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Estratégias de referenciação no discurso midiático: práticas ideológicas de inclusão e exclusão de dizeres no discurso sobre a guerra

Referenciation strategies in media discourse: ideological practices of inclusion and exclusion of voices in the discourse of war

Resumos

Neste artigo, investigamos o funcionamento discursivo da referenciação enquanto atividade linguística de acordo com a qual os objetos são construídos e reproduzidos nas práticas discursivas. Buscamos examinar o processo de lexicalização na construção do objeto-de-discurso "Guerra no Iraque" pela Revista Veja, utilizando teorias que investigam o papel da mídia na produção e disseminação de práticas simbólicas. Vimos como tais práticas se fazem essenciais para a construção da nossa visão de mundo, principalmente no âmbito das relações internacionais. Procuramos articular esses estudos com a teoria da Análise Crítica do Discurso proposta por van Dijk, para que pudéssemos compreender o funcionamento discursivo dos processos de referenciação nessas práticas simbólicas. Observamos que a referenciação, enquanto prática de nomeação dos eventos internacionais, constitui-se em importante objeto de análise na medida em que nos revela as crenças ideológicas do sujeito socioculturalmente localizado e é um elemento fundamental na construção de nossas visões dos eventos sociais.

mídia; representação; discurso; relações internacionais; referenciação


In this paper, we investigate the discursive role of referenciation as a discursive activity of introduction of referents. We examine the lexicalization process in the introduction of the referent "Iraq War" in the Brazilian Magazine Veja, working with theories that investigate the role of media in the production and dissemination of symbolic practices. These practices are essential for the construction of our view of the world, especially in the field of international relations. Through the articulation of these studies and the critical discourse analysis developed by van Dijk, we try to understand the discursive role of referenciation in the symbolic practices of the media. We conclude that referenciation is an important object of analysis that reveals the ideological positions of socio-culturally situated subjects and as such is a central element in the construction of our views of social events.

Media; representation; discourse; international relations; referenciation


ARTIGO DE PESQUISA

Estratégias de referenciação no discurso midiático - práticas ideológicas de inclusão e exclusão de dizeres no discurso sobre a guerra* * Artigo resultante de Dissertação de Mestrado defendida junto ao Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei (PROMEL/UFSJ), sob orientação do professor Dr. Antônio Luiz Assunção e com fomento da CAPES.

Referenciation strategies in media discourse - ideological practices of inclusion and exclusion of voices in the discourse of war

Carla Leila Oliveira Campos

Professora de Língua Portuguesa do Instituto de Ensino Superior Presidente Tancredo de Almeida Neves - IPTAN. Mestre em Letras pela Universidade Federal de São João del-Rei - UFSJ e doutoranda em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Pesquisadora do NAD/UFMG. E-mail: carlacampos@mgconecta.com.br

RESUMO

Neste artigo, investigamos o funcionamento discursivo da referenciação enquanto atividade linguística de acordo com a qual os objetos são construídos e reproduzidos nas práticas discursivas. Buscamos examinar o processo de lexicalização na construção do objeto-de-discurso "Guerra no Iraque" pela Revista Veja, utilizando teorias que investigam o papel da mídia na produção e disseminação de práticas simbólicas. Vimos como tais práticas se fazem essenciais para a construção da nossa visão de mundo, principalmente no âmbito das relações internacionais. Procuramos articular esses estudos com a teoria da Análise Crítica do Discurso proposta por van Dijk, para que pudéssemos compreender o funcionamento discursivo dos processos de referenciação nessas práticas simbólicas. Observamos que a referenciação, enquanto prática de nomeação dos eventos internacionais, constitui-se em importante objeto de análise na medida em que nos revela as crenças ideológicas do sujeito socioculturalmente localizado e é um elemento fundamental na construção de nossas visões dos eventos sociais.

Palavras-chave: mídia; representação; discurso; relações internacionais; referenciação.

ABSTRACT

In this paper, we investigate the discursive role of referenciation as a discursive activity of introduction of referents. We examine the lexicalization process in the introduction of the referent "Iraq War" in the Brazilian Magazine Veja, working with theories that investigate the role of media in the production and dissemination of symbolic practices. These practices are essential for the construction of our view of the world, especially in the field of international relations. Through the articulation of these studies and the critical discourse analysis developed by van Dijk, we try to understand the discursive role of referenciation in the symbolic practices of the media. We conclude that referenciation is an important object of analysis that reveals the ideological positions of socio-culturally situated subjects and as such is a central element in the construction of our views of social events.

Keywords: Media; representation; discourse; international relations; referenciation.

1 INTRODUÇÃO

Partindo da hipótese de que os objetos-de-discurso não são categorias fixas, dadas a priori, mas sim objetos que se constroem no interior da própria prática discursiva, este artigo tem como objetivo analisar a representação do evento social Guerra no Iraque em reportagens da mídia impressa brasileira, por meio da análise da atividade de referenciação, atentando para o processo de lexicalização operado por um sujeito sócio-historicamente localizado. Dessa forma, compreendendo a referenciação como uma atividade discursiva, tomamos as escolhas lexicais como o resultado de um processo modelado por nossas percepções sociais e culturais. Entendemos, assim, que a análise de semelhante processo pode nos oferecer importantes pistas sobre as crenças do sujeito produtor textual e, consequentemente, da sociedade na qual ele se insere.

Com esse objetivo, escolhemos como corpus reportagens de capa publicadas pela Revista Veja sobre a Guerra no Iraque, datadas do período de 5 de fevereiro de 2003 a 2 de abril de 2003. Nessas reportagens, analisaremos os sistemas de referenciação midiáticos, com vistas a observar como tal revista, mediante processos de lexicalização, constrói os objetos-de-discurso referentes à guerra sob uma determinada ótica do evento.

Com o intuito de observar a manifestação dessas práticas sociais e ideológicas no discurso, compreendendo como a mídia constrói e estabiliza seus objetos, este trabalho divide-se em quatro partes.

Primeiramente, abordaremos o papel da mídia na construção e disseminação de sistemas simbólicos sobre o mundo e o papel desses sistemas na formação dos imaginários sociais e das representações sociais por meio dos quais compreendemos a nós mesmos e aos outros.

Em um segundo momento, apresentaremos o quadro teórico-metodológico de abordagem do corpus, definido nos estudos da Análise Crítica do Discurso desenvolvidos por van Dijk. Esse autor, com o objetivo de revelar as relações de poder e ideológicas embutidas no discurso, propõe um quadro teórico-metodológico triangular de abordagem deste, o qual envolve o próprio discurso, a sociedade e a cognição. Nesse sentido, a Análise Crítica do Discurso deve voltar-se não só para a análise das propriedades formais do texto, estabelecendo uma relação entre estas e o meio social no qual o discurso se insere, como também considerar as propriedades cognitivas de produção/compreensão desse discurso, consideradas em termos de modelos mentais e conhecimentos socialmente partilhados (cognições sociais).

Na terceira parte do artigo, realizaremos uma discussão acerca da referenciação, procurando mostrar como tal categoria reflete o ponto de vista ideológico do produtor textual, contribuindo para a construção dos objetos-de-discurso de acordo com esse ponto de vista. Assim, compreendendo, conforme Koch (2004) e Mondada e Dubois (2003), que os objetos dos quais o discurso trata são construídos no interior do próprio discurso, de acordo com restrições impostas pelas condições culturais, sociais e históricas nas quais o sujeito se insere, entendemos que a análise dos processos de referenciação pode nos fornecer importantes pistas sobre as crenças sociais e ideológicas difundidas no meio social do qual o indivíduo participa.

Finalmente, apresentaremos a análise dos sistemas de referenciação identificados nas reportagens, com vistas a observar como tais sistemas contribuem para uma representação do conflito em questão com base em uma perspectiva unilateral voltada para a visão norte-americana e ocidental dos fatos.

2 A MÍDIA E A CONSTRUÇÃO IDEOLÓGICA DO ESPAÇO GEOPOLÍTICO INTERNACIONAL

Em Discursos geopolíticos da mídia: jornalismo e imaginário internacional na América Latina, Steinberger (2005) afirma que os meios de comunicação de massa são hoje os grandes responsáveis pela instituição da ordem geopolítica mundial. Segundo a autora, a mídia "tem hoje o poder de configurar mentalidades e, portanto, [tem o poder de configurar] o apoio necessário à consolidação do projeto de qualquer liderança internacional" (p. 24). Desse modo, mais do que mediante relações natural ou economicamente instituídas, o geopolítico se concretiza em nossas mentes por meio de discursos institucionalizados que desenham a nova ordem mundial.

Para Thompson (1998), a produção de significados simbólicos sempre foi a base do desenvolvimento das sociedades. Entretanto, com o surgimento das instituições de comunicação a partir do século XV até os nossos dias registramos uma transformação significativa na produção e no intercâmbio do conteúdo simbólico nas sociedades. A mídia, nesse sentido, transformou e vem transformando os processos de produção, intercâmbio e armazenamento dos produtos simbólicos, desempenhando na nossa sociedade um papel crucial nessa área.

Em virtude desses desenvolvimentos as formas simbólicas foram produzidas e reproduzidas em escala sempre em expansão; tornaram-se mercadorias que podem ser compradas e vendidas no mercado; ficaram acessíveis aos indivíduos largamente dispersos no tempo e no espaço. (THOMPSON, 1998, p. 18).

Nesse sentido, considerando a mercantilização das formas simbólicas, no âmbito das relações internacionais, presenciamos, nos dias atuais, uma espécie de geopolítica simbólica, a qual se constitui mediante processos linguístico-discursivos, isto é, por meio de "modos de apresentação do mundo, visões de mundo instituídas segundo modos sociais de dizer esse mundo - ou simplesmente de fazê-lo existir" (STEINBERGER, 2005, p. 184).

Esses processos linguístico-discursivos são responsáveis pela produção social de discursos que organizam visões sobre as ordenações geopolíticas do mundo. Tais visões se expressam por meio de categorias que são objeto de negociações sociais na disputa por formas hegemônicas de apresentação desse mundo e de naturalização desses dizeres.

Os discursos hegemônicos, na busca pela manutenção da ordem social vigente, acabam por naturalizar esses modos de apresentação do mundo, gerando formas sofisticadas de ocultação (STEINBERGER, 2005, p. 185), por meio das quais visões unilaterais sobre os eventos são adotadas como as únicas possíveis, não havendo, na maioria das vezes, espaços para a contestação.

Com o objetivo de apagar a contestação, oculta-se não só a voz do outro como também toda uma rede ampla e complexa de relações sociais no espaço internacional em prol de visões simplistas que buscam a naturalização dos sistemas de significação.

Essa geopolítica simbólica - materializada nas práticas discursivas midiáticas - enquanto espaço de produção de discursos e de cognição social, que se produz mediante interações sociais, desempenha um papel crucial na formação dos modelos mentais responsáveis tanto pela nossa compreensão quanto pela produção de discursos. Ao construir significados para o mundo, a mídia constrói também sistemas classificatórios que influenciam nossas leituras desse mundo e nossos sistemas cognitivos.

Esse processo não é diferente em relação aos profissionais da mídia. Assim, todo um imaginário pré-construído vai influenciar a própria relação do repórter com o material a ser narrado, ou reportado, à medida que não lhe é possível se desvincular de uma visão prévia do que pode vir a ser encontrado. Nesses termos, ao mesmo tempo em que contribui para a criação de imaginários sociais sobre a geopolítica internacional, a mídia também se alimenta de imaginários já difundidos na sociedade, ao passo que é impossível se localizar de fora das determinações ideológicas e das crenças1 1 As crenças devem ser entendidas enquanto um sistema de compreensão dos eventos, relacionadas àquilo que os grupos sociais acreditam ser verdadeiro. socialmente partilhadas pela sociedade na qual o sujeito se localiza. Percebemos no campo jornalístico internacional, um processo dialético, no qual a produção discursiva, ao mesmo tempo em que cria imaginários sociais, se alimenta de imaginários já existentes.

Voltando-se para o cenário da América Latina, Steinberger (op. cit.) afirma que prevalece entre nós um imaginário jornalístico internacional formado por uma perspectiva prévia - desenvolvida por norte-americanos e europeus - sendo os jornalistas condicionados a uma leitura ocidentalista dos fatos internacionais.

Dessa forma, alimentado pelo imaginário geopolítico da Guerra Fria que, segundo Steinberger (op. cit.) procurava compreender o mundo numa plataforma que separava heróis e vilões, o novo discurso geopolítico midiático, ao substituir o socialismo pelo islamismo, reafirma a posição do outro como inimigo do ocidente. Assim, a visão polarizada do mundo definida na Guerra Fria, se restabelece na Guerra dos Estados Unidos contra o terror, dividindo o mundo em dois grupos: o grupo daqueles que agem ao lado do bem, dos valores corretos e o grupo daqueles que agem ao lado do mal, dos valores não reconhecidos socialmente.

Tal lógica legitima a violência, o recurso à força armada e a destruição do outro em uma tentativa iluminista de salvá-lo. Por essa ótica, a "globalização da guerra" pode contemplar o direito à eliminação da vida em nome da difusão dos valores democráticos do ocidente no mundo árabe e em países que façam parte do "Eixo do Mal". (MOITA LOPES; FABRÍCIO, 2005, p. 246)

O poder dessa retórica reside, segundo van Dijk (1995), na sua plausibilidade e aparente superioridade moral. Desse modo, liberdade, democracia e direitos humanos estão entre os termos chave que organizam essa legitimação midiática e política das perspectivas e ações da elite com respeito aos outros, justificando até mesmo ações como a intervenção militar que em nada se relaciona com tais preceitos.

3 SOCIEDADE, DISCURSO E COGNIÇÃO: A ANÁLISE DO DISCURSO DE VAN DIJK

Procurando desvendar como as relações de poder se dão no discurso midiático, van Dijk propõe um quadro teórico-metodológico triangular de abordagem discursiva, envolvendo a análise do discurso, materializado nas práticas textuais, da sociedade e das condições de produção nas quais essas práticas textuais emergem e dos processos cognitivos de processamento e compreensão discursivos. Dessa forma, esse autor procura estabelecer um quadro multidisciplinar de abordagem do discurso o qual pressupõe a relação entre discurso, sociedade e cognição social.

Com o objetivo de compreender como as relações sociais e discursivas podem influenciar o sistema cognitivo dos participantes do evento comunicativo, van Dijk propõe a adoção da noção de modelos mentais como a interface entre as estruturas sociais e o indivíduo. Os modelos são representações cognitivas de experiências e interpretações pessoais, incluindo o conhecimento e as opiniões pessoais. Eles representam as interpretações que os indivíduos fazem de pessoas, eventos e ações específicos e são, essencialmente, o complemento natural das situações. Quando as pessoas testemunham uma cena ou uma ação, ou leem ou ouvem sobre um evento elas constroem um modelo único daquela situação ou atualizam um modelo já existente sendo, portanto, os modelos, também a base referencial da compreensão textual.

A propriedade interessante dos modelos mentais é que eles não representam apenas informações pessoais, subjetivas e provavelmente pré-concebidas sobre os eventos de nossa vida diária. Modelos mentais caracterizam também "instanciações" (especificações, exemplos) de crenças gerais e abstratas, incluindo as cognições sociais. Essas cognições não precisam ser ativamente pensadas no modelo mental. Elas podem estar apenas apresentadas no background, apontando para o conhecimento mais geral, do qual podem ser inferidas quando realmente necessárias para a compreensão de um evento. Assim, na interpretação de um discurso sobre um evento atual, nós precisamos ativar somente um pequeno fragmento de nosso conhecimento como, por exemplo, que o uso de armas pode matar pessoas, sem ativar tudo o que conhecemos de armas. Desse modo, podemos afirmar que os modelos destacam apenas as instanciações relevantes do conhecimento geral.

Os modelos mentais formam, portanto, a interface entre representações sociais generalizadas, por um lado, e o uso individual dessas representações na percepção social, interação e discurso, por outro.

Outro ponto fundamental da teoria do discurso aqui adotada refere-se à questão da ideologia e seu papel na reprodução das relações sociais entre os grupos.

Ao propor uma teoria multidisciplinar do discurso, van Dijk (1995) afirma a necessidade, também na abordagem da ideologia, de uma teoria triangular que relacione sociedade, discurso e cognição social. Dessa forma, as ideologias são consideradas primeiramente como um tipo de sistema de idéias, ou de cognições sociais partilhadas, ocupando um lugar no campo simbólico do pensamento, isto é, no sistema cognitivo. De acordo com a dimensão social, as ideologias estão associadas a interesses, conflitos e lutas entre grupos e instituições sociais envolvidos em seu desenvolvimento e reprodução. Elas podem, portanto, servir tanto à legitimação quanto à resistência ao poder e à dominação, levando-se em consideração o acesso às práticas discursivas. Finalmente, o conceito de ideologia pode estar associado ao uso da linguagem, o que significa que as ideologias são tipicamente expressas e reproduzidas na e pela linguagem. Isso não significa que elas sejam expressas somente por meio da linguagem, mas o uso da linguagem, dentre as outras práticas sociais, desempenha, segundo van Dijk (2000) um importante papel na reprodução das ideologias. Para o autor, é pelo discurso principalmente que as ideologias são expressas, adquiridas e representadas, por meio de estruturas e estratégias textuais. A dimensão discursiva explica, portanto, como as ideologias influenciam nossos textos, como nós compreendemos o discurso ideológico e como o discurso está envolvido na reprodução social da ideologia.

Nessa abordagem, as ideologias são, portanto, compreendidas como as estruturas básicas que organizam as cognições sociais partilhadas pelos membros dos grupos, organizações ou instituições sociais. Nesse sentido, as ideologias funcionam essencialmente como a interface entre as representações cognitivas e os processos que subjazem o discurso e a ação, por um lado, e a posição e os interesses dos grupos sociais, por outro lado. Segundo van Dijk (1995), essa teoria da ideologia estabelece a ligação entre a análise do macro-nível social dos grupos, formações e estruturas sociais e os estudos do micro-nível da interação individual situada e do discurso.

4 REFERENCIAÇÃO E CONSTRUÇÃO DOS OBJETOS-DE-DISCURSO

Se considerarmos que as ideologias são expressas e reproduzidas na e pela linguagem, devemos assumir que é pelas formas linguísticas que dão materialidade aos discursos que essas ideologias são expressas. Nesse sentido, todas as categorias linguísticas são passíveis de sofrer investimento ideológico, o que não é diferente com os processos de referenciação. Neste trabalho, pretendemos, portanto, mostrar como tal categoria reflete o ponto de vista ideológico do produtor textual, contribuindo para a construção dos objetos-de-discurso de acordo com esse ponto de vista.

A referenciação é considerada como uma atividade colaborativa e discursiva de construção e reconstrução de objetos-de-discurso, na qual dentre todas as categorias linguísticas possíveis para identificar os objetos, será selecionada aquela que melhor se adaptar ao ponto de vista ideológico adotado pelo locutor.

Esse processo de seleção pode trazer ao leitor informações importantes sobre as opiniões, crenças e atitudes do produtor textual, explicitando a perspectiva pela qual o objeto-de-discurso foi elaborado e, ao mesmo tempo, fornecendo os caminhos a serem trilhados no processo de interpretação, com vistas à construção colaborativa desses mesmos objetos.

Concordando com a postura de que os objetos-de-discurso não pré-existem ao discurso, Koch; Marcuschi (1998) ressaltam que são esses objetos que os itens lexicais vão designar e não algo que esteja fora da mente, algo mundano.

Nesses termos, o léxico não é um simples produto de relações linguagem/mundo, ou um instrumento de etiquetagem da realidade, mas um instrumento complexo, de criação e manutenção de objetos-de-discurso.

Dessa forma, ao propormos realizar uma análise discursiva das estratágias de referenciação estamos considerando que, ao compreender a referenciação como um processo de lexicalização na construção dos objetos-de-discurso, somos confrontados com um processo de nomeação, no qual o sujeito sócio-histórico constrói discursivamente sua visão do real. Esse processo de discursivização envolve, portanto, sistemas de crenças e ideologias, originários de sua posição na sociedade os quais podem determinar e influenciar seus modelos mentais sobre o evento social.

Nesse sentido, podemos inferir de acordo com tais afirmações, que os modelos mentais se constroem a partir de processos de categorização do mundo por parte de indivíduos sócio-ideologicamente localizados. Assim, ao formar um modelo mental sobre uma situação específica, os indivíduos estarão envolvidos em um processo de reelaboração do real influenciado por aspectos culturais e por crenças ideológicas específicas.

A categorização dos objetos por meio de itens lexicais, portanto, mais do que crenças ideológicas, revela toda uma rede de estereótipos culturais que envolvem uma base comum e conhecimentos históricos que subjazem à construção discursiva e são essenciais para que o discurso seja compreendido de uma forma e não de outra. Além disso, esses processos de lexicalização das pessoas, das ações e dos acontecimentos revelam as crenças, opiniões e valores do produtor textual, explicitando o seu ponto de vista sobre um evento específico.

Desse modo, ao categorizar um determinado ator social como "um ditador", o sujeito produtor textual estará não só revelando sua posição ideológica, suas crenças, valores e atitudes, como também exigindo de seus interlocutores um conhecimento histórico pressuposto pela utilização desse item lexical que irá construir a base de interpretação do objeto-de-discurso em uma direção argumentativa específica.

Nesses termos, considerando, pois, o aspecto cognitivo da análise do discurso proposta por van Dijk, podemos perceber como, por meio de processos de lexicalização, os sujeitos discursivos podem exercer o que o autor chama de controle estratégico da informação e, consequentemente, do conhecimento que temos sobre os eventos. Assim, se o discurso categoriza um determinado evento em termos da apresentação de uma única versão dos fatos, aquela condizente às crenças, atitudes e ideologias do grupo do qual o locutor participa, o conhecimento dos interlocutores sobre esse evento pode ser limitado.

Nesse sentido, podemos compreender que, mais do que o lugar no qual versões públicas de mundo são negociadas e apresentadas como verdadeiras, o discurso é um lugar de exclusão de dizeres e, portanto, de objetos-de-discurso que não condizem com a perspectiva ideológica, ou o ponto de vista adotado pelo sujeito social.

5 A CONSTRUÇÃO DO OBJETO-DO-DISCURSO GUERRA NO IRAQUE

Nas seções anteriores, traçamos as linhas teóricas e metodológicas por meio das quais procuraremos conduzir nossa análise. Observamos como a linguagem e suas categorias podem ser ideologicamente investidas com vistas à concretização de um determinado projeto de dizer. Nesta seção, ao abordarmos a questão da referenciação como construção de objetos-de-discurso referentes à Guerra no Iraque, voltaremos nosso questionamento para a posição assumida pelo locutor frente a esse evento social, considerando as crenças políticas e ideológicas que subjazem a seu dizer, assim como todo um processo de formação cultural do qual tal locutor participa.

Nesses termos, ao considerarmos a referenciação como uma atividade discursiva em que há um conjunto de possibilidades de acordo com o qual se opera um processo de escolha a que os atores sociais estão sujeitos, partimos do pressuposto de que, como proposto em Blikstein (1995), o que tomamos como real é o produto de nossa percepção cultural. Assim, atentaremos para a perspectiva adotada pelo locutor, compreendendo que, diante das possibilidades de escolha, um mesmo evento pode ser lexicalizado de muitos modos diferentes, refletindo certas configurações culturais e também certas posições ideológicas. Consideramos, portanto que, ao categorizar determinado fenômeno de uma forma e não de outra, o locutor estará não somente revelando sua posição frente a esse evento e, como vimos, demarcando sua posição sociocultural, como também rejeitando todo um leque de outras formas de referenciação possíveis.

Para demonstrar como isso efetivamente se dá no discurso, objetivamos analisar, nas reportagens que compõem nosso corpus, como a revista Veja constrói seus sistemas de referenciação e, ao fazer isso, apresenta sua representação da guerra. Pretendemos compreender como, por meio de estratégias de lexicalização adotadas por essa revista, produz-se uma representação dos eventos e dos atores nele envolvidos condizente com uma determinada configuração histórica e sociocultural, que situa o locutor e seu dizer num determinado lugar, de onde se constrói seu ponto de vista sobre o evento em questão. Consideramos que, em primeiro lugar, essas enunciações fazem parte do jogo enunciativo da mídia e que as posições do locutor marcam o seu lugar em uma geopolítica cultural, em que estão definidos os olhares sobre a identidade, a alteridade e a diferença. Nesse espaço geopolítico cultural, Steinberger (2005) observa que a mídia tem o poder de configurar o apoio necessário aos projetos de lideranças internacionais, o que pode implicar a localização do locutor, fazendo-o enunciar a partir desse lugar acerca de um determinado evento político-cultural.

De acordo com Koch (2004), os objetos que compõem nossa realidade são construídos "por toda uma rede de estereótipos culturais" (p. 51). Essa rede condiciona nossa percepção do mundo e é reproduzida e mantida por meio da linguagem. Considerando, nesses termos, que os objetos de que o discurso trata se constroem no fio do próprio discurso, observaremos a partir de agora como se dá o processo de lexicalização do objeto guerra no Iraque. Com esse objetivo, considerando as reportagens que nos propomos analisar, identificamos os seguintes processos de referenciação referentes à guerra:

(1) Com seu poderio bélico incomparável, os Estados Unidos não teriam problemas de resolver sua pendenga com Saddam sem a ajuda externa. (Veja, 5 de fevereiro de 2003, p. 64)

(2) O que se viu nos últimos doze anos foi uma queda-de-braço entre os Estados Unidos e Saddam em torno da existência ou não desse arsenal proibido. (Veja, 5 de fevereiro de 2003, p. 73).

(3) Na prática, a contagem regressiva para a queda de Saddam, teve início três meses antes, quando a Casa Branca começou a despachar sua máquina de guerra para o Golfo. (Veja, 5 de fevereiro de 2003, p. 63).

Inicialmente, podemos atentar para o processo de construção do objeto-de-discurso presente nesses recortes. Segue-se uma sequência de elementos léxicos que definem o modo como esse conflito deve ser considerado. Observamos que nos dois primeiros enunciados o processo de referenciação da Guerra no Iraque se dá por meio das expressões lexicais: sua pendenga com Saddam e uma queda-de-braço entre os Estados Unidos e Saddam. Note-se que o locutor, com a utilização de semelhantes itens lexicais, constrói seu objeto-de-discurso de forma a desvalorizar o conflito, na medida em que se trata de uma pendenga ou de uma queda-de-braço. Esses termos, como ativadores dos objetos discursivos, não acionam em nossa memória o conhecimento estocado em nossos modelos mentais sobre o sentido de guerra, o que implica reconhecer que essa representação leva o interlocutor a acionar outros tipos de conhecimento na construção de seus modelos mentais sobre o conflito, mais especificamente, aqueles que dizem respeito a ações individuais, ao invés de ações entre estados. Essa desvalorização do conflito armado, obtida por meio dessa construção do objeto-de-discurso guerra no Iraque, banaliza não só o evento social representado, mas também as motivações e as suas consequências, por categorizar tal conflito como algo menor, sem importância. Afinal, nossas práticas socioculturais, estocadas em nossa memória em forma de modelos mentais e conhecimentos partilhados, não categorizam conflitos entre Estados como pendengas ou quedas-de-braço, acentuando uma caracterização individual do evento representado.

Essa individualização do conflito pode ser observada quando se considera que as escolhas lexicais operadas por semelhante locutor, nas expressões em destaque, trazem-nos ainda outros processos de referenciação e, portanto, de ativação de importantes representações na memória do interlocutor, as quais nos possibilitam falar do lugar de onde o locutor constrói sua visão em relação à guerra. Em primeiro lugar, observamos que para ele trata-se de uma guerra dos Estados Unidos, o que nos demonstra a utilização do pronome possessivo "sua". Em segundo lugar, observamos que a guerra é lexicalizada como um conflito, ou, nos termos do locutor, uma pendenga ou uma queda-de-braço, entre os Estados Unidos e Saddam, e não contra o Iraque.

Essa representação do conflito como algo menor e sob o controle dos Estados Unidos, na medida em que se trata de "sua" guerra, possibilita uma nova categorização da guerra por meio de um processo de lexicalização que a constrói como a contagem regressiva para a queda de Saddam (3). Assim, já que se trata de um conflito banal, de uma nação contra um homem só, a vitória dos Estados Unidos é algo certo, uma questão de tempo. Mediante semelhantes processos de referenciação o locutor não apenas revela uma determinada postura frente à guerra - postura que, apesar de compreender o conflito como algo sem importância, mostra sua filiação ao discurso de poder que quer mostrar a guerra como uma ofensiva contra Saddam Hussein, reconhecendo a vitória dos Estados Unidos como certa - como também, por meio de suas escolhas lexicais, procura fazer com que seus interlocutores ativem determinados conhecimentos na construção de seus modelos mentais sobre o conflito.

(4) Citação do discurso de Bush no Congresso americano: "Que não haja mal-entendido: se Saddam Hussein não se desarmar completamente, para a segurança de nosso povo e para a paz do mundo, nós lideraremos uma coalizão para desarmá-lo." (Veja, 5 de fevereiro de 2003, p. 63).

(5) A dúvida é como o ditador iraquiano reagirá a uma invasão que tem o objetivo específico de derrubá-lo. (Veja, 5 de fevereiro de 2003, p. 73).

(6) Com a ofensiva americana para depor Saddam, telespectadores de todo o mundo acompanham ao vivo a trituração de Bagdá por mísseis guiados por satélite. (Veja 26 de março de 2003, p. 51).

(7) Os Estados Unidos planejaram sua guerra no Iraque indo direto ao estágio em que a maioria dos conflitos termina: o cerco à capital do inimigo e a derrubada de seu regime. (Veja, 2 de abril de 2003, p. 42).

(8) A campanha para depor Saddam Hussein foi montada com base na teoria de que um exército tecnologicamente avançado vence mais por sua velocidade e poder de fogo do que pela massa e pelos músculos. (Veja, 2 de abril de 2003, p. 43).

(9) Antes de dar início à intervenção militar no Iraque,o governo americano anunciou o nome de vários figurões que pretende julgar por crimes contra a humanidade. A lista dos mais perversos inclui o próprio Saddam Hussein e seus dois filhos. (Veja, 2 de abril de 2003, p. 48).

(10) O que ocorre no Golfo Pérsico é aquilo que os especialistas chamam de "guerra assimétrica". Significa que um dos beligerantes é muito mais poderoso que o outro. Se usarem o melhor de seus recursos bélicos e tiverem determinação política, os americanos vão esmagar a resistência e tirar Saddam Hussein do poder. (Veja, 2 de abril de 2003, p. 50).

Nesses recortes, o processo de referenciação reativa o evento da guerra como um conflito banal, ainda que de forma mais sutil, caracterizando-o como a luta de uma nação contra um homem só. O locutor, na prática discursiva, vai construindo um modelo mental da guerra dos Estados Unidos contra o Iraque como um conflito sem importância, breve e que não se configura como uma guerra contra nações. Essa representação é relevante, pois faz com que a ativação do modelo mental de invasão, presente no recorte (5), produza um efeito negativo minimizado de tal atitude.

Comprovando que os objetos-de-discurso não são categorias fixas, nem dados a priori, mas sim que vão se construindo no desenrolar do discurso, observamos que ao longo das reportagens analisadas a referenciação da guerra vai assumindo outra configuração. Desse modo, pendenga e queda-de-braço vão dando lugar a novas formas de ativação dos objetos discursivos, por meio do procedimento de referenciação. No recorte (4), por meio do nome coalizão, ativa-se um modelo mental mais relacionado ao nosso conhecimento de guerra. Esse item lexical traz duas consequências maiores para o discurso que se constrói: primeiro aciona um modelo mental da guerra em que a questão individual, dos Estados Unidos, deixa de assumir importância - não se trata mais de uma guerra apenas dos Estados Unidos; segundo, ao recategorizar o conflito contra Saddam como uma coalizão, o locutor aciona um modelo mental relacionado ao ditatorialismo, do indivíduo contra os Estados, na medida em que o conflito é representado como uma ação de nações contrárias ao regime de governo de Saddam Hussein. Desse modo, esse processo de categorização e recategorização do evento discursivo busca construir modelos mentais que vão constituir a memória do evento por meio de processos de referenciação que vão se desenrolando nos textos até marcarem a relação desigual que se estabelece entre os dois agentes em conflito.

Observamos, portanto, que, nos enunciados analisados, pendenga e queda-de-braço dão espaço para processos de referenciação relacionados ao conhecimento que temos de guerra na reconstrução do objeto-de-discurso. Desse modo, ressalta-se não só a existência do conflito armado, como nos mostram as palavras invasão, ofensiva, guerra e intervenção militar, como também questões políticas em torno da guerra: coalizão e campanha. Gostaríamos de destacar ainda a utilização da expressão lexical guerra assimétrica (10), que remonta à expressão contagem regressiva para a queda de Saddam (3), acima observada. Essa expressão destaca, mais uma vez, a incompatibilidade de poder entre Estados Unidos e Saddam (obedecendo à representação da guerra operada pelo locutor), fazendo com que seus interlocutores recuperem em seus modelos mentais que a vitória dos Estados Unidos é apenas uma questão de tempo.

Ainda que a representação da guerra como uma ofensiva dos Estados Unidos contra Saddam permaneça, contudo é importante notar que há uma desfocalização da representação do conflito como a ação de uma nação particular contra um indivíduo. Mesmo que no recorte (4) o discurso seja do presidente dos Estados Unidos, sua posição é de liderar uma coalizão. Entretanto, pode-se perceber que, mesmo assim, permanece a categorização do conflito como uma guerra particular, por não se tratar de uma guerra nos moldes que conhecemos, ou seja, entre nações. Afinal, embora a guerra seja assumida enquanto uma ação de grupos (uma coalizão), a representação de seus fins reativa sua particularidade: não é uma guerra contra o Iraque, mas uma guerra contra Saddam. Nesses termos, toda representação do sentido da guerra está centrada no indivíduo: "se Saddam não se desarmar", "para desarmá-lo" e "como o ditador reagirá a uma invasão que tem o objetivo específico de derrubá-lo".

O Iraque surge construído como um objeto-de-discurso em que sua ativação na memória dos interlocutores é apenas de cenário no qual o conflito ocorrerá (Guerra no Iraque) e não a nação contra a qual os Estados Unidos planejam sua ofensiva (6). Desse modo, o discurso introduz um outro objeto de discurso e constrói um novo modelo: a guerra não se dá contra a população iraquiana, mas a favor do povo iraquiano, massacrado e sofrido diante dos abusos do ditador. Essa representação preserva, para a comunidade internacional que acompanha o conflito pela mídia, a imagem dos Estados Unidos, pois os mísseis americanos se dirigem ao Iraque, como cenário da guerra, mas visam a depor o homem responsável pelo sofrimento de sua população e pela ameaça à democracia mundial. Essa reconstrução do objeto-de-discurso na reportagem serve também para, enquanto desativa a guerra solitária contra um homem e ativa a guerra de nações, por meio da coalizão, contra um ditador, construir um novo objeto-de-discurso, como se pode observar no recorte (11) abaixo:

(11)

O combate ao radicalismo islâmico

é uma atitude que só não interessa aos radicais do Islã. Interessa a todos que não querem ver nenhum outro atentado de Osama bin Laden. Interessa ainda aos que não toleram a propagação do fanatismo religioso. E também aos que detestam assistir ao anulamento das mulheres como acontece em certos países que fazem uma leitura reacionária do livro sagrado dos mulçumanos. Por fim, devem torcer para a derrocada do fanatismo islâmico todos aqueles que não aceitam colocar em risco valores universais como democracia e liberdade de expressão. Todos esses devem ter interesse máximo no sucesso de

uma política americana de combate ao radicalismo islâmico

. (Veja, 26 de fevereiro de 2003, p. 44).

Nessa nova construção do objeto-de-discurso, a guerra surge representada por meio das expressões combate ao radicalismo islâmico, uma política americana de combate ao radicalismo islâmico. Nessa atualização do objeto-de-discurso, há uma busca por representar o conflito como uma questão política e não como uma ação de guerra, uma invasão do espaço do outro. Ao reconstruir o objeto-de-discurso, o conflito Estados Unidos-Iraque, como uma questão política, reativando-o como um combate ao radicalismo islâmico e uma política americana de combate ao radicalismo, o locutor aciona na memória dos leitores modelos mentais construídos acerca do radicalismo islâmico, dos radicais do Islã, dos atentados de Osama bin Laden, do fanatismo religioso. Todos esses objetos-de-discurso que foram construídos nessa relação com o outro e o diferente por meio de reportagens acerca do terrorismo de Osama bin Laden, por ocasião dos atentados de 11 de setembro. Assim, a memória do leitor, interlocutor das reportagens, é capaz de fazer sentido do objeto-de-discurso, marcado pela referência a uma política norte-americana contra o radicalismo islâmico. A partir dessa ativação do conflito e da construção da guerra contra o Iraque como uma ação política, o locutor novamente, por meio do processo de referenciação, estabelece um novo objeto-de-discurso, assumindo a fala do outro, nesse caso, a fala dos especialistas e do governo do presidente dos Estados Unidos.

Como se pode observar no recorte (12), com essa representação construída a partir da ativação da guerra como uma política contra o radicalismo islâmico, o locutor pode ativar um novo olhar sobre o conflito, construindo um objeto-de-discurso que dê sequência e faça sentido à política americana.

(12) Em Washington, muitos figurões do governo Bush veem a guerra como uma oportunidade de espalhar o vírus da democracia numa região dominada por tiranias corruptas. (Veja, 26 de fevereiro de 2003, p. 48).

(13) O conflito, em que só na sexta-feira passada foram despejadas centenas de mísseis sobre Bagdá, é de um tipo novo na história da humanidade. Em primeiro lugar, trata-se de uma guerra que os americanos chamam de "preventiva", aquela na qual se mata o adversário na expectativa de que ele, mais cedo ou mais tarde, tentaria nos aplicar algum golpe sujo. (Veja, 26 de março de 2003, p. 52).

Como podemos perceber, esses recortes evidenciam como a percepção do real resulta em produtos produzidos socioculturalmente, com a finalidade de cumprir determinados objetivos, no caso da reportagem, comunicativos. Tais recortes ativam na memória dos interlocutores, por meio do item lexical vírus, a difusão da democracia. Por meio da contextualização do objeto-de-discurso, desativam-se determinados sentidos que podem ser atribuídos ao item vírus, focalizando aquilo que, no modelo mental do interlocutor, pode ser recuperado como positivo: a capacidade de se espalhar, de se disseminar do vírus. Há uma reativação do conceito de vírus que é geralmente tratado como um mal dentro dos discursos sociais, entre eles, o discurso médico, por exemplo. A partir dessa representação, o locutor pode associar-se ao modo como os americanos constroem em seu discurso esse conflito: como uma guerra "preventiva", como observamos no enunciado (13). Enquanto guerra "preventiva", esse objeto-de-discurso ativa modelos mentais na memória dos interlocutores que procurarão ver no outro, no caso, os islâmicos, uma ameaça, vê-los como mal: se os americanos, no discurso da mídia ocidental e em seu discurso, são construídos como o vírus da democracia, os islâmicos são construídos como objetos-de-discurso por meio de unidades lexicais que trazem por si só uma carga negativa: tiranias corruptas, radicais do islã.

O locutor assume, portanto, um discurso que constrói a ação política do governo Bush que, se inicialmente seria contra Saddam Hussein, surge no texto da reportagem atravessada por objetos discursivos construídos visando a direcionar a leitura dos interlocutores: percebe-se, nesses enunciados, um objeto-de-discurso positivo, em que a ação da guerra é política e humanitária. Com essa representação, os interlocutores são interpelados a aceitarem essas ações do governo norte-americano, ainda que para isso seja necessária a utilização do conflito armado preventivo, em que se mata o adversário na expectativa de que ele, mais cedo ou mais tarde, tentaria nos aplicar algum golpe sujo (13).

Passemos à análise do próximo enunciado:

(14) Mesmo sem disporem de soldados em quantidade suficiente para resolver imediatamente

a questão em Bagdá

, os americanos e seus aliados ingleses não estão sendo surrados pelo exército de Saddam. Ao contrário, os sucessos militares da força invasora são impressionantes. (Veja, 2 de abril de 2003, p. 47).

Como observamos anteriormente, essa opção por construir a guerra como um objeto do discurso democrático, de defesa inclusive da população iraquiana, desativou a banalização do conflito, apresentada nos primeiros enunciados que analisamos. Somente no enunciado de número (14), de 2 de abril de 2003, o locutor volta, de forma mais sutil, entretanto, a banalizar o conflito, se referindo a ele como a questão em Bagdá. Note-se que já não se trata mais de uma pendenga (1), nem de uma queda-de-braço (2). A desvalorização neste caso se faz de forma mais sutil, relacionando-se talvez ao fato de, como nos mostram os enunciados acima analisados, ser esta uma guerra que, além de não apresentar grandes dificuldades para os Estados Unidos (devido à incompatibilidade de forças entre os beligerantes), é um conflito diferente dos moldes tradicionais, por não ocorrer entre nações.

Por outro lado, enquanto os Estados Unidos oferecem ao mundo uma guerra rápida e preventiva, com o objetivo de combater o mal por meio de uma ofensiva rápida e furiosa, os iraquianos, por sua vez, ameaçam os invasores com escaramuças, carnificina, conflito sangrento, mediante a adoção da guerrilha. Essa representação do outro começa a ser construída no modo como é lexicalizado o objeto-de-discurso guerra do Iraque, na perspectiva do país agredido. Podemos perceber, portanto, a diferença nas escolhas lexicais entre as duas formas de descrever e representar o objeto sobre o qual se fala. Os enunciados abaixo, os quais procuram representar a guerra para os iraquianos, sob a perspectiva do ocidente, nos permitem acompanhar o modo como o locutor constrói seu objeto-de-discurso do ponto de vista do outro:

(15) O Iraque adota a guerrilha, as milícias de Saddam resistem e a invasão pode tornar-se um conflito sangrento. (Subtítulo da capa da edição de Veja, 2 de abril de 2003).

(16) Com o habitual exagero retórico dos políticos árabes, as autoridades iraquianas ameaçam os Estados Unidos com uma carnificina nos moldes do conflito entre o Iraque e o Irã, que deixou um milhão de mortos nos anos 80. Não se deve esperar algo dessa magnitude. (Veja, 2 de abril de 2003, p. 44).

(17) Escaramuças não podem derrotar o Exército americano, mas desorganizam e desmoralizam as tropas. (Veja, 2 de abril de 2003, p. 52).

Diferentemente do ocorreu no processo de referenciação da guerra em relação aos Estados Unidos, observamos que, ao se referir ao Iraque, o locutor utiliza-se de itens lexicais relacionados às mortes e às destruições que, embora comuns em guerras, surgem construídos com a preocupação de acentuar a agressividade e a violência do conflito, seja ele real, como ameaça ou como simples retórica do outro, como ocorre no recorte (16). Observamos, desse modo, que o discurso procura construir dois objetos guerra: um relacionado aos Estados Unidos, comprometido com um conflito rápido, preventivo, assimétrico, sem dificuldades, e outro relacionado ao Iraque, comprometido com guerrilha, carnificinas, derramamento de sangue e escaramuças.

Além disso, há que se considerar a forma por meio da qual o locutor constrói como objeto-de-discurso a diferença entre os envolvidos no conflito: de um lado guerra preventiva, assimétrica lexicalizada como uma campanha para depor Saddam e todo o mal representado pela sua figura, espalhando no Oriente o vírus da democracia, do lado do outro carnificina, como objeto de um habitual exagero retórico, da possibilidade de se aplicar um golpe sujo.

Analisando de forma mais atenta o enunciado (17), observamos que escaramuça (cujo significado seria combate pouco importante, briga, conflito) remonta ao processo, já identificado anteriormente, de desvalorização do conflito, a partir do momento em que aciona também um modelo mental em que predomina a representação do conflito como algo menor. Porém, se do lado dos Estados Unidos a desvalorização se dá devido ao fato de ser esta uma guerra de fácil resolução, do lado dos iraquianos essa desvalorização deve-se à própria capacidade militar de seu exército, o qual adota táticas de guerrilha no combate às tropas norte-americanas, ameaçando-as com carnificina e conflito sangrento.

Observamos, portanto, que na construção do objeto-de-discurso guerra, o locutor procura levar seus interlocutores à construção e/ou ativação de modelos mentais distintos na compreensão do evento em questão. Um modelo mental da guerra dos Estados Unidos, como já observado anteriormente, baseado em diversos tipos de conhecimento que remontam a guerra rápida, preventiva, assimétrica, com o objetivo de derrotar Saddam e o radicalismo islâmico. E outro modelo mental, relacionado à guerra oferecida pelos iraquianos, formado pelo acesso a conhecimentos históricos (uma carnificina nos moldes do conflito entre o Iraque e o Irã) e outros conhecimentos relacionados à perda de vidas humanas em guerras (guerrilha e conflito sangrento), mas que surgem construídos como uma ameaça de um habitual exagero retórico (16).

Considerando que, ao adotar uma determinada perspectiva, o locutor descarta toda uma série de outras, podemos perceber que, ao assumir a perspectiva norte-americana sobre o conflito, esse locutor deixa de abordar toda uma série de outras posições possíveis: por exemplo, o fato de que num conflito dessa espécie não é possível não atingir alvos civis; ou ainda o motivo que levou os Estados Unidos a se autoelegerem os salvadores da humanidade, passando por cima de instituições com reconhecimento internacional como a ONU.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos recortes analisados, a construção do objeto-de-discurso guerra no Iraque pela revista Veja leva-nos a observar o lugar de onde o locutor se põe a dizer e sua posição assumida frente ao conflito em questão, tendo em vista o modo como, em sua reportagem, representa o conflito: uma posição ligada a filiações ideológicas e de poder construídas em torno da visão ocidental e norte-americana dos fatos.

Pôde-se observar, por meio da análise dos processos de referenciação presentes nos enunciados acima, que a discursivização ideológica da guerra se dá com base em dois grupos sociais: o grupo ocidental, representado pelos Estados Unidos, e o grupo oriental-árabe, representado pelos iraquianos. Nos enunciados, atentamos para o modo como ocorreu o processo de lexicalização do evento "guerra do Iraque" no corpus analisado.

Presenciamos, portanto, nesses enunciados e nos outros que o antecederam, uma visão simplista do confronto armado - apresentado aqui como a ação de uma potência benévola, comprometida com os valores universais, contra um país atrasado e dominado pela tirania de seu governo. O locutor se esquece, contudo, de que o valor econômico e político de uma guerra desse porte, mesmo para um país nos moldes dos Estados Unidos, é alto demais para ser pago simplesmente com o intuito de salvar o outro. Apaga-se, dessa forma, todo um conjunto de relações de poder e econômicas, reais motivadoras do conflito, e adota-se sem questionamento algum a visão norte-americana dos fatos, apresentada como a única visão possível, aquela que se localiza num lugar de verdade (FOUCAULT, 1996).

Nesse sentido, concordamos com van Dijk (2000), que o controle do discurso ideológico fornece os princípios pelos quais formas de abuso de poder podem ser justificadas, legitimadas, relacionadas e aceitas.

Percebemos, portanto, nesses trechos, como os processos de referenciação, por meio de discursos totalizantes, procuram abarcar as diferenças rotulando, conforme afirma Steinberger (2005), um povo sob determinada etiqueta. Se os americanos são rotulados sob a etiqueta da democracia, os iraquianos ou os árabes o são sob a etiqueta do radicalismo e do fanatismo religioso, mostrando a incompatibilidade de valores entre esses povos e, mais uma vez, a guerra como uma forma de aqueles educarem estes.

Nossa análise possibilitou-nos observar, portanto, como o discurso pode trabalhar ideologicamente seus processos de referenciação na construção de seus objetos de acordo com um projeto de dizer modelado por uma visão unilateral dos eventos. Assim, antes da vitória nos campos de batalha, os Estados Unidos já tinham vencido uma outra guerra, talvez tão importante quanto a primeira: a guerra travada no discurso na disputa por formas hegemônicas de apresentação do mundo. Se, como vimos, essa disputa simbólica é vencida por aqueles grupos de poder que têm acesso facilitado aos órgãos midiáticos, no caso da Guerra no Iraque, não resta dúvida de que esse grupo foi comandado pelos Estados Unidos, cuja voz se fez presente em todos os enunciados por nós analisados.

Nesses termos, considerando a produção discursiva como um processo originado dos modelos mentais, podemos considerar que os usuários da linguagem, para produzirem seus textos, selecionam proposições relevantes de seus modelos de evento construindo sua representação dos eventos sociais de acordo com propósitos específicos dos grupos sociais com os quais ele se identifica e com relação à situação de comunicação.

Com isso, esses usuários não apenas contribuem para a concretização de seu projeto de dizer, como também procuram modelar a compreensão discursiva, ao apresentarem visões particulares como fatos únicos e inquestionáveis. Organizado, nesse sentido, o discurso midiático não abre espaço para a contestação, na medida em que privilegia apenas um lado da questão, comprometendo a própria compreensão dos leitores sobre os eventos sociais. Isso se agrava no campo das relações internacionais no qual, segundo Thompson (1998), somos confrontados por uma mundanidade mediada que faz com que nossa compreensão do mundo fora do alcance de nossa experiência seja modelada cada vez mais pela mediação de formas simbólicas. Impossibilitado de ter acesso a outras leituras possíveis do evento social, no caso de nosso trabalho a Guerra no Iraque, os leitores adotam os sistemas de representação midiáticos como verdades, criando modelos mentais sobre tal evento na base do que leem nas revistas e jornais, confirmando-se o poder da mídia de configurar visões de mundo.

Se considerarmos ainda, conforme van Dijk (1991), que é objetivo da notícia que seus leitores formem um modelo do evento reportado similar ao do jornalista, isso se dará mediante o controle estratégico do material linguístico. A mídia, portanto, utilizando-se de sistemas de referenciação na construção de significados para o mundo, constrói também sistemas classificatórios que influenciam nossas leituras desse mundo e nossos sistemas cognitivos.

Em nosso trabalho, observamos que esse controle se deu por meio da utilização de imaginários e representações sociais sobre nós mesmos e os outros - imaginários e representações que fazem parte das cognições sociais partilhadas em nossa sociedade - com o objetivo de se justificar e se legitimar a guerra. Dessa forma, se a cognição social constitui a interface entre o social e o discursivo, ou entre os indivíduos e os grupos sociais, as reportagens analisadas nos mostraram a qual grupo social o locutor se filia, na medida em que foi a visão norte-americana sobre os eventos, sobre o nós e o outro que foi privilegiada. Observamos isso por meio da escolha de categorias lexicais por parte do locutor, as quais, segundo Koch (2004), trazem ao leitor informações sobre as opiniões, crenças e atitudes do produtor textual, explicitando a perspectiva pela qual o objeto-de-discurso foi elaborado e, ao mesmo tempo, fornecendo os caminhos para a construção colaborativa desses objetos.

Se a utilização ideológica da referenciação seleciona categorias como democracia e respeito aos direitos humanos, por exemplo, para se referir aos Estados Unidos, e categorias como fanatismo, radicalismo e guerrilha, relacionadas ao Iraque, nosso conhecimento de mundo, arquivado em forma de modelos mentais de eventos, nos levará a ativar toda a compreensão que temos dessas categorias na formação dos modelos mentais sobre o evento social guerra no Iraque. E, se como já afirmado anteriormente, a mídia no campo das relações internacionais se constitui, muitas vezes, na única forma de acesso que temos aos eventos ocorridos no cenário mundial, a compreensão da Guerra será construída quase que exclusivamente na base dos sistemas referenciais do discurso midiático.

Recebido em 04/03/09.

Aprovado em 23/02/10.

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  • *
    Artigo resultante de Dissertação de Mestrado defendida junto ao Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei (PROMEL/UFSJ), sob orientação do professor Dr. Antônio Luiz Assunção e com fomento da CAPES.
  • 1
    As crenças devem ser entendidas enquanto um sistema de compreensão dos eventos, relacionadas àquilo que os grupos sociais acreditam ser verdadeiro.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Dez 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2010

    Histórico

    • Recebido
      04 Mar 2009
    • Aceito
      23 Fev 2010
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