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Educação Física, esporte e cultura no ensino superior: íntimas relações com o Brasil e a atualidade

Physical education, sport and culture in higher education: close relationships with Brazil and the present time

Resumos

Este trabalho parte das concepções legais e profissionais da Educação Física e do esporte no ensino superior e sua relação com a cultura. Objetivamos vincular o trabalho do profissional em Educação Física de ensino superior e o desenvolvimento das práticas deste em relação ao contexto histórico cultural que o Brasil viveu desde a ditadura, passando pelo processo de redemocratização política e o desenvolvimento das visões atuais de aprendizado desportivo e da cultura sob ponto de vista do culturalismo antropológico. Sob a ótica do antropólogo americano Clifford Geertz, que toma a cultura como um sistema de signos significantes do qual os indivíduos compartilham vinculamos as concepções sob a profissão supracitada de autores e documentos de destaque na área. Construímos uma breve reflexão sobre a prática esportiva como elemento de formação da cultura, apontando para uma relação circular: esporte é cultura, assim como a cultura define o esporte.

Educação Física; Antropologia; Educação Superior; Cultura; Esportes


This work deals with legal and professional conceptions of the Physical Education and sport in higher education and its relationship with the culture. The main idea of this subject is to insert the professional of Physical Education in higher education and the development of this practical in relation with historical cultural context that Brazil lived since the dictatorship. This process started with the redemocratization politics process and the development of the new visions of porting learning and the culture under the point of view of the anthropologic culturalism. Under the optics of american anthropologist Clifford Geertz, who treats the culture as a system of significant signs of which the individuals share, we tried to construct an interpretation of the above-mentioned profession, starting with authors and documents prominence in the sports field. We construct one brief reflection of the practical sportive as formation element of the culture, pointing a circular relation: sport is culture, as well as the culture defines the sport.

Physical Education; Anthropology; Higher Education; Culture; Sports


ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO/DIVULGAÇÃO

Educação Física, esporte e cultura no ensino superior: íntimas relações com o Brasil e a atualidade

Physical education, sport and culture in higher education: close relationships with Brazil and the present time

André Calil e SilvaI; Milton José ZamboniII

IEducação Física e Esportes da Universidade Federal de Itajubá, Campus Itabira, MG, Brasil. Ms. em Ciência da Motricidade Humana. Professor de Educação Física da Universidade Federal de Itajubá, MG

IISociologia da Universidade Federal de Itajubá, Campus Itabira, MG, Brasil. Dr. em Comunicação Semiótica. Professor de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Itajubá, MG, Brasil

Endereço Endereço: André Calil e Silva Rua Dr. Álvaro Botelho, 128/504 Centro Lavras MG Brasil 37200-000 Telefones: (35) 3821.4750, (35) 8823.2068 e-mail: andre_calil@hotmail.com

RESUMO

Este trabalho parte das concepções legais e profissionais da Educação Física e do esporte no ensino superior e sua relação com a cultura. Objetivamos vincular o trabalho do profissional em Educação Física de ensino superior e o desenvolvimento das práticas deste em relação ao contexto histórico cultural que o Brasil viveu desde a ditadura, passando pelo processo de redemocratização política e o desenvolvimento das visões atuais de aprendizado desportivo e da cultura sob ponto de vista do culturalismo antropológico. Sob a ótica do antropólogo americano Clifford Geertz, que toma a cultura como um sistema de signos significantes do qual os indivíduos compartilham vinculamos as concepções sob a profissão supracitada de autores e documentos de destaque na área. Construímos uma breve reflexão sobre a prática esportiva como elemento de formação da cultura, apontando para uma relação circular: esporte é cultura, assim como a cultura define o esporte.

Palavras-chave: Educação Física. Antropologia. Educação Superior. Cultura. Esportes.

ABSTRACT

This work deals with legal and professional conceptions of the Physical Education and sport in higher education and its relationship with the culture. The main idea of this subject is to insert the professional of Physical Education in higher education and the development of this practical in relation with historical cultural context that Brazil lived since the dictatorship. This process started with the redemocratization politics process and the development of the new visions of porting learning and the culture under the point of view of the anthropologic culturalism. Under the optics of american anthropologist Clifford Geertz, who treats the culture as a system of significant signs of which the individuals share, we tried to construct an interpretation of the above-mentioned profession, starting with authors and documents prominence in the sports field. We construct one brief reflection of the practical sportive as formation element of the culture, pointing a circular relation: sport is culture, as well as the culture defines the sport.

Key Words: Physical Education. Anthropology. Higher Education. Culture. Sports.

Introdução

Antes de qualquer reflexão no campo do esporte universitário ou da Educação Física no ensino superior é necessário retomarmos um pouco da trajetória dessa "prática"/"disciplina" nas universidades e suas concepções nos últimos 45 anos .

Como é sabido, o ensino e as práticas educacionais são frutos de uma carga ideológica que nasce em segmentos da cultura. Partimos do pressuposto que a cultura é um universo simbólico e que este é composto por uma diversidade de significados que são partilhados por seus indivíduos. Estes sujeitos defendem posições e interesses que os filia a determinados grupos de pressão ou hegemônicos, como não se pode fugir da política, uma atividade eminentemente humana, o trabalho desportivo e seu aprendizado também não fogem das orientações que os homens têm em seu tempo.

Segundo Gramsci (1982) todos os homens são intelectuais e participam na formação de sua cultura, uns de modo tradicional e outros de forma orgânica, os quais se filiam a uma organização ou sistema dando-lhe sustentação, desta maneira:

Formam-se assim, historicamente, categorias especializadas para o exercício da função intelectual; formam-se em conexão com todos os grupos sociais, mas especialmente em conexão com os grupos sociais mais importantes, e sofrem elaborações mais amplas e complexas em ligação com o grupo social dominante. Uma das mais marcantes características de todo grupo social que se desenvolve no sentido do domínio é a sua luta pela assimilação e pela conquista ""ideológica"" dos intelectuais tradicionais, assimilação e conquista que são mais rápidas e eficazes quanto mais o grupo em questão elaborar simultaneamente seus próprios intelectuais orgânicos (GRAMSCI, 1982, p. 9).

Seguindo esta perspectiva na formação dos intelectuais e seu papel na organização da cultura, no Brasil a Educação Física (EF) foi apresentada aos cursos superiores de modo obrigatório a partir do Decreto nº 69.450/71, de 1º de novembro de 1971, período no qual o país vivia sob regime militar ditatorial (1964-1984), nessa época, era chamada de "prática" e tinha como objetivo a manutenção e aprimoramento da aptidão física, conservação da saúde, integração do estudante ao campus universitário; entretanto, politicamente estas práticas visavam à integração do sujeito aos ditames de uma cultura, a do corpo e mente sob controle da ideologia dominante, deste modo pensava-se em enfraquecer o movimento estudantil de oposição ao governo. Nesse período a "prática" da Educação Física no ensino superior era obrigatória, e não faltaram razões ao sistema para isso:

Em particular, o Estado capitalista extrai, com efeito, o seu princípio de legitimidade do fato de se apresentar como a unidade do povo nação, tomado aqui como um conjunto de entidades homogêneas, idênticas e díspares, por ele fixadas enquanto indivíduos-cidadãos-políticos (POULANTZAS, 1977, p. 224).

A história da educação no Brasil, de modo geral, foi bastante transformada após a queda do regime ditatorial, a democracia se deu por decreto e lei, assim como as posições quanto à educação, isto é, a política educacional se flexibilizou como o próprio sistema, atingindo inclusive as esferas educacionais mais elevadas, assim como os cursos de graduação e de especialização, seja no Lato ou Stricto Sensu.

Seguindo as mudanças oriundas da democratização, atualmente, após a publicação da atual Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDB) nº 9.394/96, a Educação Física passou a ser interpretada como uma "disciplina" em todos os níveis de aplicação e não mais uma atividade como previa o Decreto 69.450/71, desta forma integrada a proposta pedagógica da Unidade de Ensino Básico, Médio e Superior.

Apesar destes avanços democráticos, os professores de EF perderam terreno quanto a sua capacidade de influenciar na formação básica dos universitários brasileiros. No atual contexto legal sua disciplina deixou de ser obrigatória nos cursos superiores e, passou a ser uma opção de formação complementar à matriz curricular de diversos programas de ensino.

Quando de sua publicação, a nova LDB (1996) dividiu a opinião dos profissionais de Educação Física envolvidos direta e indiretamente (demais educadores), principalmente aqueles inseridos no ensino superior. Justamente por interesses corporativos os profissionais que estavam contra a LDB tinham como principal argumento a perda da reserva de mercado que o Decreto 69.450/71 trazia para o ofício de professor de EF no ensino superior. Já aqueles que se posicionaram a favor da extinção na obrigatoriedade da Educação Física (EF) argumentaram que a legitimidade da disciplina não deve ser dada a partir da obrigatoriedade, mas sim de argumentos plausíveis para sua permanência ou inclusão no currículo escolar, apoiada exclusivamente na força de uma concepção educacional holística, que se baseia na formação integral do sujeito cognoscente e no papel que lhe é atribuído dentro do contexto universitário (PAULA; FARIA, 1998).

Assim, existe toda uma corrente que chama a atenção para a importância da EF no contexto universitário e a sua relação com a cultura. Na medida em que historicamente se tematiza a Cultura Corporal de Movimento, professores de EF, Antropólogos, Sociólogos, Pedagogos, Psicólogos e Filósofos, sem falar em Fisioterapeutas transitam por uma série de questões sobre a corporeidade, a ludicidade, sociabilidade e socialização do indivíduo. O corpo que fala (WIEL; TOMPAKOW, 2001), que trabalha e que pensa pertence ao indivíduo, mas é, também, um produto cultural, e, portanto, fruto de aprendizado.

A Educação Física como produto cultural

A cultura é um sistema simbólico no qual os indivíduos estão inseridos e do qual estes mesmos sujeitos compartilham dos mais diversos significados (GEERTZ, 1978, p.13-66). Neste sentido, toda a cultura passa por um trabalho de cognição de seus múltiplos signos, nós a interpretamos o tempo todo, assim como, somos um produto dela e concomitantemente a produzimos.

Os homens escrevem suas histórias e cabem aos antropólogos, sociólogos e demais cientistas sociais as lerem, assim:

Olhar as dimensões simbólicas da ação social – arte, religião, ideologia, ciência, lei, moralidade, senso comum [e porque não esporte (grifo nosso)]– não é afastar-se dos dilemas existenciais em favor de algum domínio empírico de formas não-emocionalizadas; é mergulhar no meio delas. (GEERTZ, 1978, p.40).

Nesse sentido, toda a construção mental que temos acerca de nós mesmos passa por um processo de aprendizado e a construção de nossa corporeidade também, portanto, é de muita relevância resgatar as disciplinas que atrelam o pensar "metafísico"1 1 Tratamos o conceito de metafísica com o intuito de definir filosofia pura, algo além do natural, sobrenatural de acordo com a própria tradução literal do grego Meta=sobre, além, mais do que e Physys= natureza. Por isso a ênfase na cultura como metafísica em sua essência. com o pensar corpográfico, uma escrita do corpo, o corpo como uma inscrição, cabe dentro da cultura uma filosofia do corpo, preocupação inclusive das primeiras filosofias, se pensarmos no modelo clássico e helenístico que nos legaram os gregos.

Assim sendo, desde os primórdios da indagação filosófica a cultura é simbólica, mas é material também, existe uma antiga apreensão sobre uma estética e uma ética da corporeidade, mens sana in corpore sano diziam os latinos, principais disseminadores do pensamento grego para a cristandade ocidental.

Voltando aos nossos dias e ao solo pátrio, de acordo com Darido e Rangel (2005) o que se estuda nessa área são os conteúdos propostos historicamente pela EF escolar no Brasil, sendo eles: os jogos, os esportes, as ginásticas, as danças, as lutas e a capoeira. As regras, técnicas e táticas são trabalhadas no contexto em que o aluno está inserido, assim sendo buscam-se referenciais na cultura do próprio sujeito.

Deste modo o indivíduo é trabalhado de forma global, in totum. A totalidade é inatingível2 2 Por isso que em Max Weber é fundamental o conceito de tipo ideal, ou seja, uma aproximação mental, uma referência na tentativa de se reduzir ou definir um ou mais aspectos da realidade que se visa estudar. , entretanto, quanto mais se vinculam referenciais da cultura ao trabalho do educador, mais os seus objetivos de formação integral estarão sendo alcançados, ou melhor, contemplados.

Mesmo tendo conteúdos bem definidos, para que a inserção da EF na Universidade seja positiva, deve-se estudar como a EF participa de seu projeto de formação dos indivíduos (Projeto Político-Pedagógico). Desse modo, ela deve estar contida no Plano de Desenvolvimento Institucional, no Projeto Político Institucional e, finalmente, no Projeto Pedagógico de cada curso em que ela será oferecida; com os seus objetivos claramente traçados.

Desta forma, passamos agora para a construção de uma breve reflexão sobre a prática esportiva como um elemento de formação da cultura, a partir da Cultura Corporal de Movimento. Veremos como debatem os pensadores do esporte em relação à cultura, e as contribuições destes para um acalorado debate, que, nem mesmo os antropólogos estão plenamente de acordo, conforme Murdock, 1932 (apud Laraia,1997, p. 65) "Os antropólogos sabem de fato o que é cultura, mas divergem na maneira de exteriorizar este conhecimento".

Cultura, Educação Física, Cultura Corporal de Movimento e Esporte

Nos últimos anos, principalmente no campo da Educação, tem sido debatido o tema cultura, que possui diversas vertentes: cultura escolar, diversidade cultural, multiculturalismo, sujeitos socioculturais, cultura juvenil, cultura negra, entre outras. De acordo com Rangel et al. (2008) a cultura é muito mais do que um conceito acadêmico, diz respeito às vivências dos sujeitos, às suas formas de concepção do mundo, às particularidades e semelhanças construídas por eles ao longo de seu processo histórico e social.

Agente socializador, a escola é uma instituição cultural, construída historicamente no contexto da modernidade para desenvolver uma função social fundamental, que é transmitir cultura (CANDAU, 2002 apud RANGEL et al., 2008). Vago (2006) afirma que a escola é lugar de circular, de reinventar, de estimular, de transmitir, de produzir, enfim, de praticar cultura.

Se o que nos constitui como humanos é a experiência social que se traduz como cultura, essa experiência social também se realiza na escola, envolvendo professores e estudantes, situados no centro deste processo.

De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1999) uma maneira abrangente de entender a cultura é pensá-la como todo fazer humano que pode ser transmitido de geração a geração por meio das linguagens. Assim, evidencia-se o papel da linguagem corporal no processo de produção e reprodução cultural. Ainda de acordo com este documento o corpo é expressão de cultura. Gestos e movimentos corporais são criados e recriados pela cultura, passíveis de serem transmitidos através das gerações e imbuídos de significados.

Gestos, posturas e expressões faciais são criados, mantidos ou modificados em virtude do homem ser um ser social e viver num determinado contexto cultural. As formas de comunicação entre os homens modificam-se de cultura para cultura, justamente porque cada cultura é um produto da experiência histórica de seu povo. Neste sentido, se o corpo é produto da visão de mundo que cada cultura expressa, logo todo movimento do corpo tem um significado contextual, isto é, produto de valores histórico culturais.

Para justificar a relação entre cultura e Educação Física, parte-se do princípio que o trabalho na área da EF tem seus fundamentos nas concepções de corpo e movimento, sendo que este se relaciona dentro de um contexto sociocultural; e os conteúdos da Educação Física podem ser abordados como expressão de produções culturais, conhecimentos historicamente acumulados e socialmente transmitidos.

Os PCNs (BRASIL,1999) trazem que historicamente os seres humanos, devido à fragilidade de recursos biológicos, buscaram suprir as insuficiências com criações que tornassem os movimentos mais eficazes3 3 Na década de 50 um antropólogo americano Alfred Kroeber se referia a cultura como aparelho superorgânico, aliás " O Superorgânico" é o título de seu artigo. Tal artigo traduzia que o homem para suprir suas necessidades e por sua característica inferioridade física diante de outros animais, fez da cultura um aparelho do qual se utilizou para suplantar toda a natureza. Ver Laraia, opus.cit. pp37-53. . Dentre as diversas razões, estão as relacionadas ao domínio e uso do espaço (militares), caça, pesca, agricultura, rituais e festas religiosas, e razões lúdicas. Desses fatores derivaram inúmeros conhecimentos e representações que se transformaram ao longo do tempo, tendo ressignificadas as suas intencionalidades e formas de expressão, constituindo a chamada CULTURA CORPORAL ou CULTURA CORPORAL DE MOVIMENTO. A partir desses conteúdos tem-se a relação direta entre EF e cultura4 4 É interessante lembrar que toda uma literatura trata da questão dos movimentos, na área da saúde a cinesiologia tem tido papel fundamental para a explicação dos movimentos do corpo, seus reflexos no campo do trabalho, como doenças relativas às atividades físicas e seu estudo tem se intensificado de modo representativo. Também é valioso lembrar que o trabalho nas suas mais variadas formas é um produto cultural. .

O jogo, o esporte, a dança, a ginástica e a luta são produções da cultura corporal que foram incorporadas pela Educação Física e seus conteúdos. Tem em comum a representação corporal, com características lúdicas, de diversas culturas humanas (HUIZINGA, 2000). Todos eles ressignificam a cultura humana através de atitudes lúdicas (BRASIL, 1997). Em cada uma dessas manifestações existem benefícios fisiológicos e psicológicos e suas possibilidades de utilização como instrumentos de comunicação, expressão, lazer e cultura.

Após definida a relação entre cultura e a Educação Física, que se dá através da Cultura Corporal, deve-se explorar a relação entre o esporte e a Cultura Corporal de Movimento. Segundo Darido e Rangel (2005) a Cultura Corporal de Movimento abrange o domínio de valores e padrões de atividades físicas, sobretudo as institucionalizadas, como o esporte. Por isso, é coerente pensar no aprofundamento do esporte em vários setores da sociedade, inclusive no meio científico, pois a cultura esportiva é predominante na Cultura Corporal Contemporânea.

Retomando Vago (2006), quando chama a atenção para a justificativa da existência da escola tem-se como responsabilidade desta:

(...) a escola é lugar de circular, de reinventar, de estimular, de transmitir, de produzir, enfim, de praticar cultura. Se o que nos constitui como humanos é a experiência social que se traduz como cultura, essa experiência social também se realiza na escola, envolvendo professores e estudantes, situados no centro deste processo.

Ainda de acordo com Vago (2006) cultura não existe no singular, sendo que a EF não daria conta de tratar de todas elas. Assim, que práticas culturais produzidas pelos humanos constituem interesse para a EF explorar? Quais lhe dão identidade? Desde que entrou no âmbito escolar, nos seus diversos níveis, práticas como as ginásticas, esportes, jogos, danças, entre outras, tornaram-se clássicas.

O autor ainda questiona o porquê de a escola investir seu tempo para que essas práticas, aqui principalmente o esporte, façam parte da formação cultural dos alunos.

(...) essas práticas corporais revelam os humanos tanto quanto qualquer outra obra sua: nós lhes atribuímos significados diversos, e também criamos diversas maneiras de praticá-las. Justamente por isso elas guardam e expressam todos os sentimentos humanos, sendo marcadas e atravessadas por valores éticos e estéticos que expressam modos de se apropriar dos tempos e de espaços do viver, modos de sentir, enfim. Como criações do pensamento e da ação humanas são um patrimônio cultural imaterial da humanidade, constitutivas também de sua história (VAGO, 2006)."

Deste modo, se a escola é uma instituição que visa à socialização dos indivíduos e a EF, como componente curricular concorre para este processo, é seguramente uma disciplina, um ramo de conhecimento que inserido na cultura e se utiliza dela para a elaboração de seu mister. A própria EF é um produto cultural, e disso não se tem dúvida. Ela também tem vivido o eterno processo de ressignificação que todos os aspectos culturais vivenciam.

Assim, apontamos para as práticas em EF, especialmente o esporte, como elemento constitutivo e constituinte da cultura, indubitavelmente ele é um dos fatores de formação cultural.

Esporte como elemento da formação cultural

Após a Revolução industrial, no final do século XIX, surge o Esporte Moderno, dando origem a diversas modalidades esportivas como o futebol, atletismo moderno e rúgbi. Com a implantação da meia jornada de trabalho aos sábados, as pessoas passaram a praticar mais esportes. Esse fato contribuiu para a criação de clubes esportivos, o que influenciou diretamente na cultura, pois nesses espaços eram discutidos assuntos políticos e culturais. Festividades eram organizadas e competições de caça, corrida, boxe, lutas eram comuns. Surgia o esporte com fins educativos, recreativos e sociais (DARIDO; RANGEL, 2005). O significado da palavra esporte é regozijo, que significa diversão, sendo que até hoje é tido como um dos principais objetivos desta atividade.

No final do século XIX, os esportes modernos foram exportados e adaptados em outros países. No início do século XX foram integrados aos programas de Educação Física em todo mundo.

Uma das principais referências na Educação Física brasileira, o professor Tubino, se referiu ao esporte como o maior fenômeno do século XX (TUBINO, 2001). Basta analisar o espaço e a importância que ele tem na sociedade. Por exemplo, o espaço que a mídia lhes dedica, são sessões em revistas e jornais de grande representatividade, isto quando não são edições especializadas, programas diários e semanais nas grandes emissoras.

Sem contra-senso algum, essa atividade movimenta a indústria do lazer, turismo, vestuário e equipamentos esportivos; e ainda mais: pesquisas científicas de ponta, produtos alimentícios para a melhora da performance física, entre outros aspectos de nossa cultura, estão em ampla difusão.

Para muitos, a prática esportiva se tornou um estilo de vida. Neste sentido, o conhecimento sobre o corpo, seus processos biológicos e fisiológicos, hábitos de alimentação, higiene, entre as mais variadas concepções tornaram-se objeto de observação científica, da estética, de valorização do corpo e da própria vida, a longevidade e as práticas cotidianas de esportes têm sido alvo de muita pesquisa, enfim tudo isto rola em torno da concepção que temos de corpo, que é cultural (BRASIL, 1999).

Diante deste contexto a sociedade tem apontado para uma nova geração de indivíduos que relacionam saúde com a prática desportiva.

O corpo hoje se pratica, como um culto, ora positivamente ora negativamente. Não estamos tratando dos aspectos nefastos do hedonismo e do corpo marcado pela atividade física inconseqüente dos fisiculturistas mais desavisados ou pela anorexia e bulimia, do corpo esquálido das modelos que também são um produto cultural, isto fica para outra oportunidade.

Se tratado positivamente o corpo e a atividade física são uma importante referência cultural que pode implementar um estilo de vida ativa e longe do consumo de álcool e demais drogas. O esporte age também afastando os indivíduos de uma vida sedentária que possa levá-los a aquisição de doenças relacionadas à falta de atividade física, má alimentação, horas de sono inadequadas ou doenças, que também são produto cultural, como o estresse por exemplo.

No meio acadêmico, o número de pessoas que praticam atividades físicas é muito pequeno. A criação de uma cultura de prática de atividades físicas na Universidade é um fator importante para a cultura da sociedade. Isto passa por um processo de conscientização, que nos remete ao início deste texto.

Ao se inserirem no ensino superior uma nova etapa de vida inicia, muitos estudantes saem de sua cidade natal, ou até mesmo, de seu estado para se formarem em um curso superior. Nesse momento, a necessidade de pertencerem a um grupo é muito grande, sendo este um dos fatores primordiais para envolvimento com o esporte.

A Universidade é um lugar de cultura, isto é: um dos espaços sociais que tem por excelência garantir o acesso à cultura produzida pelos humanos, possibilitar o direito à fruição de um patrimônio por todos produzido (VAGO, 2006).

São os aspectos socializadores da cultura que se fazem presentes no esporte, o mesmo proporciona oportunidades de formação de novas amizades, de novos relacionamentos profissionais, enfim, existe um elemento gregário no esporte que se constitui em um dos principais elementos da cultura, a capacidade de criar grupos e subgrupos em seu bojo.

Há nesse momento o encontro de diferentes interesses, os quais também se constituem em aspectos culturais. Cada indivíduo é um ser sócio histórico, tem costumes diferentes quanto à alimentação, linguagem corporal e falada, formas de se vestir, de se relacionar, de dançar, gosto musical, entre outros pontos que propiciam choque e encontro de padrões culturais, isto gera a polissemia que constitui a própria atividade cultural, isto é, a troca de experiências. Até mesmo a forma de praticar determinado esporte ou jogo é diferente entre as regiões. Como exemplo, o jogo de futebol nasceu em sua forma moderna na Inglaterra e se tornou o esporte nacional brasileiro. A influência deste foi tão marcante que construímos uma categoria particular da bola no pé, isto é, o futebol de salão, recentemente denominado futsal. Assim, diferentes costumes culturais entram em contato através do esporte, definindo um fenômeno que em antropologia se designa por difusão cultural.

A partir do esporte, conteúdos de interesse cultural como padrão de beleza e saúde dominantes na sociedade, a exclusão e discriminação social daqueles que não se enquadram nos padrões determinados pela mídia, ética do esporte profissional, discriminação sexual e racial dentro do esporte e na sociedade, são colocados em discussão.

Trabalhar valores e conceitos culturalmente valorizados como ética, moral, respeito mútuo, lealdade, capacidade de julgamento, justiça/injustiça pela decisão da arbitragem, solidariedade, trabalho em equipe, dignidade (não humilhar, provocar quem perde); reconhecer a vitória do adversário, entre outros que cabem a formação cultural e humana, devem ser objetivos da prática esportiva no ensino superior (BRASIL, 1997). Assim, finalizamos este item que teve como objetivo explorar o esporte como elemento da formação cultural.

Conclusão

Este texto teve como objetivo uma breve reflexão sobre a prática esportiva como elemento de formação da cultura e de como a cultura influência a visão de mundo dos indivíduos e suas ações em sociedade; numa relação circular esporte é cultura e a cultura define o esporte.

Para isso, três pontos foram destacados. O primeiro refere-se à história da EF no ensino superior no Brasil. No segundo ponto, destacou-se a relação entre cultura, EF, Cultura Corporal de Movimento e esporte, notadamente preocupamo-nos com a atividade esportiva e sua interação com a cultura, assim como a cultura é um agente formativo da corporeidade. Por último, o esporte foi abordado como um elemento da formação cultural e como produto cultural que pode, em vários ambientes, notadamente no ensino superior ser utilizado como uma ferramenta para o encontro/choque entre diferentes padrões culturais, contribuindo para que grupos multiculturais sejam formados, para a aquisição de um estilo de vida ativo, discussões sobre diversos temas que envolvem o esporte, a mídia e que a própria cultura seja também objeto de compreensão de nossa diversidade.

Resumidamente, somos envolvidos por uma teia simbólica, que nos orienta, que constrói, transforma valores e conceitos, e estes, por sua vez, definem diferentes contextos nos quais o esporte e a cultura são expressões de um caminho humano que desenha, em última instância, a face de nossa pluralidade.

Recebido em: 21 de janeiro de 2010.

Aceito em: 27 de maio de 2010.

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  • TUBINO, M. J. G. Dimensões sociais do esporte 2.ed. São Paulo: Cortez, 2001.
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    e-mail:
  • 1
    Tratamos o conceito de metafísica com o intuito de definir filosofia pura, algo além do natural, sobrenatural de acordo com a própria tradução literal do grego Meta=sobre, além, mais do que e Physys= natureza. Por isso a ênfase na cultura como metafísica em sua essência.
  • 2
    Por isso que em Max Weber é fundamental o conceito de tipo ideal, ou seja, uma aproximação mental, uma referência na tentativa de se reduzir ou definir um ou mais aspectos da realidade que se visa estudar.
  • 3
    Na década de 50 um antropólogo americano Alfred Kroeber se referia a cultura como aparelho superorgânico, aliás " O Superorgânico" é o título de seu artigo. Tal artigo traduzia que o homem para suprir suas necessidades e por sua característica inferioridade física diante de outros animais, fez da cultura um aparelho do qual se utilizou para suplantar toda a natureza. Ver Laraia, opus.cit. pp37-53.
  • 4
    É interessante lembrar que toda uma literatura trata da questão dos movimentos, na área da saúde a cinesiologia tem tido papel fundamental para a explicação dos movimentos do corpo, seus reflexos no campo do trabalho, como doenças relativas às atividades físicas e seu estudo tem se intensificado de modo representativo. Também é valioso lembrar que o trabalho nas suas mais variadas formas é um produto cultural.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Recebido
      21 Jan 2010
    • Aceito
      27 Maio 2010
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