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CÓPIA FIEL: O PROBLEMA DO CAMPO E OS LIMITES DA IMAGEM-TEMPO

CERTIFIED COPY: THE PROBLEM OF THE FIELD AND THE LIMITS OF THE TIME-IMAGE

COPIA CERTIFICADA: EL PROBLEMA DEL CAMPO Y LOS LÍMITES DE LA IMAGEN-TIEMPO

RESUMO

Este artigo traça dois movimentos. Primeiro, mobilizando o aparato conceitual construído por Gilles Deleuze, combinado a comentários sobre campo e quadro de autores como Bonitzer, Sabouraud, Oliveira Junior e André Parente, procura elaborar a função do Campo na imagem-movimento e na imagem-tempo, a partir de suas relações com o virtual. Em seguida, o artigo busca mostrar como Cópia fiel (2010Cópia fiel (2010), Abbas Kiarostami, França, Itália, China, Estados Unidos.), de Abbas Kiarostami, comparado a filmes anteriores do diretor, aponta para outro estatuto de imagem, em que o visível não mais é organizado sob a forma de Campo, mas por uma composição de linhas de força.

PALAVRAS-CHAVE
Cópia fiel ; Cinema contemporâneo; Campo; Abbas Kiarostami; Imagem-tempo

ABSTRACT

This article outlines two movements. First, we combine the conceptual apparatus constructed by Gilles Deleuze with comments on the notions of field and framing by authors such as Bonitzer, Sabouraud, Oliveira Junior, and André Parente. Then, we elaborate the function of the Field in the movement-image and in the time-image, based on their relations with the virtual. Finally, we show how Certified Copy (Abbas Kiarostami, 2010Cópia fiel (2010), Abbas Kiarostami, França, Itália, China, Estados Unidos.), compared to the director’s previous films, points to another status of image, in which the visible is no longer organized in the form of a Field, but by a composition of lines of force.

KEYWORDS
Certified Copy ; Contemporary Cinema; Field; Abbas Kiarostami; Time-image

RESUMEN

Este artículo señala dos movimientos. Primero, movilizando lo aparato conceptual construido por de Gilles Deleuze, juntamente a comentarios sobre el campo y el cuadro de autores como Bonitzer, Sabouraud, Oliveira Junior y André Parente, intenta elaborar la función de lo Campo en la imagen-movimiento y en la imagen-tiempo, a partir de sus relaciones con el virtual. Después, intenta señalar como Copia certificada (2010), de Abbas Kiarostami, en comparación con películas anteriores del director, apunta otro estatuto de la imagen, en la cual el visible no se organiza bajo la forma del Campo, sino por una composición de líneas de fuerza.

PALABRAS CLAVE
Copia certificada ; Cine contemporáneo; Campo; Abbas Kiarostami; Imagen-tiempo

1. As bifurcações e o problema do Campo

Poucos dias após a exibição de Cópia fiel ( Abbas Kiarostami, 2000KIAROSTAMI, Abbas. Taste of Kiarostami. [Entrevista concedida a] David Sterritt. Senses of Cinema, 2000. Disponível em: https://www.sensesofcinema.com/2000/abbas-kiarostami-remembered/kiarostami-2/. Acesso em: 28 mar. 2023.
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) no Festival de Cannes, um crítico definia-o como “um filme sem exterioridade, sem fora-de-campo, sem generosidade, um filme mercadoria em que tudo o que se produz dentro do quadro é oferecido ao espectador apenas para capitalizar sua reação” ( RENZI, 2017RENZI, Eugenio. Da impostura. Função crítica, 23 mar. 2017. Tradução Calac Nogueira. Disponível em https://funcritica.wordpress.com/2017/03/23/copia-fiel-por-eugenio-renzi/. Acesso em: 14 dez. 2010.
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). Dos impropérios dessa acusação crítica, sobressaltava-se uma sacada que valia nota: o filme ambiciona uma imagem sem extracampo, em que o visível e o existente, por um momento, coincidem. Se, por um lado, o plano fixo tradicionalmente tenderia a destacar as bordas do quadro como limites do alcance do olhar, de modo a reatualizar a consciência de que o campo visível é um pedaço diminuto do mundo, por outro lado, Kiarostami maneja-o como instância de manifestação de um visível sem fora, de maneira que tudo deve retornar – por jogos de espelhos, povoamento do quadro em profundidade, diálogo, artifícios de linguagem – para o retângulo da tela. Para isso, o campo é construído como um espaço cênico ambiguamente centrípeto e centrífugo ao mesmo tempo, a ponto dessas duas categorias – celebremente apontadas por André Bazin para diferir a tela de pintura e a tela de cinema 1 1 “O quadro [da pintura] polariza o espaço em direção ao interior, tudo o que a tela [cinema] nos mostra, ao contrário, é prolongado infinitamente no universo. O quadro é centrípeto, a tela é centrífuga.” ( BAZIN, 2011a, p. 188, tradução minha) – parecerem insuficientes diante dos movimentos de personagens e objetos que, simultaneamente, saem de quadro, sem que isso diminua a intensidade de sua participação no visível.

Como esse manejo de movimentos, a princípio contrários – de um lado, tirar algo de quadro, enquanto, no mesmo gesto, carrega-o com uma nova intensidade de visibilidade – exprime uma transformação nas categorias pelas quais pensamos os limites físicos da imagem, como o campo e o quadro? A partir de análises fílmicas de Cópia fiel, realizado por Abbas Kiarostami em 2010, postas em diálogo com outras obras do diretor e mobilizando criticamente o repertório conceitual sobre cinema de Gilles Deleuze, além de outras abordagens sobre o problema do campo/quadro, como Pascal Bonitzer, Frédéric Sabouraud, Luiz C. Oliveira Junior e André Parente, procuraremos propor, neste ensaio, a elaboração de um estatuto da imagem, não mais entendida enquanto a organização do visível sob a forma de campo (e extracampo), mas como o aparecimento do visível enquanto composição de linhas de força. No percurso, passaremos por uma elaboração dos modos de constituição do campo nos regimes da imagem-movimento e da imagem-tempo, notando como ele operava a distribuição de virtualidades e atualidades ao longo do visível. Com isso, poderemos propor que Cópia fiel organiza um novo deslocamento, talvez em curso, dos regimes de imagem.

No centro da trama, James Miller (William Shimell) passeia durante um dia por cafés, restaurantes e museus com uma suposta desconhecida, Elle (Juliette Binoche); depois de serem confundidos com um par de casados pela atendente de um café, ambos começam a se portar como se vivessem juntos há décadas, agora às voltas com um casamento em crise. Por esse caminho, a trama erige um paradoxo acerca do passado, como se tudo ocorresse incidindo sobre o ponto de entroncamento, qual o “jardim das veredas que se bifurcam” ( BORGES, 2007BORGES, Jorge Luís. O jardim das veredas que se bifurcam. In Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 80-93.): ao mesmo tempo, são um velho casal e dois desconhecidos, passaram os últimos anos juntos e separados, têm e não têm um filho – duas dimensões do tempo que, repentinamente, cruzam-se e levam as situações a condensar, num mesmo gesto, sentidos narrativamente contraditórios.

Deleuze ( 1985DELEUZE, Gilles. Cinéma 2 – L’image-temps. Paris: Minuit, 1985.) 2 2 Especificamente o capítulo 5. encontrava uma estrutura narrativa homóloga em Alain Resnais, quando a ambiguidade contraditória do passado conjugava dois mundos incompossíveis, o que apareceria a fim de desativar qualquer função causal em cujo trilho o tempo pudesse correr. Se o passado está fundado numa contradição, a progressão narrativa orientada por relações de causa-efeito ficaria, então, obstruída, forçando a montagem e a encenação a experimentarem outras ordens de conexões entre planos, palavras, cortes, camadas de profundidade. O ano passado em Marienbad ( Alain Resnais, 1961O ano passado em Marienbad (1961), Alain Resnais, França.) elaborava de maneira sintética a incompossibilidade do tempo – um homem e uma mulher, simultaneamente, conheceram-se e não se conheceram no ano anterior em Marienbad. Deleuze ( 1985, p. 170DELEUZE, Gilles. Cinéma 2 – L’image-temps. Paris: Minuit, 1985.) sugeria que o tempo, ao incidir na imagem sob a forma de duração, subtraía as identidades que dariam determinação ao passado, tornando-o, então, uma massa brincável, passível de ser dividida entre dimensões distintas do universo.

Como mostraremos adiante, tais bifurcações do tempo produziram um reposicionamento no estatuto do extracampo, com impacto para a composição da mise-en-scène e dos modos pelos quais se tramam a instituição do visível ou a relação entre imagem e olhar. Em Cópia fiel, criando um novo ponto de esgotamento em uma estrutura de organização sensível que a imagem-tempo parecia já ter levado à exaustão, a imagem estende o espaço de cena ao infinito, ao transformar a condição segundo a qual o visível aparece: não mais condicionado à dualidade dentro/fora de campo, para surgir como linhas de força em intensidades e modos de apresentação diferenciáveis. Portanto, se dizemos que tudo o que existe está visível, não é porque a imagem atingiu a completude, é, antes, porque o existente está em permanente déficit, tornado, por tal manobra estética, um mundo que se deixa, novamente, cortar por um vazio latente 3 3 Vale lembrar que ao final de Cinema 2 ( DELEUZE, 2018b, p. 384) e em carta a Serge Daney ( DELEUZE, 1992, p. 92), Deleuze esboçava um terceiro tempo do cinema, quando o extracampo é abolido em favor de uma imagem feita de camadas que deslizam umas sobre outras. O autor tinha em mente o uso do vídeo e as experimentações em multitelas, como Número dois ( Godard, 1975), ou um cinema de refuncionalizações de códigos fílmicos tão em voga nos anos 1980. Em suma, Deleuze falava de uma imagem construída na forma do puro simulacro; aqui, seguiremos por outro caminho, embora coincidindo na tese do fim do extracampo. .

2. Três regimes de virtualidade

2.1. Cinema de atualização: imagem-movimento

De saída, dizemos que o Campo supõe uma estrutura de visibilidade e de relação entre sujeito e mundo sensível 4 4 Emprego “Campo”, com inicial maiúscula, quando me refiro a essa estrutura de produção de visibilidade, que mobiliza tanto “campo”, com minúscula (como termo corrente que indica o interior do quadro), quanto o “extracampo”. , em que o visível aparece organizado espacialmente, a partir da circunscrição definida pelas bordas do quadro, que, em vez de o limitarem, funcionam como marcadores de um atributo decisivo pelo qual todo visível aparecerá dentro ou fora de campo. Nesse sentido, o Campo organiza-se sob o regime de uma perspectiva, ainda que não vinculada narrativamente ao ponto de vista de um sujeito.

Na imagem-movimento, o universo existente aparece distribuído entre dois modos de visibilidade: o atual (dentro de quadro), no qual os objetos, corpos, paisagens, formas, luzes, cores, estão determinados pela informação pictórica que a imagem imprime; e o virtual (extracampo), que pode ser apreendido por suposições, probabilidades, possibilidades, ou mesmo saltos imaginativos que transbordam os limites do esperado. Isto é, o extracampo inclui tanto aquilo que é suposto pelo bom-senso, como o contracampo que coexiste ao campo em um diálogo, quanto aquilo que, não podendo ser previsto surge, no auge de sua virtualidade, para desestabilizar a compreensão que tínhamos do campo 5 5 Deleuze sugere esses dois modos do fora de quadro na imagem-movimento ao organizar os processos de integração do extracampo ao campo: o primeiro (o extracampo já suposto pelo campo) é levado a quadro quando ocorre um movimento “relativo” (como o corte no campo/contracampo); enquanto o segundo passa ao quadro por um movimento “absoluto” (o corte ou o movimento de câmera que mostra algo imprevisto a transformar o universo visível já estabelecido). Ver ( DELEUZE, 2018a, p. 37). .

Assim, na imagem-movimento, o modo de visibilidade do extracampo, aberto à ordem do virtual, é carregado de indeterminação, uma vez que, nele, o corpo ou a coisa estará condicionado à dúvida que presentifica possibilidades múltiplas e contraditórias. Um manuseio exemplar das possibilidades de indeterminação da estrutura Campo encontramos em Assassinato! ( 1929Assassinato! (1929), Alfred Hitchcock, Inglaterra.), de Alfred Hitchcock. Logo no início, a câmera chega atrasada ao local do crime, deixando desconhecidas as circunstâncias do ocorrido, inclusive a identidade do criminoso, levando a heroína da estória a ser erroneamente culpabilizada. Para impedir a sua condenação, será preciso que a progressão narrativa opere a reintegração do extracampo – o ainda não visto, o crime – ao campo. Este problema atravessará os filmes de Hitchcock dos anos 1930 e início dos 1940: já supomos a inocência do protagonista apontado como autor de um crime – já que somos capazes de supor o extracampo com base no campo –, mas, uma vez que a justiça não admite suposições, a solução do impasse narrativo exige que a imagem justa advenha ao quadro, de maneira que aquilo que ficara fora de campo, portando uma carga de indeterminação e abertura às incompossibilidades, atualize-se como campo, para que os inocentes e os culpados sejam carimbados com os atributos que lhes cabem.

Enquanto o extracampo acoberta os eventos, as hipóteses contrárias e múltiplas podem coexistir: o suspeito matou e, ao mesmo tempo, não matou, o assassino está e, simultaneamente, não está escondido atrás da cortina. A virtualidade do extracampo é habitada por mundos incompossíveis, que serão decompostos por um processo de atualização operado pelo corte e pelos movimentos de câmera, a fim de que a contradição provisória seja desfeita e tudo o que de fato interessa para a vida dos personagens ou a produção do sentido seja contornado pela marca do determinado e do atual. Nas elaborações de Deleuze ( 1983DELEUZE, Gilles. Cinéma 2 – L’image-temps. Paris: Minuit, 1985.) 6 6 Capítulos 2 e 3. , a montagem, no contexto da imagem-movimento, aparece, portanto, como a efetivação de uma abertura do campo (atual) para o extracampo (virtual), por meio do corte: o virtual está permanentemente devindo atual – seja pelo mero “devir campo do extracampo”, seja pela transformação do universo fílmico introduzida pelo surgimento em quadro de um elemento não previsto pelas suposições até então possíveis.

A construção da mise-en-scène terá nessa relação entre campo e extracampo seu tabuleiro de jogo, por onde lançam-se as modulações do tipo esconde/revela, aproxima/afasta, plano aberto/plano fechado. Com a estrutura Campo, o cineasta opera a gestão do visível, assim como dos afetos entre espectador e filme, manejando uma economia de libido nas trocas entre olhar e imagem, sem o que tudo seria um bloco plano. Pascal Bonitzer ( 1978BONITZER, Pascal. Décadrages. Cahiers du Cinéma, Paris, n. 284, p. 7-15, jan./1978.) atribuiu o jogo entre desenquadramento e reenquadramento ao manejo das satisfações do espectador diante da tela: omitir, controlar o tempo da omissão até o limite que antecede a frustração, entregar o omitido, mas de maneira a encobrir, nessa revelação, uma nova dose de ocultação que projeta o olhar em direção às possibilidades ainda porvir de integração do extracampo ao campo, sabendo que “o suspense consiste em diferir e alimentar essa satisfação” ( BONITZER, 1978, p. 11BONITZER, Pascal. Décadrages. Cahiers du Cinéma, Paris, n. 284, p. 7-15, jan./1978., tradução minha). A imagem tomada como Campo é essa que, como aponta o autor, controla a decupagem como uma dosagem da cegueira, que é atenuada ou enfatizada de acordo com as alianças que a imagem tece com os personagens, com o fatiamento do espaço, a distribuição de porções do corpo e das ações, frente à atenção suposta ao espectador.

Os filmes noir são bons exemplos, pois eles tendem a operar na intensificação da dualidade campo/extracampo, atual/virtual, a ponto de fazer com que a imagem apareça carregada de uma expectativa vertida em direção ao porvir. As zonas de sombra criam focos de invisibilidade de maneira a ampliar o espaço do extracampo, agora atravessando por dentro dos limites do quadro, o que acarreta a inflação dosada do virtual e, consequentemente, da carga de indeterminação que ele porta. Em Quando desceram as trevas ( Fritz Lang, 1944Quando desceram as trevas (1944), Fritz Lang, Estados Unidos.), não é exatamente o espaço fora de tela que oculta o crime, mas um blecaute que impede a nós e ao herói de vermos o que se passou; sob o véu do extracampo, todos são assassinos até que se prove o contrário, quando o reajustamento da imagem mostrar-nos que, na verdade, não houve crime, pois essa zona oculta, onde tudo aconteceu e, simultaneamente, não aconteceu, é a região por excelência onde o falso e o ficcional se instalam.

Se a virtualidade insere uma imagem por trás da imagem – um mistério, uma piscadela disfarçada ou um bilhete oculto –, esse processo de encobrimento é operado pelo campo atravessado por um extracampo em latência. O cinema da imagem-movimento, nessa sua fase terminal, em que aparece vinculado ao cinema narrativo, como ao filme noir, traduz essa inflação do extracampo na forma de uma paixão pelo mistério.

2.2. Cinema do virtual: imagem-tempo

No regime da imagem-tempo, a correlação entre campo/atual e extracampo/virtual é dissipada, mediante a redistribuição do virtual na imagem, que passa a atravessá-la de dentro para fora, fazendo com que o espaço interno do quadro e o imediatamente visível sejam permanentemente perturbados pelo indeterminado e o duvidoso, pela hesitação do olhar sobre o que há para ver, por uma serialidade de bifurcações. Agora, trata-se de lançar o visível não mais em dilemas narrativos, psicológicos ou existenciais, mas em uma interdição ontológica, na qual os corpos e as figuras perdem a identidade, como se toda determinação fosse barrada por uma hesitação que habita o âmago de sua condição de visibilidade, o que não é senão o virtual que não apenas se inflacionou – pois isso, como dissemos, as zonas de sombra no filme noir já produziam –, mas que mudou de lugar e de função: extravasa o quadro de dentro para fora, fazendo emanar do coração do visível uma indeterminação que se expande a ponto de confundir-se com a própria imagem, como um latente esgotamento das balizas que asseguram a mensuração do espaço-tempo, surgido da “abertura de um vazio no meio do real” ( LÉVY, 1996, p. 94LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34, 1996.).

Quando Michelangelo Antonioni reivindicava um “neorrealismo sem bicicleta” – em referência, é claro, ao elemento que dá coesão à trama de Ladrões de bicicleta ( Vittorio de Sica, 1948Ladrões de bicicleta (1948), Vittorio de Sica, Itália.) –, o que o cineasta, de alguma maneira, pretendia suprimir era aquele fora de campo que operava como agente de condensação da virtualidade, para injetá-la, agora, nas veias que correm pelo interior do quadro. A bicicleta do trabalhador Antonio Ricci, protagonista do filme de De Sica, é, após o roubo, seguidamente ocultada pelo extracampo, resultando em um movimento de virtualização que brotará na superfície do quadro, germinando nas inúmeras bicicletas que atravessam os planos das ruas lotadas, carregando consigo essa incompossibilidade: são e, ao mesmo tempo, não são a bicicleta de Ricci. Ele mesmo será assombrado pela imagem da sua bicicleta, que se multiplica ao seu redor em dezenas, centenas, milhares que passam por ele, ilhado, junto do filho, na divisória que reparte a avenida, como uma imagem que pode ser virtualmente replicada ao infinito.

Trata-se, como sabemos, de um filme que ocupa posição intermediária entre a imagem-movimento e a imagem-tempo, embora já penda para a segunda, de maneira que, talvez por isso, o extracampo faça circular essas duas dimensões: por um lado, esconde a bicicleta original, que fora roubada de Ricci e que nunca mais voltaremos a ver, conduzindo o movimento de atualização a um caminho sem saída, à sua interdição; porém, por outro lado, o virtual surge não somente de dentro do quadro como faz um redemoinho no “motivo” da imagem, espalhado por toda superfície do visível, na multiplicação das bicicletas como cópias em série que já prescindem de original.

Mas, em Antonioni, como em Resnais, já não há mais bicicleta ou algo que provoque a expectativa das reintegrações do extracampo ao campo, ou que sintetize, em um elemento narrativamente delineado, o centro a partir do qual o virtual se expande. Na sequência que abre O ano passado em Marienbad, a câmera passeia por paredes, cornijas, cúpulas e lustres de um prédio suntuoso, decorados com desenhos e formas barrocas, enquanto uma voz-over fala de construções, espaços, prédios e também de si. As imagens prescindem do fora de campo para estarem cortadas por uma virtualidade, às vezes cruel com nossa tentativa de organização do discurso ou da narrativa. Não são planos de transição ou apresentação, que antecederiam a introdução dos personagens e seus dilemas; o que vemos é justo o que temos para ver, e já não devemos esperar que a indeterminação de sentidos, de identidades, de orientações espaço-temporais seja recomposta pela futura integração do extracampo ao campo.

Talvez, a melhor maneira de entender o “desenquadramento” – atribuído por Pascal Bonitzer ( 1978BONITZER, Pascal. Décadrages. Cahiers du Cinéma, Paris, n. 284, p. 7-15, jan./1978.) a cineastas como Antonioni, Marguerite Duras, Jean-Marie Straub e Danièle Huillet – não seja como o deslocamento da câmera para fora do centro da ação e de visão privilegiada dos corpos; ao contrário, é a força de indeterminação do extracampo, com seus vazios frustrantes e sua multiplicidade de dimensões concomitantes do tempo, que surge do interior do campo, não apenas como zonas localizadas ou narrativamente circunscritas (como a sombra no noir e o blecaute de Quando desceram as trevas), mas vibrando no interior das ações, dos diálogos e das situações, pulverizando a virtualidade por toda a superfície do quadro, a banhar as figuras e as formas com um plasma comum, em cuja viscosidade todo movimento pode fluir. O virtual rejeita as coisas que trazem carimbados seus nomes próprios, seus rostos, identidades marcadas por passados determinados, gestos intencionais, relações delineadas (mesmo as desconhecidas e secretas) entre causa e efeito, introduzindo, ali, uma ironia que expande o horizonte de acontecimentos não ao abri-lo para fora, mas ao parti-lo por dentro em articulações e dobras ( BONITZER, 1978BONITZER, Pascal. Décadrages. Cahiers du Cinéma, Paris, n. 284, p. 7-15, jan./1978.) 7 7 “[O] uso do quadro como uma agudez, rejeição dos viventes à periferia (por exemplo, o abraço dos amantes na pintura* Vertiges *de Cremonini), ao fora de quadro, a focalização das zonas mornas ou mortas, a dúbia exaltação dos objetos triviais” ( BONITZER, 1978, p. 12, tradução minha). .

O filme de Resnais elabora, com vigor metaestético, uma nova condição da imagem: o campo e o extracampo deixam de operar como as instâncias espaciais que incorporam, respectivamente, o atual e o virtual, de maneira que a imagem prescinde do fora de campo para produzir os efeitos de indeterminação, pois mesmo as figuras que vemos no centro do quadro estão ontologicamente interditas, aparecendo como tentáculos de articulações que se irradiam do centro para as margens, povoando toda a imagem de contrariedades lógicas, de saltos nas fendas imprevistas do tempo e do espaço. Dessa maneira, conforme Bonitzer reconhece, a imagem comporta-se como indiferente ao Campo; no Godard dos anos 1970, por exemplo, o que é decisivo “não é o enquadramento tampouco o desenquadramento, é o que vem a siderar o quadro, como os riscados do vídeo na superfície da tela, linhas, movimentos que enganam toda a imobilidade controlada do olhar” ( BONITZER, 1978, p. 15BONITZER, Pascal. Décadrages. Cahiers du Cinéma, Paris, n. 284, p. 7-15, jan./1978.).

Assim, torna-se necessária uma distinção nos conceitos de quadro e Campo. Enquanto o par quadro/fora de quadro remete à condição física da imagem cinematográfica, materializada na forma de um retângulo, projetada no espaço arquitetônico da sala, o campo/extracampo, por sua vez, supõe uma estrutura de visibilidade, uma lógica de gestão do visível, de modulação do espaço e do tempo por meio de jogos de inclusão/exclusão, mobilizando uma distribuição inteligente de virtualidades e atualidades. A menos que saia da tela, como em suas formas expandidas – o que implica alterar seu regime de circulação e valoração –, o cinema está necessariamente vinculado ao quadro, mas não ao campo, que designa um modo contingente de administração do olhar e de sua relação com o visível. Essa distinção entre campo e quadro adquire uma dimensão problemática central quando a imagem trama sua emancipação da estrutura do Campo para aparecer como uma composição de linhas de força, conforme veremos, a seguir, retornando a Cópia fiel e, casualmente, a outros filmes de Kiarostami.

2.3. As linhas de força do visível

Retirar de quadro e intensificar a visibilidade – de um corpo, de uma coisa, de uma paisagem – seria uma correlação improvável nos modos de conceituação do campo e do extracampo que circulavam na imagem-movimento e na imagem-tempo, conforme definimos anteriormente. Nesses dois regimes, a imagem organiza o visível sob a forma de Campo, de maneira que os espaços dentro e fora de quadro atribuem predicados às coisas e corpos a partir da modulação de virtualidades e atualidades. No primeiro, manejava-se a decupagem como uma distribuição do virtual e do atual, do determinado e do indeterminado; no segundo, era preciso arranjar o quadro de maneira a fazer do virtual o motor de sua vibração interna e a interdição da identidade do visível. Em ambos, o Campo, sobreposto ao quadro, é o dispositivo que permite a instalação e a distribuição de virtualidades na imagem, sendo determinante para a mediação da relação entre olhar e visível.

Mas em Cópia fiel será preciso uma leve alteração no estatuto da imagem para que o fora de quadro e a intensificação da visibilidade apareçam a partir de uma relação de incompossibilidade produtiva. A certa altura do passeio, James e Elle detêm-se diante de uma estátua, supostamente de um casal, fixada no centro da fonte de uma praça, cujas expressões faciais são-lhes objeto de diálogo. Mantidos fora de quadro, os bustos e os rostos da estátua recebem distintas interpretações e opiniões, de James, Elle e de um casal que se junta à conversa. O enquadramento deixa ver partes do monumento, semienquadradas, e multiplica-as em reflexos projetados sobre espelhos rigorosamente posicionados; ao mesmo tempo, o busto da estátua ressoa os tantos bustos que vimos no ateliê de Elle ou nos museus visitados, ou a estátua sobre a qual James e Elle falavam em um diálogo no café, algumas cenas antes.

Se não participa da imagem enquanto presença pictórica, o rosto da estátua é tornado visível por um circuito de linhas de força, de naturezas distintas, que criam uma visualidade por composição, por meio da qual a estátua organiza a cena, como o centro de um campo magnético sob cujas correntes fluem os movimentos corporais, os olhares, o jogo da edição e da decupagem. A estátua habita os quadros como uma energia que oferece um eixo para a dinâmica cênica, participa da palavra emitida pelos dois casais, cria relações com a memória, recuperando ludicamente outros estímulos espalhados pelo filme.

Reconhecer que o Campo deixa de ser, no estatuto da imagem elaborada em Cópia fiel, o fundamento do visível não implica desconsiderar o enquadramento e seus limites como fator decisivo na criação cinematográfica, mas separar Campo e quadro, entendendo o segundo como condição geométrica a oferecer eixo de instalação dessa composição de linhas de força, isto é, um instrumento de diferenciação interminável do visível, de maneira que o dentro ou o fora de quadro não possam ser tomados como categoriais que qualificam predicativamente os objetos e os corpos. O quadro é um instrumento mobilizado para colocar o visível em vias de uma diferenciação no tempo, quando as entradas e saídas de tela não se vinculam mais ao par opositivo mostrar/ocultar, mas aparecem como um dispositivo de transformação no modo pelo qual o visível emerge.

A estátua de Cópia fiel sintetiza um modo de construção da cena que já se apresentava, por exemplo, na exploração vertical do espaço, acima ou abaixo do quadro, em filmes do diretor na década de 1990, incorporado por personagens posicionados após a borda superior ou inferior. Em Gosto de cereja ( 1997Gosto de cereja (1997), Abbas Kiarostami, Irã.), são os diálogos entre Badii e o trabalhador no alto de uma torre, ao pé da qual permanecerá o protagonista e o quadro produzido pela câmera; em O vento nos levará ( 1999O vento nos levará (1999), Abbas Kiarostami, Irã.), os encontros entre o protagonista e o escavador que trabalha no interior de um buraco. Em ambos os casos, o personagem fora de quadro é tornado visível sob a forma de duas linhas de força que se cruzam, multiplicando seus efeitos: primeiramente, a voz, carregada não apenas de palavras que cumprem a função de comunicar, como também de timbres e vibrações, mesclados aos ruídos da paisagem sonora que os cerca; em segundo, a agitação que sua posição espacial provoca na mise-en-scène, conferindo-lhe um eixo vertical de organização – o personagem em quadro, que olha e flexiona o corpo para cima ou para baixo, como se houvesse uma corrente magnética atraindo-o em direção a essa região, os movimentos verticais de objetos, como o fêmur que surge do buraco como se saltasse do além ou levantasse de uma cova. Ou, ainda, a cena de Vida e nada mais (1992), em que o protagonista, sentado na fachada de uma casa, é atingido por um fio d’água oriundo do espaço acima do quadro, onde a esposa de seu interlocutor rega os vasinhos de plantas que lhe enfeitam a sacada do sobrado, fazendo com que a mulher – cuja exposição fílmica é, sob diversas condições, proibida pelo regime fundamentalista iraniano – surja como uma perturbação na organização do espaço, uma força que age na fisicalidade da cena, modificando a disposição dos corpos.

Por si só, o recurso cênico não parece novo, pois remonta ao que Bonitzer ( 1978, p. 7BONITZER, Pascal. Décadrages. Cahiers du Cinéma, Paris, n. 284, p. 7-15, jan./1978.) reconhecia na pintura clássica – o olhar do personagem dentro de quadro que, apontado para fora, direciona nossa atenção para o espaço não visibilizado pelos limites do quadro, como em As meninas (1656), de Diego Velázquez – ou o que Noël Burch ( 2008, p. 40BURCH, Noël. Práxis do cinema. São Paulo: Perspectiva, 2008.) apontava acerca das entradas e saídas de quadro no filme Nana ( 1926Nana (1926), Jean Renoir, França.), de Jean Renoir. Na tela de Velázquez, os olhares dos personagens direcionados para o antecampo inseriam uma tensão política no espaço fora de tela, de maneira a sugerir que o “não visível” é peça-chave para a compreensão do visível. No filme de Renoir, a abundância dos movimentos de atores para dentro e para fora de quadro expandiam o espaço da mise-en-scène, como se não bastasse o campo para manejar os jogos de cena e fosse preciso, assim, povoar o extracampo com percepções e possibilidades.

Embora haja semelhança imediata entre o artifício cênico, de um lado, dos casos citados de Velázquez e Renoir e, de outro, daqueles que apontamos em Kiarostami, há uma diferença determinante no que concerne ao modo como o direcionamento do olhar para o fora de quadro age no aparecimento do visível. Em Kiarostami trata-se não mais de levar a percepção a vazar o quadro em um impulso centrífugo, mas de fazer com que a visibilidade daquilo que está fora de quadro adquira uma qualidade bastante particular: separar-se da sua encarnação presencial, carnal, objetual, para aparecer no bordado das linhas de força que incidem sobre os corpos, objetos, palavras e movimentos em quadro. Por isso, de alguma maneira, tudo retorna para a superfície do visível, encontrando na geometria da tela um dispositivo de produção.

De modo análogo, filmar um corpo à distância, aqui, em vez de marcar uma neutralidade do cineasta, ou uma maneira de barrar as identificações por meio de um distanciamento entre olhar e personagem, é transformar todo esse corpo em uma peça compacta que se desloca, simultaneamente, pela tridimensionalidade do espaço cênico e pela bidimensionalidade da tela, e do qual o que apreendemos são, sobretudo, os fluxos e velocidades de movimento, a trajetória que seu curso desenha no chão – como o menino de Onde fica a casa do meu amigo?Onde fica a casa do meu amigo? (1987), Abbas Kiarostami, 1987. , o carro em Gosto de cereja, Vida e nada mais e O vento nos levará, que surgem como unidades móveis nos percursos ziguezagueantes. Posicionar um corpo ou um objeto no limite do quadro implica forçá-lo a aparecer como algo que, podendo a qualquer instante sair de quadro, está sempre na iminência de ver alterado o estatuto de sua existência visível.

Para efeito de comparação, lembremos Comolli ( 2009COMOLLI, Jean-Louis. Cinéma contre spetacle. Lagrasse, França: Verdier, 2009.), que destacava a potência do cinema, se comparado à forma do “espetáculo”, por sua capacidade de internalizar, no jogo cênico e na montagem, a evidência de que o mundo não é inteiramente acessado pelo visível instituído pela imagem, de maneira que o Campo apareceria como essa estrutura que, ao mesmo tempo que mostra, evidencia a existência de um não-mostrado. Sob essa definição, o quadro, então, convive com a consciência interna de que o visível a que ele acede é um recorte diminuto de um mundo infinitamente maior, pois “é uma oscilação entre consciência do contorno e consciência do conteúdo” ( COMOLLI, 2009, p. 33COMOLLI, Jean-Louis. Cinéma contre spetacle. Lagrasse, França: Verdier, 2009., tradução minha). Contudo, como vimos nas seções anteriores, a decupagem e a misè-en-scène manejados como operadores de um jogo de “esconde-esconde” (ibidem, p. 33) já definia a progressão do tempo no cinema da imagem-movimento, quando o corte ou o movimento de câmera cumpria a função de atualizar o extracampo, dando um delineamento ao que, quando ocultado, permanecia aberto a uma zona de indeterminação.

Em Kiarostami, distintamente, menos do que um operador do jogo entre ocultar/mostrar, o quadro é articulado de modos inumeráveis para produzir diferenciações e promover a emergência daquilo que se desprendeu da objetidade do corpo, constituindo-se, então, como uma zona de ritmos, volumes, intensidades, circuitos de movimentos que se organizam em relações compositivas e coordenadas. Não se trata de manejar o quadro para esconder ou revelar, mas de condicionar a visibilidade a certos modos de aparição, com frequência sintetizando o corpo ou a coisa a uma instância comprimida de sensorialidade.

Essa transformação no estatuto da imagem levaria autores a enxergarem na composição do quadro de Kiarostami uma oscilação entre modos de organização visual que sintetizaria mesmo dois grandes regimes de estética cinematográfica. Frédéric Sabouraud ( 2010SABOURAUD, Frédéric. Abbas Kiarostami. Le cinéma revisité. Rennes: Presses Universitaires du Rennes, 2010.) fala, a princípio, em duas significações do quadro, comentando seus filmes dos anos 1990: um primeiro, que exerce a fragmentação do espaço, evidenciando que o retângulo da tela é um recorte do mundo, de modo que suas quatro bordas aparecem como limites de separação entre o visível e o não visível; o segundo é o da composição, da organização em função de uma linha de abordagem conceitual ou filosófica ( 2010, p. 65–67BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Primeira versão. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Rio de Janeiro: Brasiliense, 2010, p. 165-196.). Em artigo, Oliveira Junior ( 2016OLIVEIRA Jr., Luiz Carlos. O olho da imagem: reflexões metaestéticas no cinema de Abbas Kiarostami. Significação, São Paulo, vol. 43, n. 45, p. 44-63, 2016.) exploraria essa dupla função do quadro, procurando sobretudo esmiuçar a presença significativa da segunda, por meio da mobilização de um rol de referências das artes plásticas, a fim de apontar em Kiarostami – cineasta não raramente tomado como um mestre do improviso, da espontaneidade e do real – a força do artifício que organiza o mundo a partir dos recursos geométricos e cênicos do cinema e seus conceitos visuais. Para ambos os autores, o campo e o extracampo, no quadro kiarostamiano, variariam nesses dois polos – como fragmento diminuto do mundo e espaço de instalação do artifício que o organiza segundo critérios de composição dirigidos ao espectador.

Comentando o plano final de Cópia fiel, Oliveira Junior aponta a estruturação do quadro na forma de dois elementos que seriam celebremente reconhecidos como modelos dos dois regimes de organização visual de que falávamos: o espelho, cuja posição é ocupada pela câmera a encarar frontalmente o rosto de James diante da pia do banheiro (quadro da organização geométrica em função da dimensão opaca da imagem), e a janela que resta ao fundo, quando o personagem abandona o quadro, recortando uma paisagem de construções, igrejas, sinos e em cujos limites rolarão os créditos finais (quadro do fragmento, que atira o olhar ao objeto visto, sob um determinado ponto de vista).

É o próprio sistema operatório do quadro retangular (…) que se acha aí sublinhado e exibido em sua função primordial de abrir um campo de visibilidade e significação, de converter o mundo desestruturado da percepção imediata num mundo geometrizado e esquadrinhado. ( OLIVEIRA Jr, 2016, p. 59OLIVEIRA Jr., Luiz Carlos. O olho da imagem: reflexões metaestéticas no cinema de Abbas Kiarostami. Significação, São Paulo, vol. 43, n. 45, p. 44-63, 2016.)

Contudo, espelho e janela, se estão juntos no mesmo plano, é porque já não se contrapõem como regimes de organização visual, pois nem a opacidade centrípeta do espelho como tampouco a transparência centrífuga da janela aparecem senão como modos de diferenciação do visível, quando o dentro e o fora de quadro deixaram de ser marcadores decisivos do que é visto. Por esse caminho, gostaríamos de defender que o que está em jogo na composição do quadro de Kiarostami, menos do que um passeio pelos regimes de visualidade ou de elaborações metaestéticas vertidas para o interior do campo cinematográfico, é produzir uma imagem que trama sua despedida do elemento central de mediação entre cinema e olhar, para fazer surgir outro sistema de instauração do visível.

Uma ação se passa quase ao final desse último plano de Cópia fiel: um sino é badalado na torre de uma igreja, cuja presença é revelada assim que o busto de James sai de quadro. O sino, porém, sempre ocupou espaço no campo sensível do filme, por meio da sua sonoridade que embalava os diálogos do casal quando caminhavam pelas ruas e praças, marcando, mais do que uma ambientação, uma simbologia do matrimônio religioso e, sobretudo, uma cadência, uma contagem das horas ou dos segundos. A imagem centrípeta, enquadrando os rostos, nunca tratou de ocultá-lo; ao contrário, era deixando-o fora de quadro que a imagem fazia do sino um ritmo, uma pontuação na oscilação entre cenas externas e internas, um canto que parece vir do ar como uma homenagem ao escoamento do tempo.

Os segundos que passam nos planos alongados, contados pelo badalar do sino, são o que basta para que o visível esteja continuamente produzindo modos de aparição e reaparição, em processo de diferenciação. A imagem torna-se essa usina que fabrica, para um mesmo objeto e a cada vez, um novo modo de fazê-lo advir visível, emergir enquanto existência audiovisual sob condições de visibilidade que se diferenciam no tempo. Por isso, será menos decisiva sua presença física e pictórica no retângulo do quadro do que a qualidade da dimensão sensível acionada face a um dado enquadramento, isso a que chamamos linhas de força. Em Cópia fiel, os quadros são manipulados para que tudo o que é visto não cesse de variar seus modos de aparição, tendo o tempo e a duração como a matéria necessária para que se instale esse fluxo de surgimentos e evanescências.

A imagem como Campo, contudo, não será eliminada do conjunto fílmico; ela retorna, por vezes, nos campos/contracampos que decupam diversas das cenas, sobretudo diálogos, com o efeito de estabilizar a relação entre o olhar e o visível ou conferir um momento de parcimônia à montagem. As transformações entre os regimes de imagens que notamos ao longo deste ensaio não adquirem caráter substitutivo, mas acumulativo, permitindo ao filme aglutinar a dissolução da estrutura Campo à sua insistente reposição e conservação – como os diálogos entre James e Elle no carro, ou a mãe e o menino no café, que reconduzem o Campo ao papel de mediador do olhar e instância organizadora da cena. Contudo, são os momentos de ruptura nessa estrutura, em favor de que o visível prioritariamente apareça como imagem da emergência, que produzem os efeitos lúdicos nos quais o eixo criativo da estética de Kiarostami ganha vigor.

3. Emergir o visível: a profundidade em um plano de Cópia fiel

Em O ano passado em Marienbad, as bifurcações cristalizavam o tempo, fazendo-o subir à superfície da imagem como aquilo com que o olhar travava um confronto direto (as imagens puras do tempo); em Cópia fiel, o tempo já não define a matéria bruta da imagem, pois o passado e as bifurcações nos interessam, antes, como linhas de força que dançam sobre o visível e fazem-no estar em processo de diferenciação, expandem o poder de sugestão, abrem espaço para novas brincadeiras de cena e linguagem nas variações de comportamentos dos personagens, na oscilação hilária de línguas, nos jogos entre os movimentos aleatórios e sua rigorosa marcação. Já não é o tempo puro o que secreta o olhar pelas durações extensivas dos planos, mas a coreografia dos micromovimentos que aparece como ritmos e intensidades variáveis, como o puro emergir das coisas enquanto existências visíveis.

Para desenrolar com mais detalhes essa diferença, gostaria de me deter em um plano de Cópia fiel, com pouco mais de dois minutos de duração, em que James, no interior de um museu de matrimônios, aguarda sentado, do lado de fora de uma sala onde casais de noivos posam para fotos. A câmera fixa favorece a relação direta do olhar com o fluxo de movimentos, de velocidades e variações volumétricas na composição. Pelo vazamento da porta, contemplamos o fundo de quadro onde dois noivos, acompanhados por Elle, posam para um fotógrafo, aparentemente atrás de um anteparo que torna suas figuras levemente esmaecidas e sob um desenquadramento que fragmenta nossa visão para a cena. Um a um, Elle e os noivos caminham do fundo para o primeiro plano, ocupando a moldura da porta, e convidam James para participar da fotografia ao lado de sua “esposa”, obtendo dele sempre uma recusa pouco amigável. Por fim, James é, a contragosto, arrastado pela noiva para o fundo de quadro, permitindo que seu banco, deixado vazio, seja ocupado por outro casal, que se posiciona cobrindo nossa visão de um painel de vidro na parede em cujo reflexo podíamos ver, por todo delongar do plano, a cabeça de uma quarta noiva que, junto de uma senhora, esperava por sua vez de entrar na sala e tirar também suas fotos.

Talvez a primeira tentação, ao cotejarmos esse plano com a taxonomia deleuziana do cinema, seria enquadrá-lo no impulso em direção à profundidade no campo teatralizada que o autor reconhecia em cineastas como Orson Welles e William Wyler ( DELEUZE, 2018b, p. 157–164DELEUZE, Gilles. Cinema 2 – A imagem-tempo. São Paulo: Editora 34, 2018b.). Deleuze proporá uma abordagem das novas explorações da profundidade no cinema moderno como criação de um eixo pelo qual as bifurcações do tempo são proliferadas. O povoamento do quadro em profundidade “[s]eria menos uma função de realidade [como defendia Bazin] que uma função de memorização, de temporalização: não exatamente uma lembrança, mas ‘um convite a lembrar’” ( DELEUZE, 2018b, p. 161DELEUZE, Gilles. Cinema 2 – A imagem-tempo. São Paulo: Editora 34, 2018b.). Deleuze refere-se às articulações que o tempo adquire no plano, como em Cidadão Kane ( Orson Welles, 1941Cidadão Kane (1941), Orson Welles, Estados Unidos.), em que as camadas suscitam diferentes desdobramentos temporais, condensando passados que despontam na duração do plano e fazem o tempo jorrar continuamente na tridimensionalidade do espaço cênico 8 8 “As imagens em profundidade expressam regiões do passado como tal, cada uma com seus acentos próprios ou seus potenciais, e marcam tempos críticos da vontade de potência de Kane. (...) Essa é a função da profundidade de campo: cada vez explorar uma região de passado, um contínuo”. ( DELEUZE, 2018b, p. 156–157) .

Nesse plano de Cópia fiel, poderíamos encontrar, analogamente, tais tentáculos do tempo, de onde ele desponta como rebentação, bifurcado em série, produzindo quatro instâncias temporais que simultaneamente coexistem, carregadas pelas figuras humanas: 1. o casal que tira a foto, 2. o casal em crise (James e Elle), 3. a noiva no reflexo e 4. o casal que, ao final, ocupa o banco de James. De tal modo, essas quatro unidades surgem como incorporações contingentes de um só casal genérico, como se a imagem, em sua duração, cristalizasse distintos momentos da história de um matrimônio. Esse gesto de cristalização do tempo será recorrente no filme, fazendo com que o jogo cênico introduza figuras que incorporam cópias e replicações que já prescindem de modelo, mas que integram tentáculos de um tempo articulado, uma imagem dentro da qual parecem irromper projeções da vida oriundas de múltiplos lugares no tempo. Na fachada da igreja onde Elle entrara para tirar o sutiã, a câmera acompanha um casal de idosos, com seus passos curvados pela idade, tendo ao fundo James e Elle, que iniciam um movimento quase idêntico, como se seguissem uma trilha por onde é permitido saltar no tempo.

Trata-se de um recurso que habitou o surgimento da imagem-tempo e que poderíamos encontrar bem delineado, por exemplo, em Viagem à Itália ( Roberto Rossellini, 1954Viagem à Itália (1954), Roberto Rossellini, Itália.). Porém, lá, era o raccord de olhar, e não a profundidade ou extensão do plano, o que instituía a bifurcação do tempo: Katherine (Ingrid Bergman), em um relacionamento em crise, vagava pelas ruas de Pompéia, onde podia ver, pela moldura da janela do carro, mulheres carregando seus carrinhos de bebê, como se visse a si mesma em um momento futuro da vida; algures, via os corpos mumificados pela lava vulcânica, a parede do museu feita de ossadas humanas, que deflagravam o tempo como o escorrimento incontrolável e a morte como futuro obrigatório que, contudo, habitam o presente por meio dessa cristalização que a imagem é capaz de criar.

Mas, em Rossellini, o jorrar do tempo adquiria uma dimensão traumática, incrustada no raccord de olhar, quando o plano do rosto de Katherine, que sucedia o plano ponto de vista, dava testemunho de sua perturbação diante do tempo projetado na paisagem. Era, como vimos, o virtual que rebentava no coração do visível para lançar algo de intolerável entre olhar e imagem, a disparar a personagem e o filme em uma busca, permanentemente fracassada, de uma catarse que nunca se completa.

Em Kiarostami, ao contrário, como analisou Alain Bergala, inexiste o efeito de choque que conduz o olhar à beira de algo transcendental 9 9 Bergala ( 2016, p. 114) aponta que, ao contrário de Rossellini, em Kiarostami, “não se filmam senão epifanias delicadas, não há lugar para o arroubo miraculoso. Kiarostami jamais filma aquele momento em que alguma coisa da travessia do mundo e suas epifanias misteriosas poderiam se desenrolar em ‘ponto do real’, em tomada de consciência de si por parte do personagem”. . Talvez Vida e nada mais (1990) ainda guardasse, nas “epifanias delicadas” do protagonista, um efeito de surpresa diante da paisagem que, sob a trilha de Vivaldi, disparam uma espécie de tomada de consciência. Mas, vinte anos depois, Elle e James poderão passear pelas bifurcações do tempo como dois parceiros que jogam, por uma tarde, um jogo que já não os surpreende, uma vez que o vazio aberto entre as linhas de força que compõem o visível tornou-se zona de proliferação de vibrações e oscilações por onde, agora, os personagens caminham semeando novas formas de habitar o tempo.

No entanto, não seria correto dizer que houve alguma reconciliação do olhar com a imagem, como se os efeitos traumáticos do cinema moderno – aquilo que ( DELEUZE, 2018b, p. 35–36DELEUZE, Gilles. Cinema 2 – A imagem-tempo. São Paulo: Editora 34, 2018b.) chamou de “insuportável”, “intolerável” e “forte demais” – houvessem sido superados. Cópia fiel traz consigo, antes, uma mudança na postura diante do esvaziamento de que a imagem-tempo já nos dava notícia: não mais uma fonte de assombro, mas uma condição a partir da qual a vida é pulverizada na forma de linhas de forças, emancipada dos organismos vivos, para povoar a imagem como forças emergentes, de maneira que seja nesses pequenos movimentos vibratórios, pelos quais algo ascende ao mundo, que o visível encontra um novo modo de pulsação.

Dessa maneira, desponta, para além da opacidade do tempo, outro elemento prioritário e fundacional, capaz inclusive de oferecer uma força motriz à duração da imagem: são os jogos pelos quais o visível permanentemente modifica seu modo de ser e sua intensidade – o plano fixo é manejado para fazer com que as microcenas apareçam condensadas por linhas de força que deslizam tanto pelo atual quanto pelo virtual. A imagem de Cópia fiel procura reencenar a passagem entre visibilidades de naturezas distintas; não a imagem no reflexo do espelho/vidro contra a imagem da coisa em si, como seu desmascaramento ou aquilo que a denuncia como ilusão ou simulacro, mas o trânsito entre essas distintas modalidades de imagem, valorativamente igualadas, estabelecendo, nesses fluxos entre elas, zonas intervalares sobre as quais o visível é semeado. Assim, desenham-se circuitos de virtualidade que não funcionam mais como aquilo que cinge a imagem por dentro, mas como trilhos por onde correm as linhas de força umas sobre as outras.

Portanto, diríamos que as bifurcações do tempo ocupam, aqui, uma condição instaurativa, como um complexo maquinário que nutre a emergência do visível a partir dos jogos cênicos, da dança das imagens e das metaimagens – dos quadros dentro de quadros, dos reflexos, dos ruídos, das replicações. Há um novo esconde-esconde; não aquele dos encenadores clássicos, que implicava o manejo do campo e do extracampo para inflamar o olhar com a dúvida acerca do que não se via, mas esse que transforma o esconder em um modo de apresentação possível: no plano de Cópia fiel, com que abrimos esta seção, a cada vez que os personagens caminham do fundo para o primeiro plano, seus corpos preenchem a moldura da porta, cobrindo a microcena que se passa ao fundo e reconfigurando o equilibro da composição de forças, redimensionando as bifurcações do tempo, a trama das cópias e replicações do casal.

O tempo é posto, em suma, em função de outro componente, que sempre participou da imagem-tempo, mas agora ascende à prioridade da criação estética: o gesto de emergência e de instauração de linhas de forças que, na duração, faz com que o visível nasça por impulsos energéticos, em contínuo processo de diferenciação. Isso certamente não nos levaria a cravar uma ruptura com a imagem-tempo, mas a sugerir um sutil desvio de ênfase, donde – conforme elaborava Beatriz Furtado acerca de Sokurov e que, neste aspecto, vale para Kiarostami – o tempo “para além de ser primeiro em relação ao movimento [bergsoniano], e de produzir uma imagem direta do tempo, é força que libera intensidades” ( 2007, p. 186FURTADO, Beatriz. Imagens que resistem. O intensivo no cinema de Alexander Sokurov. 2007. Tese (Doutorado em Sociologia) – Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza-CE.). Essa dimensão instaurativa da duração sugere a produção de modos de existência sensível como aquilo a que o cinema acederá por via direta, aquilo que o tempo faz jorrar, de maneira a constituir menos uma “imagem pura do tempo” que uma imagem pura da emergência. O tempo, então, em vez de condensar uma superfície opaca a fazer da imagem a sua cristalização em séries de bifurcações, libera a duração para que ela se ofereça como campo de semeadura para os fluxos de replicações, variações de intensidade, mudanças nas vias pelas quais as coisas e os corpos aparecem.

4. Fim da estrutura Campo

Para desdobrar esses movimentos emergentes, postos como prioridade em Cópia fiel, vale reconhecermos, de saída, duas qualidades de esvaziamentos que cingem a imagem: a do cinema moderno, dos espaços vazios de Antonioni, Ozu, Schroeter, da ausência de direcionamento ao curso do olhar em Resnais, Godard, da ruína urbana e humana em Rossellini e De Sica; e o de Cópia fiel, presente também, como mencionado, em outros filmes de Kiarostami, que se trata de um vazio provocado pela transformação no estatuto de um objeto central à cena que, afastado para fora de quadro, descolou-se da condição de coisa fisicamente presente para aparecer enquanto uma lógica organizativa, um sistema de forças – como a cabeça da estátua, o sino, o segredo que a atendente do café sussurra no ouvido de Elle etc. Se, na imagem-tempo, o vazio surgia como um buraco opaco a se abrir como um centro de opacidade, como um desencadeador de dúvidas e interdições ontológicas, em Cópia fiel o esvaziamento do quadro apresenta-se como resíduo de uma operação que visa a dissociar, de um lado, a presença pictórica do objeto visto e, de outro, sua existência sensível, que pode agora aparecer como um ritmo, uma textura sonora, uma energia da encenação.

Em entrevista, Kiarostami comentava sobre os personagens que, como analisamos atrás, adquirem a espessura, não de uma presença em tela, mas de uma força que interfere no arranjo do quadro:

Nós não vemos suas vidas… o filme tem uma relação física com elas, mas também há um lado não físico ou espiritual. Não vemos os personagens, mas os sentimos. Isso mostra que há uma possibilidade de ser sem ser. Esse é o tema principal do filme [ Gosto de cereja], eu creio. Existem onze personagens que não são visíveis. Ao final, você não sabe se os viu, mas sente que os conhece porque sabe quem foram e o que faziam. Quero criar um tipo de cinema que mostre sem mostrar. ( KIAROSTAMI, 2000, p. 5KIAROSTAMI, Abbas. Taste of Kiarostami. [Entrevista concedida a] David Sterritt. Senses of Cinema, 2000. Disponível em: https://www.sensesofcinema.com/2000/abbas-kiarostami-remembered/kiarostami-2/. Acesso em: 28 mar. 2023.
https://www.sensesofcinema.com/2000/abba...
, tradução minha)

Qual o corpo cinematográfico disso que Kiarostami intuitivamente chamava de ser sem ser ou mostrar sem mostrar? Em seu cinema, as visibilidades/audibilidades habitam a imagem, liberadas de uma forma carnal que vincularia o mostrar/ser à presença de um corpo materialmente delineado, permitindo, com isso, que a existência se dê sob o estatuto de vibrações, intensidades, volumes plásticos. Os corpos têm sua visibilidade atrelada menos à substância de uma carne que atesta a existência pela consistência do estar-ali do que por uma aparição que se dá pelos ecos de uma sensorialidade que os instaura não como objetos determinados por uma corporeidade finita, mas pelo que o diretor chama de “relação espiritual”, um estado vibracional, em que os seres adquirem o estatuto de zonas magnéticas que se agitam pelos ruídos, vozes, movimentos e micromovimentos cênicos ou pictóricos.

Há, sem dúvida, os personagens cuja presença institui a trama – os protagonistas dos filmes dos anos 1990. Mas eles serão ritmadamente, ao longo de suas jornadas, siderados por aquilo que circunda o quadro como forças não-presenciais, transformando-os em modos de ser, sistemas de repetições – subir e descer a montanha, acelerar e desacelerar, alterar a rota, bifurcar o trajeto. Quando James e Elle encaram a câmera, não é como quem, quebrando a quarta parede, lembra-nos da artificialidade da imagem cinematográfica; mas, sim, uma maneira de convocar o antecampo como fonte organizadora da cena, criando, sob efeitos lúdicos, um novo modo de portar o corpo; antes, um sistema de olhares do que a presença de um corpo que olha.

Como vimos anteriormente, no cinema moderno, a imagem fora atravessada, dentro de campo e no cerne do visível, pelo virtual, em cuja condição fendiam-se os corpos e as coisas como zona de abertura para uma indeterminação que as constituía por dentro. Porém, a imagem de Kiarostami já não se interessa pelas coisas ou corpos fendidos, senão pela fenda que, agora, aparece inflada ao tamanho da imagem – isto é, não mais a rachadura dentro da imagem, mas a imagem como rachadura que corta o mundo. O visível prescinde da presença ou de seres cujo estatuto ontológico é instituído pela conjunção entre sua imagem e seu estar-ali.

Por um lado, poderíamos dizer que se trata de uma cisão já colocada em questão pela imagem como suporte técnico, conforme celebremente elaborada por Walter Benjamin ( 2010BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Primeira versão. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Rio de Janeiro: Brasiliense, 2010, p. 165-196.): a imagem fotográfica permitiria ver sem a presença física do que é visto, desativando a centralidade da aura que fazia do objeto uma ocorrência singular no tempo e no espaço. Contudo, a imagem o realizava a custo do que teóricos do realismo, como Siegfried Kracauer ( 1997KRACAUER, Siegfried. Theory of Film. The redemption of physical reality. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1997.) ou André Bazin ( 2011aBAZIN, André. Cinéma et peinture. In Qu’est-ce que le cinéma? Paris: Cerf, 2011a, p. 187-192.), identificaram como uma espécie de correspondência ontológica entre a coisa e a imagem – para o primeiro, a evidência do registro de uma fisicalidade concreta, fixada pela fotografia, enquanto para o segundo, o espaço-tempo filmado que é “embalsamado” na imagem em movimento sob a forma de duração ( BAZIN, 2011b, p. 14BAZIN, André. Ontologie de l’image photographique. In Qu’est-ce que le cinéma? Paris: Cerf, 2011b, p. 9-17.). Em ambos os casos, contudo, a coincidência entre a coisa-vista e a imagem repunha a centralidade da presença, embora transmutada para outro estatuto – o da materialidade exterior fixada pela fotografia, em Kracauer, ou das unidades espaço-temporais cristalizadas pela continuidade da imagem em movimento, tendo no plano-sequência sua realização plena, em Bazin.

Na ontologia estética de Cópia fiel, todavia, não foi apenas a imagem e o objeto que se separaram, foi a imagem mesma que perdeu a consistência de um objeto, muito embora não deixe de estar obrigatoriamente vinculada, no caso do cinema, à condição de uma materialidade finita, como o retângulo do quadro e do corrimento linear do tempo fílmico. Com isso, o cinema de Kiarostami incorpora, na lógica operativa da imagem, o movimento que impulsiona um certo caminho que, na contemporaneidade, tem-se aberto para a relação entre a imagem e a vida sensível ou subjetiva, a saber, a perda da natureza de objeto do meio, desencadeada pelas novas tecnologias e condições do virtual, a ecoar nos modos como pensamos a imagem, conforme elabora André Parente ( 2011, p. 37PARENTE, André. A forma Cinema: cinema do dispositivo e as instalações panorâmicas. Cinema em trânsito. Cinema, arte contemporânea e novas mídias. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011, p. 33-56.):

assistimos claramente ao processo de transformação da teoria cinematográfica, isto é, de uma teoria que pensa a imagem não mais como um objeto, e sim como acontecimento, campo de forças ou sistema de relações que põe em jogo diferentes instâncias enunciativas, figurativas e perceptivas da imagem.

Para realizar tal deslocamento em seu estatuto, a imagem precisou destituir a centralidade do Campo, como estrutura de mediação do olhar e instituição do visível, pois era ele que marcava as coisas e os corpos de acordo com sua presença ou não em quadro. O Campo é uma tecnologia de visibilidade privilegiada pela forma Cinema – quase se confundindo com sua história –, o que, como designa Parente, articula, além das linguagens cinematográficas, a dimensão arquitetônica da sala escura e a tecnologia de projeção ( PARENTE, 2011, p. 37PARENTE, André. A forma Cinema: cinema do dispositivo e as instalações panorâmicas. Cinema em trânsito. Cinema, arte contemporânea e novas mídias. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011, p. 33-56.).

O quadro define-se pela estrutura física e retangular da tela, algo mais simples, no que concerne à produção de regimes sensíveis do que o Campo; o quadro é da natureza do cinema; o campo é uma tecnologia contingente e histórica. Talvez por isso, enquanto as artes plásticas, nos movimentos da segunda metade do século XX, exploravam todo tipo de saída do espaço circunscrito da obra; enquanto as pinturas vazavam as molduras e expandiam-se tridimensionalmente, ou as esculturas confundiam-se com os pedestais ou seu espaço de alocação; enquanto o teatro transbordava o palco, misturava atores e público, o cinema via-se confinado à estrutura arquitetônica e tecnológica da sala escura, que, se abandonada, implicaria a alteração de seu estatuto simbólico, passando a categorizar-se como videoarte, videoinstalação e outras formas de expansão, que marcam circuitos de exibição e de valoração sociais distintos daquele que se reconhece ao cinema.

Como poderia, então, a imagem cinematográfica romper o limite sugerido pela componente física do quadro, sem, ao mesmo tempo, desconstruir a estrutura da tela, a arquitetura do espaço de projeção e essa dinâmica especial de espectorialidade que o definem? Como procuramos elaborar, Cópia fiel trama uma saída da tela, por via conceitual e não material, ao intensificar a distinção entre a forma física do quadro retangular e a estrutura de visibilidade do Campo, indicando-nos que este último, mais do que uma forma geométrica, implica um regime de organização e aparecimento do visível, que faz do estar dentro ou fora de quadro um componente decisivo no qual se ampara o caráter objetual da imagem. Fazer-se uma composição de linhas de força é uma maneira com que a imagem reivindica sua liberdade frente ao aparato tela/projeção/quadro que define o cinema, sem que, para isso, precise deixar a sala.

Sobre o autor

Eduardo Brandão Pinto é Doutorando em Comunicação e Cultura na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e realizador audiovisual. Este artigo foi escrito com apoio das bolsas Doutorado Nota 10, da FAPERJ, e do Programa Institucional de Internacionalização da CAPES, que permitiu a realização de um semestre sanduíche na Université Paris VIII.

Referências

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  • SABOURAUD, Frédéric. Abbas Kiarostami. Le cinéma revisité. Rennes: Presses Universitaires du Rennes, 2010.

Filmes

  • Assassinato! (1929), Alfred Hitchcock, Inglaterra.
  • Cidadão Kane (1941), Orson Welles, Estados Unidos.
  • Cópia fiel (2010), Abbas Kiarostami, França, Itália, China, Estados Unidos.
  • Gosto de cereja (1997), Abbas Kiarostami, Irã.
  • Ladrões de bicicleta (1948), Vittorio de Sica, Itália.
  • Nana (1926), Jean Renoir, França.
  • Número dois (1975), Jean-Luc Godard, França.
  • O ano passado em Marienbad (1961), Alain Resnais, França.
  • O vento nos levará (1999), Abbas Kiarostami, Irã.
  • Onde fica a casa do meu amigo? (1987), Abbas Kiarostami, 1987.
  • Quando desceram as trevas (1944), Fritz Lang, Estados Unidos.
  • Viagem à Itália (1954), Roberto Rossellini, Itália.
  • 1
    “O quadro [da pintura] polariza o espaço em direção ao interior, tudo o que a tela [cinema] nos mostra, ao contrário, é prolongado infinitamente no universo. O quadro é centrípeto, a tela é centrífuga.” ( BAZIN, 2011a, p. 188BAZIN, André. Cinéma et peinture. In Qu’est-ce que le cinéma? Paris: Cerf, 2011a, p. 187-192., tradução minha)
  • 2
    Especificamente o capítulo 5.
  • 3
    Vale lembrar que ao final de Cinema 2 ( DELEUZE, 2018b, p. 384DELEUZE, Gilles. Cinema 2 – A imagem-tempo. São Paulo: Editora 34, 2018b.) e em carta a Serge Daney ( DELEUZE, 1992, p. 92DELEUZE, Gilles. Carta a Serge Daney: otimismo, pessimismo e viagem. In Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, p. 88-102.), Deleuze esboçava um terceiro tempo do cinema, quando o extracampo é abolido em favor de uma imagem feita de camadas que deslizam umas sobre outras. O autor tinha em mente o uso do vídeo e as experimentações em multitelas, como Número dois ( Godard, 1975Número dois (1975), Jean-Luc Godard, França.), ou um cinema de refuncionalizações de códigos fílmicos tão em voga nos anos 1980. Em suma, Deleuze falava de uma imagem construída na forma do puro simulacro; aqui, seguiremos por outro caminho, embora coincidindo na tese do fim do extracampo.
  • 4
    Emprego “Campo”, com inicial maiúscula, quando me refiro a essa estrutura de produção de visibilidade, que mobiliza tanto “campo”, com minúscula (como termo corrente que indica o interior do quadro), quanto o “extracampo”.
  • 5
    Deleuze sugere esses dois modos do fora de quadro na imagem-movimento ao organizar os processos de integração do extracampo ao campo: o primeiro (o extracampo já suposto pelo campo) é levado a quadro quando ocorre um movimento “relativo” (como o corte no campo/contracampo); enquanto o segundo passa ao quadro por um movimento “absoluto” (o corte ou o movimento de câmera que mostra algo imprevisto a transformar o universo visível já estabelecido). Ver ( DELEUZE, 2018a, p. 37DELEUZE, Gilles. Cinema 1 – A imagem-movimento. São Paulo: Editora 34, 2018a.).
  • 6
    Capítulos 2 e 3.
  • 7
    “[O] uso do quadro como uma agudez, rejeição dos viventes à periferia (por exemplo, o abraço dos amantes na pintura* Vertiges *de Cremonini), ao fora de quadro, a focalização das zonas mornas ou mortas, a dúbia exaltação dos objetos triviais” ( BONITZER, 1978, p. 12BONITZER, Pascal. Décadrages. Cahiers du Cinéma, Paris, n. 284, p. 7-15, jan./1978., tradução minha).
  • 8
    “As imagens em profundidade expressam regiões do passado como tal, cada uma com seus acentos próprios ou seus potenciais, e marcam tempos críticos da vontade de potência de Kane. (...) Essa é a função da profundidade de campo: cada vez explorar uma região de passado, um contínuo”. ( DELEUZE, 2018b, p. 156–157DELEUZE, Gilles. Cinema 2 – A imagem-tempo. São Paulo: Editora 34, 2018b.)
  • 9
    Bergala ( 2016, p. 114BERGALA, Alain. Da epifania no cinema de Kiarostami e Rossellini. In SAVINO, Fábio e CHIARETTI, Maria (orgs.) Um filme, cem histórias. Brasília; São Paulo; Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2016, p. 109-118.) aponta que, ao contrário de Rossellini, em Kiarostami, “não se filmam senão epifanias delicadas, não há lugar para o arroubo miraculoso. Kiarostami jamais filma aquele momento em que alguma coisa da travessia do mundo e suas epifanias misteriosas poderiam se desenrolar em ‘ponto do real’, em tomada de consciência de si por parte do personagem”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    17 Dez 2020
  • Aceito
    28 Mar 2023
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