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Raça e classe: uma abordagem anticapitalista da contemporaneidade

OLIVEIRA, Dennis. Racismo Estrutural: uma perspectiva histórico-crítica. São Paulo: Dandara Editora, 2021. 212

O título desta resenha poderia estar entre as opções para nomeação desta obra, mas acertadamente Racismo estrutural: uma perspectiva histórico-crítica anuncia uma ‘intervenção’ no debate corrente acerca do racismo, demarcando um posicionamento político-conceitual. Em 2018, com o ineditismo da publicação da obra O que é racismo estrutural, Silvio Almeida reforçou a natureza macropolítica do debate racial no âmbito acadêmico e nos movimentos sociais brasileiros. Em maio de 2020, o episódio da filmagem do assassinato de George Floyd, homem negro estadunidense, por um policial branco em Minneapolis nos Estados Unidos, reacendeu mobilizações antirracistas massivas nesse país e protestos em vários outros. Isto ocorreu durante os meses mais ‘duros’ da pandemia de Covid-19 que, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, já exibiam iniquidades raciais no seu percurso, o que foi objeto de discussões e análises no âmbito da Saúde Coletiva brasileira (Dias, 2020DIAS, Bruno C. Estudo sobre impactos da Covid-19 na população negra ganha relevância internacional. Associação Brasileira de Saúde Coletiva,. Seção GT Racismo e Saúde. 22 set 2020. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/gtracismoesaude/2020/09/22/estudo-sobre-impactos-da-covid-19-na-populacao-negra-ganha-relevancia-internacional/. Acesso em: 11 set 2023
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).

É nesse contexto que o termo ‘racismo estrutural’ entra nas pautas das mídias, impondo à imprensa delimitar explicações, sem que pudesse negar o caráter racial dos acontecimentos. Como efeito, atravessado por implícitas disputas conceituais, esse debate extrapola do campo acadêmico e dos movimentos sociais organizados para a sociedade em geral.

Desse modo, Dennis de Oliveira, jornalista e docente da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), pesquisador na área de cultura popular e movimentos sociais, e ativista do movimento negro, participa dessa ampla discussão por meio desta obra publicada em 2021. Logo na apresentação, o autor explicita uma posição comprometida com a luta antirracista, que não se encerra em um debate acadêmico, mas na exposição de ideias para pensar um projeto político de ruptura com o capitalismo. Portanto, a obra não se presta a soluções pragmáticas institucionais, mas se propõe a refletir bases para a ação política transformadora. Trilha assim o caminho de produção de conhecimento que emerge dos movimentos negros e seus intelectuais, apagados pelo racismo sobretudo nos espaços acadêmicos, como Clóvis Moura, Lélia Gonzales, Abdias Nascimento, Beatriz Nascimento e tantas e tantos outros.

A obra desenvolve-se com vistas a superar a compreensão do racismo circunscrito a questões comportamentais para entendê-lo como um fenômeno social dinâmico que interage dialeticamente com as estruturas da sociedade capitalista. Neste percurso, passa por temas como branquitude, colorismo, representatividade e identitarismo, confrontando o predomínio de concepções essencialistas que lhes conferem conteúdo, com a perspectiva da totalidade social.

Contudo, o autor não se limita a um exercício conceitual abstrato, mas analisa a realidade, e dela reelabora a compreensão em níveis mais complexos da centralidade do debate de raça, classe e capitalismo. Divisão internacional do trabalho, mercado mundial, classes reinantes e classes dominantes, capitalismo dependente compõem a realidade analisada como parte das estruturas do racismo que são expostas em perspectiva histórico-crítica. Cabe pontuar que, ainda que o livro se concentre em torno do racismo antinegro, desenvolve um caminho teórico-metodológico que possibilita pensar outras populações não-brancas, a exemplo dos povos indígenas, resguardando suas devidas particularidades.

Ao longo de 204 páginas, cada um dos cinco capítulos vai compondo didaticamente sua concepção de Racismo Estrutural, desenvolvendo-se em diálogo ora convergente, ora divergente, com autores e autoras de diversas matizes teóricas das Ciências Sociais e Humanas dos campos acadêmico, político e econômico.

No capítulo I, “Após a era dos extremos, a restauração conservadora se inicia no século XXI”, toma como ponto de partida a constatação de que o apagamento do passado histórico, resultando no que chama de ‘presentificação contínua’, é campo fértil para que os movimentos em lutas não façam distinções entre expressões contingentes e elementos estruturais, focando em ações pontuais para resolução de problemas complexos. Assim, recorre à análise histórico-política da emergência da contrarreforma e da restauração conservadora em nível mundial no pós-Guerra Fria e seus efeitos na realidade brasileira. Com isto, aponta mudanças nas movimentações políticas, agendas e perspectivas nos movimentos negros, identificando as bases políticas dos deslocamentos dos conflitos do questionamento da ordem social para o enfoque em comportamentos e atitudes individuais.

No capítulo II, “Fundamentos teórico-conceituais de uma perspectiva histórico-crítica do Racismo Estrutural”, contrapõe a noção de Racismo Estrutural com a de Racismo Estruturalista, este último refutado pelo autor como uma perspectiva essencialista da raça. No processo de delimitação, afirma que “(...) o Racismo Estrutural é conceber o racismo como produto de uma estrutura sócio-histórica de produção e reprodução de riquezas.” (p. 65). A partir daí, desenvolve uma análise sobre a raça como uma categoria central da ‘matriz da colonialidade do poder cuja perspectiva’, ‘pretensamente antropocêntrica’ e universal da Modernidade, omite suas raízes na ideologia eurocêntrica, logo, branca. Neste sentido, não se exime em tecer críticas à Modernidade, reconhecendo suas contradições histórico-constitutivas, sem se render a concepções pós-modernas. Assim, demonstra que ideias que organizaram a formação das sociedades burguesas e suas instituições, como a ‘teoria de contrato social’, não se sustentam diante da exploração capitalista nos países não-brancos, e sobretudo nas populações não-brancas, por não permitir o acesso a riquezas, a recursos tecnológicos e nem a trabalhos formalizados de maneira igual.

No capítulo III, “Esfera Pública e ação direta do capital”, discute como a partir do delineamento do padrão organizativo da produção do capital, vão se definindo as formas de sociabilidade, ou seja, a ‘ação direta do capital’. Este processo, por meio da deslegitimação do Estado e privatização radical das esferas da vida, promove o esvaziamento do debate ideológico, a destruição da esfera pública política e mudanças nos limites dos arranjos institucionais da democracia liberal. Amplia-se assim a hegemonia de correntes de pensamentos denominadas ‘neoliberais progressistas’, apresentando-se como oportunidade política para agenda antirracista sem que seja questionada a ordem imposta pelo capital, em que “o respeito à diferença convive com o paradigma neoliberal” (p. 123). Estas perspectivas, que na realidade racial brasileira ganham ‘aparências domésticas’ de resoluções de conflitos, guardam relações com a ideia dos ‘antagonismos em equilíbrio’, desenvolvida por Gilberto Freyre e que defendia a mestiçagem como resultado da pacificação dos conflitos de raça e classe, mediada pela família patriarcal. Ao contrário deste pensamento, o autor aponta que essa foi “uma forma de interditar a presença negra no debate político, de impedir que o racismo esteja no centro da agenda política e, portanto, que desenvolva seu potencial revolucionário” (p.142).

No capítulo IV, “Das Rebeliões de Senzala ao capitalismo dependente”, o autor apresenta o que pode ser considerado o aspecto diferencial desta obra no percurso da definição de Racismo Estrutural. Indo além das categorias teóricas marxianas, resgata a análise da formação social do Brasil, em Clóvis Moura, abordando as transformações do escravismo para o capitalismo dependente, e ainda apresenta sucintamente a Teoria Marxista da Dependência, de Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra e Theotonio dos Santos. Com base nestes referenciais, estabelece as conexões entre racismo e capitalismo dependente, sendo o racismo uma ideologia que sustenta a superexploração do trabalho e o intercâmbio desigual, na medida em que naturaliza a inserção subalterna das massas negras na sociedade pós-abolição, com propósitos de acumulação de capital, nos termos de relações econômicas assimétricas e da perpetuação da dependência em relação aos países de capitalismo central. Assim, estes são os elementos fundamentais que definem a concepção de Racismo Estrutural defendida ao longo de toda a obra pelo autor.

Por fim, o capítulo V, “À guisa de conclusão: dilemas, dilemas, dilemas...”, o autor resgata conclusões parciais apresentadas em cada temática para questionar o alcance da inserção individual de negros e negras nas estruturas burocráticas, sem projetos políticos coletivos, como forma de ‘avanço ao enfrentamento do racismo institucional’, retomando a insuficiência do debate limitado à dimensão comportamental. Defende que isto impõe dificuldades no direcionamento das lutas antirracistas que não se dirigem à verdadeira classe dominante, as que controlam os meios de produção, e se limitam às ‘classes reinantes’, gerenciadores das instituições do capital. Como resultado, a crença na mudança por meio de pessoas negras em altos cargos institucionais acaba por desviar o olhar do conteúdo anticapitalista da luta antirracista recuando os limites de superação do racismo. É desta forma que o autor retorna ao seu ponto de partida, às questões apresentadas no capítulo I, agora, como em uma espiral, carregada de novos sentidos e complexidades.

Assim, esta obra nos provoca a pensar que é nos limites da superexploração das massas negras que se desenha a racialização das condições de nascimento, vida, adoecimento e morte da população brasileira. Limites reforçados neste projeto de espoliação de riquezas, que cristaliza a inserção subordinada do Brasil no mercado mundial, expressando-se por chantagens fiscais, estrangulamentos orçamentários e drenagem do financiamento público para o setor privado. Este, aliado à total abertura de capital estrangeiro no setor, mina a estrutura básica do SUS por dentro e pressiona por um modelo de “SUS para pobres” (Paim, 2018PAIM, Jairnilson S. Sistema Único de Saúde (SUS) aos 30 anos. Ciência & Saúde Coletiva [on line]. Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 1.723-1.728, jun 2018. https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.09172018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/Qg7SJFjWPjvdQjvnRzxS6Mg/?lang=pt#: Acesso em: 11 set. 2023.
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), pobres estes já definidos estaticamente em suas condições de raça e gênero.

Desse modo, podemos refletir sobre estas e outras questões na compreensão de saúde, não como uma política pública setorial, mas um direito à vida plena dependente de um projeto de soberania nacional capaz de deter o genocídio negro e indígena nas periferias urbanas, nos quilombos, nas aldeias. Pois, se em outras conjunturas se anunciou que ‘Democracia é Saúde’, urge nos dias de hoje afirmar que com Racismo não há Democracia, e, portanto, não há Saúde!

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Set 2023
  • Aceito
    23 Out 2023
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