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Aproximações entre a metodologia da investigação temática e a abordagem decolonial: uma proposta para a área dos Estudos Organizacionais

Alienación entre la metodología de investigación temática y la perspectiva decolonial: una propuesta para el campo de los Estudios Organizacionales

Resumo

As denúncias promovidas pela abordagem decolonial a respeito de práticas coloniais que permaneceram e permanecem ativas, mesmo depois do fim oficial do colonialismo, assim como a crítica que esta abordagem faz à universalidade do pensamento, contribuem para o avanço do conhecimento. Por outro lado, existe na abordagem decolonial uma lacuna sobre quais são as possibilidades metodológicas mais coerentes a serem utilizadas em pesquisas decoloniais. Diante disso, buscamos contribuir para a ampliação do processo de escolha de abordagens metodológicas em pesquisas da área dos Estudos Organizacionais (EOR), que sejam, epistemologicamente, alinhadas à abordagem decolonial, ou seja, que respeitem a pluriversalidade de seres, saberes e territórios. Para isso, apontamos a investigação temática1 1 Agradecemos ao professor Michel Thiollent por ter nos presenteado com o livro “Metodologia, Teoria do Conhecimento e Pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados, de João Bosco Guedes Pinto”, que utilizamos como base para as discussões sobre a Investigação Temática. como uma possibilidade de metodologia alinhada à abordagem decolonial. Por fim, apresentamos um exemplo de planejamento metodológico para uma pesquisa na perspectiva decolonial, da área dos EOR, que utilizará como metodologia a investigação temática. Concluímos apontando que a investigação temática é uma perspectiva muito alinhada à abordagem decolonial, uma vez que respeita o ser e o território, mas não deve ser adotada sem prévia reflexão crítica, ou seja, como uma fórmula.

Palavras-chave:
Abordagem decolonial; Investigação temática; Metodologia

Resumen

Las denuncias promovidas por el enfoque decolonial sobre las prácticas coloniales que se mantuvieron y se mantienen activas, incluso después del fin oficial del colonialismo, así como las críticas que este enfoque hace a la universalidad del pensamiento, contribuyen al avance del conocimiento. Por otro lado, hay un vacío en el enfoque decolonial sobre cuáles son las posibilidades metodológicas más coherentes para utilizar en la investigación decolonial. Por eso, buscamos contribuir a la expansión del proceso de elección de enfoques metodológicos en la investigación, en el área de Estudios Organizacionales, que estén epistemológicamente alineados al enfoque decolonial, es decir, que respeten la pluriversalidad de los seres, conocimientos y territorios. Apuntamos la investigación temática como una posibilidad de metodología alineada al enfoque decolonial. Finalmente, presentamos un ejemplo de planificación metodológica para una investigación bajo la perspectiva decolonial, en el área de Estudios Organizacionales, que utilizará la investigación temática como metodología. Concluimos señalando que la investigación temática tiene una perspectiva muy alineada al enfoque decolonial, ya que respeta el ser y el territorio, pero que no se debe adoptar sin una reflexión crítica previa, es decir, como una fórmula.

Palabras clave:
Perspectiva decolonial; Investigación temática; Metodología.

Abstract

The denunciations promoted by the decolonial approach regarding colonial practices that remain active, even after the official end of colonialism, and the criticism that this approach makes to the universality of thought, contribute to the advance of knowledge. However, there is a gap in the decolonial approach over the most coherent methodological possibilities that can be used in decolonial research. Therefore, we seek to contribute to the expansion of choosing methodological approaches in research in the area of Organizational Studies that are epistemologically aligned with the decolonial approach; they respect the pluriversality of beings, knowledge, and territories. We point to the thematic investigation1 1 We are thankful to Professor Michel Thiollent for presenting us with the book “Methodology, Knowledge Theory and Action Research: Selected and presented texts”, by João Bosco Guedes Pinto, which we used as a basis for discussions on Thematic Analysis. as a possibility of a methodology aligned with the decolonial approach. Finally, we present an example of methodological planning for research under a decolonial perspective in the area of Organizational Studies, which will use the thematic investigation as a methodology. We conclude that the thematic investigation has a perspective aligned with the decolonial approach since it respects the being and the territory, but that it should not be adopted without prior critical reflectivity, i.e., as a formula.

Keywords:
Decolonial perspective; Thematic research; Methodology

INTRODUÇÃO

A decolonialidade é uma abordagem de pesquisa que pode ser caracterizada pela crítica ao poder que o pensamento colonial exerce, de maneira complexa, na constituição do ser e do saber (Mignolo, 2010Mignolo, W. D. (2010). Desobediencia epistémica: retórica de la modernidad, lógica de la colonialidad y gramática de la descolonialidad. Buenos Aires, Argentina: Ediciones del signo.). Para exemplificar esta ideia, podemos começar refletindo sobre a fase de constituição das instituições de ensino superior em administração no Brasil, entre os anos 1940 e 1950. Neste período foram realizados acordos de cooperação entre Brasil e Estados Unidos da América (EUA), porém, ainda que fossem acordos bilaterais, valorizou-se o conhecimento estadunidense e o Brasil ficou na posição de subordinado aos EUA (Barros & Carrieri, 2013Barros, A. N., & Carrieri, A. P. (2013). Ensino superior em Administração entre os anos 1940 e 1950: uma discussão a partir dos acordos de cooperação Brasil-Estados Unidos. Cadernos EBAPE.BR, 11(2), 256- 273.). Tais contratos de apoio não existem mais, mas ainda vigora a ideia de superioridade do conhecimento produzido no chamado “primeiro mundo”. Nos Estudos Organizacionais da América Latina, por exemplo, o conteúdo predominante ainda é o estrangeiro (Wanderley, 2015Wanderley, S. (2015). Estudos organizacionais, (des)colonialidade e estudos da dependência: as contribuições da Cepal. Cadernos EBAPE.BR, 13(2), 237-255.) e a história dos cursos de ensino superior em administração no Brasil permanece marcada pela influência dos modelos estrangeiros e pela desvalorização das realidades locais (Barros & Carrieri, 2013Barros, A. N., & Carrieri, A. P. (2013). Ensino superior em Administração entre os anos 1940 e 1950: uma discussão a partir dos acordos de cooperação Brasil-Estados Unidos. Cadernos EBAPE.BR, 11(2), 256- 273.). Podemos, ainda, refletir sobre as referências adotadas na elaboração das regulamentações brasileiras, como as leis de proteção ao consumidor, por exemplo. Em pesquisa realizada por Rodrigues e Hemais (2020Rodrigues, L., & Hemais, M. W. (2020). Influências eurocêntricas no Sistema Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária: pesquisa histórica sob uma perspectiva decolonial. Cadernos EBAPE.BR, 18(Especial), 794-806.), constatou-se que as regulamentações seguidas pelo setor publicitário do Brasil seguem referências eurocêntricas e são distantes da realidade nacional, o que provoca uma fragilidade na garantia de proteção aos consumidores contra possíveis abusos empresariais.

Assim, a abordagem decolonial realiza denúncias e reflexões a respeito de práticas coloniais que permaneceram ou permanecem ativas, mesmo após o fim oficial do período colonial (Ballestrin, 2013Ballestrin, L. (2013). América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, 11, 89-117.), podendo ser compreendida como uma postura contra a permanência da colonialidade nas diversas dimensões da vida humana. Consideramos que esta perspectiva contribui para o avanço do conhecimento, uma vez que quebra com a tradição de determinar autores (as) de referência e questiona a universalidade do pensamento (Mignolo, 2003Mignolo, W. D. (2003). Historias locales/diseños globales: colonialidad, conocimientos subalternos y pensamiento fronterizo. Madrid, España: Akal.): a reprodução de práticas hegemônicas é característica, justamente, do colonialismo contra o qual esta abordagem se posiciona.

No entanto, o caráter livre proposto pela abordagem decolonial pode levar-nos a sentir uma lacuna de referências, quanto aos procedimentos metodológicos mais coerentes do que outros a serem utilizados em pesquisas fundamentadas nesta perspectiva.

Uma vez que a única hegemonia defendida pelo decolonialismo é a do desenvolvimento do “pluriverso transmoderno” (Dussel, 2016Dussel, E. (2016). Transmodernidade e interculturalidade: interpretação a partir da filosofia da libertação. Sociedade e Estado, 31(1), 51-73.), esta ideia discutida pelo autor, desconstrói a noção de hierarquia e concorrência entre culturas, imposta pela modernidade e pós-modernidade eurocentradas. Segundo tal autor, ao longo dos anos, a modernidade e a pós-modernidade usaram as culturas ditas periféricas e a diversidade (muitas vezes, alocada no campo do exótico e místico, como ocorre com culturas indígenas da América Latina) como estratégia de colonização e silenciamento das diferenças. A decolonialidade é uma reação às violências sofridas por estas culturas e é por isso que só aceita a hegemonia da existência de pluriversos transculturais, ou seja, do diálogo simétrico entre as multiculturas que existem (Dussel, 2016Dussel, E. (2016). Transmodernidade e interculturalidade: interpretação a partir da filosofia da libertação. Sociedade e Estado, 31(1), 51-73.).

A natureza e reflexão da abordagem decolonial levam, necessariamente, ao questionamento sobre o uso acrítico de percursos metodológicos importados de países do chamado “norte global”. Podemos, por exemplo, refletir sobre a naturalização da dicotomia entre pesquisas de abordagens qualitativas e quantitativas, assim como analisar as premissas das quais partimos para definirmos o que é uma pesquisa de qualidade (R. C. Silva, 1998Silva, R. C. (1998). A falsa dicotomia qualitativo-quantitativo: paradigmas que informam nossas práticas de pesquisa. In G., Romanelli, & Z. M. M., Biasoli-Alves (Eds.), Diálogos metodológicos sobre práticas de pesquisa(pp. 159-174). Ribeirão Preto, SP: Legis Summa.). Geralmente, em consequência da doutrinação positivista, especialmente na área das ciências sociais, idolatramos métodos de pesquisa e desconsideramos outros critérios para avaliar a qualidade de um trabalho, como a relevância social, por exemplo (R. C. Silva, 1998Silva, R. C. (1998). A falsa dicotomia qualitativo-quantitativo: paradigmas que informam nossas práticas de pesquisa. In G., Romanelli, & Z. M. M., Biasoli-Alves (Eds.), Diálogos metodológicos sobre práticas de pesquisa(pp. 159-174). Ribeirão Preto, SP: Legis Summa.).

A abordagem decolonial não aponta quais são as referências metodológicas coerentes com sua perspectiva; a área de administração, por sua vez, por pertencer a um campo de pesquisa recente em relação às ciências ditas duras, valoriza fortemente o método como um meio de comprovar sua qualidade científica. Diante disto, cria-se uma tensão, por parte de pesquisadores da área de Administração que desejem optar por esta abordagem em suas pesquisas. Desta tensão nasceu este trabalho, que tem por objetivo contribuir para a ampliação do processo de escolha de abordagens metodológicas epistemologicamente alinhadas à decolonialidade, a partir da discussão sobre as aproximações entre a abordagem decolonial e a investigação temática.

A necessidade de refletir sobre a prática metodológica da abordagem decolonial no campo da gestão também foi exposta por Sauerbronn, Ayres, C. M. Silva, e Lourenço (2021Sauerbronn, F. F., Ayres, R. M., Silva, C. M., & Lourenço, R. L. (2021, janeiro). Decolonial studies in accounting? Emerging contributions from Latin America. Critical Perspectives on Accounting, 102281. Recuperado dehttps://doi.org/10.1016/j.cpa.2020.102281
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). Ao mapear as pesquisas decoloniais realizadas na área da contabilidade, as autoras indicam que o uso de metodologias não extrativistas (construídas em parceria com as pluralidades dos indivíduos e grupos sociais do campo estudado), são uma possibilidade de libertação da crença na superioridade das metodologias eurocêntricas, presente nos estudos convencionais de gestão. Abdala e Faria (2017)Abdalla, M. M., & Faria, A. (2017). Em defesa da opção decolonial em administração/gestão. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 914-929. também propõem pesquisas comprometidas com a coconstrução do conhecimento de múltiplas realidades, como parte da construção de uma agenda decolonial. Na área dos Estudos Organizacionais, em Administração, o levantamento realizado por Sauerbronn et al. (2021)Sauerbronn, F. F., Ayres, R. M., Silva, C. M., & Lourenço, R. L. (2021, janeiro). Decolonial studies in accounting? Emerging contributions from Latin America. Critical Perspectives on Accounting, 102281. Recuperado dehttps://doi.org/10.1016/j.cpa.2020.102281
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não indicou o uso de métodos alternativos nas pesquisas críticas da área da Contabilidade: dos catorze artigos encontrados, a perspectiva histórica foi o caminho metodológico adotado com maior frequência e é usada, também, em pesquisas decoloniais na área da Administração, como nas pesquisas publicadas por Rodrigues e Hemais (2020Rodrigues, L., & Hemais, M. W. (2020). Influências eurocêntricas no Sistema Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária: pesquisa histórica sob uma perspectiva decolonial. Cadernos EBAPE.BR, 18(Especial), 794-806.) e Wanderley (2015Wanderley, S. (2015). Estudos organizacionais, (des)colonialidade e estudos da dependência: as contribuições da Cepal. Cadernos EBAPE.BR, 13(2), 237-255.), que analisaram dados documentais. Porém, nem todos os tipos de pesquisa são aderentes à pesquisa histórica, daí a necessidade de refletirmos sobre outros caminhos metodológicos coerentes com a perspectiva decolonial.

Outro impulso para nosso trabalho foi a insegurança que sentimos a respeito de qual seria a abordagem metodológica mais alinhada à postura decolonial em uma pesquisa de tese de doutorado; esta insegurança parece também ter alcançado outros pesquisadores, visto que, na edição do ano 2021, um dos subtemas da Conferência Internacional de Estudos Críticos de Gestão (International Critical Management Studies [ICMS], 2021International Critical Management Studies. (2021, março 26). Call for Submissions: The 12th International Conference in Critical Management Studies. Recuperado de https://internationalcms.org/2021/03/26/call-for-submissions-12th-icms-conference
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) foi “Metodologias decoloniais: as (Im) possibilidades praxistas de diversificação de ontologias de dissidência, fratura e resistência”. Além deste evento, o Centro Nacional de Métodos de Pesquisa do Reino Unido promoveu, de outubro a dezembro de 2021, uma série de palestras virtuais denominada “Métodos de Pesquisa Decolonial: resistindo à colonialidade na produção de conhecimento acadêmico”. Portanto, os dois eventos evidenciaram a necessidade de discutir a decolonização dos métodos de pesquisa, o que nos leva a refletir sobre o papel do método.

Mignolo e Tlostanova (2006Mignolo, W. D., & Tlostanova, M. V. (2006). Theorizing from the Borders: Shifting to Geo- and Body-Politics of Knowledge. European Journal of Social Theory, 9(2), 205-221.) relatam um habitual questionamento sobre o método utilizado em suas pesquisas e entendem que isto decorre da arrogância do ponto zero, ou seja, da negação de perspectivas alternativas às epistemologias modernas. Especialmente no campo da Administração, a relevância dada à metodologia também pode implicar falta de questionamento sobre as práticas formativas desta área de conhecimento, ou seja, há uma naturalização da forma como o campo é estruturado e de como as pesquisas são realizadas comumente (Barros & Carrieri, 2013Barros, A. N., & Carrieri, A. P. (2013). Ensino superior em Administração entre os anos 1940 e 1950: uma discussão a partir dos acordos de cooperação Brasil-Estados Unidos. Cadernos EBAPE.BR, 11(2), 256- 273.). Abdalla e Faria (2017Abdalla, M. M., & Faria, A. (2017). Em defesa da opção decolonial em administração/gestão. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 914-929.) mencionam que, por adotarem a abordagem decolonial, foram questionados e enfrentaram a “tentativa de cancelamento do projeto de pesquisa inicial”. Assim, pensar em possibilidades metodológicas coerentes com a perspectiva decolonial no campo da Administração é, também, uma estratégia para permitir que ela atravesse barreiras históricas deste campo. Desejamos, com nosso trabalho, contribuir para a coconstrução da agenda decolonial, proposta por Abdalla e Faria (2017)Abdalla, M. M., & Faria, A. (2017). Em defesa da opção decolonial em administração/gestão. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 914-929.. Para tanto, discutiremos a investigação temática como uma das possibilidades metodológicas para pesquisas na perspectiva decolonial; esta escolha surgiu do estudo sobre as origens da decolonialidade, por meio do qual percebemos aproximações entre a formação do pensamento decolonial e as bases, teórica e epistemológica, da investigação temática.

A pesquisa está estruturada da seguinte maneira: na primeira seção procuramos justificar a escolha da investigação temática como metodologia alinhada à abordagem decolonial. Em seguida, discutimos qual é a percepção de autoras e autores da abordagem decolonial a respeito da construção do conhecimento e depois explicamos a investigação temática e as conexões desta metodologia com a abordagem decolonial. Na terceira seção apresentamos um caso de planejamento metodológico de uma pesquisa na área dos Estudos Organizacionais que pretende utilizar como metodologia a investigação temática. Em seguida, apresentamos as considerações finais.

DESENVOLVIMENTO

Origens e afinidades entre a abordagem decolonial e a investigação temática

A abordagem decolonial teve início no fim dos anos 1990, a partir de autores majoritariamente latino-americanos, como Walter Mignolo, Arthuro Escobar, Aníbal Quijano e Edgardo Lander, que denunciaram a permanência de relações coloniais nas esferas política e econômica (Ballestrin, 2013Ballestrin, L. (2013). América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, 11, 89-117.). Inicialmente, os autores que desenvolveram a abordagem decolonial participavam do grupo de estudos pós-coloniais e subalternos (Ballestrin, 2013Ballestrin, L. (2013). América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, 11, 89-117.). Contudo, com o passar do tempo, estes autores perceberam que, apesar de questionar a colonização, os estudos pós-coloniais não realizavam uma ruptura adequada com o eurocentrismo e desconsideravam, em suas reflexões, a trajetória de dominação e resistência da América Latina (Ballestrin, 2013Ballestrin, L. (2013). América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, 11, 89-117.). Para eles, esta região continuava oculta nos debates das ciências sociais. Então, iniciaram encontros para debater a decolonização da epistemologia ocidental e acabaram estruturando o grupo modernidade/colonialidade e a abordagem decolonial (Ballestrin, 2013Ballestrin, L. (2013). América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, 11, 89-117.).

Entretanto, nas décadas de 1960 e 1970 já havia ocorrido, na América Latina, um movimento, na área de ciências sociais críticas, que questionava o predomínio da epistemologia ocidental em pesquisas de países latinos (Duque-Arrazola, 2014Duque-Arrazola, L. S. (2014). Apresentação. In L. D., Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent (Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados. Belém, PA: UFPA.). Este movimento defendia a construção de metodologias participativas, ou seja, metodologias alternativas à pesquisa considerada clássica (Duque-Arrazola, 2014Duque-Arrazola, L. S. (2014). Apresentação. In L. D., Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent (Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados. Belém, PA: UFPA.). Os debates promovidos pelo grupo tiveram início em movimentos das ciências sociais críticas e da sociedade civil, como o movimento camponês e operário, que contestava os programas de desenvolvimento promovidos na época por países imperialistas e centrais, como os Estados Unidos, em países da América Latina (Duque-Arrazola, 2014Duque-Arrazola, L. S. (2014). Apresentação. In L. D., Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent (Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados. Belém, PA: UFPA.). Dentre eles, Wanderley e Barros (2020Wanderley, S., & Barros, A. (2020). The Alliance for Progress, modernization theory, and the history of management education: The case of CEPAL in Brazil. Management Learning, 51(1), 55-72.) citam a Aliança para o Progresso que, prometendo modernização e investimentos financeiros em instituições de ensino, foi usada para encobrir e marginalizar o conhecimento local. Como reação à expansão de programas imperialistas na América Latina neste período, foram ampliadas, pelo movimento das ciências sociais, as críticas sociológicas, teórico-epistemológicas e metodológicas contra a “[...] influência esterilizante do positivismo e empirismo nas ciências sociais e humanas com a proposta de separação entre [...] ciência dominante e ciência popular; a elitização e monopolização da produção do conhecimento por parte de uma elite acadêmica” (Duque-Arrazola, 2014Duque-Arrazola, L. S. (2014). Apresentação. In L. D., Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent (Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados. Belém, PA: UFPA., p. 7). Também neste contexto, foi criado em 1957, no Rio de Janeiro, o Centro Latino-americano de Pesquisas em Ciências Sociais (CLAPCS), com o objetivo de olhar para a realidade da América Latina e questionar a servidão das ciências sociais à reprodução dos padrões culturais estrangeiros (Bringel & Maldonado, 2016Bringel, B., & Maldonado, E. (2016). Pensamento Crítico Latino-Americano e Pesquisa Militante em Orlando Fals Borda: práxis, subversão e libertação. Revista Direito e Práxis, 7(1), 389-413.). No mesmo ano foi criado o Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO) que, assim como o CLAPCS, teve, em sua criação, a participação do sociólogo colombiano Orlando Fals Borda, pesquisador que participou ativamente dos movimentos campesinos no Brasil (Bringel & Maldonado, 2016Bringel, B., & Maldonado, E. (2016). Pensamento Crítico Latino-Americano e Pesquisa Militante em Orlando Fals Borda: práxis, subversão e libertação. Revista Direito e Práxis, 7(1), 389-413.). Fals Borda também foi importante para o movimento das ciências sociais que defendia o comprometimento e a inserção de pesquisadores nos movimentos populares e no desenvolvimento da modalidade de investigação-ação-participativa (Duque-Arrazola, 2014Duque-Arrazola, L. S. (2014). Apresentação. In L. D., Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent (Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados. Belém, PA: UFPA.).

Em 1998, o mesmo conselho criado no contexto de crítica ao imperialismo na América Latina contribuiu para a realização de um dos encontros formativos do grupo modernidade/colonialidade, que reuniu autores como “Edgardo Lander, Arthuro Escobar, Walter Mignolo, Enrique Dussel, Aníbal Quijano e Fernando Coronil” (Ballestrin, 2013Ballestrin, L. (2013). América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, 11, 89-117., p. 97). Então, o movimento das ciências sociais críticas da América Latina, que, na década de 1960, defendia a construção de metodologias participativas, também teve presença marcante na constituição do grupo modernidade/colonialidade no fim da década de 1990, por meio do CLACSO. Com isso, percebemos as conexões entre a pesquisa participativa e a abordagem decolonial, sendo a primeira uma possibilidade de caminho metodológico coerente com a segunda. A pesquisa participativa emergiu “[...] de uma insatisfação com as metodologias tradicionais de investigação social, todas elas fundamentadas em concepções idealistas ou empiristas da realidade social e estruturadas com base na lógica formal” (Bosco Pinto, 2014Bosco Pinto, J., Angel, M. A., & Reyes, V. (2014). Metodologia da Investigação Temática: pressupostos teóricos e desenvolvimento. In: L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent(Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados (pp. 94-105). Belém, PA: UFPA., p. 95). Cabe aqui destacar que o autor da citação anterior, João Bosco Guedes Pinto, mais conhecido como Bosco Pinto, foi importante para a fundamentação e prática da pesquisa participativa, operacionalizada principalmente na área rural do Brasil e demais países da América Latina (Thiollent, 2014Thiollent, M. J. M. (2014). Preservar a memória da obra de João Bosco Guedes Pinto: resgate de uma obra. In L. D., Duque-Arrazola & M. J. M. Thiollent (Orgs.). João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados. Belém, PA: UFPA.).

Justificamos nossa escolha, portanto, pelas características formativas da abordagem participativa (de antecessora da abordagem decolonial) e por sua proposta de não se colocar como uma fórmula que produza resultados mecânicos. Então, antes de tratarmos das aproximações entre a investigação temática e a abordagem decolonial, discutiremos, na seção a seguir, as consequências do pensamento colonial para a ideia de construção do conhecimento.

A abordagem decolonial e a construção do conhecimento

As dificuldades metodológicas encontradas na realização de pesquisas na abordagem decolonial são uma consequência da forma como a construção do conhecimento é aceita hegemonicamente. Dulci e Malheiros (2021Dulci, T. M. S., & Malheiros, M. R. (2021, janeiro). Um giro decolonial à metodologia científica: apontamentos epistemológicos para metodologias desde e para a América Latina. Revista Espirales, Edição Especial, 174-193.), por exemplo, na busca por incluir em seu artigo um tópico sobre os problemas que enfrentaram durante a pesquisa, relatam terem se defrontado com a dificuldade de expor as incertezas que sentiram durante o percurso metodológico da pesquisa. As autoras perceberam as marcas que elas mesmas possuem da “colonialidade do saber” e da lógica metodológica racional que aprenderam ao longo dos anos. Contam, também, que ainda sofrem com o medo de terem seus trabalhos reprovados em avaliações acadêmicas, já que discutem temas relacionados ao sentir, como a esperança e o amor. Sendo assim, embora a postura decolonial tenha nascido em função de questionamentos sobre a posição da América Latina na construção do conhecimento das ciências sociais e sobre as consequências da modernidade/colonialidade para a vida em sociedade, ela termina expondo, também, angústias com que o pesquisador convive ao se deparar, no meio acadêmico, com a desvalorização da vida, a redução do senso de comunidade e o esquecimento das razões pelas quais os métodos foram criados (Mignolo, 2003Mignolo, W. D. (2003). Historias locales/diseños globales: colonialidad, conocimientos subalternos y pensamiento fronterizo. Madrid, España: Akal.): a “colonialidade do saber” ainda nos limita.

A abordagem decolonial, por meio do “paradigma outro”, de pensamento crítico, analítico e utópico, é uma possibilidade de construção de esperança para a luta contra o cenário de sofrimento causado pelo projeto de modernidade (Mignolo, 2003Mignolo, W. D. (2003). Historias locales/diseños globales: colonialidad, conocimientos subalternos y pensamiento fronterizo. Madrid, España: Akal.). O “paradigma outro”, que compõe esta abordagem, não foi proposto com a pretensão de nomear autoras ou autores de referência, nem, tampouco, de estabelecer uma origem comum. Antes disso, inserido no contexto do sistema mundo modernidade/colonialidade2 2 Segundo Dussel (2005) a ideia da modernidade é uma construção, voltada para o reconhecimento da Europa como o centro do mundo, ou seja, os pontos de partida e chegada do processo de desenvolvimento. Para sustentar o eurocentrismo, a colonialidade foi e é usada como um mecanismo de controle do poder, do conhecimento e do ser (Mignolo, 2010). , o “paradigma outro” consiste em um conector de pensamentos críticos emergentes, ou seja, é “[...] o pensamento crítico e utópico que se articula em todos aqueles lugares nos quais a expansão imperial/colonial negou a possibilidade da razão, do pensamento e de pensar o futuro” (Mignolo, 2003Mignolo, W. D. (2003). Historias locales/diseños globales: colonialidad, conocimientos subalternos y pensamiento fronterizo. Madrid, España: Akal., p. 20, tradução própria). Assim, pensar em possibilidades metodológicas para a pesquisa decolonial não implica trazer novidades ou referências universais, mas contribuir para a construção, em conjunto, da agenda de pesquisa decolonial, como sugeriram Abdalla e Faria (2017Abdalla, M. M., & Faria, A. (2017). Em defesa da opção decolonial em administração/gestão. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 914-929.). Nesta perspectiva, existe a possibilidade de fortalecer esta abordagem para além do próprio grupo de pesquisas decoloniais e, assim, contribuir para a redução de receios, obstáculos e questionamentos vazios, como os que foram mencionados por Abdalla e Faria (2017)Abdalla, M. M., & Faria, A. (2017). Em defesa da opção decolonial em administração/gestão. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 914-929., Dulci e Malheiros (2021Dulci, T. M. S., & Malheiros, M. R. (2021, janeiro). Um giro decolonial à metodologia científica: apontamentos epistemológicos para metodologias desde e para a América Latina. Revista Espirales, Edição Especial, 174-193.) e Mignolo e Tlostanova (2006)Mignolo, W. D., & Tlostanova, M. V. (2006). Theorizing from the Borders: Shifting to Geo- and Body-Politics of Knowledge. European Journal of Social Theory, 9(2), 205-221..

O grupo modernidade/colonialidade, diante dos efeitos da colonialidade na construção do conhecimento, ainda denuncia a retórica que naturaliza a lógica moderna, como se fosse um projeto universal e global e a prática de apropriação do conhecimento como “instrumento imperial de colonização” (Mignolo, 2010Mignolo, W. D. (2010). Desobediencia epistémica: retórica de la modernidad, lógica de la colonialidad y gramática de la descolonialidad. Buenos Aires, Argentina: Ediciones del signo., p. 11). Por exemplo, na área dos estudos de gestão e contabilidade, a naturalização da lógica moderna se revela na prática de submeter realidades locais a teorias e métodos eurocêntricos, sob a promessa de superioridade e neutralidade científica (Sauerbronn et al., 2021Sauerbronn, F. F., Ayres, R. M., Silva, C. M., & Lourenço, R. L. (2021, janeiro). Decolonial studies in accounting? Emerging contributions from Latin America. Critical Perspectives on Accounting, 102281. Recuperado dehttps://doi.org/10.1016/j.cpa.2020.102281
https://doi.org/10.1016/j.cpa.2020.10228...
). É por esta lógica, perversa e violenta da modernidade, que invisibiliza pensamentos e reduz a pluralidade ao exotismo, que a abordagem decolonial destaca a necessidade de pensar formas de decolonizar os conhecimentos e as subjetividades (Mignolo, 2010Mignolo, W. D. (2010). Desobediencia epistémica: retórica de la modernidad, lógica de la colonialidad y gramática de la descolonialidad. Buenos Aires, Argentina: Ediciones del signo.). Permanecer alerta para perceber os conhecimentos alternativos que a hegemonia e a “ordem atual das coisas” podem invisibilizar (Escobar, 2005Escobar, A. (2005). O lugar da natureza e a natureza do lugar: globalização ou pós-desenvolvimento? In E. Lander(Org.), A colonialidade do saber. Eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas (pp. 133-168). Buenos Aires, Argentina: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales.) nos leva à inquietação de descobrir como isso pode se concretizar na prática da pesquisa.

Um possível caminho para iniciar a busca por alternativas às desigualdades provocadas pelo mundo moderno é questionar as ciências sociais globais, que são instrumentos de naturalização e legitimação da ordem social (Lander, 2005Lander, E. (2005). Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In E. Lander(Org.), A colonialidade do saber, eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas. Buenos Aires, Argentina: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales .). Outra ação é a de investigar as dimensões que constituem os saberes modernos; aqui podemos citar as múltiplas separações criadas pelo mundo ocidental, como entre as dimensões religiosa e histórica, por exemplo, que servem de base para a construção do conhecimento global/universal; também podemos pensar na forma como se articulam os saberes modernos e na organização do poder, como a ideia de que o modo de vida liberal e as relações capitalistas são “formas naturais de vida social” (Lander, 2005Lander, E. (2005). Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In E. Lander(Org.), A colonialidade do saber, eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas. Buenos Aires, Argentina: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales .). Este processo de reflexão é fundamental porque o pensamento eurocêntrico colonial, quando não questionado, exerce domínio sobre o pensamento e impede a compreensão da realidade (Lander, 2005Lander, E. (2005). Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In E. Lander(Org.), A colonialidade do saber, eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas. Buenos Aires, Argentina: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales .). Portanto, pensamento crítico e compreensão dos elementos que constituem os saberes modernos são essenciais para que novos pensamentos, como a abordagem decolonial, sejam construídos; esta perspectiva possui o compromisso de denunciar as relações coloniais que estão ocultas no discurso da modernidade e que, inquestionavelmente, reforçam as desigualdades e a violência contra a vida (Escobar, 2005Escobar, A. (2005). O lugar da natureza e a natureza do lugar: globalização ou pós-desenvolvimento? In E. Lander(Org.), A colonialidade do saber. Eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas (pp. 133-168). Buenos Aires, Argentina: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales.; Lander, 2005Lander, E. (2005). Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In E. Lander(Org.), A colonialidade do saber, eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas. Buenos Aires, Argentina: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales .; Mignolo, 2003Mignolo, W. D. (2003). Historias locales/diseños globales: colonialidad, conocimientos subalternos y pensamiento fronterizo. Madrid, España: Akal., 2010Mignolo, W. D. (2010). Desobediencia epistémica: retórica de la modernidad, lógica de la colonialidad y gramática de la descolonialidad. Buenos Aires, Argentina: Ediciones del signo.).

Entre as contribuições de reflexões desenvolvidas pela abordagem decolonial estão as possibilidades de pensar nos porquês da ordem e do pensamento social dominante e de reconhecer o local/território como elemento fundamental para a construção do conhecimento, uma vez que a abordagem reforça que os saberes subalternizados e as diferenças locais são relevantes e não podem ser apagados por saberes universais (Escobar, 2005Escobar, A. (2005). O lugar da natureza e a natureza do lugar: globalização ou pós-desenvolvimento? In E. Lander(Org.), A colonialidade do saber. Eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas (pp. 133-168). Buenos Aires, Argentina: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales.); consideramos que adotar esta perspectiva provoca em pesquisadores um processo reflexivo semelhante ao de uma autoanálise, porque ela exige uma constante reflexão sobre nossos próprios olhares e posturas em relação aos sujeitos, saberes e territórios que participam da pesquisa. Dulci e Malheiros (2021Dulci, T. M. S., & Malheiros, M. R. (2021, janeiro). Um giro decolonial à metodologia científica: apontamentos epistemológicos para metodologias desde e para a América Latina. Revista Espirales, Edição Especial, 174-193.), por exemplo, afirmam que, durante sua investigação, perceberam que eram marcadas pela “colonialidade do saber” e nós também compartilhamos desta percepção.

A proposta metodológica da investigação temática e suas conexões com a abordagem decolonial

A investigação temática é uma metodologia de pesquisa participativa iniciada por Paulo Freire e desenvolvida em instituições da América Latina, como o Centro Interamericano de Desenvolvimento Rural e Reforma Agrária (CIRA), por autores como João Bosco Guedes Pinto (2014Bosco Pinto, J. (2014). Da investigação temática à pesquisa-ação. In L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent (Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados. Belém, PA: UFPA.). Bosco Pinto foi um sociólogo rural brasileiro que contribuiu para programas de desenvolvimento rural no Brasil e em outros países da América Latina, bem como para o desenvolvimento da metodologia participativa. No ano de 2014 foi publicado o livro Metodologia, Teoria do Conhecimento e Pesquisa-ação, organizado pela professora Duque-Arrazola e o professor Michel Thiollent. O livro consiste em uma reunião de textos produzidos por Bosco Pinto a respeito da temática teórico-metodológica que esteve relacionada à ação do autor como sociólogo, militante e educador (Duque-Arrazola, 2014Duque-Arrazola, L. S. (2014). Apresentação. In L. D., Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent (Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados. Belém, PA: UFPA.). Diante da ação transformadora que caracterizou a vida profissional de Bosco Pinto, o trecho a seguir apresenta o posicionamento do autor a respeito da pesquisa e do conhecimento:

A adoção de um método de trabalho (seja qual for), é também a adoção de um pensamento e de uma concepção de mundo, à medida que mais se encontre criticamente, mais adquire identidade como ser da práxis e, portanto, da transformação. Isso se contrapõe ao olhar frio, à maneira burocrática e formalista, e, por isso, exige um comprometimento teórico e uma atitude prática, eminentemente dialógica (Bosco Pinto, 2014Bosco Pinto, J., Angel, M. A., & Reyes, V. (2014). Metodologia da Investigação Temática: pressupostos teóricos e desenvolvimento. In: L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent(Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados (pp. 94-105). Belém, PA: UFPA., p. 128).

Bosco Pinto (2014Bosco Pinto, J., Angel, M. A., & Reyes, V. (2014). Metodologia da Investigação Temática: pressupostos teóricos e desenvolvimento. In: L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent(Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados (pp. 94-105). Belém, PA: UFPA.) compreendia que a pesquisa exige uma postura de trabalho comprometida com a teoria, a prática e a dialogicidade. Este posicionamento consciente a respeito das realidades com que a pesquisa se relaciona também é apontado em textos que discutem a abordagem decolonial, como Pinto e Mignolo (2015)Pinto, J. R. S., & Mignolo, W. D. (2015) A modernidade é de fato universal? Reemergência, desocidentalização e opção decolonial. Civitas - Revista de Ciências Sociais, 15(3), 381-402., por exemplo, que afirmam que a pesquisa exige um compromisso com a transformação. A decolonialidade resulta em “[...] esforços de desligamento ou desengajamento subjetivo, epistêmico, econômico e político em face do projeto de dominação ocidental” (Pinto & Mignolo, 2015Pinto, J. R. S., & Mignolo, W. D. (2015) A modernidade é de fato universal? Reemergência, desocidentalização e opção decolonial. Civitas - Revista de Ciências Sociais, 15(3), 381-402., p. 384). Assim, se Bosco Pinto (2014) aponta para o compromisso com a transformação social, que caracteriza a investigação temática, Pinto e Mignolo (2015)Pinto, J. R. S., & Mignolo, W. D. (2015) A modernidade é de fato universal? Reemergência, desocidentalização e opção decolonial. Civitas - Revista de Ciências Sociais, 15(3), 381-402. definem a decolonialidade como um esforço, ou seja, como ação e postura contra o imperialismo.

Outra definição interessante a respeito da investigação temática é de que esta metodologia pode ser compreendida como um processo dinâmico e relacional, resultante de um desenvolvimento histórico; por isso, não pode ser captada em um único momento (Bosco Pinto, Angel, & Reyes, 2014Bosco Pinto, J., Angel, M. A., & Reyes, V. (2014). Metodologia da Investigação Temática: pressupostos teóricos e desenvolvimento. In: L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent(Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados (pp. 94-105). Belém, PA: UFPA.). Para esta metodologia, a ação e o pensamento compõem o processo de conhecimento, ou seja, esta perspectiva considera que é na ação, “interação do homem com o universo”, que o pensamento é colocado em movimento e o conhecimento é elaborado (Bosco Pinto et al., 2014Bosco Pinto, J. (2014). Da investigação temática à pesquisa-ação. In L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent (Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados. Belém, PA: UFPA.); “[...] a investigação temática estuda o pensamento da comunidade, através da expressão deste pensamento na linguagem” (Bosco Pinto et al., 2014Bosco Pinto, J. (2014). Da investigação temática à pesquisa-ação. In L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent (Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados. Belém, PA: UFPA., p. 104); ela investiga, ainda, a criação cultural da comunidade, compreende que a realidade social é mutante, histórica e relacional, ou seja, é um processo aberto, em desenvolvimento e entende que os sujeitos, no tempo presente, são o “[...] produto de um passado que se projeta até o futuro” (Bosco Pinto, 2014Bosco Pinto, J. (2014). Da investigação temática à pesquisa-ação. In L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent (Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados. Belém, PA: UFPA., p. 106). Portanto a investigação temática consiste em uma metodologia que valoriza os sujeitos e se interessa pela criação cultural da comunidade.

Comumente, realiza-se na investigação temática o estudo da linguagem, para “[...] num primeiro momento, [...] captar o pensar da comunidade sobre sua realidade objetiva e sua percepção desta realidade.” (Bosco Pinto et al., 2014Bosco Pinto, J., Angel, M. A., & Reyes, V. (2014). Metodologia da Investigação Temática: pressupostos teóricos e desenvolvimento. In: L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent(Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados (pp. 94-105). Belém, PA: UFPA., p. 97). Isto porque ela considera que “sujeito” e “objeto de conhecimento” são “dois aspectos de uma mesma realidade em unidade e contradição dialéticas” (Bosco Pinto et al., 2014Bosco Pinto, J. (2014). Da investigação temática à pesquisa-ação. In L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent (Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados. Belém, PA: UFPA., p. 99). A postura de valorização do lugar, da história e dos saberes locais contribui para que a investigação temática seja uma metodologia de resistência à reprodução de saberes hegemônicos, tal como na abordagem decolonial; a reprodução destes saberes hegemônicos é discutida como a “radicalização da universalização do conhecimento” (Abdalla & Faria, 2017Abdalla, M. M., & Faria, A. (2017). Em defesa da opção decolonial em administração/gestão. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 914-929.), uma vez que esta prática radical de adotar um tipo de conhecimento considerando-o universal, como ocorre frequentemente com o conhecimento euro-estadunidense, provoca pobreza e desigualdade geoepistêmica (Abdalla & Faria, 2017Abdalla, M. M., & Faria, A. (2017). Em defesa da opção decolonial em administração/gestão. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 914-929.).

Uma maneira de superar esta radicalização, pobreza e desigualdade pode ser a “co-construção de saberes decoloniais” entre pesquisadores, pesquisadoras e uma comunidade diversa (Abdalla & Faria, 2017Abdalla, M. M., & Faria, A. (2017). Em defesa da opção decolonial em administração/gestão. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 914-929.). A quem pertence a construção dos saberes? A ausência da participação popular nas análises de dados da pesquisa, por exemplo, dá ao pesquisador ou pesquisadora, a propriedade das definições e análises do fenômeno pesquisado. Portanto, ao favorecer a participação popular no processo de construção de saberes, a investigação temática tem muito a contribuir, pois incentiva a diversidade e viabiliza a construção coletiva, enfrentando o monopólio de uma elite acadêmica na produção do conhecimento, assim como a abordagem decolonial, que, ao questionar o domínio do saber, luta contra a subalternização e contra controle do conhecimento.

De maneira semelhante à perspectiva decolonial, a investigação temática rejeita a possibilidade de se tornar uma fórmula. Utilizar um “[...] método como fórmula ou conjunto de técnicas” (Bosco Pinto et al., 2014Bosco Pinto, J., Angel, M. A., & Reyes, V. (2014). Metodologia da Investigação Temática: pressupostos teóricos e desenvolvimento. In: L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent(Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados (pp. 94-105). Belém, PA: UFPA., p. 96) pode provocar a produção mecânica de um resultado, uma vez que a realidade é dinâmica e mutante, ou seja, não estática para se adequar a uma fôrma. Sendo assim, é fundamental respeitar as “[...] formas próprias e originais de organizações” que surgem “nas diferentes comunidades” (Bosco Pinto, 2014Bosco Pinto, J. (2014). Da investigação temática à pesquisa-ação. In L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent (Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados. Belém, PA: UFPA., p. 128). Assim, além de tentar denunciar os silenciamentos e as pressões sofridas por quem utiliza práticas alternativas de metodologias de pesquisa, a investigação temática alerta que não há modelos de pesquisa universais, da mesma forma que alerta a abordagem decolonial. Bosco Pinto diz:

O design exposto, de nenhum modo é uma camisa de força, com a qual se aprisiona a realidade, pelo contrário, é um auxílio para a sistematização e o ordenamento da multiplicidade de aspectos que apresenta e que devem ser apreendidos em seu conjunto (Bosco Pinto, 2014Bosco Pinto, J., Angel, M. A., & Reyes, V. (2014). Metodologia da Investigação Temática: pressupostos teóricos e desenvolvimento. In: L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent(Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados (pp. 94-105). Belém, PA: UFPA., p. 129).

Entendido, então, que o desenvolvimento da investigação temática não deve ser estático, nem guiado cegamente por um modelo (Bosco Pinto, 2014Bosco Pinto, J., Angel, M. A., & Reyes, V. (2014). Metodologia da Investigação Temática: pressupostos teóricos e desenvolvimento. In: L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent(Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados (pp. 94-105). Belém, PA: UFPA.), apresentamos, a seguir, um exemplo de proposta metodológica baseada na investigação temática e o fazemos com um terrível medo de cair em contradição; no entanto, não devemos ignorar que, ao escolher a metodologia para o nosso projeto de tese, as explicações apresentadas por Bosco Pinto (2014)Bosco Pinto, J. (2014). Da investigação temática à pesquisa-ação. In L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent (Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados. Belém, PA: UFPA. a respeito das etapas do desenvolvimento da investigação temática - propostas como auxílio, não como prisão - proporcionaram uma compreensão mais palpável. Sendo assim, com a expectativa de também contribuir para reduzir as inseguranças de colegas que estejam passando pela difícil fase de definir, com coerência, a metodologia de uma pesquisa na perspectiva decolonial, elaboramos este exemplo de planejamento metodológico, baseado na investigação temática, para uma pesquisa da área dos Estudos Organizacionais.

Reforçamos que não se trata de uma fórmula a ser seguida, mas de um exemplo pensado para uma determinada localidade e um tipo de organização e grupo social específicos: existem outras possibilidades de práticas decoloniais, assim como é possível a criação de outros percursos metodológicos. Podemos citar, como exemplo, a cartografia decolonial, que discute a não neutralidade dos mapas e propõe a elaboração de mapas afetivos e coletivos (S. L. S. Neves, L. V. R. F. Neves, Santos, & Figueiredo, 2019Neves, S. L. S., Neves, L. V. R. F., Santos, L. M., & Figueiredo, L. R. (2019). É possível reivindicar uma cartografia decolonial?Revista Desenvolvimento Social, 25(1), 125-138.; Ribeiro, 2020Ribeiro, D. (2020). Contramapeamento indígena: aproximações entre a cartografia crítica e o decolonialismo. Logos, 27(3), 17-36.); citemos também as metodologias do Buen-Vivir que, baseadas na interculturalidade, estão preocupadas com os “bens relacionais”, ou seja, com sentimentos como o amor e o companheirismo (Dulci & Malheiros, 2021Dulci, T. M. S., & Malheiros, M. R. (2021, janeiro). Um giro decolonial à metodologia científica: apontamentos epistemológicos para metodologias desde e para a América Latina. Revista Espirales, Edição Especial, 174-193.); podemos lembrar ainda de práticas decoloniais que sugerem a reconstrução dos termos usados no processo de pesquisa, uma vez que o próprio termo pesquisa é fundamentado na colonialidade (Ocaña & López, 2019Ocaña, A. O., & López, M. I. A. (2019). Hacer decolonial: desobedecer a la metodología de investigación. Hallazgos, 16(31), 147-166.). Estas escolhas, assim como a investigação temática, possuem em comum a compreensão de que o pesquisador é apenas mediador dentro da pesquisa, que a todo tempo precisa avaliar-se para não retomar as práticas coloniais: a pesquisa decolonial é construída coletivamente, numa relação sujeito-sujeito, sem hierarquias.

PROPOSTA METODOLÓGICA DE INVESTIGAÇÃO TEMÁTICA PARA UMA PESQUISA DECOLONIAL DA ÁREA DOS ESTUDOS ORGANIZACIONAIS

Apesar de Ocaña e López (2019Ocaña, A. O., & López, M. I. A. (2019). Hacer decolonial: desobedecer a la metodología de investigación. Hallazgos, 16(31), 147-166.) criticarem o uso de termos como pesquisa, metodologia e etapa no fazer decolonial, por entenderem que a proposta de metodologias decoloniais são um neocolonialismo, consideramos que ainda não ocupamos uma posição, dentro da área de pesquisa em administração, que nos permita sustentar tal postura. Aliás, se o fato de adotarmos a perspectiva decolonial já nos provoca inseguranças e obstáculos diante de algumas avaliações acadêmicas (Abdalla & Faria, 2017Abdalla, M. M., & Faria, A. (2017). Em defesa da opção decolonial em administração/gestão. Cadernos EBAPE.BR, 15(4), 914-929.; Dulci & Malheiros, 2021Dulci, T. M. S., & Malheiros, M. R. (2021, janeiro). Um giro decolonial à metodologia científica: apontamentos epistemológicos para metodologias desde e para a América Latina. Revista Espirales, Edição Especial, 174-193.), não seguir a estrutura textual recomendada pelos periódicos e congressos acadêmicos, possivelmente, nos levaria ao isolacionismo acadêmico. Então, por considerarmos a relação com o outro e a dialogicidade elementos importantes para a construção do conhecimento, julgamos necessário evitar o isolamento dentro do nosso campo de estudos: esta postura poderia ter traços fundamentalistas e essencialistas (Grosfoguel, 2008Grosfoguel, R. (2008, julho). Transmodernity, border thinking and global coloniality. Revista Crítica de Ciências Sociais, 80, 1-24.). Temos consciência da importância de questionarmos, durante toda a pesquisa, o que fundamenta o nosso conceito de conhecimento e se o que está por trás de nossas escolhas metodológicas consiste em doutrinação colonial, mas também entendemos a necessidade de transitar entre as fronteiras geográfica, epistêmica e política constituídas pela modernidade, para construir outros conhecimentos a partir da nossa realidade (Mignolo & Tlostanova, 2006Mignolo, W. D., & Tlostanova, M. V. (2006). Theorizing from the Borders: Shifting to Geo- and Body-Politics of Knowledge. European Journal of Social Theory, 9(2), 205-221.). A metodologia da investigação temática pode ser pensada como um exemplo, antecipado, de conhecimento construído a partir deste trânsito pelas fronteiras.

Formulada em meados da década de 1960, no contexto da reforma agrária de países latino-americanos, a investigação temática foi uma ampliação do “método psicossocial” de Paulo Freire, pensado, no início da década de 1960, em função de sua preocupação com a alfabetização de adultos (Bosco Pinto, 2014Bosco Pinto, J., Angel, M. A., & Reyes, V. (2014). Metodologia da Investigação Temática: pressupostos teóricos e desenvolvimento. In: L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent(Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados (pp. 94-105). Belém, PA: UFPA.). A pesquisa participativa, no entanto, não teve origem na América Latina; surgiu na década de 1940, a partir de aplicações da psicologia social de Kurt Lewin nos EUA, na Grã-Bretanha e Escandinávia, sendo, então, reconstruída e adaptada ao contexto do pós-guerra (Thiollent & Colette, 2013Thiollent, M. J. M., & Colette, M. M. (2013). Pesquisa-Ação, Universidade e Sociedade. In Anales del 13° Coloquio Internacional de Gestión Universitaria en América del Sur, Universidad Tecnológica Nacional, Buenos Aires, Argentina.). Mas na América Latina a pesquisa participativa ganhou forte conotação política e foi usada na área educacional como uma possibilidade de conscientização popular (Gajardo, 1986Gajardo, M. (1986). Pesquisa participante na América Latina. São Paulo, SP: Brasiliense.). A partir do desenvolvimento do método freiriano, a pesquisa participativa, neste continente, passou a reconhecer e considerar saberes e culturas próprios das pessoas como ponto de partida do ensino e da investigação (Gajardo, 2021Gajardo, M. (2021). Procurando Paulo Freire no Chile, algumas observações sobre a origem e a evolução de suas ideias pedagógicas. Revista Ideação, 23(1), 72-104.). Apesar de anteceder as discussões realizadas por Mignolo e Tlostanova (2006Mignolo, W. D., & Tlostanova, M. V. (2006). Theorizing from the Borders: Shifting to Geo- and Body-Politics of Knowledge. European Journal of Social Theory, 9(2), 205-221.), podemos considerar que esta metodologia contribuiu para a construção de outros saberes, sem a necessidade de isolamento acadêmico. Partindo do posicionamento do pensamento de fronteira3 3 Na perspectiva do pensamento de fronteira (border thinking) é importante privilegiar o pensamento local, subalternizado pelo imperialismo, sem ignorar as teorias e práticas que foram produzidas em contextos externos (Mignolo & Tlostanova, 2006). Com isso, o pensamento de fronteira contribui para a coexistência de muitos mundos e conhecimentos (Faria, 2013). (Mignolo & Tlostanova, 2006Mignolo, W. D., & Tlostanova, M. V. (2006). Theorizing from the Borders: Shifting to Geo- and Body-Politics of Knowledge. European Journal of Social Theory, 9(2), 205-221.), apresentaremos, a seguir, as possíveis etapas da metodologia da investigação temática como uma proposta de pesquisa de abordagem decolonial.

Uma vez que a epistemologia da investigação temática surgiu, como já mencionado, num contexto de formação e reconstrução relacionada aos projetos de reforma agrária na América Latina, ela só poderia conceber a realidade como dinâmica, relacional e resultante de processos históricos (Bosco Pinto, 2014Bosco Pinto, J., Angel, M. A., & Reyes, V. (2014). Metodologia da Investigação Temática: pressupostos teóricos e desenvolvimento. In: L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent(Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados (pp. 94-105). Belém, PA: UFPA.). Sendo assim, em coerência com esta abordagem, uma vez feita a escolha da comunidade que irá participar da pesquisa, a primeira ação deve ser um levantamento a respeito de suas características geográficas, culturais e históricas, bem como dos modos de vida desta comunidade (Bosco Pinto et al., 2014Bosco Pinto, J. (2014). Da investigação temática à pesquisa-ação. In L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent (Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados. Belém, PA: UFPA.). Procede-se, então, à sistematização das informações coletadas e os pesquisadores começam a aproximar-se dos participantes; em seguida, são propostos círculos de pesquisa/círculos de investigação para que o grupo possa expressar o que pensa. Nestes círculos podem ser utilizadas, por exemplo, técnicas como a observação participante e as entrevistas abertas. Por meio dos grupos, será possível entender e descrever a realidade sociocultural que está sendo estudada, bem como a percepção que comunidade tem de sua própria realidade, assim como do processo histórico que a constitui (Bosco Pinto et al., 2014Bosco Pinto, J. (2014). Da investigação temática à pesquisa-ação. In L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent (Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados. Belém, PA: UFPA.). Consideramos que a relevância dos processos históricos e do lugar são pontos de reflexão na perspectiva decolonial, uma vez que a globalização, ao propagar a ideia de que o lugar não é relevante, interfere na noção de lugar e pode invisibilizar as distintas formas regionais e locais de configurar o mundo e a natureza4 4 Para a reflexão sobre as distintas formas de relacionamento com a natureza, sugerimos que seja assistido o documentário “Fio da meada”, dirigido por Silvio Tendler (Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=pm7OjaE6vDc). Também sugerimos o debate sobre o documentário, promovido pela Fiocruz, com a participação do diretor e os pesquisadores do documentário, do cientista social Boaventura de Sousa Santos e do Cacique Munduruku Juares Saw (Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=VCGu-C7agro). (Escobar, 2005Escobar, A. (2005). O lugar da natureza e a natureza do lugar: globalização ou pós-desenvolvimento? In E. Lander(Org.), A colonialidade do saber. Eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas (pp. 133-168). Buenos Aires, Argentina: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales.). Estas provocações contribuem para pensarmos o quanto a ausência de consciência sobre o papel do lugar e dos saberes locais podem alterar, e até mesmo cegar, a nossa percepção em relação a um grupo ou fenômeno, bem como inviabilizar nosso processo de aprendizagem e reflexão a partir de um “paradigma outro”, como pondera Mignolo (2003Mignolo, W. D. (2003). Historias locales/diseños globales: colonialidad, conocimientos subalternos y pensamiento fronterizo. Madrid, España: Akal.). O momento de investigação do universo temático consiste na etapa de coleta e produção de dados iniciais da pesquisa e tem a finalidade de compreender o contexto e a história que constituem a realidade estudada, assim como a forma com que os sujeitos da pesquisa entendem sua realidade.

Depois desta etapa, pode-se realizar a tematização. Neste segundo momento da investigação temática, os temas apresentados pela comunidade durante os círculos de pesquisa podem ser ordenados e organizados. Para tanto, podem ser utilizadas técnicas de organização de dados consideradas adequadas pela pesquisadora ou pelo pesquisador. O objetivo da tematização é identificar os termos mais relevantes para a comunidade estudada, ou seja, aqueles que foram mencionados de forma mais enfática ou repetida durante os debates e entrevistas. Esta etapa também pode incluir a fase de redução teórica, na qual, segundo Bosco Pinto (2014Bosco Pinto, J., Angel, M. A., & Reyes, V. (2014). Metodologia da Investigação Temática: pressupostos teóricos e desenvolvimento. In: L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent(Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados (pp. 94-105). Belém, PA: UFPA.), é feita a comparação dos dados com os conceitos teóricos, assim como a identificação de lacunas entre a teoria e a percepção dos/das participantes da pesquisa. Este processo em muito se aproxima da atividade de “redução sociológica” proposta por Guerreiro Ramos (1996Guerreiro Ramos, A. (1996). A redução sociológica. Rio de Janeiro, RJ: Ed. UFRJ.), que consiste em um método, seja teórico ou empírico, para “[...] descobrir os pressupostos referenciais, de natureza histórica, dos objetos e fatos da realidade social” (Guerreiro Ramos, 1996Guerreiro Ramos, A. (1996). A redução sociológica. Rio de Janeiro, RJ: Ed. UFRJ., p. 79). Portanto, assim como a redução sociológica, a redução temática e teórica são práticas de conscientização que buscam valorizar os contextos locais.

Realizadas as fases de redução temática e teórica, sugere-se o início do terceiro momento da investigação, denominado por Bosco Pinto (2014Bosco Pinto, J., Angel, M. A., & Reyes, V. (2014). Metodologia da Investigação Temática: pressupostos teóricos e desenvolvimento. In: L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent(Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados (pp. 94-105). Belém, PA: UFPA.) como momento problematizador, que consiste em um diálogo reflexivo com os participantes a respeito dos temas codificados. Em uma pesquisa sobre organizações cineclubistas, que são grupos de pessoas que exibem filmes e realizam debates reflexivos após as exibições dos filmes, o momento problematizador pode ocorrer, por exemplo, em uma sessão de exibição de filmes de curta metragem, organizada em conjunto com os cineclubes participantes do estudo. Este momento da pesquisa inclui a etapa de decodificação temática, que origina “um processo educativo contínuo” (Bosco Pinto, 2014Bosco Pinto, J. (2014). Da investigação temática à pesquisa-ação. In L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent (Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados. Belém, PA: UFPA., p. 131); o momento da problematização é aquele em que a comunidade se torna um “[...] fator de transformação social, por meio de sua ação crítica sobre a realidade em que está vivendo” (Bosco Pinto, 2014Bosco Pinto, J. (2014). Da investigação temática à pesquisa-ação. In L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent (Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados. Belém, PA: UFPA., p. 128). Esta reflexão, mais uma vez, se aproxima das discussões feitas por Guerreiro Ramos, que argumenta que a consciência crítica “[...] surge quando um ser humano ou um grupo social reflete sobre tais determinantes e se conduz diante deles como sujeito” (Guerreiro Ramos, 1996Guerreiro Ramos, A. (1996). A redução sociológica. Rio de Janeiro, RJ: Ed. UFRJ., p. 48). A noção de sujeito também é adotada na investigação temática, na qual tanto investigadora/investigador quanto o grupo participante da pesquisa são sujeitos unidos pela relação e pelo diálogo com a realidade objetiva da pesquisa (Bosco Pinto, 2014Bosco Pinto, J. (2014). Da investigação temática à pesquisa-ação. In L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent (Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados. Belém, PA: UFPA.).

Para uma maior compreensão, detalhamos a seguir a proposta metodológica que elaboramos para uma pesquisa, em andamento, sobre os cineclubes localizados na Baixada Fluminense, região denominada, popularmente, como a periferia da metrópole do estado do Rio de Janeiro.

A pesquisa sobre os cineclubes pertence à área dos Estudos Organizacionais, está fundamentada na perspectiva decolonial e foi desenvolvida a partir da teoria substantiva da vida humana associada5 5 A teoria substantiva da vida humana associada foi desenvolvida por Guerreiro Ramos (1981) ao perceber que, em um cenário no qual o mercado se tornou o centro da sociedade, com força para desconfigurar a vida humana e impor comportamentos, existem organizações de múltiplos centros, formadas por indivíduos conscientes dos efeitos negativos da centralidade do mercado para as organizações e vida humana, mas que costumam ser invisibilizadas pelos meios acadêmicos modernos, legitimadores da centralização do mercado. Diante disso, o autor defende ser necessária uma nova ciência das organizações para a transformação social: livre de paroquialismos impostos pela teoria dominante da organização e que valorize a razão substantiva. (Guerreiro Ramos, 1981Guerreiro Ramos, A. (1981). A Nova ciência das organizações: uma reconceituação da riqueza das nações. Rio de Janeiro, RJ: FGV.). O objetivo principal da pesquisa é investigar como os participantes de cineclubes da região da Baixada Fluminense, do estado do Rio de Janeiro, percebem a inserção destas organizações em seus respectivos territórios. É interessante ressaltar que uma característica observada por nós, destes cineclubes, é a produção autoral e o debate de filmes, de curta e longa metragem, que valorizam o território local6 6 Para conhecer a produção audiovisual dos cineclubes da Baixada Fluminense, sugerimos a prévia do curta “Amazônia do Sudeste”, cineclube Xuxu ComXis (Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=msOyVkJxHRA). Também sugerimos os curtas produzidos pelo cineclube Mate com Angu para o “Programa Convida”, do Instituto Moreira Salles (Recuperado de https://ims.com.br/convida/mate-com-angu/). . Assim, a característica dialógica e de valorização do próprio território parece aproximar os cineclubes da região da Baixada Fluminense da perspectiva decolonial e da investigação temática, já que proporcionam a reflexividade e o olhar para o próprio local. Fundamentada metodologicamente em Bosco Pinto (2014Bosco Pinto, J., Angel, M. A., & Reyes, V. (2014). Metodologia da Investigação Temática: pressupostos teóricos e desenvolvimento. In: L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent(Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados (pp. 94-105). Belém, PA: UFPA.), a produção e análise dos dados desta pesquisa devem ser realizadas a partir de pesquisa documental, de entrevistas não estruturadas com participantes dos cineclubes, revisão teórica e círculos de investigação. Para tanto, devem-se seguir as fases de investigação, tematização e problematização ilustradas na Figura 1.

Figura 1
Desenho do plano metodológico de uma pesquisa sobre os cineclubes da baixada fluminense

Conforme a figura, inicialmente, realiza-se um levantamento documental sobre a região em que as organizações estudadas estão inseridas, para conhecer o território ao qual pertencem os participantes da pesquisa. Ainda na fase de investigação do universo temático, procede-se a um levantamento sobre a história do cineclubismo na Baixada Fluminense e no Brasil. A partir da participação em sessões realizadas pelos cineclubes estudados, podem ser registrados os temas escolhidos para exibição e debate de filmes; então, realiza-se a organização/codificação deles para que, em conjunto com os participantes da pesquisa, os temas mais citados ou enfatizados nas sessões anteriores possam ser discutidos. Depois desta fase, podem ser realizadas as problematizações dos temas rediscutidos na sessão, a partir de entrevistas e reflexão crítica. A teoria que fundamenta a pesquisa deve ser revisitada e revisada em todas as fases da investigação.

Durante todo o processo, assumimos o exercício decolonial de autocrítica em relação ao pensamento colonial que, por uma questão histórica (Barros & Carrieri, 2013Barros, A. N., & Carrieri, A. P. (2013). Ensino superior em Administração entre os anos 1940 e 1950: uma discussão a partir dos acordos de cooperação Brasil-Estados Unidos. Cadernos EBAPE.BR, 11(2), 256- 273.), ainda fundamenta a maneira como lidamos com a pesquisa e como compreendemos a construção do conhecimento. Com isso, a pesquisa é construída de forma participativa, considerando os diferentes saberes e validando a história, o território e a maneira como os sujeitos da pesquisa compreendem a realidade e incluindo um processo de autorreflexão na busca por decolonizar nossa construção de conhecimento. Entendemos que o percurso da investigação temática, com seu caráter dialógico, pode contribuir para a decolonialidade do ser e do saber dos pesquisadores também, além de transformar as barreiras coloniais que ainda limitam a área da Administração e dos Estudos Organizacionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho foi elaborado intentando uma contribuição a pesquisadores que optaram por realizar pesquisas sob a perspectiva decolonial, mas ainda possuem inseguranças quanto aos possíveis percursos metodológicos para pesquisas na área da Administração. Afinal, apesar da natureza da abordagem decolonial fundamentar a necessidade de encontrarmos caminhos alternativos aos métodos produzidos para os contextos eurocêntrico e estadunidense, esta perspectiva não aponta possibilidades metodológicas. Sabemos que a grande valorização dos métodos de pesquisa é uma característica, em particular, de áreas do conhecimento que, por serem recentes, buscam o reconhecimento enquanto ciência (R. C. Silva, 1998Silva, R. C. (1998). A falsa dicotomia qualitativo-quantitativo: paradigmas que informam nossas práticas de pesquisa. In G., Romanelli, & Z. M. M., Biasoli-Alves (Eds.), Diálogos metodológicos sobre práticas de pesquisa(pp. 159-174). Ribeirão Preto, SP: Legis Summa.), no entanto, não são todas as áreas que priorizam esta discussão, como ocorre na Administração. Com isso, no campo da Administração, pesquisadores que adotam a abordagem decolonial ficam encurralados entre a idolatria aos métodos de pesquisa, que exige uma explicação detalhada sobre os procedimentos metodológicos da pesquisa, e a falta de referências metodológicas coerentes com a perspectiva decolonial, que traz inseguranças.

Diante de possíveis percursos metodológicos coerentes com a abordagem decolonial, como a cartografia decolonial (S. L. S. Neves et al., 2019Neves, S. L. S., Neves, L. V. R. F., Santos, L. M., & Figueiredo, L. R. (2019). É possível reivindicar uma cartografia decolonial?Revista Desenvolvimento Social, 25(1), 125-138.) e as metodologias baseadas no Buen-Vivir (Dulci & Malheiros, 2021Dulci, T. M. S., & Malheiros, M. R. (2021, janeiro). Um giro decolonial à metodologia científica: apontamentos epistemológicos para metodologias desde e para a América Latina. Revista Espirales, Edição Especial, 174-193.), optamos por focar em debater a metodologia participativa da investigação temática como proposta para pesquisas decoloniais, na área dos Estudos Organizacionais. Embora a pesquisa participativa tenha sido originalmente pensada a partir de realidades estadunidenses e europeias, na América Latina ela foi construída em um cenário de reivindicação do movimento crítico das ciências sociais do continente, que se posicionaram contra o imperialismo e o predomínio de epistemologias ocidentais. Com isso, as pesquisas participativas da América Latina diferenciam-se pela valorização dos saberes e da cultura próprios de cada pessoa e por buscarem conscientização e transformação de um cenário de subordinação das camadas populares. Na década de 1960 esta perspectiva emergiu de “[...] uma insatisfação com as metodologias tradicionais de investigação social” (Bosco Pinto, 2014Bosco Pinto, J., Angel, M. A., & Reyes, V. (2014). Metodologia da Investigação Temática: pressupostos teóricos e desenvolvimento. In: L. S. Duque-Arrazola, & M. J. M. Thiollent(Orgs.), João Bosco Guedes Pinto: Metodologia, teoria do conhecimento e pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados (pp. 94-105). Belém, PA: UFPA., p. 95) e, no fim da década de 1990, o movimento das ciências sociais críticas da América Latina contribuiu para a realização de um dos encontros formativos do grupo modernidade/colonialidade.

Pelo caráter de luta contra o imperialismo e busca de um pensamento regional próprio, entendemos que a investigação temática se aproxima dos fundamentos da abordagem decolonial: ambas consistem em um ato político, de compromisso social, que questiona a monopolização da produção do conhecimento por parte de uma elite acadêmica. Além disso, a decolonialidade realiza uma crítica ao processo de desvalorização do território, provocado pela modernidade, que possui o mesmo princípio da investigação temática de reforçar a necessidade de conhecer a criação cultural da comunidade participante da pesquisa, ou seja, valorizar o lugar, sua construção histórica e os diferentes saberes locais. Ambas, ainda, rejeitam a possibilidade de serem usadas como uma fórmula, ou, camisa de força, pois valorizam o pensamento crítico reflexivo e a construção participativa de conhecimento local transformador.

A proposta de transformação colocada pela investigação temática foi um ponto que nos chamou a atenção quando olhamos para esta metodologia a partir da perspectiva decolonial, porque a investigação temática menciona apenas a transformação da comunidade e dos sujeitos participantes da pesquisa e não a possibilidade de transformação do investigador durante o processo de escuta, observação e troca de saberes. Dessa maneira, pensamos que a abordagem decolonial pode complementar a metodologia da investigação temática e outras modalidades de pesquisa participativa, no sentido de provocar a conscientização do pesquisador em relação à presença da colonialidade na construção do conhecimento. Nesse caminho de investigação temática decolonial, vislumbramos a possibilidade de transformação do cenário de arrogância acadêmica e de distanciamento entre conhecimento científico e conhecimento popular.

Portanto, percebemos a abordagem decolonial e a metodologia da investigação temática como práticas complementares de pesquisa: a abordagem decolonial amplia as críticas sobre o colonialismo e motiva a constante reflexão sobre a prática e o pensamento colonial, já a investigação temática, desenvolvida em tom de oposição à prática imperialista nas ciências sociais da América Latina, proporciona a segurança de conhecermos uma possibilidade de caminho metodológico. Sendo assim, sob a perspectiva decolonial, sugerimos que, em conjunto com as fases propostas pela investigação temática (investigação do universo temático, tematização e problematização), o investigador inclua a postura decolonial crítico-reflexiva sobre a colonialidade do ser, do saber e do território.

Por fim, reconhecemos a relevância da abordagem decolonial para o resgate da crítica à colonialidade, mas seria interessante que as discussões realizadas por autores do movimento latino sobre as metodologias participativas fossem revisitadas e ganhassem maior visibilidade. Por isso, em futuras pesquisas pretendemos levantar quais são as bases teóricas que fundamentaram o grupo modernidade/colonialidade a partir de autores e autoras do movimento das ciências sociais críticas da América Latina da década de 1960, pois entendemos que os pensadores desses movimentos e metodologias são precursores do pensamento que questiona a construção do conhecimento como posse de uma minoria. Também esperamos divulgar, em pesquisas futuras, os resultados da investigação temática, de abordagem decolonial, com os cineclubes da Baixada Fluminense, que apresentamos como exemplo de percurso metodológico neste trabalho.

AGRADECIMENTOS

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES), pelo Programa Suporte à Pós-Graduação IES Particulares. Número do processo: 88882.366167/2019-01. Autora que recebeu o financiamento: Vanessa Faria Silva.

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    Segundo Dussel (2005) a ideia da modernidade é uma construção, voltada para o reconhecimento da Europa como o centro do mundo, ou seja, os pontos de partida e chegada do processo de desenvolvimento. Para sustentar o eurocentrismo, a colonialidade foi e é usada como um mecanismo de controle do poder, do conhecimento e do ser (Mignolo, 2010).
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    Na perspectiva do pensamento de fronteira (border thinking) é importante privilegiar o pensamento local, subalternizado pelo imperialismo, sem ignorar as teorias e práticas que foram produzidas em contextos externos (Mignolo & Tlostanova, 2006). Com isso, o pensamento de fronteira contribui para a coexistência de muitos mundos e conhecimentos (Faria, 2013).
  • 4
    Para a reflexão sobre as distintas formas de relacionamento com a natureza, sugerimos que seja assistido o documentário “Fio da meada”, dirigido por Silvio Tendler (Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=pm7OjaE6vDc). Também sugerimos o debate sobre o documentário, promovido pela Fiocruz, com a participação do diretor e os pesquisadores do documentário, do cientista social Boaventura de Sousa Santos e do Cacique Munduruku Juares Saw (Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=VCGu-C7agro).
  • 5
    A teoria substantiva da vida humana associada foi desenvolvida por Guerreiro Ramos (1981) ao perceber que, em um cenário no qual o mercado se tornou o centro da sociedade, com força para desconfigurar a vida humana e impor comportamentos, existem organizações de múltiplos centros, formadas por indivíduos conscientes dos efeitos negativos da centralidade do mercado para as organizações e vida humana, mas que costumam ser invisibilizadas pelos meios acadêmicos modernos, legitimadores da centralização do mercado. Diante disso, o autor defende ser necessária uma nova ciência das organizações para a transformação social: livre de paroquialismos impostos pela teoria dominante da organização e que valorize a razão substantiva.
  • 6
    Para conhecer a produção audiovisual dos cineclubes da Baixada Fluminense, sugerimos a prévia do curta “Amazônia do Sudeste”, cineclube Xuxu ComXis (Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=msOyVkJxHRA). Também sugerimos os curtas produzidos pelo cineclube Mate com Angu para o “Programa Convida”, do Instituto Moreira Salles (Recuperado de https://ims.com.br/convida/mate-com-angu/).
  • 1
    Agradecemos ao professor Michel Thiollent por ter nos presenteado com o livro “Metodologia, Teoria do Conhecimento e Pesquisa-ação: textos selecionados e apresentados, de João Bosco Guedes Pinto”, que utilizamos como base para as discussões sobre a Investigação Temática.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    09 Ago 2021
  • Aceito
    22 Dez 2021
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