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Dor neuropática central: implicações na qualidade de vida de pacientes com lesão medular

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

A dor é uma das consequências da lesão medular, somada às disfunções miccional e intestinal, alterações na sexualidade e reprodução, às questões sociais e familiares. Conhecer a dor e sua interferência na qualidade de vida pode fazer com que o profissional que assiste o paciente consiga seguir o caminho mais adequado para o controle da dor neuropática. Estudiosos da Associação Internacional para Estudo da Dor, pesquisaram artigos de 1975 até 2007, e observaram que o tema menos estudado é sobre dor em lesão medular. O objetivo deste estudo foi avaliar a qualidade de vida de pacientes com dor neuropática decorrente de lesão medular traumática.

MÉTODOS:

Trata-se de uma pesquisa quantitativa, transversal, exploratória e descritiva.

RESULTADOS:

Setenta por cento dos pacientes com dor neuropática a caracterizam como forte a intensa, com valor superior a cinco na escala analógica visual. Homens, com idade entre 30 e 39 anos, casados, lesão por queda, paraplégicos, com lesão incompleta e tempo de lesão entre um e cinco anos são os que mais sofrem com dor. A qualidade de vida é melhor em pacientes com diagnóstico de lesão medular completa e que tiveram o ferimento por arma de fogo como causa da lesão. Pacientes com incontinência fecal referiram pior qualidade de vida e também afirmam que a dor atrapalha sua vida.

CONCLUSÃO:

Observou-se que pacientes que referiram maior intensidade de dor têm pior relação em qualidade de vida e no fator social, que aborda relações pessoais, vida sexual e apoio que recebem dos amigos.

Descritores:
Dor; Lesão medular; Qualidade de vida; Reabilitação

ABSTRACT

BACKGROUND AND OBJECTIVES:

Pain is one consequence of spinal cord injury, added to micturition and intestinal disorders, changes in sexuality and reproduction, and social and family issues. Understanding pain and its interference with quality of life may help professionals assisting patients to find the most adequate way to control neuropathic pain. Investigators of the International Association for the Study of Pain have evaluated articles from 1975 to 2007 and have observed that the least studied subject was spinal cord pain. This study aimed at evaluating quality of life of patients with neuropathic pain induced by traumatic spinal cord injury.

METHODS:

This is a quantitative, transversal, exploratory and descriptive research.

RESULTS:

Seventy percent of patients with neuropathic pain classify it as severe to intense, with scores above five in the visual analog scale. Males, aged between 30 and 39 years, married, with injury by fall, paraplegic, with incomplete injury and injury time between one and five years are those most suffering with pain. Quality of life is better for patients with complete spinal cord injury and who were wounded by firearm. Patients with fecal incontinence have referred worse quality of life and also stated that pain impaired their lives.

CONCLUSION:

It was observed that patients referring more severe pain have worse quality of life and social relations, which address personal relations, sexual life and support from friends.

Keywords:
Pain; Quality of life; Rehabilitation; Spinal cord injury

INTRODUÇÃO

A lesão medular traumática (LMT) é um grande problema em saúde pública no Brasil, onde se pode observar um índice elevado de pacientes que apresentam lesão medular (LM). O trauma raquimedular é frequente e diversificado quanto ao gênero, idade, causas, nível da lesão e à gravidade do trauma, atingindo os mais jovens, com predomínio do gênero masculino, e no auge de sua produtividade11 Mogil JS, Simmonds K, Simmonds MJ. Pain research from 1975 to 2007: a categorical and bibliometric meta-trend analysis of every Research Paper published in the journal, Pain. Pain. 2009;142(1-2):48-58.

2 Siddall PJ, Taylor DA, Cousins MJ. Classification of pain following spinal cord injury. Spinal Cord. 1997;35(2):69-75.

3 Nogueira PC, Rabeh SA, Caliri MH, Haas VJ. [Caregivers of individual with spinal cord injury: caregiver burden] Rev Esc Enferm USP. 2013;47(3):607-14. Portuguese.
-44 Siddall PJ, McClelland JM, Rutkowski SB, Cousins MJ. A longitudinal study of the prevalence and characteristics of pain in the first 5 years following spinal cord injury. Pain. 2003;103(3):249-57..

A LMT é uma agressão à medula espinhal, que pode causar perda parcial ou total da motricidade voluntária e/ou da sensibilidade (tátil, dolorosa, profunda), além de comprometimento dos sistemas urinário, intestinal, respiratório, circulatório, sexual e reprodutivo55 Siscão MP, Pereira C, Arnal RL, Foss MH, Marino LH. Trauma raquimedular: caracterização em um Hospital Público. Arq Ciênc Saúde. 2007;14(3):145-7..

A LMT ocorre como consequência da morte dos neurônios da medula e da interrupção da comunicação entre os axônios que se originam no cérebro e suas conexões. Esse rompimento da comunicação entre o cérebro e todas as partes do corpo que ficam abaixo da lesão determina as diferentes alterações observadas nas pessoas com LMT66 Venturini DA, Decesaro MN, Marcon SS. Conhecendo a história e as condições de vida de indivíduos com lesão medular. Rev Gaúcha Enferm. 2006;27(2):219-29..

Esses pacientes, além do comprometimento motor e sensitivo, das diversas complicações como bexiga e intestino neurogênicos, disfunção sexual, espasticidade, úlcera por pressão e dor neuropática central, ainda sofrem com questões sociais e ambientais, pois muitos são impossibilitados de trabalhar, ter lazer, estudar. Dentre essas complicações, a dor neuropática é a que mais compromete a qualidade de vida (QV) do paciente77 Vall J, Braga VA, Almeida PC. Estudo da qualidade de vida em pessoas com lesão medular traumática. Arq Neuropsiquiatr. 2006;64(2-B):451-5..

O manuseio da dor, da avaliação à intervenção, o trabalho conjunto e interdisciplinar para construir conhecimento nas diversas modalidades terapêuticas que buscam eficácia no tratamento precoce e tardio da dor e tentativas para compreender e tratar melhor a dor, sobretudo com a utilização de fármacos e/ou alternativas que não sejam farmacológicas, como por exemplo, fisioterapia, psicoterapia, termoterapia e/ou acupuntura, têm se apresentado como cuidado especializado, multiprofissional e interdisciplinar.

A dor é uma das consequências da LM, somada às disfunções miccional e intestinal, à manutenção da integridade da pele, alterações na sexualidade e na reprodução, às questões sociais e familiares. Tudo se relaciona à necessidade de atenção dinâmica e especializada.

O paciente com dor crônica, mais especificamente neuropática, frequentemente experimenta modificações dramáticas no seu estilo de vida, que resultam do sofrimento persistente provocado pela dor, com repercussões sobre o modo como ele percebe a sua QV. Além do sofrimento ocasionado pela dor, somam-se as frustrações dos tratamentos sem resultados, da multiplicidade de exames pouco esclarecedores e das explicações insatisfatórias da equipe de saúde quanto à inexistência de um diagnóstico preciso ou de que pouco pode ser feito para seu alivio11 Mogil JS, Simmonds K, Simmonds MJ. Pain research from 1975 to 2007: a categorical and bibliometric meta-trend analysis of every Research Paper published in the journal, Pain. Pain. 2009;142(1-2):48-58..

Conhecer a dor e a interferência na QV pode fazer com que o pro-fissional que assiste o paciente consiga seguir o caminho mais adequado e conjugar modalidades para o controle da dor neuropática. Estudiosos da Associação Internacional parao Estudo da Dor (IASP), pesquisaram artigos de 1975 até 2007, com 4.525 artigos publicados sobre dor, e observaram que o tema menos estudado é sobre dor em LM, com apenas 1% dos artigos em todo o período11 Mogil JS, Simmonds K, Simmonds MJ. Pain research from 1975 to 2007: a categorical and bibliometric meta-trend analysis of every Research Paper published in the journal, Pain. Pain. 2009;142(1-2):48-58.. É descrito que a dor é um dos problemas mais comuns experimentados pelos indivíduos que sofreram LMT. Apesar da perda da funcionalidade ser considerada a mais significante consequência desse tipo de lesão, a dor pode determinar a habilidade ou inabilidade do indivíduo para retornar às atividades de forma plena44 Siddall PJ, McClelland JM, Rutkowski SB, Cousins MJ. A longitudinal study of the prevalence and characteristics of pain in the first 5 years following spinal cord injury. Pain. 2003;103(3):249-57..

Estudos sobre QV mostraram que a dor pode interferir de maneira negativa no indivíduo com LM, alterando seu humor, autopercepção da dificuldade em lidar com problemas advindos da lesão e ainda colaborar para o aparecimento de incapacidades88 Hammell KW. Exploring quality of life following high spinal cord injury: a review and critique. Spinal Cord. 2004;42(9):491-502.. No Brasil, a QV tem sido pesquisada, especialmente, em condições crônicas de saúdedoença e como adjuvante na análise de intervenções terapêuticas99 de Miguel M, Kraychete DC. [Pain in patients with spinal cord injury: a review]. Rev Bras Anestesiol. 2009;59(3):350-7. English, Portuguese..

Especificamente com pessoas que sofreram LM, praticamente inexistem estudos e, no Brasil, ainda são poucos os trabalhos relacionados à QV e LM. Contudo as consequências decorrentes desse trauma, assim como as dificuldades sociais, são realidades presentes na vida dessas pessoas e podem interferir com sua QV1010 Fleck MP, Lima AF, Louzada S, Schestasky G, Henriques A, Borges VR, et al. Association of depressive symptoms and social functioning in primary care service, Brazil. Rev Saude Publica. 2002;36(4):431-8. Portuguese.

11 Roque VM, Forones NM. Avaliação da qualidade de vida e toxicidades em pacientes com câncer colorretal tratados com quimioterapia adjuvante baseada em fluoropirimidinas. Arq Gastroenterol. 2006;43(2):94-101.
-1212 Pimenta CA. Dor crônica, terapia cognitiva comportamental e o enfermeiro. Rev Psiquiatr Clin. 2001;28(6):288-94..

Pacientes com dor apresentam prejuízos para a vida diária de magnitude superior àqueles que, embora com LM, não apresentam dor crônica associada. A identificação precoce e o tratamento adequado desses agravos contribuem para a melhora da QV desses indivíduos1313 Teixeira MJ. Fisiopatologia da dor neuropática. Rev Méd. 1999;78(2):53-84.. A avaliação e o manuseio da dor, bem como a realização das atividades de vida diária com o maior grau de independência possível e recuperação da funcionalidade são essenciais nos pacientes com LM. Aliviá-los dessa parcela de sofrimento constitui uma das etapas almejadas pela equipe interdisciplinar envolvida no complexo processo do restabelecimento do equilíbrio biopsicossocial e reintegração à sociedade das pessoas com lesão da medula espinhal99 de Miguel M, Kraychete DC. [Pain in patients with spinal cord injury: a review]. Rev Bras Anestesiol. 2009;59(3):350-7. English, Portuguese.,1414 Kluthcovsky AC, Kluthcovshy FA. O WHOQOL-bref, um instrumento para avaliar qualidade de vida: uma revisão sistemática. Rev Psiquiatr Rio Gd Sul. 2009;31(Suppl 3)..

Conhecer a percepção de QV de pessoas com dor decorrente da LMT poderá subsidiar intervenções durante o processo de reabilitação para manter ou melhorar a QV dessas pessoas.

Diante do exposto, o objetivo deste estudo foi avaliar a QV de pacientes com dor neuropática central decorrente de LMT.

MÉTODOS

Trata-se de uma pesquisa exploratória e descritiva, transversal, de abordagem quantitativa, desenvolvida em duas instituições, sendo um hospital-escola governamental com o instituto especializado no atendimento de pessoas com afecções do aparelho locomotor, localizado no município de São Paulo. A outra é uma instituição beneficente, particular, de grande porte também localizada no município de São Paulo. A amostra do presente estudo foi composta pela seleção dos pacientes em ambas as instituições que são referências no tratamento de LM.

Os critérios de inclusão foram pessoas portadoras de LMT, de ambos os gêneros, com idade mínima de 18 anos, com no mínimo um ano de lesão, de extensão completa ou incompleta, sem tratamento para dor e tendo concluído um Programa de Reabilitação, em condições de responder verbalmente às perguntas, em assistência nas instituições onde se desenvolveu a pesquisa.

Os critérios de exclusão foram pessoas com menos de um ano de LMT, que apresentaram lesão cerebral associada, como traumatismo cranioencefálico e demais doenças que afetam suas funções cognitivas e da fala e pacientes que referiram ausência de sensação dolorosa ou que nunca tiveram dor.

Foram contatados 62 pacientes com LMT atendidos nos serviços. Destes, nove não apresentavam queixa dolorosa e foram excluídos, totalizando uma amostra de 53 indivíduos.

A coleta incluiu entrevista com os pacientes, aplicando a escala de Avaliação da Dor de McGill pela abrangência das características subjetivas da dor referida pelo paciente, uma escala visual analógica (EAV) de avaliação da intensidade da dor, onde zero significava completamente sem dor e 10 com extrema dor, e o instrumento de QV da Organização Mundial da Saúde, World Health Organization Quality of Life Assessment Instrument (WHOQOL-BREF) versão abreviada do WHOQOL-100, que avalia, fundamentalmente, o que é importante para o indivíduo e que interfere na sua QV1414 Kluthcovsky AC, Kluthcovshy FA. O WHOQOL-bref, um instrumento para avaliar qualidade de vida: uma revisão sistemática. Rev Psiquiatr Rio Gd Sul. 2009;31(Suppl 3).. O instrumento de QV WHOQOL-BREF fornece um perfil obtido por meio dos escores dos quatro domínios do instrumento: físico, psicológico, relações sociais e meio ambiente, onde quanto mais alto os escores, melhor é a QV. Os dados foram associados e correlacionados conforme variáveis de interesse e analisados segundo nível e extensão da lesão, tempo de lesão, causa externa. A relação entre McGill e WHOQOL foi medida com o coeficiente de correlação de Pearson; para variáveis categóricas o teste t de Student foi usado quando havia duas categorias e ANOVA ou Kruskal-Walis para mais de duas categorias. O nível de significância adotado foi de 5%.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Pesquisa Institucional sob nº 123.195/2012.

RESULTADOS

Os pacientes participantes da pesquisa foram, em sua maioria, do gênero masculino, com idade entre 30 e 49 anos, casados, aposentados, com ensino médio, LM causada por queda, paraplégicos com lesão incompleta, entre um e cinco anos de lesão (Tabela 1).

Tabela 1
Características sócio-demográficas e clínicas dos indivíduos com lesão medular traumática. São Paulo, 2013

Com relação à intensidade da dor, 70% dos pacientes com dor neuropática a caracterizam como forte a intensa, com valor superior a cinco na EAV. Os indivíduos com LM do gênero masculino, com idade entre 30 e 39 anos, casados, aposentados, com ensino fundamental, etiologia da lesão por queda, paraplégicos, com lesão incompleta e tempo de lesão entre um e cinco anos são os que mais sofrem com a dor, atribuindo nota superior a cinco segundo a EAV, caracterizando uma dor forte a intensa (Tabela 2).

Tabela 2
Intensidade da dor neuropática nas variáveis relacionadas à lesão medular. São Paulo, 2013

A avaliação da QV apresentou valor de p≥0,05, ou seja, não houve diferença estatisticamente significativa entre as variáveis e a QV.

Ao analisar os dados, entre as variáveis e escalas de dor e QV, observou- se que pacientes que referiram maior intensidade de dor apresentam pior QV no domínio social, que aborda relações pessoais, vida sexual e apoio que recebe dos amigos.

Neste estudo, quando comparados aos escores das Escalas Mcgill e descritores da WHOQOL, verificou-se que a QV é melhor em pacientes com diagnóstico de LM completa, do que em pacientes com LM incompleta, bem como é melhor em pacientes que tiveram o ferimento por arma de fogo como causa da LM (Tabela 3).

Tabela 3
Relação entre as variáveis estudadas e Escala McGill. São Paulo, 2013

Os pacientes com incontinência fecal referiram pior QV no aspecto físico, assim como a questão que afirma que a dor interfere negativamente na sua vida, comparados aos escores das escalas McGill e descritores da WHOQOL.

Em relação ao gênero, idade, estado civil, tipo de lesão, escolaridade, tempo de lesão, espasticidade, incontinência urinaria e úlcera por pressão, os resultados mostram que essas variáveis não aumentam ou diminuem a ação da dor na QV.

Após análise estatística dos dados obtidos quanto à QV desses pacientes, constatou-se que os escores são melhores em pacientes com diagnóstico de LM completa do que em pacientes com LM incompleta e em pacientes que tiveram o ferimento por arma de fogo como causa da LM.

DISCUSSÃO

Estudos publicados em diversos países mostram que 85% dos pacientes com LMT que apresentam dor, principalmente a dor neuropática (encontrada em 57,6% dos pacientes estudados), são do gênero masculino, com idade média de 33,2 anos e a principal etiologia do trauma é decorrente de FAF e acidentes de trânsito1515 Werhagen L, Budh CN, Hultling C, Molander C. Neuropathic pain after traumatic spinal cord injury--relations to gender, spinal level, completeness, and age at the time of injury. Spinal Cord. 2004;42(12):665-73..

Um estudo realizado na Suíça com pacientes com dor neuropática especificamente, mostrou prevalência de 26% num grupo de 402 pacientes com LMT1515 Werhagen L, Budh CN, Hultling C, Molander C. Neuropathic pain after traumatic spinal cord injury--relations to gender, spinal level, completeness, and age at the time of injury. Spinal Cord. 2004;42(12):665-73.. No presente estudo, não foi encontrada correlação entre a presença de dor e idade, nível e tipo de lesão (completa ou incompleta), apenas que 13% dos pacientes referiram dor no nível da lesão e outros 27% abaixo da lesão.

Outro estudo conduzido nos Estados Unidos da América (EUA), ao avaliar indivíduos com LM, não encontrou correlação estatisticamente significativa entre a prevalência de dor e aspectos demográficos e variáveis médicas, incluindo nível de lesão1616 Ullrich PM, Jensen MP, Loeser JD, Cardenas DD. Pain intensity, pain interference and characteristics of spinal cord injury. Spinal Cord. 2008;46(6):451-5.

17 Siddall PJ, Taylor DA, McClelland JM, Rutkowski SB, Cousins MJ. Pain report and the relationship of pain to physical factors in the first 6 months following spinal cord injury. Pain. 1999;81(1-2):187-97.
-1818 Ravenscroft A, Ahmed YS, Burnside IG. Chronic pain after SCI. A patient survey. Spinal Cord. 2000;38(10):611-4..

Diferenças significativamente maiores foram encontradas nos indivíduos com lesão torácica, que apresentaram prevalência maior de dor musculoesquelética (92%), quando comparados ao grupo geral (72%). Não foram identificadas diferenças na prevalência da dor neuropática entre os diferentes níveis de lesão1919 Turner JA, Cardenas DD, Warms CA, McClellan CB. Chronic pain associated with spinal cord injuries: a community survey. Arch Phys Med Rehabil. 2001;82(4):501-9..

No acompanhamento dos indivíduos do estudo anterior, ao longo de cinco anos, houve relato da associação entre dor neuropática abaixo do nível da lesão e tetraplegia e esse tipo de dor esteve presente em 50% dos tetraplégicos comparados com 18% dos paraplégicos44 Siddall PJ, McClelland JM, Rutkowski SB, Cousins MJ. A longitudinal study of the prevalence and characteristics of pain in the first 5 years following spinal cord injury. Pain. 2003;103(3):249-57.. No entanto, os dados apresentados por outros autores não corroboraram esse resultado.

Turner et al.1919 Turner JA, Cardenas DD, Warms CA, McClellan CB. Chronic pain associated with spinal cord injuries: a community survey. Arch Phys Med Rehabil. 2001;82(4):501-9. descreveram menor prevalência de dor neuropática no nível da lesão naqueles com lesões entre C1 e C4 do que naqueles com lesões entre L1 e S4 ou S5, mas não encontraram correlação estatística entre os dois parâmetros. Estudo realizado no Reino Unido não confirmou nenhum tipo de associação entre o nível de lesão e a prevalência de dor.

Na Inglaterra, um estudo sobre dor crônica em geral após lesão medular, onde foi aplicado um questionário, teve como resposta que 79% dos pacientes disseram que sofrem a dor, com 39% descrevendo-a como intensa. A comparação dos grupos que referiram dor e os que não referiram dor, utilizando análise Qui-quadrado, mostrou que a lesão completa causa mais dor crônica (p<0,05), e aumento da gravidade da dor (p<0,05). A dor crônica teve um impacto significativo nas atividades diárias e foi um fator importante em causar o desemprego (18%) e depressão (39%)44 Siddall PJ, McClelland JM, Rutkowski SB, Cousins MJ. A longitudinal study of the prevalence and characteristics of pain in the first 5 years following spinal cord injury. Pain. 2003;103(3):249-57..

Nos EUA, outro estudo sobre a dor em geral após LM, indicou a prevalência de aproximadamente 80% dessa dor. O estudo afirma que ela não é mais comum em homens ou mulheres, bem como não há diferenças entre as intensidades de dor em ambos os gêneros2020 Cardenas DD, Bryce TN, Shem K, Richards JS, Elhefni H. Gender and minority differences in the pain experience of people with spinal cord injury. Arch Phys Med Rehabil. 2004;85(11):1774-81.. Também não foi encontrada distinção entre faixa etária. No entanto, o estudo aponta que a prevalência de dor é maior nos indivíduos que estavam trabalhando quando ocorreu a LM, que tinham maior grau de escolaridade e paraplegia, lesão incompleta e causada por atos violentos, confirmando os dados encontrados neste estudo, onde a queda teve a prevalência maior de dor1818 Ravenscroft A, Ahmed YS, Burnside IG. Chronic pain after SCI. A patient survey. Spinal Cord. 2000;38(10):611-4..

Dois estudos distintos sobre o tema, afirmam que 30% dos pacientes com dor após LM classificam a intensidade dessa dor como forte/intensa55 Siscão MP, Pereira C, Arnal RL, Foss MH, Marino LH. Trauma raquimedular: caracterização em um Hospital Público. Arq Ciênc Saúde. 2007;14(3):145-7..

Em um estudo longitudinal de cinco anos, ao relacionar a dor com os fatores psicológicos e a incapacidade física, os dados obtidos foram surpreendentes. A dor foi a terceira dificuldade mais citada, associada à LM, depois apenas da incapacidade motora e da disfunção sexual, respectivamente44 Siddall PJ, McClelland JM, Rutkowski SB, Cousins MJ. A longitudinal study of the prevalence and characteristics of pain in the first 5 years following spinal cord injury. Pain. 2003;103(3):249-57.. Os pacientes com dor também foram os que demonstraram maior alteração de humor, segundo o Inventário de Humor de Kessler e Mroczek, quando comparados com pacientes sem dor44 Siddall PJ, McClelland JM, Rutkowski SB, Cousins MJ. A longitudinal study of the prevalence and characteristics of pain in the first 5 years following spinal cord injury. Pain. 2003;103(3):249-57..

Utilizando a Classificação de Dor Crônica de Hammell88 Hammell KW. Exploring quality of life following high spinal cord injury: a review and critique. Spinal Cord. 2004;42(9):491-502., um estudo examinou a relação entre a intensidade da dor e interferência nas atividades de vida diária, incluindo o trabalho e as atividades sociais, e os resultados mostraram que a dor crônica originou incapacidade em 28,7%, com 12,3% dos pacientes classificados como grau III (alta incapacidade – dor moderadamente limitante) e 16,4% como grau IV (alta incapacidade – dor intensamente limitante).

Segundo autores, a dor após LM deve ter um manuseio adequado, visto que interfere no processo de reabilitação, afetando o desenvolvimento das atividades de vida diária e QV. Além disso, interfere significativamente no humor, levando a quadros de depressão e até suicídio99 de Miguel M, Kraychete DC. [Pain in patients with spinal cord injury: a review]. Rev Bras Anestesiol. 2009;59(3):350-7. English, Portuguese.,1717 Siddall PJ, Taylor DA, McClelland JM, Rutkowski SB, Cousins MJ. Pain report and the relationship of pain to physical factors in the first 6 months following spinal cord injury. Pain. 1999;81(1-2):187-97..

Depois de uma LM, a QV é afetada e a busca por um novo equilíbrio, de acordo com as novas limitações, é almejada. No entanto, quando a lesão vem acompanhada de complicações, principalmente de dor neuropática, esse equilíbrio torna-se difícil de ser alcançado. As principais complicações que diminuíram os escores nos domínios da QV foram dor neuropática, espasticidade, bexiga e intestino neurogênicos. Essas complicações têm maiores efeitos negativos sobre a QV99 de Miguel M, Kraychete DC. [Pain in patients with spinal cord injury: a review]. Rev Bras Anestesiol. 2009;59(3):350-7. English, Portuguese..

Outros estudiosos também afirmam que os pacientes que apresentam dor têm os menores escores em todos os domínios da QV. No entanto, um estudo realizado nos EUA, demonstra que os aspectos sociais, naquele país, não estão tão afetados. Uma justificativa pode ser as características das redes sociais de apoio, principalmente no que se refere à saúde, mais valorizadas naquele país99 de Miguel M, Kraychete DC. [Pain in patients with spinal cord injury: a review]. Rev Bras Anestesiol. 2009;59(3):350-7. English, Portuguese..

Nesse contexto, é importante avaliar, nas pessoas com LM, esses aspectos envolvidos na dor para que o manuseio e as intervenções para seu alívio sejam baseados no comportamento cognitivo dos pacientes. Aliado a isso, o melhor tratamento é baseado na compreensão dos mecanismos da dor44 Siddall PJ, McClelland JM, Rutkowski SB, Cousins MJ. A longitudinal study of the prevalence and characteristics of pain in the first 5 years following spinal cord injury. Pain. 2003;103(3):249-57..

CONCLUSÃO

Os resultados deste estudo evidenciaram que os pacientes com LMT que referiram maior intensidade de dor apresentaram pior relação com QV especialmente no aspecto social. Verificou-se que a QV é melhor em pacientes com diagnóstico de LM completa e é melhor também em pacientes que tiveram o FAF como causa da LM. Pacientes com incontinência fecal referiram pior QV no aspecto físico e afirmaram que a dor atrapalha sua vida.

Os resultados apresentados devem ser analisados considerando as limitações do estudo, que se referem ao fato de ter sido realizado com amostra pequena, o que pode trazer restrições à generalização dos achados. Além disso, não se pode ignorar a dificuldade na discussão dos dados desta pesquisa devido à impossibilidade de comparar os dados encontrados com resultados prévios, porque a literatura é muito restrita em relação à dor e QV após a LM.

Assim, os resultados deste estudo direcionam para a necessidade de realização de outras investigações sobre a temática, que possam respaldar iniciativas que visem a implementação de programas de intervenções e apoio que sejam efetivos no manuseio da dor neuropática em pacientes com LMT buscando melhorar a sua QV.

  • Fontes de fomento: não há.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    23 Mar 2015
  • Aceito
    20 Out 2015
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