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Quando uma palavra toca a outra: topogênese e ensaios sobre a espacialização da vida de bebês e crianças e o direito a (outra) cidade. O desacostumar em formas de becos

When one word touches another: topogenesis and essays on the spatialization of the lives of babies and children and the right to (another) city. The unaccustomed in alleys

Cuando una palabra toca a otra: topogénesis y ensayos sobre la espacialización de la vida de bebés, niños y niñas y el derecho a (otra) ciudad. El desacostumbrado en los callejones

Resumo:

Neste texto, desejamos dialogar sobre a espacialização da vida de bebês e crianças nas cidades, a partir de um olhar sobre a urbanização e sobre o viver em diferenciados territórios. Nossa reflexão se faz a partir da condição do beco, como uma expressão espacial desacostumada, que tem a força e a potência das próprias infâncias. Contaremos, assim, as histórias dos becos, em formas de geografias, com as crianças e com os bebês, para, com eles, olharmos suas vivências espaciais e o seu direito à cidade. Este artigo é um encontro com outros, um ajuntar de vozes oriundas não só de outras pesquisas, mas com autores acadêmicos e, também, com a literatura. Trata-se de um ensaio que busca colocar em interface os temas centrais presentes no próprio título. Nessa perspectiva, busca-se pensar o direito à criação de outra forma de espacialidade, em que está posta a própria condição de humanização e, em especial, a dimensão da topogênese como uma das marcas a ser apreciada. Defendemos que a garantia do direito a (outra) cidade deve ter como princípio não somente a tão apontada autonomia espacial, mas, junto a ela, a garantia da autoria espacial e do desenvolvimento em sua totalidade.

Palavras-chave:
Topogênese; Espacialização da vida de bebês e crianças; Direito à (outra) cidade; O desacostumar em formas de becos

Abstract:

In this text, we want to dialogue about the spatialization of the lives of babies and children in the cities, from a look at urbanization and living in different territories. Our reflection is based on the condition of the alley, as an unaccustomed spatial expression, which has the strength and potency of childhood itself. We will thus tell the stories of the alleys, in the form of geographies, with children and babies, so that we can look at their spatial experiences and their right to the city. This paper is an encounter with others, a set of voices coming from other research, with academic authors and with the literature. It is an academic essay that addresses the central themes present in the title itself. And, in this perspective, thinking about the right to create another form of spatiality, in which the very condition of humanization and, in particular, the dimension of topogenesis is considered as one of the marks to be appreciated. We argue that the guarantee of the right to (another) city must have as a principle not only the so-called spatial autonomy, but, together with it, the guarantee of spatial authorship and development in its entirety.

Keywords:
Topogenesis; Spatialization of the lives of babies and children; Right to (another) the city; The unaccustomed in alleys

Resumen:

En el texto queremos dialogar sobre la espacialización de la vida de bebés, niños y niñas en las ciudades, desde una mirada a la urbanización y la convivencia en diferentes territorios. Nuestra reflexión se basa en la condición del callejón, como expresión espacial desacostumbrada, que tiene la fuerza y la potencia de la propia infancia. Así contaremos las historias de los callejones, en formas de geografías, con niños, niñas y bebés, para que podamos mirar sus vivencias espaciales y su derecho a la ciudad. Este artículo es un encuentro con otros, un encuentro de voces provenientes no solo de otras investigaciones, sino también de autores académicos y también de la literatura. Es un ensayo que busca interconectar los temas centrales presentes en el título mismo. Y, en esta perspectiva, pensar en el derecho a crear otra forma de espacialidad, en la que la propia condición de humanización y, en particular, la dimensión de la topogénesis sea considerada como una de las marcas a valorar. Defendemos que la garantía del derecho a (otra) ciudad debe tener como principio no solo la llamada autonomía espacial, sino, junto con ella, la garantía de la autoría espacial y el desarrollo en su totalidad.

Palabras clave:
Topogénesis; Espacialización de la vida de bebés, niños y niñas; Derecho a (otra) la ciudad; El desacostumbrado en los callejones

Becos

Beco da minha terra…

Amo tua paisagem triste, ausente e suja.

Teu ar sombrio. Tua velha umidade andrajosa.

Teu lodo negro, esverdeado, escorregadio.

E a réstia de sol que ao meio-dia desce, fugidia, e semeia polmes dourados no teu lixo pobre, calçando de ouro a sandália velha, jogada no teu monturo.

Amo a prantina silenciosa do teu fio de água, descendo de quintais escusos sem pressa, e se sumindo depressa na brecha de um velho cano.

Amo a avenca delicada que renasce na frincha de teus muros empenados, e a plantinha desvalida, de caule mole que se defende, viceja e floresce no agasalho de tua sombra úmida e calada.

Amo esses burros de lenha que passam pelos becos antigos. (Coralina 2012Coralina, Cora. 2012. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Global Editora., 63).

Principiar este texto com Cora Coralina (2012)Coralina, Cora. 2012. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Global Editora., poetisa, contista nascida em 1889, na cidade de Goiás, estado de mesmo nome, e falecida em 1985, na mesma região, é uma escolha, ao mesmo tempo, estética e ética, uma posição, um lugar de acomodação para um artigo que tem como pretensão dialogar com os seus possíveis leitores sobre a vivência espacial (Lopes 2020Lopes, Jader J. Moreira. 2020. Um dinossauro faminto, um adulto e uma criança: o espaço e as geografias do viver. In EnLacES no debate sobre infância e educação infantil, organizado por Catarina Moro, e Etienne Baldez, 221-46. Curitiba: Nepie-UFPR. e-Book., 2021Lopes, Jader J. Moreira. 2021. Terreno baldio – um livro para balbuciar e criançar os espaços para desacostumar geografias, por uma teoria sobre a espacialização da vida de bebês e crianças. São Carlos: Pedro e João Editores.) de bebês e crianças nas cidades.

Cora Coralina publicou, aos 75 anos, seu primeiro livro, do qual a epígrafe acima foi retirada no qual ela diz: “Mais fácil, para mim, escrever um livro do que publicá-lo” (Coralina 2012Coralina, Cora. 2012. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Global Editora., 14). Mas a publicação aconteceu e, em suas páginas, as palavras da mulher – também conhecida por seu ofício de fazer doces – encontram-se com os dizeres que sua velha cidade lhe sussurrava e que ela, com a delicadeza de uma colecionadora de paisagens, criava tintas nos papéis, recheadas de sentidos espaciais. Sua poesia é a certeza de que a vida se tece em formas de muitas linguagens que se esbarram e se descobrem, tornando o viver não separado do espaço, um espaço narrador, contador das muitas histórias dos que ali viveram e ainda vivem, prenhe de linguagens que se fazem nas geografias que se erguem e se materializam. Como nos lembra Milton Santos (2004aSantos, Milton. 2004a. A Natureza do espaço: técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo: Edusp., 2004bSantos, Milton. 2004b. Pensando o espaço do homem. São Paulo: Edusp.), o momento passado está morto como tempo, mas não como espaço.

Os becos, a umidade que vira o musgo, as plantas que brotam de fendas das rochas duras, a paisagem triste, as pedras escorregadias e tantas outras letras nos fazem conceber a vida como um ato inaugural no encontro, atitudes de enunciação em um plano social, que forjam, em relações autorais, as peculiares existências de cada ser humano, possibilitando, com isso, amar os burros carregados com lenhas que passam por esses antigos becos e outras arqueologias presentificadas em formas, em cheiros, em cores, em sabores, em sensações diversas que nos colocam como seres imersos nas muitas paisagens terrestres, concebidas por nós e em nós.

Esse tesouro da linguagem (Bakhtin 2002Bakhtin, Mikhail. 2002. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec.), que é herdado das gerações anteriores,2 2 Conforme já apontamos em texto anterior (Lopes e Mello 2017, 16): A expressão “tesouro da língua” aparece em Bakhtin quando de sua discussão sobre o discurso no romance. Especificamente na discussão da relação entre discurso na poesia e discurso no romance e na discussão sobre os fundamentos folclóricos da obra de Rabelais (Bakhtin 2002, 87, 326), trata-se de um termo tomado de Saussure a respeito da fala. Para Bakhtin, esse tesouro não se trata de um acervo ou de algum repertório, mas da abertura à cultura, pela via do diálogo interno que a linguagem faz acessar no encontro dialógico entre dois enunciadores, tal como em Para uma filosofia do ato responsável (Bakhtin 2010, 106). encontra-se com a vida que nasce e torna bebês e crianças enunciadores responsáveis (Bakhtin 2010Bakhtin, Mikhail. 2010. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores.) pela cultura em que vivem e, entre eles, está a cultura espacial, a condição de urbanidade, de ruralidade, de região, o pertencimento a um território, o apego e o desapego ao lugar, aos elementos da natureza, em suas variadas escalas de existir. Como esquecer as palavras de Fernando Sabino (1989Sabino, Fernando. 1989. O menino no espelho: o que você quer ser quando crescer? Rio de Janeiro: Record., 13-14), ao relembrar os gotejos da chuva no interior da sua casa:

Quando chovia, no meu tempo de menino, a casa virava um festival de goteiras. Eram pingos do teto ensopando o soalho de todas as salas e quartos. Seguia-se um corre-corre dos diabos, todo mundo levando baldes, bacias, panelas, penicos e o que mais houvesse para que os vazamentos não se transformassem numa inundação. Os mais velhos ficavam aborrecidos, eu não entendia a razão: aquilo era distração das mais excitantes. […] Os diferentes ruídos das gotas d’água retinindo no vasilhame, acompanhados do som oco dos passos em atropelo de tábuas largas do chão, formavam uma alegre melodia […].

Como esquecer as palavras de José Lins do Rego (2012Rego, José Lins do. 2012. Meus verdes anos: memórias. Rio de Janeiro: José Olympio., 2), ao trazer suas primeiras recordações de bebê que começava a engatinhar:

Tanto me contaram a história que ela se transformou na minha primeira recordação da infância. Revejo ainda hoje a minha mãe deitada na cama branca, a sua fisionomia de olhos compridos, o quarto cheio de gente e uma voz sumida que dizia: — Maria, deixa ele engatinhar para eu ver. Pus-me a engatinhar pelo chão de tijolo e a minha mãe sorria e eu ouvia o choro convulso da minha tia e uma voz grossa: — Ela está morrendo. Aí tudo parou. O mundo da infância penetra em névoas espessas […].

Ou, ainda, do medo da paisagem do quarto, narrado por Bartolomeu Campos de Queirós (1995Queirós, Bartolomeu C. de. 1995. Por parte de pai. Belo Horizonte: RHJ., 17-8):

Minha cama ficava no fundo do quarto. Pelas frestas da janela soprava um vento resmungando, cochichando, esfriando meus pensamentos, anunciando fantasmas. As roupas, dependuradas em cabides na parede, se transfiguravam em monstros e sombras. Deitado, enrolado, parado, imóvel, eu lia recado de cada mancha, em cada dobra, em cada sinal. O barulho do colchão de palha me arranhava. O escuro apertava minha garganta, roubava meu ar. O fio de luz terminava amarrado na cabeceira do catre. O medo, assim, maior do que meu quarto, me levava a apertar a pêra de galalite e acender a luz, enfeitada com papel crepom. O claro me devolvia as coisas em seus tamanhos verdadeiros. O nariz do monstro era o cabo do guarda-chuva, o rabo do demônio o cinto do meu avô, o gigante, a capa “Ideal” cinza para os dias de chuva e frio. Então, procurava distrair meu pavor decifrando os escritos na parede, no canto da cama, tão perto de mim. Mas era a dificuldade de acomodar as coisas dentro de mim. Sobrava sempre um pedaço.

Gotas de chuvas, palavras que forjam lembranças da primeira infância, narrativas que colocam em diálogo as escalas do mundo externo e interno. Sons que colocam os ritmos sociais em encontro com os ritmos naturais. Sonoridades que criam a indissociabilidade entre o eu e o mundo, entre a natureza e a sociedade. Ruídos ou silêncios, que despertam nossas relações em pessoalidades com esses entornos próximos ou distantes, entornos que nunca são puras metricidades, mas intensidades, assim como o quarto com uma cama no fundo que permite o resmungar dos ventos, que as paisagens se convertam em paisagens de medo (Tuan 2005Tuan, Yi-Fu. 2005. Paisagens do medo. São Paulo: Editora UNESP.), que apertam a garganta e criam escalas outras dos objetos. Sentimentos colocados nas vivências escalares do quarto do autor, também em sua infância, salvo pelas leituras da parede.

O nascer espacial é isso, é quando as palavras (quer em forma de balbucios, corporeidades ou outras linguagens) tocam outras (as nossas, também em múltiplas linguagens), potencializando a renovação, a condição de sermos e de estarmos em horizontes comuns e constantes, sejam dissonantes ou não, onde as muitas espacialidades são fronteiras embaçadas entre o eu e os outros, entre o mundo do sujeito e o dos outros, por sempre embebidas de muitos sentimentos. Aí estão as crianças e, também, os bebês. Vigotski (2006Vigotski, Lev Semionovich. 2006. Obras escogidas. Tomo IV. Madrid: Visor y A. Machado Libros., 286) nos lembra que o singular dos bebês em seu primeiro ano de vida é marcado por uma “[…] comunicación máxima com los adultos, pero esta comunicación es […] si palavras a menudo sileciosa, una comunicación de género totalmente peculiar”.

A vivência espacial (em russo prostranstvennoe perejivanie)3 3 Tradução do conceito por George y Ribeiro. Vamos inserir a expressão em russo pelo fato de que sua origem está nesse idioma e na expressão sistematizada por L. S. Vigotski, a qual nos devotamos a estudar em nossas pesquisas: trata-se do termo perejivanie que, segundo Prestes (2012), deve ser traduzido como vivência e não como experiência, comum em obras brasileiras. Escolhemos usar a palavra vivência ao invés de experiência, porque concordamos com a autora, pois entendemos que o conceito de vivência traduz unidade entre meio e a personalidade das pessoas, interfaceado pela autoria humana. Se a experiência é algo partilhado por todos no plano social, as vivências são as singularizações que emergem em nós dessa experiência. Essa escolha é, assim, um princípio ético com esse autor, além de, claro, também nosso desejo em crer nesse vocábulo forjado por ele. Com isso, o recorte espacial, por mais que pareça uma expansão ou um recorte é, sobretudo, uma dimensão dentro da unidade sistêmica e social que o termo perejivanie nos leva. Falamos, assim, em пространственное переживание (prostranstvennoe perejivanie), ou seja, a vivência espacial. que assumimos é essa condição humana, não reduzida à sua categoria cognitiva, à ilusão doentia criada pela lógica positivista4 4 Jerebtsov, Serguei. 2017. A teoria histórico-cultural e os problemas psicossomáticos da personalidade: estudo sobre o domínio de si mesmo. Veresk – Cadernos acadêmicos internacionais. Estudos sobre a perspectiva histórico-cultural de Vigotski 3: 47-62. https://bit.ly/3Ee4w8j. que nos arrancou da condição de ser como humano em uma unidade, em que as emoções, o intelecto, a corporeidade, as percepções e o social estão em fusão e criam, na fronteira, um novo lugar em habitação e não em mera interação, como polos situados em pontos adversos no espaço, mas a gênese de um novo topos. Uma unicidade em drama que marca o desenvolvimento como nos foi legado por Vigotski (2006)Vigotski, Lev Semionovich. 2006. Obras escogidas. Tomo IV. Madrid: Visor y A. Machado Libros., incluindo a própria topogênese (Lopes 2020Lopes, Jader J. Moreira. 2020. Um dinossauro faminto, um adulto e uma criança: o espaço e as geografias do viver. In EnLacES no debate sobre infância e educação infantil, organizado por Catarina Moro, e Etienne Baldez, 221-46. Curitiba: Nepie-UFPR. e-Book., 2021Lopes, Jader J. Moreira. 2021. Terreno baldio – um livro para balbuciar e criançar os espaços para desacostumar geografias, por uma teoria sobre a espacialização da vida de bebês e crianças. São Carlos: Pedro e João Editores.). Desenvolver-se é se transformar, na relação com si mesmo e com o outro, com o interno e externo como unidade. Por isso, a metáfora da metamorfose ganha uma força explicativa na proposição a seguir, pois, ao gerar neoformações (Vigotski 2006Vigotski, Lev Semionovich. 2006. Obras escogidas. Tomo IV. Madrid: Visor y A. Machado Libros.), a

[…] aquisição do novo, durante o desenvolvimento da personalidade, só é possível por meio da transformação, por meio da reconstrução, por meio da morte do antigo. Não por acaso que Vigotski citava as palavras: “Viver significa morrer” (F. Engels). Nessa relação, vale recorrer ao sentido literal da palavra pere-jivat, ou seja, passar por meio da vida, estar em caminho permanente, em busca, sempre morrer e nascer, estar no processo de reformulação de si mesmo, no fluxo da vida. Ao contrário, se não vivenciar - perejit, isso significa não viver. (Jerebtsov 2014, 21).5 5 Jerebtsov, Serguei. 2014. Gomel - a cidade de L. S. Vigotski. Pesquisas científicas contemporâneas, sobre instrução no âmbito da Teoria Histórico Cultural de L. S. Vigotski. Veresk – Cadernos acadêmicos internacionais. Estudos sobre a perspectiva histórico-cultural de Vigotski 1: 7-28. https://bit.ly/3TjjWwu.

Essa é a vivência espacial expressa que escolhemos para conversar com os bebês e com as crianças, com o ser humano em sua condição de humanidade, que está sempre em processo, transformação e metamorfose. É o [con]viver e o [co]existir como habitação ética, pois, como já descrevemos em outros artigos:

[…] falar da infância torna-se impossível fora dessas dimensões, uma vez que [o bebê] e a criança não está no espaço, não está no território, não está no lugar, nem na paisagem; ela é o espaço, ela é o território, ela é o lugar, é a paisagem e, por serem produtoras de cultura e de geografias, enriquecem nossa condição humana […]. (Lopes 2007Lopes, Jader J. Moreira. 2007. Geografia das crianças, geografia da infância: algumas reflexões para quem produz geografia com as crianças. In Infâncias: cidades e escolas amigas das crianças, organizado por Euclides Redin, Fernanda Müller, e Marita M. Redin, 43-55. Porto Alegre: Mediação., 87).

Este texto busca trazer alguns prenúncios, ensaios sobre tudo isso, são estudos que temos desenvolvido sobre a espacialização da vida de bebês e crianças em muitos locais, escolares e não escolares, mas, aqui, dada a temática proposta, fá-lo-emos a partir de um olhar sobre a urbanização e do viver em cidades, nas múltiplas formas que o grande tempo (Bakhtin 2002Bakhtin, Mikhail. 2002. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec.) materializou em lógicas de organização espacial, em seu emergir em diferenciados territórios e urbanidades. Pretendemos trazer argumentos para contribuir com o debate, sem o intuito de esgotá-lo ou findá-lo. Ao contrário, estamos assumindo as aberturas como as portas de passagem. São diálogos advindos de muitos outros já entabulados, tendo caráter de um ensaio enunciativo. Há muito ainda a ser construído nesse ser linguageiro que é o humano e que vivencia um espaço em sua espacialidade narradora.

Espacialidades narradoras e enunciadoras. Nessas conversas, é que muitas toponímias e diferenças se expressam, como os becos lembrados por Cora Coralina (2012)Coralina, Cora. 2012. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Global Editora., formas espaciais comuns nas cidades brasileiras, que mobilizam diversificados sentimentos. Nós mesmos, como nascedouros de cidades do interior mineiro, vivíamos uma relação de intimidades com os becos de nossas urbes, intimidades marcadas por medo, fascínio e outros anseios e que estão em nós, inclusive, no momento desta escritura. Por isso, abrimos com Cora Coralina (2012Coralina, Cora. 2012. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Global Editora., 64) e a ela voltamos:

Becos da minha terra,

discriminados e humildes,

lembrando passadas eras…

Beco do Cisco.

Beco do Cotovelo.

Beco do Antônio Gomes.

Beco das Taquaras.

Beco do Seminário.

Bequinho da Escola.

Beco do Ouro Fino.

Beco da Cachoeira Grande.

Beco da Calabrote.

Beco do Mingu.

Beco da Vila Rica…

Conto a estória dos becos, dos becos da minha terra […]

Contemos as histórias dos becos, em formas de geografias, com as crianças e com os bebês, para com eles olharmos suas vidas espacializadas nas cidades, suas muitas urbanidades, suas variadas formas de ser paisagens as quais brotam quer sejam no próprio urbano, quer sejam nas pessoas.

Quando as palavras, os enunciados de bebês e crianças se encontram com as cidades

A estória da Vila Rica é a estória da cidade mal contada, em regras mal traçadas. Vem do século dezoito, vai para o ano dois mil. Vila Rica não é sonho, inventação, imaginária, retórica, abstrata, convencional.

É real, positiva, concreta e simbólica. Involuída, estática. Conservada, conservadora. E catinguda. […]

Vivem perrengando de velhas velhices crônicas. Pertencem a velhas donas que não se esquecem de os retalhar de vez em quando. E esconjuram quando se fala em vender o fundo do quintal, fazer casa nova, melhorar. E quando as velhas donas morrem centenárias os descendentes também já são velhinhos.

Herdeiros da tradição–muros retelhados. Portões fechados.

Na velhice dos muros de Goiás o tempo planta avencas. (Cora Coralina 2012Coralina, Cora. 2012. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Global Editora., 63).

Assim como as gotas que vazavam dos telhados da casa do pequeno Fernando, quando as chuvas despencavam, fazendo um encontro entre suas paisagens exteriores e interiores; assim como os objetos de outra criança, de nome Bartolomeu, nas noites cuja posição da cama ampliava não apenas o tamanho do quarto, mas também de muitas outras coisas ali existentes; assim como o engatinhar de José, ainda bebê, encontrava o chão de tijolos, as avencas, nas memórias de Cora Coralina, eram sinais claros de tempos que brotavam nas geografias dos muros de Goiás, onde também estava Vila Rica. Esses signos espaciais, marcados por suas escalas, aparentemente reduzidas, são grandes potências formativas e forças que estão na vivência espacial do humano, de bebês e crianças, considerando e formando suas particularidades constitutivas (Vigotski 2018Vigotski, Lev Semionovich. 2018. Sete aulas de Pedologia. Rio de Janeiro: Epapers.).6 6 Esse conceito de Vigotski está relacionado ao conceito de vivência e, por conseguinte, para nós, ao de vivência espacial. Como esse autor reconhece a singularidade que se expressa em cada momento da vida humana, a vivência de um bebê e uma criança, por exemplo, seria completamente diferenciada, pois cada uma delas está vivenciando um espaço e tempo, marcado pelas suas particularidades, o que faz com que as reelaborações infantis do mundo herdado das gerações anteriores sejam uma unidade que transforma essas próprias particularidades.

Vila Rica era mais um dos becos registrados pela moradora dessa antiga cidade, um beco estranho e conhecido por peculiaridades, marcado por seus monturos, onde há sempre uma galinha morta, eternizada, quase sempre malcheirosa. Era um beco desmedido em suas diferenças no existir. Um beco que interrompia, sem romper, mas em completude, a urbanidade daquele espaço, onde muitas outras histórias impossíveis de acontecer em outros locais eram, ali, possíveis. Era, talvez, um beco salvador de vidas enuviadas pelas tradições interioranas. Ponto de convergência de temporalidades, que teria chamado, segundo Conrado Ramos,7 7 Ramos, Conrado. 2020. Do beco da Vila Rica. A Terra é redonda: eppur si muove, 17 out. 2020. Acessado em 19 set. 2022. https://aterraeredonda.com.br/do-beco-da-vila-rica. a atenção de Walter Benjamin, filósofo conhecido por suas muitas produções e pelas fascinações das arquiteturas espaciais, como as galerias:

Pelos becos de Cora Coralina, pelos becos de Goiás, “Beco do Cisco. / Beco do Cotovelo. / Beco do Antônio Gomes. / Beco das Taquaras. / Beco do Seminário. / Bequinho da Escola. / Beco do Ouro Fino. / Beco da Cacheira Grande. / Beco da Calabrote. / Beco do Mingu. / Beco da Vila Rica…” […], flanaria Walter Benjamin com seu olhar de constelar a história e de buscar a totalidade no particular. Mas foi a menina feia da ponte da Lapa quem o fez (s/p).

Becos e ruelas que seriam apagadas em muitas cidades do território brasileiro, em nome de uma modernidade8 8 Embora o termo levante várias discussões, não é intuito deste artigo se dedicar a esse debate. Assim, estamos assumindo a modernidade como o período que se instaura a partir do século 16 e se reforça com as transformações industriais e urbanas, que se buscam tornar-se hegemônicas a partir dos séculos 19 e 20. a ser alcançada. Os becos e outras formas espaciais, como os cortiços, eram as alegorias de um passado a ser invisibilizado e borrado, incongruências nos novos tempos a serem erguidos em nome da “Modernidade”, de novos ares que deveriam circular pelas cidades, agora a serem renovadas para atender a um novo tempo. Nesse novo tempo, as pessoas seriam realocadas para outras posições espaciais e, com elas, também as variadas infâncias.

Em sua clássica obra sobre as transformações urbanas do Rio de Janeiro, Abreu (1997) demonstra como a então capital brasileira era um símbolo daquilo que ocorreria (e deveria ocorrer) com outros espaços urbanos do país. A cidade, no século 19, uma típica cidade colonial, deixaria de ser uma localidade onde pedestres e muitas classes e funções se mesclavam para se transformar em uma metrópole, marcada por seus recortes urbanos, com funções específicas, diferenciada por suas condições socioeconômicas e pela necessidade da rápida circulação do capital, da mão de obra, dos produtos.

Os estados, em seus arranjos e planejamentos, remodelam o espaço em uma nova lógica produtiva e que envolve as pessoas e suas próprias formas de ser e estar no mundo:

Assim, a capital federal passa por intensas modificações. As ruelas estreitas, típicas de uma cidade colonial, cedem lugar para amplas avenidas, cortiços são banidos em nome da higiene, novas lojas são erguidas seguindo os padrões dos boulevards franceses, as ruas, os bairros são renomeados, substituindo antigas nomenclaturas populares por nomes “oficiais”. Essa intensa campanha de saneamento urbano busca erradicar os males tropicais, como varíola, peste, febre amarela e muitos outros que precisam ser eliminados, sedimentando as propostas higienistas que se fortaleciam. Populações inteiras são deslocadas, novos símbolos urbanos são erguidos nas paisagens […]. (Lopes e Fernandes 2018Lopes, Jader J. Moreira, e Maria Lídia B. Fernandes. 2018. A criança e a cidade: contribuições da geografia da infância. Educação 41 (2): 202-11. https://doi.org/10.15448/1981-2582.2018.2.30546.
https://doi.org/10.15448/1981-2582.2018....
, 203).

Segundo Carlos (2015Carlos, Ana Fani A. 2015. A tragédia urbana. In A cidade como negócio, organizado por Ana Fani A. Carlos, Danilo Volochko, e Izabel P. Alvarez, 43-63. São Paulo: Contexto., 47): “O movimento do capital em seu processo de acumulação torna a produção do espaço social (social e histórico) condição, meio e produto de realização do ciclo do capital, materializado os momentos de produção-circulação-distribuição-troca e consumo” […].

As cidades se materializam seguindo não só padrões universais, segundo os quais a escala humana (Gehl 2013Gehl, Jan. 2013. Cidades para as pessoas. São Paulo: Perspectiva.) passa a ser desprezada em nome de outras escalas, marcadas por uma busca de lógicas globais, como se fossem os únicos caminhos a seguir,9 9 Para Ghel (2013, 3), “por décadas, a dimensão humana tem sido um tópico do planejamento urbano esquecido e tratado a esmo, enquanto várias outras questões ganham mais força, como a acomodação do vertiginoso aumento dos tráfegos dos automóveis. Além disso, as ideologias dominantes de planejamento – em especial o modernismo – deram baixa prioridade ao espaço público, às áreas de pedestres e ao papel do espaço urbano como local do encontro de moradores da cidade. Por fim, gradativamente, as forças do mercado e as tendências arquitetônicas afins mudaram seu foco, saindo das inter-relações e espaços comuns da cidade para os edifícios individuais, os quais, durante o processo, se tornaram cada vez mais isolados […].” ou seja, cria-se um espaço onde as pessoas “são cada vez mais maltratadas” (Gehl 2013Gehl, Jan. 2013. Cidades para as pessoas. São Paulo: Perspectiva., 3). Milton Santos10 10 Santos, Milton. 1999. A guerra dos lugares. Folha de São Paulo, 8 ago. 1999. Acessado em 19 set. 2022. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs08089904.htm. nos lembra que cada época tem suas verdades e seus mitos, e a produção dos territórios não está fora deles, assim como também dos tempos que neles se fazem presentes. O autor lembra, por exemplo, a construção das ferrovias no século 19 e os discursos sobre a soberania nacional, sobre um estado forte e, nessa lógica, estariam também os mitos da redenção pela nova organização espacial.

Mas a busca do mito da expansão em escala planetária não se configurou em uma equidade espacial urbana: a espacialização dos territórios urbanos se materializa de forma muito diferenciada nos diversos pontos da superfície terrestre e nos diferenciados estados-nações. Junto ao crescimento da população urbana, muitas vezes tratada em igualdades pelas cifras numéricas, comum nos argumentos de planejamentos generalizados, encoberta-se uma rede de hierarquias urbanas, configuradas pelo poder geoeconômico e geopolítico, colocando os locais em diferentes escalas de decisões e poder. Além disso, as contradições se dão também nos planos internos das próprias cidades, marcadas por diferenciadas condições de infraestrutura, acesso a bens públicos e formas de viver.

Nas enunciações desse novo projeto – intencionalmente pensado e planejado como políticas urbanas –, explicita-se a produção de “uma cidade para todos”. Pode soar estranho esse nosso argumento, mas gostaríamos de ampliar um pouco alguns discursos que trazem a perspectiva da constituição de “uma cidade que não é para todos”. Não estamos contradizendo, por mais que pareça em nossa afirmação, essa máxima, mas o que queremos apontar é que, na “cidade para todos”, a organização socioespacial do urbano segmenta – em uma rede necessária às novas lógicas econômicas – o existir de seus habitantes. A cidade pode abrigar a todos enquanto o grande tempo (Bakhtin 2002Bakhtin, Mikhail. 2002. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec.) proposto pelas verdades e mitos criados pela modernidade, mas radicaliza a existência dos diferentes grupos sociais a partir daquilo que se naturaliza como urbanidade. É no chão do território usado (Santos 1996Santos, Milton. 1996. O retorno do território. In Território: globalização e fragmentação, organizado por Milton Santos, Maria Adélia Souza, e Maria Laura Silviera, 15-20. São Paulo: Hucitec.) que se expressam as diferenças. O espaço da diferença abriga diversas intersecções (como o recorte econômico, o gênero e, entre eles, os diferentes momentos da ontogênese humana) que se convergem em diferenças no espaço para as pessoas que o habitam.

É assim que, mesmo os “produtivos”, os seres necessários para mover as engrenagens do sistema econômico não estão ocupando a mesma urbanidade. Aos idosos, aos bebês e às crianças cabem alguns fragmentos desses espaços. Eles também estão na cidade, mas não em toda a cidade, assim como todos nós. Os quinhões que lhes são destinados encerram suas vidas em territórios de confinamentos, acessados por travessias de outros territórios. Que cidade passa a se anunciar para essas pessoas que, vivendo momentos diferentes em suas ontogêneses, estão inseridas em uma sociogênese reconfigurada para exilar as vidas daqueles que não produzem? Que ato de enunciação (Bakhtin 2003Bakhtin, Mikhail. 2003. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes.) se expressa nesta reordenação de espaços e tempos?

Em uma pesquisa de 2006/2007, intitulada “Produção do Território brasileiro, produção do território de infância: por onde andam nossas crianças?”, feita em três cidades brasileiras: Juiz de Fora, localizada no estado de Minas Gerais, Santo Antônio de Pádua e Niterói, no estado do Rio de Janeiro, buscamos mapear as paisagens de infâncias (Lopes 2009Lopes, Jader J. Moreira. 2009. A criança e sua condição geográfica: contribuições da geografia da infância. O Social em questão 20 (21): 109-22.) nelas existentes.

Nos levantamentos, ficou claro que existem, nas paisagens das três cidades, formas (configurações materiais) cujas funções seriam destinadas para suas crianças e, também, para os bebês11 11 Nessa pesquisa, o foco central não eram os bebês, mas as crianças pequenas, porém, ao revisitarmos os dados de campos produzidos à época, foi possível inseri-los em nossa escritura. . Há, portanto, nas configurações das paisagens, na estrutura ou organização espacial, não só locais destinados para a infância, como também artefatos (objetos) gestados por diferentes produtores do espaço e que só podem ser compreendidos a partir das concepções de infâncias que preexistem nessas sociedades.

Nessa pesquisa, foram observados diversos locais, cujas formas e objetos situados nos aproximavam de uma ideia de infância, como: praças públicas, escolas, parques presentes nas cidades, em shoppings centers, em redes de fast-food, em condomínios fechados; locais para as comemorações de aniversários; clubes particulares; bibliotecas infantis; espaços agregados a bares e restaurantes, entre outras.

Foram observados também agentes sociais que configuravam paisagens momentâneas de infância. Eventos promovidos pelo poder público e por entidades privadas e ONGs eram comuns para os bebês e as crianças, como também a presença de exposições de artefatos que marcavam determinadas datas comemorativas ou significativas, como montagem da casa do “Papai Noel”, o que produzia uma paisagem de infância efêmera. Uma das marcas dessas paisagens era a pouca diferenciação para os diversos momentos do viver da infância. Havia poucas materialidades no espaço que evidenciavam recortes, por exemplo, específicos, para as diferentes faixas etárias.

A mesma pesquisa encontrou crianças vendendo balas e doces em sinais de trânsito, espalhadas pelas ruas, pelas praças. Bebês e crianças morando com suas famílias em praças e outros pontos que abrigavam as suas sobrevivências. Bebês e crianças ocupando a mesma cidade, mas não os mesmos lugares nessas cidades. As crianças maiores, a quem era permitida maior mobilidade, tinham certa autonomia espacial nesse viver, inclusive para comercializar alguns produtos; aos bebês, o chão e os colos (de adultos e de crianças) eram seus lugares.

Assim, falar em uma infância urbana é olhar também para a condição plural que emerge dessa condição, aqui estruturalmente alocada em lugares destinados pelas hierarquias urbanas e pelas contradições internas de seus territórios. As infâncias urbanas são axiologicamente percebidas e sentidas por suas diferenças territoriais e pelos diferentes setores sociais (públicos, privados ou outros) que se destinam para os bebês e as crianças e suas vivências de infâncias.

Neste momento, não temos como não convocar Stuart Aitken (2018)Aitken, Stuart. 2018. Rethinking child rights through post-child ethics. Educação em Foco. 23 (3): 705-14. https://doi.org/10.34019/2447-5246.2018.v23.20098.
https://doi.org/10.34019/2447-5246.2018....
ao debate. Esse autor nos interroga a pensar o que estamos chamando de o “direito à cidade”, defendendo que esse direito não deve ser algo que os adultos concedem às crianças a partir de uma concepção de uma cidade, ou seja, os adultos planejam e tomam decisões à revelia das crianças e lhes cedem o que foi pensado e construído sem sua participação. Para o autor, a ideia do direito à cidade advém de uma compreensão profunda de que é preciso pensar não em uma cidade para a infância, mas pensar uma cidade com as infâncias: compartilhar com elas a criação e a recriação, entender que, ao construírem e reconstruírem o espaço, as infâncias também constroem e se reconstroem a si mesmas. Aitken (2018)Aitken, Stuart. 2018. Rethinking child rights through post-child ethics. Educação em Foco. 23 (3): 705-14. https://doi.org/10.34019/2447-5246.2018.v23.20098.
https://doi.org/10.34019/2447-5246.2018....
nos conta sobre a Los Angeles de 1960 e 1970, quando a cidade, tomada por concreto, foi perdendo suas áreas verdes. Conquanto muitos adultos tenham lamentado essa transformação, algumas crianças deslumbraram um mundo de possibilidades: com a cidade tomada pelo asfalto, pegaram pranchas de madeiras e instalaram pequenas rodas, fazendo skates, explorando a cidade de uma nova forma. A partir dessa perspectiva, a cidade não estava perdendo sua essência, mas se transformando em algo cheio de possibilidades e novas experiências. Assim, apoderando-se daquele espaço, as crianças o recriaram, dando-lhe um novo uso. Ao permitirmos que crianças exerçam a liberdade de criar uma nova cidade, ainda não pensada nem imaginada e, por isso, ainda não existente, podemos vivenciar uma espacialidade nova e transformada (Aitken 2018Aitken, Stuart. 2018. Rethinking child rights through post-child ethics. Educação em Foco. 23 (3): 705-14. https://doi.org/10.34019/2447-5246.2018.v23.20098.
https://doi.org/10.34019/2447-5246.2018....
).

E, se retornamos aos pontos que abriram estas reflexões, faz-se necessário pensar no conceito de vivência espacial e como esses topos estão sendo forjados em nossas paisagens e em nossas relações conosco e com os espaços em que vivemos. Voltemos aos becos destruídos, voltemos à vivência espacial de bebês e crianças.

O desacostumar como o possível: o retorno aos becos

Um corricho, de passagem,

Um dos muitos vasos comunicantes onde

circula a vida humilde da cidade.

Um bequinho de brinquedo, miudinho.

Chamado no meu tempo de menina – beco da escola.

Uma braça de largura, mal medida.

Cinquenta metros de comprido… avaliado.

Bem alinhado. Direitinho.

Beco da escola…

Escola de velhos tempos.

Tempos de velhas mestras […]. (Coralina 2012Coralina, Cora. 2012. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Global Editora., 77).

Nessas linhas finais, gostaríamos de retornar a alguns pontos que, consideramos, ainda serem significativos para contribuir com as infâncias em suas muitas urbanidades. Pressupostos que emergem a partir de estudos que temos desenvolvido sobre a espacialização da vida de bebês e crianças, envoltos no conceito de topogênese. Pelos caracteres que nos restam, fá-lo-emos em formas de considerações e possibilidades de aberturas, para contribuir com futuros debates.

Como fora dito, a configuração que deu forma às paisagens urbanas do mundo atual tem, na força da produção econômica e em renovações e expansões, o território como uma de suas dimensões e, nesse processo, a alocação do existir das pessoas em muitas urbanidades possíveis, firmadas por situações estruturais e locais. E a vida dos bebês e das crianças não está fora disso, como apontamos em outros trabalhos:

É incrível como as configurações das praças, os contornos das mesas, o zigue-zague dos meios fios, o orbicular dos buracos, o entorto das frestas e tantos outros traços se desformam em retas. Aprendi isso de forma trágica, em um dia em que perdi um amigo de escola que ainda deveria ter muito tempo para existir. Devaneou-se em uma travessia e a cidade não o perdoou, arrebatou sua vida usando um automóvel. Soube que ele morreu pela Modernidade. Mais uma forma de morrer que não era de doença. Uma lógica que instaurou alguns caminhos como únicos a serem percorridos. O tempo contínuo e linear encontrou, nos espaços e nos caminhos de ruas e avenidas, pontos que se ligam. A vida de muitos de nós, sobretudo os moradores de centros urbanos, passa a ter nessas forças simbólicas nessas semióticas. Existo nessa forma de tempo e espaço. (Lopes 2021Lopes, Jader J. Moreira. 2021. Terreno baldio – um livro para balbuciar e criançar os espaços para desacostumar geografias, por uma teoria sobre a espacialização da vida de bebês e crianças. São Carlos: Pedro e João Editores., 70).

Nessa perspectiva, pensar a criação de outra forma de espacialidade é colocar a própria condição de humanização e, aqui, em especial, a dimensão da topogênese como uma das marcas a ser apreciada. A garantia desse direito à (outra) cidade, a nosso ver, deve envolver algumas outras garantias, como: o direito à mobilidade, entendida aqui na própria experiência sensório-motora de bebês e crianças, mas também ampliada por outros corpos e objetos culturais, pois lembremos que a mobilidade humana tem sua gênese no corpo do outro (por isso, assumimos que toda a espacialidade é interespacialidade, estando presentes também as intercorporeidades); a garantia de inclusão das muitas diversidades e diferenças do existir humano, como, por exemplo, as crianças cegas e de baixa visão; a garantia ao direito à diversidade e às diferenças presentes nas paisagens terrestres, constituídas por seus sons, texturas, cores, formas, cheiros, sabores; a garantia à escala da corporeidade de bebês e crianças; a garantia do encontro entre coetâneos e não coetâneos; a garantia de vozes e linguagens a serem compartilhadas, a vivência espacial também é marcada pelas palavras outras; a garantia ao brincar, à imaginação e à criação, a garantia às amplitudes e às recolhas espaciais; todas tendo como princípio não somente a tão apontada autonomia espacial, mas, junto a ela, a garantia da autoria espacial e do desenvolvimento em sua totalidade.

O que estamos pondo aqui em reflexão é essa condição do beco como uma das expressões espaciais que tem a força e a potência das próprias infâncias. Um beco que seja acolhedor, um beco que não maltrate, um beco infante, como conclamado por Cora Coralina (2012Coralina, Cora. 2012. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Global Editora., 78-9):

O bequinho da escola brinca de esconder.

Corre da Vila Rica – espia a Rua do Carmo.

É um dos mais singulares e autênticos becos de Goiás.

Tem a marca indisfarçada dos séculos e a pátina escura do Tempo.

Beco recomendado a quem busca o Passado.

Recomendado – sobretudo – aos poetas existencialistas, pintores, a Frei Nazareno.

Tem portões vestidos de velhice. Tem bueiro. Tem muros encarquilhados,

rebuçadinhos de telhas.

São de velhas donas credenciadas de velhas descendências

– guerreiros do Paraguai.

Bem estreito e sujo

como compete a um beco genuíno.

Esquecido e abandonado,

no destino resumido dos becos, no desamor da gente da cidade.

Poetas e pintores

românticos surrealistas, concretistas, cubistas, eu vos conclamo.

Vinde todos cantar, rimar em versos, bizarros coloridos,

os becos da minha terra.

Inspirados pela poetisa, conclamemos as infâncias a pular as janelas para os becos e, nesse salto, reinventar a cidade, para elas e para todos nós. Que estejamos todos juntos nesse beco da escolha, que é “[…] uma transição. Um lapso urbanístico” (Coralina, 2012Coralina, Cora. 2012. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Global Editora., 78), capaz de romper os maltratos urbanos e as muitas urbanidades, equidades espaciais, criadas em encontros e alteridades. Sentemo-nos em um de seus “tristes degraus” (Coralina, 2012Coralina, Cora. 2012. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Global Editora., 78) e façamos a festa da ressurreição (Bakhtin 2003Bakhtin, Mikhail. 2003. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes.).

  • 2
    Conforme já apontamos em texto anterior (Lopes e Mello 2017Lopes, Jader J. Moreira, e Marisol B. Mello. 2017. Quando perdemos a confiança na linguagem? Revista Brasileira de Alfabetização 1 (5): 15-30. https://doi.org/10.47249/rba.2017.v1.190.
    https://doi.org/10.47249/rba.2017.v1.190...
    , 16): A expressão “tesouro da língua” aparece em Bakhtin quando de sua discussão sobre o discurso no romance. Especificamente na discussão da relação entre discurso na poesia e discurso no romance e na discussão sobre os fundamentos folclóricos da obra de Rabelais (Bakhtin 2002Bakhtin, Mikhail. 2002. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec., 87, 326), trata-se de um termo tomado de Saussure a respeito da fala. Para Bakhtin, esse tesouro não se trata de um acervo ou de algum repertório, mas da abertura à cultura, pela via do diálogo interno que a linguagem faz acessar no encontro dialógico entre dois enunciadores, tal como em Para uma filosofia do ato responsável (Bakhtin 2010Bakhtin, Mikhail. 2010. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores., 106).
  • 3
    Tradução do conceito por George y Ribeiro. Vamos inserir a expressão em russo pelo fato de que sua origem está nesse idioma e na expressão sistematizada por L. S. Vigotski, a qual nos devotamos a estudar em nossas pesquisas: trata-se do termo perejivanie que, segundo Prestes (2012)Prestes, Zoia. 2012. Quando não é quase a mesma coisa. Traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil. Rio de Janeiro: Autores Associados., deve ser traduzido como vivência e não como experiência, comum em obras brasileiras. Escolhemos usar a palavra vivência ao invés de experiência, porque concordamos com a autora, pois entendemos que o conceito de vivência traduz unidade entre meio e a personalidade das pessoas, interfaceado pela autoria humana. Se a experiência é algo partilhado por todos no plano social, as vivências são as singularizações que emergem em nós dessa experiência. Essa escolha é, assim, um princípio ético com esse autor, além de, claro, também nosso desejo em crer nesse vocábulo forjado por ele. Com isso, o recorte espacial, por mais que pareça uma expansão ou um recorte é, sobretudo, uma dimensão dentro da unidade sistêmica e social que o termo perejivanie nos leva. Falamos, assim, em пространственное переживание (prostranstvennoe perejivanie), ou seja, a vivência espacial.
  • 4
    Jerebtsov, Serguei. 2017. A teoria histórico-cultural e os problemas psicossomáticos da personalidade: estudo sobre o domínio de si mesmo. Veresk – Cadernos acadêmicos internacionais. Estudos sobre a perspectiva histórico-cultural de Vigotski 3: 47-62. https://bit.ly/3Ee4w8j.
  • 5
    Jerebtsov, Serguei. 2014. Gomel - a cidade de L. S. Vigotski. Pesquisas científicas contemporâneas, sobre instrução no âmbito da Teoria Histórico Cultural de L. S. Vigotski. Veresk – Cadernos acadêmicos internacionais. Estudos sobre a perspectiva histórico-cultural de Vigotski 1: 7-28. https://bit.ly/3TjjWwu.
  • 6
    Esse conceito de Vigotski está relacionado ao conceito de vivência e, por conseguinte, para nós, ao de vivência espacial. Como esse autor reconhece a singularidade que se expressa em cada momento da vida humana, a vivência de um bebê e uma criança, por exemplo, seria completamente diferenciada, pois cada uma delas está vivenciando um espaço e tempo, marcado pelas suas particularidades, o que faz com que as reelaborações infantis do mundo herdado das gerações anteriores sejam uma unidade que transforma essas próprias particularidades.
  • 7
    Ramos, Conrado. 2020. Do beco da Vila Rica. A Terra é redonda: eppur si muove, 17 out. 2020. Acessado em 19 set. 2022. https://aterraeredonda.com.br/do-beco-da-vila-rica.
  • 8
    Embora o termo levante várias discussões, não é intuito deste artigo se dedicar a esse debate. Assim, estamos assumindo a modernidade como o período que se instaura a partir do século 16 e se reforça com as transformações industriais e urbanas, que se buscam tornar-se hegemônicas a partir dos séculos 19 e 20.
  • 9
    Para Ghel (2013, 3), “por décadas, a dimensão humana tem sido um tópico do planejamento urbano esquecido e tratado a esmo, enquanto várias outras questões ganham mais força, como a acomodação do vertiginoso aumento dos tráfegos dos automóveis. Além disso, as ideologias dominantes de planejamento – em especial o modernismo – deram baixa prioridade ao espaço público, às áreas de pedestres e ao papel do espaço urbano como local do encontro de moradores da cidade. Por fim, gradativamente, as forças do mercado e as tendências arquitetônicas afins mudaram seu foco, saindo das inter-relações e espaços comuns da cidade para os edifícios individuais, os quais, durante o processo, se tornaram cada vez mais isolados […].”
  • 10
    Santos, Milton. 1999. A guerra dos lugares. Folha de São Paulo, 8 ago. 1999. Acessado em 19 set. 2022. https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs08089904.htm.
  • 11
    Nessa pesquisa, o foco central não eram os bebês, mas as crianças pequenas, porém, ao revisitarmos os dados de campos produzidos à época, foi possível inseri-los em nossa escritura.
  • Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    07 Nov 2021
  • Aceito
    14 Jun 2022
  • Publicado
    07 Jul 2023
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