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Cadê a minha cidade, ou o impacto da tragédia da Samarco na vida dos moradores de Bento Rodrigues

Where is my city, or the impact of Samarco's tragedy in the lives of Bento Rodrigues's residents

Où est ma ville, ou l'impact de la tragédie de Samarco sur la vie des résidents de Bento Rodrigues

Dónde está mi ciudad, o el impacto de la tragedia de Samarco en la vida de los habitantes de Bento Rodrigues

Resumo:

Este trabalho aborda aspectos ligados à desterritorialização dos habitantes de Bento Rodrigues, povoado que desapareceu do mapa após o rompimento da barragem do Fundão, da mineradora Samarco, em Mariana, Minas Gerais, Brasil. Para amparar o estudo, foram utilizadas reflexões de Cancline, Haesbaert, Lefebvre, dentre outros e, ainda, reportagens e documentos oficiais. As conclusões são que tal tragédia tem implicações imensuráveis quando analisadas sob a ótica subjetiva dos moradores que perderam suas casas, seus entes queridos e seus bens culturais.

Palavras-chave:
desastre de Mariana; meio ambiente; território; reterritorialização

Abstract:

This work covers aspects linked to the deterritorialization of Bento Rodrigues, a town that disappeared from the map after the breaking of the Fundão dam, from the mining company Samarco in Mariana, Minas Gerais, Brasil. To support the study, we used reflections from Nestor Cancline, Haesbaert, Lefebvre, among others, and also reports and official documents. The conclusions are that such a tragedy has immeasurable implications when analyzed under the subjective perspective of the residents who lost their homes, their loved ones and their cultural assets.

Key words:
Mariana disaster; environment; territory; reterritorialization

Résumé:

Cet article discute les aspects liés avec la dépossession des habitants de Bento Rodrigues, un village qui a disparu de la carte après la rupture de la barrage de Fundão, de l'exploitation minière Samarco, Mariana, Minas Gerais, Brasil. Pour soutenir l'étude, on utilise les réflexions de Nestor Cancline, Rogério Haesbaert, Henri Lefebvre, entre autres, et aussi des rapports et documents officiels. Les conclusions sont qu'une telle tragédie est des conséquences incommensurables quand on l'analyse du point de vue subjectif des résidents qui ont perdu leurs maisons, leurs biens aimés et culturels.

Mots-clés:
Mariana catastrophe; environnement; territoire; territorialisation

Resumen:

Esta obra cubre los aspectos conectados con la desterritorialización de Bento Rodrigues, ciudad que desapareció del mapa después de la ruptura de la represa de Fundão, propiedad de la minería Samarco, en Mariana, Minas Gerais, Brasil. Para apoyar el estudio, utiliza las reflexiones de Cancline, Haesbaert, Lefebvre, dentre otros, y también los informes y documentos oficiales. Las conclusiones son que esta tragedia tiene inconmensurables consecuencias cuando se analiza bajo la perspectiva subjetiva de los residentes que perdieron sus hogares, sus seres queridos y sus bienes culturales.

Palabras clave:
desastre de Mariana; medio ambiente; territorio; reterritorialización

1 INTRODUÇÃO

Como observa Nestor Canclini (1994)CANCLINI, Nestor Garcia. O patrimônio cultural e a construção imaginária do nacionalismo. Revista do Patrimônio Histórico Artístico e Nacional, Rio de Janeiro, n. 23, p. 91-115, 1994., até meados do século XX, a cidade era vista como oposto do campo, ou formada por um grupo denso de pessoas socialmente heterogêneas. Mas, nas últimas décadas, essa concepção foi mudando e passou a incluir também a caracterização do urbano, que passa a levar em conta aspectos culturais e simbólicos dos que o habitam.

Para Allucci (2014)ALLUCCI, Renata Rendelucci. Consumir as cidades históricas. In: CONGRESSO INTERNACIONAL COMUNICAÇÃO E CONSUMO, 4., São Paulo, 2014. Anais... Disponível em: <http://www.espm.br/download/Anais_Comunicon_2014/gts/gt_sete/GT07_RENATA_ALLUCCI.pdf>. Acesso em: 28 jul. 2016.
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e também outros autores, a materialidade da cidade revela tempo, espaço, memórias e identidades, experiências individuais e coletivas revelando simbologias na busca de suas singularidades e representações.

O presente trabalho buscou debater alguns aspectos abordados por Allucci (2014)ALLUCCI, Renata Rendelucci. Consumir as cidades históricas. In: CONGRESSO INTERNACIONAL COMUNICAÇÃO E CONSUMO, 4., São Paulo, 2014. Anais... Disponível em: <http://www.espm.br/download/Anais_Comunicon_2014/gts/gt_sete/GT07_RENATA_ALLUCCI.pdf>. Acesso em: 28 jul. 2016.
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, no que tange ao urbano e suas representações, em face do acontecido aos moradores de Bento Rodrigues, distrito da cidade de Mariana, Minas Gerais, após o desastre socioambiental da barragem de Fundão que destruiu o distrito, matou várias pessoas e poluiu a bacia do Rio Doce. O fato é que, depois da tragédia, os habitantes de tal povoado perderam as suas casas e a sua cidade e, por que não dizer, parte significativa de suas referências de construção coletiva.

Bento Rodrigues é (foi) um distrito que, de acordo com Relatório: Avaliação dos Efeitos e Desdobramentos do Rompimento da Barragem de Fundão em Mariana-MG (2016), contava com 200 casas e 620 habitantes, mas, a partir de 5 de novembro de 2015, a localidade deixou de existir, em razão do desastre.

Para organizar a discussão no presente estudo, inicialmente, será feita uma abordagem relativa à localização geográfica e área de exploração da Samarco, assim como suas atividades econômicas. Em seguida, por meio do olhar de diferentes autores, serão discutidas noções de território, cidade e urbano, identificando aspectos inseridos nesses conceitos que ajudem a pensar a situação dos moradores da localidade devastada. E, por fim, serão avaliados os impactos do desastre ambiental nas relações socioculturais do novo Bento Rodrigues, à luz do conceito de reterritorialização.

2 A SAMARCO, O POVOADO E A TRAGÉDIA

Dados do portal da SAMARCO (s.d.) informam que tal empresa foi fundada em 1977 e é controlada em partes iguais por dois acionistas, BHP Billiton Brasil e a Vale S.A. Seu principal produto são pelotas de minérios de ferro comercializadas para as diversas indústrias siderúrgicas do mundo.

Suas principais instalações estão na unidade de Germano, em Minas Gerais, compostas pelas barragens Germano, Fundão e Santarém. A empresa conta ainda com quatro usinas de pelotização na unidade de Ubu, no município de Anchieta, no Espírito Santo, as quais são interligadas por três minerodutos, com quase 400 quilômetros de extensão cada um, e um terminal marítimo próprio, por onde escoam toda a produção para 19 países das Américas, Oriente Médio, Ásia e Europa.

Diante da tragédia acontecida em 5 de novembro de 2015, faz-se necessário pensar acerca do processo de industrialização, seus interesses e beneficiados. Como diz Lefebvre (2001)LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2001., a industrialização é o motor das transformações na sociedade, onde se identificam os indutores e o induzido: o processo de industrialização é o indutor. Já os induzidos são os "problemas relativos ao crescimento e à planificação, as questões referentes às cidades e ao desenvolvimento da realidade urbana" (LEFEBVRE, 2001LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2001., p. 11).

A Samarco é uma empresa indutora, que explora a região de Germano em Mariana, há cerca de 40 anos e, entre 2010 e 2014, lucrou R$ 13,3 bilhões, sendo o lucro isolado do ano de 2014 de R$ 2,8 bilhões, segundo dados da própria empresa publicados em seu portal na internet3 3 Relatório da Administração e demonstração financeiras em 31 de dezembro de 2014. Desenvolvida pela Samarco. .

Entre 2011 a 2015, a Samarco recebeu diversas premiações, como a da revista Exame como "melhor mineradora e a segunda maior mineradora", recebeu o prêmio Líder Empresarial, o Prêmio Green Mine, Empresa Verde, e é considerada uma das 150 melhores empresas para se trabalhar no Brasil, segundo o Guia Você S.A (SAMARCO, s.d.SAMARCO. [s.d.]. Disponível em: <http://www.samarco.com/institucional/a-empresa/>. Acesso em: 20 jul. 2016.
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)

Entre 2014 e 2015, a produção aumentou 15% e chegou a 25 milhões de toneladas de minério de ferro, totalizando 22 milhões de toneladas de rejeitos que são armazenados nas barragens. A meta da VALE e da BHP, de acordo com dados do portal da SAMARCO (s.d.), era atingir 35 milhões de toneladas até o fim de 2016.

Em 2013, o grupo chamado Instituto Pristino composto por professores da Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, a pedido do Ministério Público, produziu um estudo sobre as barragens de Germano e Fundão em Minas Gerais, uma vez que, já naquele momento, se mostravam especialmente perigosas. Mas a Samarco alega nunca ter recebido o estudo, e, no mesmo ano, uma "auditoria independente" foi contratada para um novo estudo que mostrou que as barragens estavam estáveis. Diante de tal constatação, a licença foi renovada e em vez de construir uma nova barragem de contenção, a Samarco "reforçou" as existentes (ROCHA, 2015ROLNIK, Raquel. História urbana: história na cidade? In: SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO, 1993. Anais... São Paulo, 1993. v. 2, p. 27-29.).

Consequentemente no final da tarde do dia 5 de novembro de 2015, a contenção da barragem do Fundão apresentou um vazamento, momento em que as equipes terceirizadas estavam no local devido ao processo de alteamento, que ocorre quando a barragem já chega ao seu ponto limite de reservatório de despejos dos dejetos da mineração. A medida tomada foi tentar amenizar o vazamento com o procedimento de esvaziar parte da barragem, mas, por volta das 16h20min, a barragem sucumbiu e houve o rompimento, lançando os rejeitos provenientes da extração do minério de ferro retirados das minas na região (D'AGOSTINO, 2015D'AGOSTINO, Rosanne. Rompimento de barragem em Mariana: perguntas e respostas. G1 SP, São Paulo, nov. 2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2015/11/rompimento-de-barragens-em-mariana-perguntas-e-respostas.html>. Acesso em: 26 jul. 2016.
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).

Em um primeiro momento, as informações dadas pelos telejornais e pela própria empresa Samarco era de que haviam se rompido duas barragens, a de Fundão e a de Santarém, porém, no dia 16 de novembro de 2015, a Samarco retificou a informação, afirmando que somente a barragem do Fundão se rompeu e que a lama de rejeitos passou por cima da barragem de Santarém, que não se rompeu (D'AGOSTINO, 2015D'AGOSTINO, Rosanne. Rompimento de barragem em Mariana: perguntas e respostas. G1 SP, São Paulo, nov. 2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2015/11/rompimento-de-barragens-em-mariana-perguntas-e-respostas.html>. Acesso em: 26 jul. 2016.
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).

O distrito de Bento Ribeiro, que se localizava em torno de 2,5 quilômetros da barragem, foi atingido pela enxurrada de lama, que matou várias pessoas e desabrigou todas as outras. Apesar de estar em um terreno abaixo e na direção da represa, Bento Rodrigues não possuía um plano de contingência nem rotas de fugas que permitissem aos moradores se deslocarem a tempo para regiões seguras.

Como relatado por Freitas (2016)FREITAS, Raquel. Terreno onde será construído novo Bento Rodrigues é definido. G1 MG, Minas Gerais, maio 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/minas-gerais/desastre-ambiental-em-mariana/noticia/2016/05/terreno-onde-sera-construido-novo-bento-rodrigues-e-definido.html>. Acesso em: 23 jul. 2016.
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no G1 Globo, nas imagens feitas por satélite, a rua principal de Bento Rodrigues, um dos principais acessos à cidade, ficou debaixo de 15 metros de altura de rejeitos e, em trechos da rua, todas as casas foram destruídas, em torno de 20%4 4 Reportagem do G1, Minas Gerais, com informações do Jornal Hoje. Veja casas, escola e igreja de Bento Rodrigues antes e depois da lama. ficaram de pé, mas suas estruturas ficaram, de acordo com o Corpo de Bombeiro, abaladas. Além das casas, na rua principal havia uma Policlínica, a escola municipal, um prédio grande com muros e estabelecimentos comerciais, e agora só restam paredes sujas e tingidas pela cor da lama. Nessa mesma rua principal, mais adiante, restaram os primeiros degraus de uma escada de madeira e parte da pia batismal da Igreja de São Bento, um patrimônio sacro do século XVII (FREITAS, 2016FREITAS, Raquel. Terreno onde será construído novo Bento Rodrigues é definido. G1 MG, Minas Gerais, maio 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/minas-gerais/desastre-ambiental-em-mariana/noticia/2016/05/terreno-onde-sera-construido-novo-bento-rodrigues-e-definido.html>. Acesso em: 23 jul. 2016.
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).

Além de Bento Rodrigues ser enterrada pela lama, a maior tragédia socioambiental da história brasileira, e a maior do mundo, envolvendo barragens de rejeitos não parou. Todo o material acumulado foi lançado ao Rio Doce, com 86.715km de área de drenagem, sendo 86% em Minas Gerais e o restante no Espírito Santo, ou seja, atingindo em torno de 230 municípios que utilizam diretamente o leito como subsistência.

Toda a lama da barragem ganhou força com a correnteza do Rio Doce e se pôde acompanhar toda a destruição pelos telejornais nacionais e internacionais. Algumas cidades, conforme Baeta (2015)BAETA, Juliana. Contaminação do rio Doce ameaça vida marinha no Espírito Santo. O Tempo, Minas Gerais, nov. 2015. Disponível em: <http://www.otempo.com.br/cmlink/hotsites/mar-de-lama/contamina%C3%A7%C3%A3o-do-rio-doce-amea%C3%A7a-vida-marinha-no-esp%C3%ADrito-santo-1.1161772>. Acesso em: 28 jul. 2016.
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, como Governador Valadares, em 9 de novembro, interrompeu a captação de água, e o exército brasileiro montou pontos de distribuição de água fornecida pela Samarco na cidade. No dia 16 de novembro, a lama chegou a Baixo Guandu e, no dia 22, chegou ao mar, no norte do Espírito Santo, interditando as praias de Regência e Povoação em Linhares, por mais de 15 km ao norte e a 7 km ao sul da foz do Rio Doce, a lama se alastrou atingindo também a Reserva Biológica de Comboios, o único ponto regular de desova de tartaruga-de-couro na costa brasileira (BAETA, 2015BAETA, Juliana. Contaminação do rio Doce ameaça vida marinha no Espírito Santo. O Tempo, Minas Gerais, nov. 2015. Disponível em: <http://www.otempo.com.br/cmlink/hotsites/mar-de-lama/contamina%C3%A7%C3%A3o-do-rio-doce-amea%C3%A7a-vida-marinha-no-esp%C3%ADrito-santo-1.1161772>. Acesso em: 28 jul. 2016.
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).

No relatório realizado pela Força Tarefa, criada pelo governo de Minas, após a tragédia, há a mensuração das perdas materiais dos moradores de Bento Rodrigues: "Vale lembrar que Bento Rodrigues é um pequeno distrito, de aproximadamente 600 habitantes [...] suas empresas, certamente foram afetadas e representam impactos na forma direta de subsistência de seus administradores". Mais adiante: "Como o distrito de Bento Rodrigues foi completamente afetado deverá haver uma recolocação das famílias, será necessário, no âmbito dessa recolocação, planejar a retomada das atividades desses empresários". E detalha: "Mais especificamente, com relação à produção de geleia biquinho, essa é administrada pela Associação dos Hortigranjeiros de Bento Rodrigues" (MINAS GERAIS, 2016, p. 35).

Acresce a tudo isso que Mariana é uma das cidades brasileiras tombadas em virtude de seus belos conjuntos arquitetônicos e urbanísticos e, por ser exemplo da arquitetura colonial mineira, compreendida como origem da arquitetura brasileira. Após a tragédia em Bento Rodrigues, a situação do turismo na cidade de Mariana, que não estava bem, por causa da crise, passa a ter mais dificuldade de alavancar. "Falam da lama em Mariana e não da lama em Bento Rodrigues", questiona um vereador, durante sessão na Câmara Municipal, ressaltando que a tragédia aconteceu a 20 quilômetros do Centro Histórico (CÂMARA..., 2016CÂMARA DEBATE CENÁRIO do turismo em Mariana. Jornal Ponto Final online, 18 fev. 2016. Disponível em: <http://jornalpontofinalonline.com.br/noticia/5301/camara-debate-cenario-do-turismo-em-mariana>. Acesso em: 26 jul. 2016.
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).

Nesse contexto, a falta de informação em relação ao local atingido pelo rompimento da barragem afetou e está afetando diretamente o turismo de Mariana, uma vez que optar por fazer uma viagem está intimamente relacionado à expectativa de segurança e conforto no local de destino. A reação negativa de visitantes e turistas é potencializada pela demora nas ações de comunicações por parte de fontes confiáveis, pois, oficialmente, houve poucos esclarecimentos quanto ao ocorrido, o que demonstra descuido com a imagem da cidade histórica de Mariana. Por meio das reportagens, percebe-se que esse não é o único entrave para o desenvolvimento do turismo local, pois questões essenciais como saneamento básico são precárias na cidade, que tem, em suas adjacências, as empresas mais lucrativas do Brasil.

3 O TERRITÓRIO A AS RELAÇÕES HUMANAS

Como já afirmado por Alluci (2014)ALLUCCI, Renata Rendelucci. Consumir as cidades históricas. In: CONGRESSO INTERNACIONAL COMUNICAÇÃO E CONSUMO, 4., São Paulo, 2014. Anais... Disponível em: <http://www.espm.br/download/Anais_Comunicon_2014/gts/gt_sete/GT07_RENATA_ALLUCCI.pdf>. Acesso em: 28 jul. 2016.
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, o território é definido de forma muito mais ampla que apenas um espaço geográfico, pois ele é construído através das relações sociais. Também Rolnik (1993)ROLNIK, Raquel. História urbana: história na cidade? In: SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO, 1993. Anais... São Paulo, 1993. v. 2, p. 27-29. mostra que ocorre uma relação de exterioridade do sujeito e o espaço criando uma relação particular com a subjetividade quando se fala em território. Ela complementa a explicação acrescentando ao conceito que não há territórios sem sujeitos, mas que o espaço pode ser derivado da necessidade deles. Para os urbanistas o espaço geográfico é um espaço; mas apenas o espaço real vivido é considerado um território.

Logo, as cidades não existem só como ocupação de um território, construção de edifícios e de interações materiais entre seus habitantes. O sentido e o sem sentido do urbano se formam, entretanto, quando o imaginam os livros, as revistas e o cinema; pela informação que dão a cada dia os jornais, o rádio e a televisão sobre o que acontece nas ruas. "Não atuamos na cidade só pela orientação que nos dão os mapas ou o GPS, mas também pelas cartografias mentais e emocionais que variam segundo os modos pessoais de experimentar as interações sociais" (CANCLINI, 1994CANCLINI, Nestor Garcia. O patrimônio cultural e a construção imaginária do nacionalismo. Revista do Patrimônio Histórico Artístico e Nacional, Rio de Janeiro, n. 23, p. 91-115, 1994., p. 15).

Existem diferentes elementos que dão sentido a uma cidade. Destes se podem destacar os visuais, sonoros, arquitetônicos e culturais. São eles que traçam características heterogêneas nas cidades diferenciando os grupos sociais que a habitam e leituras diferentes de uma cidade para a outra. Essas diferenças possibilitam a conceituação da chamada identidade, produzindo uma imagem exclusiva, fruto de uma cultura própria e particular que leva em consideração manifestações culturais e os aspectos pitorescos de cada lugar.

Dessa forma, percebe-se que não é possível estabelecer uma única definição de cidade, nem sequer mensurar quais são suas representações simbólicas e particulares, pois para cada cidadão de um dado lugar cada esquina lhe traz uma lembrança ou um sentimento que variam a partir de suas interações sociais. "A cidade é redundante: repete-se para fixar alguma imagem na mente. A memória é redundante: repete os símbolos para que a cidade comece a existir" (CALVINO, 1972CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1972., p. 23).

Assim como Zora, descrita por Marco Polo em suas viagens diplomáticas no livro Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, nota-se que a descrição se assemelha muito da realidade vivida pelos moradores de Bento Rodrigues, pequena cidade que, a partir de 5 de novembro de 2015, foi devastada em razão do rompimento da barragem de rejeitos de mineração de ferro da Samarco Mineração S.A. Abaixo, a descrição da cidade ficcional de Calvino (1972, p. 9-10)CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1972.:

Zora, cidade que quem viu uma vez nunca mais consegue esquecer. Mas não porque deixe, como outras cidades memoráveis, uma imagem extraordinária nas recordações. [...]. Entre cada noção e cada ponto do itinerário pode-se estabelecer uma relação de afinidades ou de contrastes que sirva de evocação à memória. De modo que os homens mais sábios do mundo são os que conhecem Zora de cor. [...] Mas foi inútil a minha viagem para visitar a cidade: obrigada a permanecer imóvel e imutável para facilitar a memorização, Zora definhou, desfez-se e sumiu. Foi esquecida pelo mundo.

Ao pensar na relação dos moradores de Bento Rodrigues com a sua ex-cidade, percebe-se que ela fica perdida no espaço atemporal da tragédia, como Zora, que definhou, desfez-se e sumiu. O desastre será eternamente lembrado na mente de quem vivenciou o momento do rompimento da barragem e no de re-virar a lama, atrás de qualquer memória, seja na busca de documentos, fotos de família, seja na busca de qualquer pertence, pois o que se procura nesse momento é o resgate da identidade perdida.

Também sobre a cidade devastada e a tragédia de Mariana, como também ficou conhecida, Gabriel O Pensador e Tato (2016)PENSADOR, Gabriel O; TATO. Cacimba de Mágoa Intérpretes: Gabriel O Pensador e Falamansa. 2016. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/gabriel-pensador/cacimba-de-magoa/>. Acesso em: 19 jul. 2016.
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compuseram uma canção (letra e música) sobre o desastre. A canção "Cacimba da Mágoa" chama atenção sobre a destruição do Rio Doce e o impacto na vida da população da região, retratando a dor, o sofrimento e as perdas vividas pelos seus moradores.

O sertão vai virar mar | E o mar virando lama | Gosto amargo do rio Doce | De Regência a Mariana | Mariana, Marina, Maria, Márcia, Mercedes, Marília Quantas famílias com sede, quantas panelas vazias? | Quantos pescadores sem redes e sem canoas? | [...] Quantas pessoas sem nome, quantas pessoas sem voz? | Adriano, Diego, Pedro, Marcelo, José | Aquele corpo é de quem, aquele corpo quem é? | É do Tiao, é do Léo, é do Joao, é de quem? | É mais um joao-ninguém, é mais um morto qualquer | Morreu debaixo da lama, morreu debaixo do trem? | Ele era filho de alguém e tinha filho e mulher?

Após seis meses de tragédia, os moradores de Bento Rodrigues, abrigados provisoriamente em pousadas na cidade de Mariana, ou em imóveis alugados (eles recebem auxílio da empresa Samarco) estão aguardando a reconstrução de uma nova área para eles viverem. Foram até chamados a votar em uma das áreas, entre três opções de terrenos, para a construção de sua nova cidade, o novo Bento Rodrigues. O primeiro, nomeado como Carabina, com 140 hectares, o que equivale a 1.400.000 m², localizado a 2 Km da cidade de Mariana, o segundo é Lavouras, com 350 hectares, o que equivale 3.500.00m² e está a 9 Km de Mariana e o terceiro e último, em Bica com 280 hectares, que equivale a 2.800.00m² e está a 20 Km de distância de Mariana (FREITAS, 2016FREITAS, Raquel. Terreno onde será construído novo Bento Rodrigues é definido. G1 MG, Minas Gerais, maio 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/minas-gerais/desastre-ambiental-em-mariana/noticia/2016/05/terreno-onde-sera-construido-novo-bento-rodrigues-e-definido.html>. Acesso em: 23 jul. 2016.
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).

O mais votado pelos moradores foi o terreno de Lavouras, denominado Lavradio, que pertencia à empresa ArcelorMittal, e que foi vendido para a Samarco para construção/reconstrução da cidade. Entre as qualidades do espaço estão a qualidade da água e do solo, bem como a distância da cidade de Mariana.

Com a construção de uma nova cidade, há a esperança da reconstrução dos sonhos interrompidos ou enterrados junto ao depósito de resíduos de ferro que hoje cobrem a cidade destruída. Para entender a complexidade da reterritorialização dos moradores de Bento Rodrigues, antes, faz-se necessário entender alguns conceitos sobre território, territorialidade e multiterritorialidade.

Segundo Haesbaert (2004)HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do "fim dos territórios" a multi-territorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004., a multiterritorialidade surge como um conceito de um processo chamado por muitos como desterritorialização. Isso ocorre por meio da perda ou destruição dos territórios, com novos processos de territorialização. A partir desse contexto, Haesbaert reconhece a desterritorialização como "mito". Ele acredita que a desterritorialização seja um processo indissociável de movimentos de (re)territorialização. Por seu turno, Deleuze e Guattari (1996, p. 40-1)DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. v. 2. afirmam que não se deve confundir a reterritorialização com o retorno a uma territorialidade primitiva ou mais antiga: ela implica necessariamente um conjunto de artifícios pelos quais um elemento, ele mesmo desterritorializado, serve de territorialidade nova ao outro que também perdeu a sua.

Como observa Haesbaert (1994)______. Des-territorialização e identidade: a rede "gaúcha" no Nordeste. Niterói, RJ: EdUFF, 1994., não existe desterritorialização sem reterritorialização, pois o homem é um animal territorializador. Por outro lado, é na dimensão mais propriamente social da desterritorialização, tão pouco enfatizada, que o termo teria melhor aplicação, pois quem de fato perde o controle ou segurança sobre/em seus territórios "são os mais destituídos, aqueles que se encontram mais desterritorializados ou, em termos mais rigorosos, mais precariamente territorializados" (HAESBAERT, 1994______. Des-territorialização e identidade: a rede "gaúcha" no Nordeste. Niterói, RJ: EdUFF, 1994., p. 214, grifos nossos).

Como se pode depreender a partir dos conceitos, os moradores de Bento Rodrigues vivenciam um processo de reterritorialização, uma vez que não há retorno ao lugar de origem, que, mesmo não sendo tão distante, será iniciado do zero, porque os moradores perderam todos os pertences. Será construída uma nova materialidade, perpassada, obviamente, por sentimentos de novas raízes, mesmo que embasadas em um passado interrompido pela destruição. Mas tal processo, apesar de doloroso, precisa ser vivido, pois é a solução mais plausível para a retomada da vida, na busca de um novo território para chamar de seu e de novos elementos naturais e construídos para simbolizar.

Assim como Maurília, cidade descrita por Marco Polo em suas viagens diplomáticas no livro Cidades Invisíveis de Ítalo Calvino, deixa de ser um conceito geográfico para se tornar o símbolo complexo e inesgotável da existência humana.

Em Maurília, o viajante é convidado a visitar a cidade ao mesmo tempo em que observa uns velhos cartões-postais ilustrados que mostram como esta havia sido: a praça idêntica, mas com uma galinha no lugar da estação de ônibus, o coreto no lugar do viaduto, duas moças com sombrinhas brancas no lugar da fábrica de explosivos. Para não decepcionar os habitantes, é necessário que o viajante louve a cidade dos cartões-postais [...] Às vezes, os nomes dos habitantes parecem iguais, e o sotaque das vozes, e até mesmo os traços dos rostos; mas os deuses que vivem com os nomes e nos solos foram embora sem avisar e em seus lugares acomodaram-se deuses estranhos. É inútil querer saber se estes são melhores do que os antigos, dado que não existe nenhuma relação entre eles, da mesma forma que os velhos cartões-postais não representam a Maurília do passado, mas uma outra cidade que por acaso também se chamava Maurília. (CALVINO, 1972CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1972., p. 30-1).

Como diz Lefebvre (2001, p. 106)LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2001., as necessidades sociais "têm um fundamento antropológico, opostas e complementares. Compreendem a necessidade de segurança e a de abertura, a necessidade de certeza e a necessidade de aventura, a de organização do trabalho e a do jogo". E acrescenta que a "essas necessidades antropológicas, socialmente elaboradas, adicionam-se necessidades específicas, que não satisfazem os equipamentos comerciais e culturais, pois se trata da necessidade de informação, de simbolismo, de imaginário" (LEFEBVRE, 2001LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2001.). Os moradores da nova Bento Rodrigues terão de construir subjetivamente a suas paisagens interiores, que estão para além dos equipamentos instalados pela Samarco e, assim, dar vida e cor ao seu novo território.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A noção de territorialidade transcende os espaços materialmente construídos e geograficamente delimitados, ela existe por meio das relações sociais paulatinamente construídas ao longo do tempo.

Igualmente, o entendimento do urbano vem sofrendo alterações, migrando da mera relação campo/cidade para o conjunto de relações, memórias e representações que geram experiências individuais e coletivas únicas.

Nesse contexto, infere-se que o desastre socioambiental provocado pela Samarco tem implicações maiores do que as noticiadas, especialmente quando analisadas sob a ótica antropológica, uma vez que se destruíram heranças, memórias e tradições que auxiliaram na construção da noção de territorialidade daquelas pessoas e, consequentemente, em suas identidades.

Sobre a construção da chamada "Nova Bento Rodrigues", há de se pensar que, mesmo o homem sendo "um animal territorializador" (HAESBAERT, 1994______. Des-territorialização e identidade: a rede "gaúcha" no Nordeste. Niterói, RJ: EdUFF, 1994., p. 214), não necessariamente isso implicará a aceitação imediata da nova localidade pela população, que perdeu as suas casas, mas também a igreja, o cemitério, a escola a clínica, entre outros equipamentos simbólicos. Assim, é necessário pensar antecipadamente em estratégias que possibilitem a adaptação ao novo espaço geográfico, de modo que se estabeleçam as novas relações de pertencimento.

O desastre ambiental, pelo prisma da subjetividade humana e suas representações, configurou-se em um exercício incomum e instigante de análise entre as relações sociais e o território. Esse fato exigiu a renúncia deliberada de outros enfoques sociais, tais como o cultural, por exemplo.

Ambientalistas dizem que o efeito da tragédia ambiental continuará por pelo menos mais 100 anos, entretanto, enquanto isso, a BHP, revendo os lucros para 2016, comunicou aos mercados internos que estuda medidas alternativas para amenizar a queda da produção de minério.

Pelo que foi estudado, o desastre prejudicou bastante a imagem da cidade histórica de Mariana, pelo fato de as notícias serem todas veiculadas com o nome da cidade. Infelizmente, na ausência de fiscalização por parte do governo federal e do governo de Minas Gerais, as mineradoras se consideram como donas do solo mineiro e, em meio às discussões sobre a mineração, royalties e impostos, a vida humana, a cultura e a preservação ambiental ficam em um segundo plano.

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    Relatório da Administração e demonstração financeiras em 31 de dezembro de 2014. Desenvolvida pela Samarco.
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    Reportagem do G1, Minas Gerais, com informações do Jornal Hoje. Veja casas, escola e igreja de Bento Rodrigues antes e depois da lama.

REFERÊNCIAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2017
  • Revisado
    19 Abr 2017
  • Aceito
    19 Abr 2017
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