratória, isto é, negociaram com a família o não exercício de atividade remunerada. Essas negociações giram em torno da necessidade de transformar o acesso ao ensino superior em um objetivo da família, e não apenas do indivíduo elegível. Garantir um suporte familiar é especialmente importante em contextos socioeconômicos desfavorecidos, em que as condições sociais para o acesso não estão dadas e dependem da participação ativa não só do jovem, mas também dos membros da família (NOGUEIRA, 2021)NOGUEIRA, Maria Alice. O capital cultural e a produção das desigualdades escolares contemporâneas. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 51, p. 1-13, 2021.. De acordo com Kim e Schneider (2005, p. 1.183)KIM, Doo Hwan; SCHNEIDER, Barbara. Social capital in action: alignment of parental support in adolescents’ transition to postsecondary education. Social Forces, Chapel Hill, v. 84, n. 2, p. 1.181-1.206, 2005., no contexto estadunidense, um “alinhamento de ambições” é fundamental para construir uma rede de expectativas em torno dos jovens de modo a promover o prolongamento de sua escolarização, ao permitir uma correspondência entre o que o indivíduo espera para si e o que a família espera para ele.

Embora esse quadro teórico não seja propriamente novo e remeta aos primórdios dos estudos sobre a associação entre nível socioeconômico e sucesso escolar, ele parece ter sido resgatado em face da recente inclusão de novos públicos ao ensino superior em diversas partes do mundo. Também por não se constituir como uma etapa obrigatória, a continuidade dos estudos em nível de graduação envolve decisões, por parte do indivíduo e sua família, em uma fase da vida em que a universidade não necessariamente é o caminho mais óbvio ou prioritário. É o que se observa entre os entrevistados desta pesquisa, entre os quais a necessidade desse alinhamento se faz presente e, para todos deles, é negociado. Essa negociação, por sua vez, apresenta-se com frequência como uma linha tênue – quando não tensa – entre as expectativas dos jovens e de seus familiares, geralmente envolvendo um atrito entre o suporte familiar a uma rotina de estudos que permita aspirações mais ambiciosas e a pressão para ingressar no mercado de trabalho. Os arranjos familiares em torno da meta de ser aprovado no vestibular são provisórios e dependem de inúmeros fatores: condições socioeconômicas da família, perspectivas de sucesso por parte do jovem, tempo desde a conclusão do ensino médio, percepção de que o jovem está realmente engajado nos estudos, entre outros.

A título de ilustração, Beatriz pretende cursar odontologia. Prestes a completar dois anos desde a conclusão do ensino médio, ela denuncia que, além da mãe, “não tem muita gente que te apoia”. Quanto ao pai, em um primeiro momento, ele acreditava que era melhor ela “entrar logo numa particular” e “deixar a UnB para outra oportunidade”, mas, ao perceber que o sonho da filha é se tornar dentista, entendeu que o melhor caminho, de fato, seria ingressar em uma universidade pública, dados os elevados custos de bancar uma graduação em instituição privada. Logo, Beatriz conta com apoio para frequentar aulas no cursinho Alfa à noite, enquanto trabalha em uma clínica veterinária durante o dia como estratégia não apenas para contribuir com o orçamento familiar, mas também para aliviar a pressão em torno da dedicação integral a atividades remuneradas. Porém, a demora para ser admitida reduz seu poder de barganha perante a família.

Outra forma de negociação que explicita o elemento temporal aparece no relato de Paulo: “Minha mãe me apoia muito, mas ela me deu um prazo. [...] Eu tenho este ano, e o vestibular do ano que vem, para tentar. Caso contrário, eu vou ter que trabalhar e estudar”. Esse prazo funciona como um fator de pressão pelo cumprimento da meta. Mais do que estar estudando, é preciso fazer prova disso, justificar a posição que se ocupa e negociar planos de futuro cujos custos sejam compartilhados com os membros da família, com maiores ou menores concessões às necessidades imediatas.

Nesse sentido, é na negociação em torno da moratória do ingresso no mercado de trabalho que se encontram as maiores tensões para esses jovens. Quando há uma mobilização familiar em prol do ofício de vestibulando, a desocupação é legitimada como uma estratégia para a obtenção de sucesso. Os casos de Mateus e Catarina são ilustrativos desse apoio: o rapaz contou que trabalha, ocasionalmente, como aplicador de provas, e que esse rendimento é complementar ao sustento provido por sua mãe. Igualmente, Catarina faz alguns bicos como aplicadora de provas ou em “alguma coisa que não me tome tempo”. Da mesma maneira, ela conta com o sustento familiar e seus rendimentos são para gastos com deslocamento, alimentação e materiais de estudo. Para ambos os jovens, a prioridade é passar no vestibular. Mobilizar-se por essa meta significa fazer concessões sobre a participação no mercado de trabalho, de modo que, mesmo quando trabalham, usufruem de uma moratória negociada com a família.

Para outros, o trabalho ganha uma centralidade ímpar, de tal maneira que, em vez de ser evitado, é perseguido. Ivan mencionou que está “loucamente” procurando trabalho, Lavínia procura emprego faz sete anos e Tales encontra-se às voltas com o desemprego que o impede de ter condições financeiras de destrancar a faculdade. Tanto para Ivan quanto para Lavínia, a maior decepção ao terminar o ensino médio não foi ser reprovado nos processos seletivos, mas sim estar desempregado. Não encontrar uma ocupação é a principal fonte de angústia e frustração. Encontrando, fica implícito nos depoimentos que sua ocupação poderia ser priorizada sobre os estudos. Na impossibilidade de harmonizar o emprego com os estudos, a escolha é pelo trabalho.

Na idade em que se encontram, e ainda com poucas qualificações, conseguir um emprego não é sinônimo de garantir alguma estabilidade (GUIMARÃES; BRITO; COMIN, 2020)GUIMARÃES, Nadya Araújo; BRITO, Murilo Marschner Alves; COMIN, Álvaro Augusto. Trajetórias e transições entre jovens brasileiros: pode a expansão eludir as desigualdades? Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 39, n. 3, p. 475-498, 2020.. Gabriel é exemplar de uma trajetória pendular. Em nossa primeira visita ao cursinho Gama, ele comparecia às aulas aos sábados e procurava emprego. Dois meses depois, quando nos reencontramos para a entrevista, já havia abandonado os estudos e trabalhava como entregador de panfletos na campanha eleitoral. Passada a eleição, voltou à posição de desempregado e permanecia fora do cursinho. É um jovem no limiar da condição conhecida como “nem-nem”4, transitando entre posições instáveis, precárias e de vínculos intermitentes. Não à toa, Gabriel procura qualquer emprego, em qualquer área, assim como aceita ingressar em qualquer curso superior, independentemente da instituição e da forma de ingresso. Curiosamente, ele disse que aceitou o trabalho de panfleteiro “só para passar o tempo”. Isso contrasta com a justificativa de Catarina para ser aplicadora de provas: “alguma coisa que não me tome tempo”. Ela trabalha para permanecer em moratória; ele trabalha e logo em seguida retorna ao desemprego.

Esses significados díspares que o trabalho adquire são explicados, antes, pela centralidade atribuída aos processos seletivos e como isso modifica suas perspectivas de vida. Quando se constrói um ofício de vestibulando dedicado ao sucesso na transição médio-superior, os estudos ganham proeminência sobre outras dimensões, de modo que ocupações, afazeres domésticos, relacionamentos e oportunidades de lazer vêm a reboque. Contudo, é preciso ter condições, apoio familiar e informação para exercer tal ofício. Quando não se tem, torna-se muito mais desafiante equilibrar essas dimensões; desafio agravado pelo desemprego e pela informalidade.

Lidar com incertezas do futuro próximo

Muitos entrevistados alegam sentir um choque de realidade após a conclusão do ensino médio relacionado à quebra de expectativas do lugar ou do não lugar, que eles passam a ocupar. Se antes eram estudantes, hoje são desempregados; se trabalham, são informais; se registrados, não se enxergam na ocupação. Desprovidos de garantias institucionais que legitimem a posição intermediária entre o ensino médio e o superior, ou entre o médio e a carreira profissional, os jovens relatam viver “no limbo”, para usar a expressão de Luciano. Mesmo o cursinho não é capaz de garantir uma legitimidade a esse não lugar: não pertence ao sistema educacional, não confere o passe livre estudantil e não tem certificado de conclusão para além da aprovação nos vestibulares. “Quem faz cursinho não é visto pela sociedade. Quando você entra, todo mundo te parabeniza. [...] Mas se ainda não entrou: ‘É vagabunda, não se esforça.’”, afirma Jussara.

Daí porque muitos dos entrevistados relatam a impressão de “estar à toa”. No caso de Jussara, o vazio que sente se explica porque, na época da entrevista, já fazia dois anos que havia concluído o ensino médio. Longe de estar inativa, a moça frequenta o cursinho Alfa pela manhã, estuda durante a tarde, usufrui de apoio familiar irrestrito e almeja o curso de medicina. De igual modo, outros jovens utilizam expressões similares para contrastar suas rotinas atarefadas com a sensação de não estar fazendo nada – um misto de estar condenado ao presente, de desperdício de tempo produtivo e de dúvidas quanto ao porvir.

Eu fiquei parada. Assim, eu fiquei sem trabalhar, porque tinha acabado o meu contrato do estágio; acabou o ensino médio. [...] Aí eu fiquei em casa. (beatriz, 20, alfa, noturno).

Eu já passei o ano inteiro, sabático, de não faculdade. Então, eu vou dar um jeito de... não sei, pelo menos, iniciar um semestre, pedir ajuda dos parentes, assim, para pagar a faculdade. (luciano, 20, alfa, vespertino).

Parece que eu estou meio que parada no tempo. Então, isso, querendo ou não, atrapalha outras áreas da sua vida. (catarina, 19, alfa, matutino).

Para interpretar esses relatos, consideramos útil retomar o conceito de presente estendido tal qual elaborado por Leccardi (2005)LECCARDI, Carmen. Para um novo significado do futuro: mudança social, jovens e tempo. Tempo Social, São Paulo, v. 17, n. 2, p. 35-57, 2005.. Em sua visão, o presente estendido refere- se ao “lapso temporal suficientemente breve para não fugir ao domínio humano e social, mas também suficientemente amplo para consentir alguma forma de projeção para além no tempo” (LECCARDI, 2005, p. 45-46)LECCARDI, Carmen. Para um novo significado do futuro: mudança social, jovens e tempo. Tempo Social, São Paulo, v. 17, n. 2, p. 35-57, 2005.. Essa noção rompe com a premissa de uma linearidade das trajetórias individuais, enfatizando que, mais do que aberto, o futuro é indeterminado e indeterminável, restando somente o presente como a única dimensão temporal disponível para a ação e a tomada de decisão. No contexto dos vestibulandos, é o conceito que melhor traduz a vivência do limbo – laços institucionais frágeis e a incapacidade de planejar o futuro demandam uma revisão constante de expectativas e planos.

Ao explorar essa dimensão entre jovens brasileiros aspirantes ao ensino superior, Leão; Dayrell e Reis (2011, p. 1.079)LEÃO, Geraldo; DAYRELL, Juarez Tarcísio; REIS, Juliana Batista. Juventude, projetos de vida e ensino médio. Educação & Sociedade, Campinas, v. 32, n. 117, p. 1.067-1.084, 2011. concluem que:

[...] os projetos de vida tendem a ser elaborados na medida da experimentação de si no contexto de um determinado campo de possibilidades, sem metas rígidas, em um processo de exploração marcado pela provisoriedade.

Daí decorrem as “trajetórias ioiô”, nos termos de Pais (2009, p. 373)PAIS, José Machado. A juventude como fase de vida: dos ritos de passagem aos ritos de impasse. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 18, n. 3, p. 371-381, 2009., quando se transita entre condições precárias e intermitentes. Em uma analogia, a carteira de trabalho está para o mercado assim como a carteirinha de estudante está para a educação. Que lugar social resta para quem não se enquadra em nenhuma dessas opções?

Uma consequência da angústia de viver no presente estendido é ter de provar – a si mesmo ou aos outros – que não se está “fazendo nada”. Joana é exemplar de que, mesmo quando se está engajado na rotina de estudos, ainda se é alvo de críticas de terceiros. Dentro de casa, repercutem rumores de vizinhos de que ela volta tarde não porque estaria frequentando o cursinho Beta, mas sim porque sairia para namorar ou usar drogas. Para a maioria dos entrevistados emergem provocações, indiretas e constrangimentos que os intimam a abandonar os planos de escolarização longeva em prol de uma inserção imediata no mercado. Essa pressão justifica-se pela posição socioeconômica que as famílias ocupam – para muitos parentes, sobretudo fora do núcleo familiar e, portanto, alheios à negociação em torno de um projeto comum, o universo do vestibular parece distante de suas realidades: “Sou a ovelha negra da família, sabe? Eu sou aquela ‘que não faz nada’, porque não trabalha; porque, tipo, ‘só’ estuda.” (Fabiana).

Além da necessidade de foco e disciplina, a fase de vestibulando demanda maturidade por parte do estudante, por ser marcada pelo não lugar da transição. Não há garantias institucionais que possam ancorar ou significar a experiência de vestibulando em algo concreto e seguro. Em consequência disso, muitos anseiam pela superação desse momento, interrompendo de vez o presente estendido e fincando-se em alguma referência palpável que dê um sinal de que a vida segue em movimento.

Opõe-se, assim, o presente estendido ao futuro planejado. Se as incertezas do futuro próximo afligem toda a juventude, os desafios são ainda maiores para os jovens de camadas populares, “uma vez que contavam com menos recursos e margens de escolhas, imersos que estavam em constrangimentos estruturais” (LEÃO; DAYRELL; REIS, 2011, p. 1.081)LEÃO, Geraldo; DAYRELL, Juarez Tarcísio; REIS, Juliana Batista. Juventude, projetos de vida e ensino médio. Educação & Sociedade, Campinas, v. 32, n. 117, p. 1.067-1.084, 2011.. Assim, não basta afirmar que o futuro não existe face às incertezas do porvir, mas, antes, pensar para quem o futuro existe ou não. Segundo Appadurai (2013)APPADURAI, Arjun (org.). The future as cultural fact: essays on the global condition. London: Verso Books, 2013., o direito ao futuro é desigualmente distribuído na sociedade, de modo que as atitudes e práticas para criar, preparar-se e administrar as possibilidades e cenários vindouros são condicionadas socialmente e têm consequências sobre a ação corrente dos indivíduos.

Alguma perspectiva de ascensão social se faz presente para atender a um chamado vocacional; para crescer profissionalmente e auferir ganhos materiais e simbólicos do diploma; para afirmar-se perante os parentes, amigos e vizinhos, entre outras conquistas. Em todos esses projetos, coloca-se o imperativo de se distanciar das necessidades imediatas para imaginar um futuro para si – há um planejamento ou, nas palavras de Alane, “uma receitinha”. Daí decorre certa ansiedade de romper com o presente estendido e abraçar o futuro planejado, no qual se deposita esperança e pelo qual se dedica o esforço. Veem-se exemplos dessa relação nos seguintes depoimentos:

Vejo a galera com a minha idade [...] já ganhando o salário, já encaminhando. Aí, de vez em quando, dá vontade, tipo, de largar de estudar. [...] É um preço que eu estou pagando agora para eu colher no futuro. Por mais que agora eles possam estar na frente, sei lá, daqui a um tempo eu vou cobrir essa diferença. (D ouGlas, 19, a lfa, matutino).

Na minha cidade tem muita gente que faz isso: trabalha, e só isso, sabe? E passeia, dá “rolê”. Aquela vida de jovem, maravilhosa, vai para balada, tudo isso. Então, às vezes, dá vontade de ficar só vivendo isso aí. [...] A gente, às vezes, dá aquele toque e fala: “Não, eu não posso ficar só nisso, eu tenho que ir mais para frente.” (J ussara, 20, a lfa, matutino).

Pensamentos como esses refletem a postura de um vestibulando disposto a pagar certos preços para obter ganhos no futuro. De fato, pelo menos nove dos vinte entrevistados tiveram a oportunidade de ingressar em algum curso ou no mercado de trabalho, mas optaram por outro caminho, havendo uma recusa em aceitar a oportunidade que lhes aparece, quando ela não os encaminhar para o futuro a que aspiram. Como se lê no relato de Fabiana: “Se fosse para ganhar dinheiro para me sustentar, eu já teria passado num concurso público [...]. Eu ia ficar numa salinha, com ar-condicionado, virada para um computador, e a minha vida ia ser um lixo”. Logo, se fosse para aceitar qualquer emprego, ou mesmo ingressar em um curso menos concorrido, já o teria feito. Quando não se aceita que o futuro seja uma mera continuidade do tempo presente, há uma aposta no amanhã condicionada por uma ruptura com a condição que se vive.

Em contraste a esses jovens que procuram se distanciar da situação em que se encontram, existem entrevistados que parecem mais resignados às oportunidades que o presente lhes apresenta. Para jovens como André, Ivan, Gabriel e Lavínia, a prioridade é garantir um sustento, seja ele qual for e por qualquer meio, de modo que o vestibular é uma entre outras alternativas. O importante é estar atento a essas oportunidades e saber “correr atrás”, como frequentemente se ouviu. Como já destacado anteriormente, não é claro, na fala de Ivan, qual é sua prioridade: ora arranjar um emprego, ora passar no vestibular. Com Lavínia, acontece o mesmo. Gabriel não hesitou em indicar que estaria disposto a qualquer ocupação que conseguisse, bem como aceitaria qualquer curso, em qualquer instituição, independentemente da forma de ingresso, “o que vier primeiro”. Nossa impressão é a de que a possibilidade de planejar um futuro – o direito a aspirar – é um privilégio de quem pode se distanciar das necessidades imediatas, dedicando-se à construção do ofício de vestibulando. Em contrapartida, jovens que vivem no corre e atrás das oportunidades são aqueles que habitam um tempo sem futuro.

Conclusão

Esta pesquisa baseou-se na vivência de vinte jovens do Distrito Federal, em sua maioria frequentadores de cursinhos populares, que compõem uma primeira geração de estudantes que alcança – ou luta para alcançar – os bancos universitários. São moças e rapazes que representam a elevação da escolaridade média populacional e o aumento da demanda pelo ensino universitário. Foram diplomados em um ensino médio massificado com gradativa regularização dos fluxos de progressão e conclusão. Vivenciam o crescimento da oferta de graduação, a adoção de políticas de ação afirmativa, a expansão dos programas de assistência social e a predominância do setor terciário na economia, ao mesmo tempo em que percebem o desemprego da crise recente, a desvalorização dos diplomas de nível superior e as ameaças iminentes à continuidade de medidas inclusivas. Por excelência, os jovens são o maior termômetro de seu tempo, parafraseando Leccardi (2005, p. 45)LECCARDI, Carmen. Para um novo significado do futuro: mudança social, jovens e tempo. Tempo Social, São Paulo, v. 17, n. 2, p. 35-57, 2005., e o tempo que temos vivido no Brasil de 2015 em diante é, para além de complexo, revelador das disputas em torno do presente e do futuro dessa juventude. Compreender como a nova geração de vestibulandos tem interpretado essas tensões é o pano de fundo deste trabalho.

O pontapé inicial são os depoimentos dos jovens entrevistados de que a maioria deles acreditava estar bem preparada tanto para acessar uma universidade pública quanto para ingressar no mercado de trabalho. Interpretamos esse fenômeno como um desajuste entre o ofício de aluno que construíram ao longo de sua escolarização básica para muitos deles, marcada por reprovações, abandonos e/ou baixo desempenho – e o que chamamos de ofício de vestibulando. Propomos que esse conceito seja entendido como um conjunto de práticas e representações estruturadas socialmente no processo de preparação para o vestibular, que, por sua vez, funcionam como princípios de estruturação de novas práticas e representações em torno da aprovação naquele. Para ser vestibulando, o indivíduo não precisa estar vinculado a nenhuma instituição, diferentemente do ofício de aluno tradicionalmente abordado na sociologia francesa, o qual pressupõe um processo de afiliação institucional (CHARLOT, 2000;CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000. COULON, 2008;COULON, Alain. A condição de estudante: a entrada na vida universitária. Salvador: UFBA, 2008. PERRENOUD, 1995)PERRENOUD, Philippe. Ofício de aluno e sentido do trabalho escolar. Porto: Porto Editora, 1995.. Basta que tenha como objetivo ser aprovado nos processos seletivos e estar, em alguma medida, mobilizado em torno dessa meta.

Identificamos nos depoimentos dos jovens quatro elementos que marcam a experiência de vestibulando: engajar-se em uma rotina de estudo, conhecer as regras do jogo, negociar um projeto familiar e lidar com as incertezas do futuro próximo. Em alguma medida, todos os entrevistados habitavam um não lugar da transição médio- superior e orbitavam em torno das possibilidades e desafios para construir um ofício de vestibulando. Entre aqueles que se dedicavam integralmente a tal ofício, impondo, assim, concessões sobre outras dimensões da vida, há mobilização em torno de uma meta e aspirações com maior grau de ambição: não se contentavam com fazer uma faculdade, pois escolhiam a dedo os cursos e instituições a que se candidatariam, chegando ao ponto de recusar determinadas opções caso não atendessem seus anseios pessoais. De outro lado, para aqueles que não colocavam o vestibular no centro de suas vidas, ainda que estivessem matriculados em cursinhos populares, o mais importante era encontrar formas de sustento no curto prazo e, para tanto, saber aproveitar as oportunidades – frequentar qualquer curso em qualquer instituição, obter qualquer posto de trabalho em qualquer empresa. Impossibilitados de pensar o futuro, esses jovens se viam obrigados a “correr atrás” e, assim, viam-se presos em um presente estendido.

Entendemos essas tensões como uma consequência da extensão do direito à educação superior a novos estratos sociais e, consequentemente, a produção de novas maneiras de entender o vestibular e de moldar suas perspectivas de vida perante ele.

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  • SOUZA, Pedro Herculano Guimarães Ferreira; MEDEIROS, Marcelo. Diferencial salarial público-privado e desigualdade de renda per capita no Brasil. Estudos Econômicos, São Paulo, v. 43, n. 1, p. 5-28, 2013.
  • TARÁBOLA, Felipe de Souza. Aspirantes: desafios de estudantes da USP egressos de escolas públicas no contexto do novo tensionamento político-social brasileiro. 2016. 424 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.
  • VARGAS, Hustana Maria; PAULA, Maria de Fátima Costa. A inclusão do estudante-trabalhador e do trabalhador-estudante na educação superior: desafio público a ser enfrentado. Avaliação, Campinas, v. 18, n. 2, p. 459-485, 2013.
  • WELLER, Wivian; PFAFF, Nicolle. Transições entre o meio social de origem e o milieu acadêmico: discrepâncias no percurso de estudantes oriundas de escolas públicas na Universidade de Brasília. Estudos de Sociologia, Recife, v. 2, n. 18, p. 1-16, 2012.
  • 3
    Na França, as expressões métier d’élève e métier d’etudiant – cujas respectivas traduções são ofício de aluno e ofício de estudante –, referem-se aos estudantes de educação básica e superior, respectivamente. Neste texto, usamos as duas traduções de forma intercambiável.
  • 4
    Todos os nomes de instituições e sujeitos são fictícios para fins de preservação de sigilo.
  • 5
    Três jovens foram indicados por outros entrevistados – seguindo a tática da bola de neve – e não frequentavam cursinhos, tampouco responderam ao questionário.
  • 6
    Expressão que se refere a jovens que se encontram fora da escola e do mercado de trabalho, e que não participam de nenhum programa de treinamento para o trabalho (SIMÕES, 2013)SIMÕES, Armando Amorim. Os jovens que não estudam nem trabalham no Brasil: uma análise do perfil, determinantes da condição e efeitos do Programa Bolsa Família. Revista Brasileira de Monitoramento e Avaliação, Rio de Janeiro, n. 6, p. 51-79, 2013.. Estimamos, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua 2018 (IBGE, 2018)IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD-C): microdados. [Rio de Janeiro: IBGE, 2018]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html?=&t=microdados. Acesso em: 20 ago. 2021.
    https://www.ibge.gov.br/estatisticas/soc...
    , que essa condição ocorre em 27% da população de 18 a 24 anos no DF.

Editora:

Profa. Dra. Fernanda Müller

Adriano Souza Senkevics

é pesquisador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e professor colaborador do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da Universidade de Brasília (CEAM-UnB).

Marília Pinto de Carvalho

é professora associada sênior na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP) e cocoordenadora do Grupo de Estudos de Gênero, Educação e Cultura Sexual (EdGES).

Disponibilidade de dados

Citações de dados

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD-C): microdados. [Rio de Janeiro: IBGE, 2018]. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html?=&t=microdados. Acesso em: 20 ago. 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2022
  • Revisado
    19 Abr 2022
  • Aceito
    10 Maio 2022
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