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Editorial

Editorial

Este número de Scientiæ udia está inteiramente dedicado à reflexão sobre a tecnologia, analisando a natureza do conhecimento tecnológico e suas relações com o conhecimento científico, bem como as implicações epistemológicas, éticas e sociais do emprego das novas tecnologias, decorrentes do desenvolvimento da genética molecular e de uma nova forma de engenharia. Assim, todos os artigos têm como tema a tecnologia ou as relações entre a ciência e a técnica, apresentando basicamente quatro tipos de enfoque – digamos, epistemológico, ético/epistemológico, sociológico e histórico/epistemológico – que se soprepõem parcialmente e que se completam numa perspectiva convergente de compreensão da ciência e da tecnologia hodiernas.

Quanto ao enfoque epistemológico, Alberto Cupani, no artigo inicial deste número, faz uma apresentação das características consideradas pela filosofia da tecnologia como marcadoras da especificidade do conhecimento tecnológico e, portanto, diferenciadoras do conhecimento científico. Detém-se, desse modo, nas diversas relações propostas entre ciência e tecnologia, argumentando pela inexistência de "um possível compromisso intrínseco" entre a ciência e a tecnologia, que se desenvolveram paralelamente na história do Ocidente, mantendo-se separadas até a mergência da tecnociência atual. Também Diego Lawler empreende uma análise das propriedades que caracterizam a ação técnica em sua condição de ação produtiva intencional humana, de modo a separar a ação técnica de outros tipos de ações intencionais, como, por exemplo, as científicas. Partindo da análise do conteúdo da intenção que está envolvida na ação técnica, o autor procura delinear os elementos que compõem a estrutura básica da ação técnica e os aspectos básicos que constituem a gramática da ação técnica; estrutura e gramática, por sua vez, configuram a ontologia da ação técnica enquanto ação intencional valiosa para a intervenção, transformação e controle da realidade, com o fim de adequá-la aos desejos e interesses humanos.

No enfoque ético e epistemológico, pondo diretamente em questão os aspectos valorativos da atividade científica e tecnológica, Hugh Lacey, em seu artigo sobre o princípio de precaução e a autonomia da ciência, e Fernando Tula Molina, em seu artigo sobre o contexto de implicação, voltam-se para a avaliação das conseqüências da aplicação do conhecimento científico e, em particular, para as repercussões ético-sociais da implementação apressada dos resultados da tecnociência atual. Hugh Lacey nega que o princípio de precaução seja uma ameaça à autonomia da ciência, que promova uma invasão da ética na pesquisa científica, argumenta que, contrária e positivamente, o princípio pode conduzir a uma melhor manifestação da neutralidade nas aplicações científicas. Fernando Tula Molina, de sua parte, discute a relação entre capacidade tecnológica e valores sociais, propondo que se circunscreva um "contexto de implicação", isto é, um novo contexto socioepistêmico para a discussão dos problemas ligados à relação ciência-sociedade, propondo a discussão simultânea dos aspectos teóricos e sociais do conhecimento científico e tecnológico.

Em uma perspectiva predominantemente sociológica, Marcelo Leite, com sua análise das edições comemorativas do Projeto Genoma Humano nos renomados periódicos científicos Nature e Science, detecta um uso retórico e político da linguagem com o objetivo de produzir uma representação determinista da genética que é incompatível com os resultados científicos da genética atual. O autor denuncia esse uso de metáforas deterministas de variados matizes dependentes do público visado, do leigo ao científico, como forma de dar prestígio, alardeando promessas espetaculares, a projetos como o do genôma humano que demandam grande quantidade de recursos. De outra parte, Terry Shin e Erwan Lamy dedicam-se a traçar os caminhos do que chamam de "conhecimento comercial", tratando das iniciativas em direção a um novo tipo de relação entre universidade-empresa, que está supostamente configurando o modo atual de organização social da ciência – digamos, o modo tecnocientífico –, tal como pode ser encontrado nas chamadas incubadoras tecnológicas ou de empresas. Os autores mostram que a pluralidade de caminhos no processo de obtenção de conhecimento comercial desafia a imagem da ciência e da tecnologia fornecida pelo modo de desenvolvimento que propõe a dissolução das fronteiras entre ciência, indústria e sociedade.

Finalmente, na perspectiva histórico-epistemológica, apresento um estudo que se volta para o período compreendido entre Francis Bacon e David Hume em busca das origens da distinção entre fato e valor que está na raiz da concepção moderna de domínio (controle) da natureza. O artigo mostra que a dicotomia entre fato e valor se articula em torno de cinco idéias características da primeira modernidade: centralidade do método, nova classificação das ciências, separação entre as esferas natural e moral, neutralidade cognitiva e, finalmente, perspectiva analítica descontextualizada. É no interior desse núcleo de idéias que se sintetiza a concepção moderna de domínio da natureza. Guillhermo Boido se volta para as décadas iniciais do século xviii, revelando, nas conhecidas Viagens de Guliver do irlandês Jonathan Swift, talvez a primeira crítica do estreito vínculo proposto por Francis Bacon entre ciência e poder. Para opor-se à dominação da Inglaterra sobre a Irlanda, Swift elabora uma paródia feroz da Casa de Salomão da utópica Nova Atlântida de Bacon, a qual serviu de modelo à Royal Society e da qual Swift obtém o material científico de sua literatura.

Convém, por fim, assinalar que os artigos publicados neste número de Scientiæ udia, apesar de sua evidente unidade temática, possuem aproximações surpreendentes e diferenças claras, como convém ao pensamento em elaboração que se nutre de aproximações e afastamentos.

Pablo Rubén Mariconda

editor responsável

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Maio 2010
  • Data do Fascículo
    Set 2006
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