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Características das crianças menores de cinco anos atendidas em serviços de atenção básica em dois municípios do nordeste brasileiro

The characteristics of children under five years of age receiving basic care services in two municipalities in the Northeast region of Brazil

Resumos

Objetivos

descrever a prevalência de consultas nos serviços de saúde com médico ou enfermeiro em crianças menores de cinco anos de idade nos municípios de Caracol e Anísio de Abreu, Piauí e identificar os fatores associados.

Métodos:

trata­se de estudo transversal de base populacional com crianças de 0 a 59 meses. A coleta de dados foi realizada mediante aplicação de questionários entre julho e setembro de 2008. Utilizou­se para análise multivariada a Regressão de Poisson e o modelo hierarquizado.

Resultados:

entre as 1640 crianças incluídas no estudo, a prevalência de consultas nos serviços de saúde em Caracol foi de 44,2% (IC95% 40,1­47,4) e em Anísio de Abreu foi de 48,5% (IC95% 44,8­52,1). Após ajuste para eventuais fatores de confusão, consultar esteve associado com maior renda familiar e menor distância do serviço de saúde em Caracol. Em Anísio de Abreu, o desfecho associou­se com abastecimento de água e idade das crianças.

Conclusões:

a análise encontrou diferenças nos cuidados à saúde relacionados às condições socioeconômicas entre os municípios, apontando para iniquidades no sistema de saúde.

Acesso aos serviços de saúde; Equidade em saúde; Saúde da criança


Objectives:

to describe the prevalence of health service consultations with a doctor or a nurse among children under five years of age in the municipalities of Caracol and Anísio de Abreu, Piauí and to identify associated factors.

Methods:

a population­based cross­sectional study was carried out with children aged between 0 and 59 months. Data was collected using questionnaires between July and September 2008. Poisson's Regression and the hierarchized model were used for multivariate analysis.

Results:

among the 1640 children included in the study, the prevalence of health service consultations in Caracol was 44.2% (CI95% 40.1­47.4) and 48.5% (CI95% 44.8­52.1) in Anísio de Abreu. After adjustment for any confounding factors, consultation was found to be associated with higher household income and shorter distance from the health service in Caracol. In Anísio de Abreu, the outcome was associated with water supply and the child's age.

Conclusions:

the analysis found differences in health care related to socioeconomic conditions between the municipalities, indicating inequities in the health service.

Health services accessibility; Equity in health; Child health


Introdução

Os marcadores de saúde infantil são fortemente influenciados pelas condições de vida.1Victora CG, Cesar JA. Saúde materno-infantil no Brasil: padrões de morbidade e possíveis intervenções. In: Rouquayrol MZ, Almeida-Filho NM. Epidemiologia e saúde. 6 ed. Rio de Janeiro (RJ): MEDSI; 2003.,2Kerr-Pontes LR, Rouquayrol MZ. Medida da saúde coletiva. In: Rouquayrol MZ, Almeida-Filho NM. Epidemiologia e saúde. 6 ed. Rio de Janeiro (RJ): MEDSI; 2003. Nutrição, condições de habitação, poder aquisitivo, educação e disponibilidade aos serviços de saúde são componentes fundamentais no meio em que as crianças vivem.3Ramos DD, Lima MADS. Acesso e acolhimento aos usuários em uma unidade de saúde de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Cad Saúde Pública. 2003; 19 (1): 27- 34.

As ações de saúde destinadas às crianças consistem em medidas voltadas para a prevenção e recuperação da saúde que exigem recursos de baixa complexidade e que provocam impacto positivo nas condições de vida da população infantil. Assim, preconiza­se o acompanhamento do crescimento e desenvolvimento, incentivo à amamentação, ampliação da cobertura de agentes imunizantes, cuidados com doenças respiratórias e doenças diarréicas. Portanto, entre o elenco de atividades desenvolvidas em atenção primária a saúde os cuidados com a população infantil são prioritários.

Estudos têm mostrado que a oferta de cuidados na atenção primária em saúde pode ser determinante para melhorar as condições de saúde da população.4Marmot M. Health in an unequal world. Lancet. 2006; 368: 2081-94.­6Barros FC, Matijasevich A, Requejo JH, Giugliani E, Maranhão AG, Monteiro CA, Barros AJD, Bustreo F, Merialdi M, Victora CG. Recent trends in maternal, newborn and child health in Brazil: progress toward Millenium Development Goals 4 and 5. Am J Public Health. 2010; 100 (10): 1877-89.

Na Região Nordeste do Brasil, apesar dos evidentes avanços nos indicadores de saúde, os coeficientes de mortalidade infantil são mais elevados que no restante do país.7Victora CG, Aquino EML, Leal MC, Monteiro CA, Barros FC, Szwarcwald CL. Saúde de mães e crianças no Brasil: progressos e desafios. Lancet. (Série Brasil) [Internet]. 2011; 32-46. Disponível em: http://download.thelancet.com/flatcontentassets/pdfs/brazil/brazilpor2.pdf
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Essa realidade é determinada por problemas nas condições socioeconômicas, incluindo deficiência na oferta de serviços de saúde. Desta forma, estudos sobre o acesso e a utilização de serviços de saúde podem contribuir para se verificar a disponibilidade de oferta e equidade da assistência.8César JA, Matijasevich A, Santos IS, Barros AJD, Dias da Costa JS, Barros FC, Victora CG. The use of maternal and child health services in three population-based cohorts in Southern Brazil, 1982-2004. Cad Saúde Pública. 2008; 24 (3): 427-36.,9Schramm JMA, Szwarcwald CL. Diferenciais nas taxas de mortalidade neonatal e natimortalidade hospitalares no Brasil: um estudo com base no Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS). Cad Saúde Pública. 2000; 16 (4): 1031-40.

Os pequenos municípios, que se localizam distante dos grandes centros urbanos e que são pobres, geralmente apresentam estrutura em saúde insuficiente e carecem de profissionais qualificados para oferecer saúde do ponto de vista coletivo.1010 Cesar JA, Gonçalves TS, Neumann N, Oliveira-Filho JA, Diziekaniak AC. Saúde infantil em áreas pobres das Regiões Norte e Nordeste do Brasil: comparando indicadores básicos em áreas atendidas pela Pastoral da Criança e áreas-controle. Cad Saúde Pública. 2005; 21: 1845-55. Sendo assim, o presente estudo teve como objetivo verificar a prevalência de consulta nos serviços de saúde com médico ou enfermeiro nos três meses anteriores à entrevista em crianças menores de cinco anos em dois municípios pobres do Piauí.

Métodos

O presente artigo é parte de um projeto mais amplo que tinha por objetivo avaliar indicadores básicos de saúde materno­infantil nos municípios de Caracol e Anísio de Abreu, Piauí. Incluiu um estudo transversal de base populacional realizado pela Universidade Federal do Rio Grande, no período de julho a setembro de 2008. A população alvo foi constituída por todas as crianças com idades até 59 meses residentes nas áreas urbana e rural destes municípios.

Estes dois municípios estão localizados no sul do Estado do Piauí, aproximadamente 600 km de Teresina, a capital. Segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),1111 IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). IBGE Cidades - PI, 2010. Rio de Janeiro: IBGE. Disponível em http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1.
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a população de Caracol e de Anísio de Abreu era de 10.212 e 9.098 habitantes, respectivamente. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do município de Caracol era de 0,59 e o Produto Interno Bruto (PIB) per capita de R$ 2.618,38.1212 PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Atlas do Desenvolvimento Humano. Índice de Desenvolvimento Humano - Municipal, 1991 e 2000 [serial online] [cited 2011 dez 7]. Disponível em http://www.pnud.org.br/atlas/ranking/IDH-M%2091%2000%20Ranking%20decrescente%20(pelos%20dados%20de%202000).htm
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O município contava com cinco estabelecimentos de saúde, sendo quatro públicos e um privado. Em Anísio de Abreu, o IDH era de 0,63 e o PIB per capita de R$ 2.469,67 (2008).1212 PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). Atlas do Desenvolvimento Humano. Índice de Desenvolvimento Humano - Municipal, 1991 e 2000 [serial online] [cited 2011 dez 7]. Disponível em http://www.pnud.org.br/atlas/ranking/IDH-M%2091%2000%20Ranking%20decrescente%20(pelos%20dados%20de%202000).htm
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O município contava com quatro estabelecimentos de saúde, todos públicos. Segundo o Sistema de Informações sobre Mortalidade, a mortalidade infantil foi muito variável em Caracol e em Anísio de Abreu. Entre 2006 e 2010, as maiores taxas de mortalidade infantil atingiram 43,8 óbitos por mil em Caracol em 2008 e 21,7 em Anísio de Abreu em 2009.1313 DATASUS (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde). Informações de Saúde. Óbitos Infantis - Piauí [serial online] 2010 [cited 2014 mar 10]. Available from http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sim/cnv/obt10PI.def
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O IDH dos municípios pesquisados figurava entre os mais baixos do país. Em 2008, quando este estudo foi realizado, o Programa Bolsa Família do governo federal atendia cerca de dois terços de todas as famílias em cada um destes municípios. Cerca da metade da população vivia abaixo da linha da pobreza.1111 IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). IBGE Cidades - PI, 2010. Rio de Janeiro: IBGE. Disponível em http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1.
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Este estudo incluiu todas as crianças menores de cinco anos residentes nestes municípios no período da coleta de dados. Foram excluídas mães que apresentavam limitações cognitivas e/ou físicas que impediam a aplicação do questionário. Ao final da coleta dos dados, uma mãe que possuía duas crianças menores de cinco anos foi excluída.

Foi calculado posteriormente que o número de crianças encontradas era suficiente para garantir nível de confiança de 95%, poder de 80%, e exposições variando de 20% a 80%, permitindo identificar uma razão de risco de 1,7.

Em ambos os municípios, as quadras nas áreas urbanas foram numeradas, e nas áreas rurais, os limites foram delimitados por estradas, riachos e montanhas. Os domicílios foram visitados e as crianças selecionadas. Foi realizado treinamento com dez entrevistadores, os quais realizaram a aplicação dos questionários. Ao final do treinamento, foi realizado um estudo piloto no município de São Raimundo Nonato, Piauí. A coleta de dados ocorreu a partir da aplicação de questionários padronizados e pré­codificados às mães ou as pessoas responsáveis pela guarda obtendo­se informações referentes à criança e a família. O controle de qualidade foi realizado durante a coleta, por meio de repetição parcial de 5% das entrevistas ou supervisão direta.

O principal desfecho do estudo foi consultar nos serviços de saúde com médico ou enfermeiro nos três meses anteriores à entrevista.

As variáveis independentes foram classificadas como: geográficas (município; área urbana ou rural); características maternas e paternas (cor da pele referida pela mãe; escolaridade da mãe; escolaridade do pai; idade da mãe; número de filhos); variáveis socioeconômicas (renda familiar mensal em salários mínimos; abastecimento de água; possuir luz elétrica; distância do serviço de saúde); biológicas da criança (sexo; idade, cor da pele referida; estado nutricional); suporte/organização da família (receber Bolsa Família; possuir cartão da criança); indicadores de gravidade (hospitalização no último ano; morte de criança menor de cinco anos no ano anterior à entrevista na residência).

Para classificação do estado nutricional foram tomadas as medidas de peso e estatura ou comprimento, este se as crianças eram menores de dois anos de idade. O peso foi obtido por meio de balança portátil com precisão de 100 gramas fornecidas pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e instaladas no próprio domicilio da criança. Para o comprimento foi utilizado infantômetro Harpenden com precisão de 1 mm (Holtain, Crymych, UK) e técnica padronizada, enquanto a altura foi medida usando estadiômetros de alumínio com precisão de 1 mm. Assim, o estado nutricional das crianças foi classificado pelo índice de massa corporal (IMC) obtido a partir do indicador peso/altura por meio do programa Anthro.1414 WHO (World Health Organization). WHO Anthro for personal computers: software for assessing growth and development of the world's children (version 3. 2.2). Geneva, Switzerland: 2009. [acesso em 29 mar 2012]. Available from: http://www.who.int/childgrowth/software/en/
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Os valores obtidos neste cálculo foram convertidos em escore­z de acordo com as Curvas de Crescimento da Organização Mundial da Saúde (OMS). Considerou­se como portadora de excesso de peso a criança que apresentou escore­z para IMC >+1 em relação à mediana da população de referência. Assim, nesta categoria foram incluídas todas as crianças com risco de sobrepeso (>+1 a +2), sobrepeso (> +2 a +3) e obesidade (>+3).1515 WHO Multicentre Growth Reference Study Group. WHO child growth standards based on length/height, weight and age. Acta Paediatr. 2006; 450 (Suppl.): 76-85.

A entrada dos dados foi realizada através do Programa Epi Info versão 6.04, com dupla entrada, para posterior comparação dos bancos de dados e correção dos possíveis erros de digitação. Posteriormente ocorreu a limpeza do banco de dados a partir do Programa Stata versão 11.0. Durante o processamento dos dados, foram checadas consistência e validade interna dos dados pelos pesquisadores responsáveis pelo estudo.

A análise descritiva dos dados foi realizada através do programa Stata versão 11.0, comparando­se os municípios. Foi realizada análise bruta estratificada por municípios, pois embora aparentemente fossem semelhantes, apresentavam diferenças na composição sociodemográfica.

As variáveis que atingiram níveis de significância <0,20 foram incluídas no modelo ajustado hierarquizado16 mediante Regressão de Poisson.1717 Barros AJD, Hirakata UM. Alternatives for logistic regression in cross-sectional studies: an empirical comparision of models that directly estimate the prevalence ratio. BMC Med Res Methodol. 2003; 3: 21. O modelo de análise foi hierarquizado colocando­se no nível mais distal as variáveis geográficas. O segundo nível foi constituído pelas características maternas e paternas; pelas variáveis socioeconômicas e pelas variáveis biológicas da criança. No terceiro nível estavam as variáveis referentes à organização da família seguidas pelos indicadores de gravidade (quarto nível). Todos os níveis determinavam os níveis inferiores e tinham efeito direto sobre o desfecho (Figura 1).

O projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (CEPAS/UFPel). Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Figura 1
Modelo hierarquizado de análise.

Resultados

Entre as 1640 crianças menores de cinco anos participantes do estudo, 755 (46,0%; IC95% 43,6 – 48,4) consultaram em serviços de saúde nos três meses anteriores à entrevista. Do total de 928 crianças do município de Caracol, 410 (44,2%; IC95% 40,1 ­ 47,4) consultaram em serviços de saúde nos três meses anteriores à entrevista e em Anísio de Abreu observou­se que do total de 712 crianças participantes, 345 (48,5%; IC95% 44,8 ­ 52,1) tinham consultado.

A maioria dos indivíduos incluídos no estudo, em ambos os municípios, era de cor da pele parda/mulata, tinha escolaridade materna e paterna de até oito anos e as mulheres tinham de 20 a 29 anos. Mais de 80% das famílias possuíam renda inferior a dois salários mínimos, cerca de metade não tinha abastecimento de água em sua residência e a maioria recebia fornecimento de luz elétrica e residia a menos de três quilômetros de distância do serviço de saúde. Em relação às características biológicas das crianças foi constatado um predomínio de meninas em Caracol e de meninos em Anísio de Abreu. Foi confirmado um maior percentual de crianças de cor parda. Em ambos os municípios a prevalência de sobrepeso/obesidade foi superior ao de desnutrição. Entretanto, destacou­se que a prevalência de desnutrição foi de aproximadamente 17% nas duas localidades. Quanto às variáveis que caracterizaram a organização da família, em ambos os municípios, verificou-se que quase metade recebia bolsa família e mais de 90% apresentaram cartão da criança. Nos dois municípios a prevalência de internações hospitalares no último ano foi superior a 10%, enquanto a ocorrência de óbitos nas crianças menores de cinco anos foi inferior a 1% (Tabela 1).

Tabela 1
Distribuição da amostra de acordo com as variáveis para consulta em serviço de saúde nos últimos três meses de acordo com variáveis geográficas, demográficas, socioeconômicas, biológicas da criança, indicadoras de gravidade e de organização da família. Caracol e Anísio de Abreu, Piauí, Brasil, 2008 (N=1640).

Na comparação entre os municípios, constatou-se que em Caracol a maior parte da população residia na área rural, referiu cor da pele como parda/mulata e preta, a escolaridade das mães foi mais baixa e o percentual de multíparas foi mais elevado. Em Caracol também foi observado maior número de famílias sem abastecimento de água e sem luz elétrica na casa. O percentual de pessoas que residiam a mais de três quilômetros foi mais elevado em Caracol (Tabela 1).

Na análise bruta, em Caracol, foram observadas maiores prevalências de consulta em serviços de saúde nas crianças com renda familiar mensal com três ou mais salários mínimos e que residiam a menos de três quilômetros de serviços de saúde. Estas diferenças foram confirmadas pelos intervalos de confiança e pelos testes estatísticos. Algumas variáveis foram conduzidas ao modelo, mas sem significância estatística. Foi constatado que crianças com pais de escolaridade mais elevada, que tinham fornecimento de luz elétrica na casa, que possuíam cartão da criança e que haviam sido hospitalizadas no último ano apresentaram maiores prevalência de crianças cujas mães apresentavam 30 anos ou mais, de famílias com número maior de filhos e com idade até 23 meses consultavam menos nos serviços de saúde (Tabela 2).

Tabela 2
Prevalência e razões de prevalências (RP) brutas para consulta em serviço de saúde nos últimos três meses de acordo com as variáveis geográficas, demográficas, socioeconômicas, biológicas da criança, indicadoras de gravidade e de organização da família. Caracol e Anísio de Abreu, Piauí, Brasil, 2008 (N=1640).

Em Anísio de Abreu, as maiores prevalências de consulta em serviços de saúde foram constatadas nas crianças com mães de escolaridade mais elevada, entre as mães mais jovens (13-19 anos) e em famílias que possuíam abastecimento de água do domicílio. Também entraram no modelo ajustado algumas variáveis que mostraram maiores prevalência do desfecho, como morar na zona urbana e possuir luz elétrica. As crianças que tinham três ou mais irmãos e com até 11 meses de idade consultaram menos (Tabela 2).

Em Caracol, após ajuste permaneceram no modelo as variáveis: renda familiar e distância do serviço de saúde. As variáveis idade da mãe e hospitalização no último ano apresentaram níveis de significância limítrofes. As crianças de famílias com renda mensal de três ou mais salários mínimos mensais e que moravam a menos de 3 km apresentaram maior prevalência de consulta em serviços de saúde nos três meses anteriores à entrevista. As crianças cujas mães tinham 30 anos ou mais consultaram menos (Tabela 3).

Tabela 3
Razões de prevalências (RP) ajustadas para consulta em serviço de saúde nos últimos três meses de acordo com variáveis geográficas, demográficas, socioeconômicas, biológicas da criança, indicadoras de gravidade e de organização da família. Caracol e Anísio de Abreu, Piauí, Brasil, 2008 (N=1640).

No município de Anísio de Abreu se verificou que as crianças cujas residências possuíam abastecimento de água no terreno consultaram mais nos serviços de saúde nos três meses anteriores à entrevista. Por sua vez, as crianças a partir de 48 meses de idade consultaram menos (Tabela 3).

Discussão

Uma das principais preocupações na saúde mundial incentivada pela Organização Mundial da Saúde e brasileira inclusive como dispositivo constitucional tem sido cobertura universal de assistência.1818 Moreno-Serra R, Smith PC. Does progress towards universal health coverage improve population health? Lancet. 2012; 380: 917-23. Existem evidências mostrando que a ampliação da cobertura na assistência leva a melhores resultados na saúde da população pela ampliação da oferta de serviços públicos, extensão de programas sociais e disseminação de intervenções específicas.1919 Giedion U, Diaz BY. A review of evidence. In: Escobar ML, Griffin C, Shaw RP (editors). The impact of health insurance in low and middle income countries. Washington D.C.: Brookings Institution Press; 2010. p. 13-32.,2020 Nyman J. Health insurance theory: the case of the missing welfare gain. Eur J Health Econ. 2008; 9 (4): 369-80. Entretanto, no presente estudo, praticamente metade das crianças havia consultado nos três meses anteriores à entrevista, o que permitiu fazer a estimativa de duas consultas/criança ano. Ao levar em consideração que foram incluídas crianças menores de um ano, as quais exigiam maior acompanhamento e, ressaltando que as crianças acima de um ano de idade também necessitavam de maiores cuidados de saúde, inferiu-se que a concentração de consultas foi muito baixa. De fato, a análise mostrou que as crianças menores de 11 meses de idade consultaram mais os serviços de saúde como aliás, era esperado uma vez que o instrumento de pesquisa não discriminava consultas preventivas (pesar, realizar imunizações) daquelas por motivos de doenças.

Outro objetivo dos sistemas de saúde tem sido a distribuição equitativa dos recursos.2121 WHO Task Force on Research Priorities for Equity in Health, WHO Equity Team. Priorities for research to take forward the health equity policy agenda. Bull World Health Organ. 2005; 83 (12): 948-53. Neste estudo, foram encontrados indícios de iniquidade. Em Caracol, as crianças cujas famílias possuíam maior renda, consultavam mais. Em Anísio Abreu, as diferenças por renda e escolaridade não foram verificadas, o que poderia indicar uma desejável ausência de desigualdade na distribuição dos recursos. Deve-se destacar que a análise da variável escolaridade paterna ficou prejudicada pelo elevado percentual de respostas ignoradas. Entretanto, em Anísio de Abreu nas famílias abastecidas por água (um bem essencial para a vida), as crianças consultaram mais. Esta variável pode ser considerada marcadora das condições socioeconômicas e, então, revelar iniquidade no município.2222 Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. O sistema de saúde brasileiro: história, avanços e desafios. Lancet. (Série Brasil) [Internet]. 2011; 11-31. Disponível em: http://download.thelancet.com/flatcontentassets/pdfs/brazil/brazilpor1.pdf
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Assim, mesmo no presente estudo realizado em dois lugares muito pobres, com sociedades muito homogêneas, a análise possibilitou encontrar diferenças nos cuidados à saúde relacionados às condições socioeconômicas.2323 Castro MSM, Travassos C, Carvalho MS. Fatores associados às internações hospitalares no Brasil. Ciênc Saúde Coletiva. 2002; 7: 687-708.

24 Travassos C, Viacava F, Fernandes C, Almeida CM. Desigualdades geográficas e sociais na utilização de serviços de saúde no Brasil. Ciênc Saúde Coletiva. 2000; 5: 133-49.
-2525 Almeida C, Travassos C, Porto S, Labra ME. Health sector reform in Brazil: a case study of inequity. Int J Health Serv. 2000; 30: 129-62. Aliás, estudo transversal realizado em Caracol em 2005 tinha mostrado as pessoas inseridas no mais baixo tercil de pobreza apresentando piores indicadores de cobertura.2626 Mano PS, Cesar JA, González-Chica DA, Neumann NA. Iniquidade na assistência à gestação e ao parto em município do semiárido brasileiro. Rev Bras Saúde Matern Infant. 2011; 11 (4): 381-8.

No município de Caracol, as crianças que residiam em regiões próximas aos serviços de saúde consultaram mais nos três meses anteriores à entrevista. Este resultado sugeriu maior disponibilidade na oferta dos serviços para estas crianças. À medida que aumentava a distância geográfica entre os usuários e o serviço diminuía o número de consultas.2727 Mooney C, Zwanziger J, Phibbs CS, Schmitt S. Is travel distance a barrier to veteran's use of VA hospitals for medical surgical care? Soc Sci Med. 2000; 50: 1743-55.,2828 Oliveira EXG, Travassos C, Carvalho MS. Acesso à internação hospitalar nos municípios brasileiros em 2000: territórios do Sistema Único de Saúde. Cad Saúde Pública. 2004; 20 (Suppl. 2): 298-309.

A análise mostrou que as crianças que foram hospitalizadas no último ano também apresentaram maiores prevalência na utilização dos serviços de saúde, com significância limítrofe. Hospitalizações estão associadas à gravidade das condições clínicas e a severidade da situação pode impor maior acompanhamento e aumento do número de consultas.2929 Dias da Costa JS, Olinto MTA, Gigante DP, Menezes AMB, Macedo S, Daltoé T, Santos IS, Fuchs SC. Utilização de serviços ambulatoriais de saúde em Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil: alguns fatores relacionados com as consultas médicas acima da média. Cad Saúde Pública. 2008; 24 (2): 353-63.

Os resultados deste estudo apontaram que, em Caracol, mães com idade igual ou superior a 30 anos buscaram menos o serviço de saúde, embora com significância limítrofe. Contudo, em Anísio de Abreu os achados foram divergentes: mães de 25 a 29 anos consultaram mais, com seus filhos, conforme os limites dos intervalos de confiança. Deve-se chamar a atenção para que esta associação entre idade da mãe e consulta em serviço de saúde foi verificada mesmo ajustando-se para número de filhos. Sabe-se que mulheres com mais de 30 anos tendem a apresentar uma maior prevalência de pré-natal inadequado. Isto sugere que essas mães têm menor cuidado com sua saúde. Assim, deve ser ressaltado que do ponto de vista de provimento de cuidados em saúde, a busca ativa das mães com mais de 30 anos pode ser estratégica para a qualificação dos cuidados de saúde infantil.

A idade das crianças estava associada à prevalência de consultas. Nos dois municípios, principalmente em Anísio de Abreu, foi observada a diminuição de consultas a partir dos 24 meses, o que seria esperado pela diminuição da morbidade e pelo desenvolvimento somático da população infantil.

O estado nutricional de todos os participantes do estudo foi classificado mediante o índice de massa corpórea, o que o Programa Anthro permite. Embora as crianças menores de dois anos tradicionalmente sejam classificadas pelo índice peso para altura, a análise não mostrou associação.3030 Meller FO, Araújo CLP, Madruga SW. Fatores associados ao excesso de peso em crianças brasileiras menores de cinco anos. Ciênc Saúde Coletiva. 2014; 19 (3): 943-55.

Deve-se ressaltar a presença de algumas limitações relacionadas à natureza deste estudo, como causalidade reversa, viés de memória e problemas de representação, próprias de estudos transversais. No entanto, foi possível identificar a magnitude das variáveis avaliando a realização de consultas nos serviços de saúde e definindo estratégias de ação. Obteve-se rigor na seleção do método e na condução do trabalho de campo. Esses critérios garantiram a validade interna e podem ser representativos para municípios deste porte e características do Brasil.

Estudos transversais podem fornecer importantes contribuições para o diagnóstico de condições de saúde. O presente estudo realizado em dois municípios muito pobres no país mostrou dificuldades no acesso aos serviços de saúde, como indicado pela baixa concentração de consultas. O estudo revelou fatores associados que expressavam iniquidade à saúde. Os serviços de atenção primária deveriam reconhecer a população infantil como um de seus grupos de acompanhamento prioritário.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    11 Jul 2013
  • Revisado
    20 Out 2014
  • Aceito
    03 Nov 2014
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