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Tendências de mudanças na formação médica no Brasil: tipologia das escolas

RESENHAS

Valéria Ferreira Romano1 1 Universidade Estácio de Sá < valromano@uol.com.br>

Tendências de mudanças na formação médica no Brasil: tipologia das escolas. Jadete Barbosa Lampert. Rio de Janeiro: Hucitec, 2002, 283 pp.

Este é um livro que, otimista, sistematiza uma tipologia de doze escolas de medicina avaliadas a partir do grau de comprometimento relacionado a propostas de mudanças na formação médica. Procura contrapor dois paradigmas da educação médica: o flexneriano e o da integralidade, reconhecendo o segundo como mais adequado no manejo do médico com o usuário, uma vez que considera as necessidades básicas de saúde ao invés do enfoque exclusivo na doença.

Dividido em cinco panorâmicos capítulos, a autora vai materializando a idéia de que "a tendência das escolas é apresentar inovações no compromisso com as mudanças, permanecendo, no entanto, características tradicionais que as podem conduzir a avançar ou a permanecer no mesmo patamar, o que significa não mudar" (p. 216).

No capítulo 1, "Formação médica", a autora cita um dos grandes problemas a serem enfrentados: a dissociação entre teoria e prática, entre estudo e trabalho. O livro preconiza que sem um planejamento na filosofia, na prática pedagógica e educacional das escolas médicas, dificilmente acontecerão mudanças no sentido do paradigma da integralidade, no qual, com o foco na atenção à saúde, o médico possa atuar junto a equipes multiprofissionais, para a incorporação de valores sociais a partir de uma concepção integral do ser humano.

As atuais estruturas das escolas médicas dificultam a inserção do estudante no sistema de serviços de saúde, persistindo o modelo de ensino em que o diagnóstico de doenças sobrepõe-se ao sentido de cuidado do doente. Sendo assim, a discussão tende para o currículo oficial e o currículo oculto como estratégias de socialização do estudante de medicina, sinalizando para a importância do papel do docente, que serve como modelo para o aluno. Este docente, ao valorizar a especialização, a visão hospitalocêntrica, a primazia da realização de diagnósticos, o distanciamento dos problemas dos usuários, a dificuldade em lidar com pacientes crônicos, sintoniza as pessoas que trata numa relação objetal, negando a existência do doente ao lidar com a tensão doença-doente.

A dedução clara é que as práticas médico-educativas orientam o eixo conceitual em função do modelo médico adotado pela escola. Assim, o ensino executado em instituições que trabalham com a noção de cobertura, com promoção da saúde a partir da eficácia, da eficiência e da acessibilidade aos serviços de saúde pela população, propiciaria um tal ambiente educacional que geraria uma prática médica integralizada e inclusiva.

No capítulo 2, "Paradigmas da educação médica", discute-se o modelo proposto por Flexner, publicado em 1910 e reconhecido como paradigma flexneriano. Tal modelo influencia fortemente o ensino médico brasileiro até hoje, uma vez que consolidou um modelo que priorizava o desenvolvimento das ciências da saúde, com incentivo à pesquisa, ao ensino ligado ao hospital de ensino e à docência com dedicação exclusiva, decorrendo disto o surgimento das especialidades.

Desde a década de 1960, no entanto, há o surgimento de movimentos mundiais de contraposição a este modelo, que, individualista, biologicista, hospitalocêntrico e com ênfase nas especializações, tem-se mostrado pouco eficaz na formação de um médico que compreenda a saúde a partir de um conceito amplo na direção das necessidades de saúde, no que hoje se define, segundo a autora, como "paradigma da integralidade".

Além disso, o segundo capítulo traz um breve relato de todos os documentos que marcaram a construção do paradigma da integralidade: Informe Lalonde (1974), Alma-Ata (1978), Otawa (1986), Adelaide (1988), Sundsvall (1991) até Jacarta (1997), transitando desde o enfoque em doenças até a ênfase na promoção da saúde.

Ao discorrer sobre as necessárias mudanças na formação do perfil médico tanto na graduação quanto na residência médica, a autora afirma que, apesar de tais mudanças na formação e na capacitação dos recursos humanos na saúde serem uma necessidade declarada, inclusive pelas autoridades condutoras das reformas, na prática não foram estabelecidas prioridades para que ocorressem, perpetuando-se a desvinculação entre o perfil médico esperado e a reorganização dos serviços.

No capítulo 3, "Propostas de mudanças na formação médica", discutem-se dois grandes autores da educação médica: Garcia (1972), que se tornou uma referência ao fazer um estudo do impacto da disciplina "medicina preventiva e social" nos cursos de medicina, utilizando um modelo explicativo de cunho histórico-estrutural, para entender o processo de produção de médicos; e Ferreira (1998), que afirma a existência de uma crise da educação médica contemporânea, enfatizando a necessidade de repensar uma medicina menos segmentada socialmente, que valorize a atenção primária à saúde, a abordagem intersetorial e a participação social no estabelecimento de políticas públicas.

Ao discutir sobre como a reforma curricular e o projeto pedagógico se entrelaçam com o processo de formação do médico, a autora contextualiza a razão pela qual, mesmo na proposta do Sistema Único de Saúde (SUS), o modelo de atenção à saúde manteve-se predominantemente centrado na doença, no atendimento individual e na tecnologia de alto custo. São exceções apontadas pela autora o Programa de Saúde da Família (PSF), o Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde (Pits), o Projeto de Incentivo a Mudanças Curriculares no Curso de Medicina (Promed) e as novas diretrizes curriculares para a graduação em medicina, considerados momentos históricos ativadores de uma nova missão da escola médica. Através do registro das recomendações de foros internacionais e nacionais de educação médica, é assinalada a importância de reorientar os serviços de saúde e a formação dos profissionais, propondo que o médico do século XXI tenha uma formação transdisciplinar, que o possibilite atuar em equipes multidisciplinares e multiprofissionais, e, conseqüentemente, contribuir, de forma mais eficiente, para a criação de soluções dos problemas de saúde. Ao longo do capítulo, são destacadas ainda as propostas de reforma na formação médica realizadas por meio de alianças inovadoras nacionais e internacionais, explicitando cada uma delas, a saber: Network, Changing Medical Education, Projetos UNI, Cinaem e Gestão de qualidade.

Propondo uma pedagogia interativa ao invés de uma pedagogia da transmissão no processo de transformação da escola médica, a autora considera prejudicial o distanciamento entre o setor educacional e as políticas de saúde.

No capítulo 4, "Eixos conceptuais de relevância para abalizar tendências", a autora determinou parâmetros que possibilitassem comparações, viabilizando, assim, uma ordenação das escolas médicas em relação ao movimento de mudanças da educação médica, propiciando a construção da tipologia das escolas. Propôs as seguintes opções para avaliar as escolas em questão: A, Avançada; Ia, Inovadora com tendência avançada; It, Inovadora com tendência tradicional; e T, Tradicional.

Para construir a tipologia das escolas a partir dos parâmetros mencionados, aplicaram-se questionários em doze escolas públicas e privadas no eixo Sul-Sudeste, onde se localizam 75% das escolas médicas brasileiras. Tal instrumento de coleta foi aplicado ao colegiado dos respectivos cursos, por ser este o responsável pelas deliberações, pelo acompanhamento e pela avaliação da graduação, caracterizando, assim, a primeira fase da pesquisa.

Do conjunto inicial das escolas, foram selecionadas duas, uma considerada mais tradicional e outra mais inovadora, para a segunda fase da pesquisa. Nesse momento, o acesso aos documentos das escolas foi fundamental no intuito de coletar dados sobre o programa curricular, carga horária, objetivos e ementas.

Uma terceira e última fase incluiu, nas mesmas duas escolas previamente selecionadas, entrevistas com os médicos recém-formados, qualificando, portanto, a escuta de quem gerencia e de quem vivencia a realidade curricular da formação médica.

Na determinação das questões respondidas tanto pelo colegiado dos cursos quanto pelos médicos recém-formados, foram considerados temas de consenso entre estudiosos da área, resultando na formatação de cinco eixos conceptuais considerados fundamentais para a educação médica, a saber: enfoque teórico, abordagem pedagógica, cenários de práticas, capacitação docente, mercado de trabalho médico e serviços de saúde.

Tais eixos conceptuais foram subdivididos em um total de dezesseis vetores, abalizando a avaliação das escolas estudadas nas já citadas etapas que vão de avançada a tradicional.

No capítulo 5, "Considerações finais", o leitor se pergunta: qual o compromisso da escola médica em conferir ao médico uma formação geral, preparando-o para, ao fim do curso, integrar-se ao mercado de trabalho, a partir do desenvolvimento de competências básicas relacionadas às necessidades de saúde da população?

Esta é uma questão complexa que permeia todo o livro. Embora não seja fácil solucionar o problema, a autora faz algumas recomendações. As escolas estudadas precisam se adequar aos princípios da relevância social e do compromisso ético do trabalho e devem desenvolver e assumir - efetivamente e de forma crítica - sua responsabilidade social; o Estado deve implementar as transformações exigidas; e o mercado de trabalho e os serviços de saúde devem ser mais bem enfocados nos currículos.

A despeito de algumas mudanças curriculares implementadas, a pesquisa registrada no livro indica que a prática hegemônica ainda privilegia as causas biológicas da doença; currículos pouco integrados; aulas teórico-expositivas para grandes grupos de alunos; avaliação por prova escrita; visão hospitalocêntrica e especializada; e docentes sem formação pedagógica adequada, embora cada vez mais ligados aos serviços municipais.

É importante destacar que todas as escolas indicaram alguma iniciativa de inovação recente, mesmo aquelas consideradas tradicionais, reforçando a idéia da necessidade de consolidação dessas iniciativas. Assim, uma confortável sensação de esperança nos toma ao finalizar a leitura. A crença é de que, uma vez comprometidos, podemos nos tornar agentes deste processo de mudanças.

Nota

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    Universidade Estácio de Sá <
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Nov 2012
    • Data do Fascículo
      Mar 2005
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