Open-access Sistema Único de Saúde (SUS) aos 30 anos

Resumo

Com o objetivo de dialogar com alguns estudos e perguntas acerca do SUS, ao completar 30 anos, o artigo apresenta um balanço de vetores positivos, obstáculos e ameaças, sublinhando a falta de prioridade pelos governos, o subfinanciamento e os ataques perpetrados pelas políticas do capital. Ressalta a financeirização da saúde vinculada à dominância financeira como uma das maiores ameaças ao SUS. Conclui que o SUS não está consolidado, justificando alianças entre forças democráticas, populares e socialistas, com novas estratégias, táticas e formas organizativas para enfrentar o poder do capital e de seus representantes na sociedade e no Estado.

Sistema Único de Saúde; Políticas de saúde; Reforma sanitária brasileira

Abstract

This article, which aims to explore questions relating to SUS at 30 and to dialogue with other studies, presents an overview of the positive drivers, the obstacles and the threats to Brazil’s Unified Health System. It points to a lack of prioritizing the SUS on the part of the government, underfunding and attacks on the system made by capital’s policies. The article also suggests that one of the most significant threats to SUS is the financialization of health, linked to the financial dominance. It concludes by arguing that the SUS is not consolidated, justifying alliances between democratic, popular and socialist forces, with new strategies, tactics and forms of organization to face up to the power of capital and its representatives in society and in the State.

Unified Health System; Health policy; Brazilian health reform

Introdução

Os projetos Democrático-popular e Esperança e Mudança, formulados na transição democrática, não foram privilegiados pelas forças políticas que tiveram a oportunidade histórica de ocupar o governo federal após a promulgação da Constituição Cidadã1. O golpe do capital, urdido desde 2014 através da mídia, de segmentos da classe média e do Parlamento, com a chancela do Judiciário, rompeu o pacto social estabelecido no final da ditadura, atacou a democracia e suprimiu um conjunto de direitos civis, sociais e políticos.

A falta de prioridade ao SUS e os ataques visando ao seu desmonte foram reforçados pela crise econômica, pelas políticas de austeridade fiscal e, especialmente, pela Emenda Constitucional 95 (EC-95/2016) que congela o orçamento público durante vinte anos2. Assim, o governo Temer deu continuidade e aprofundou a hegemonia contrária ao SUS, tornando-o ainda mais reduzido, com o risco de se tornar um simulacro.

O fato concreto é que o SUS foi implantado, mas não se encontra consolidado. Pesquisas recentes3-5 estão apontando fenômenos mais complexos no âmbito da saúde do que as análises de conjunturas permitem indicar, de modo a estimular diversas perguntas: a) quais os vetores positivos que têm sustentado o SUS? b) quais têm sido os obstáculos e as ameaças? c) quais são as alternativas que se apresentam? d) como ampliar as bases de apoio sociais e políticas? e) O SUS vai acabar? f) que estratégias e táticas podem ser acionadas para viabilizar a sua consolidação?

O objetivo deste artigo de opinião é dialogar com alguns desses estudos e perguntas acerca do SUS ao completar 30 anos.

Quais os vetores positivos que têm sustentado o SUS?

Inspirado em valores como igualdade, democracia e emancipação, o SUS está inserido na Constituição, na legislação ordinária e em normas técnicas e administrativas. O Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (MRSB) que lhe sustenta é composto por entidades com mais de quatro décadas de história e de compromisso com a defesa do direito universal à saúde, a exemplo do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Conta com o apoio de outras organizações como a Associação Brasileira de Economia da Saúde (Abres), a Rede-Unida, os conselhos de saúde (nacional, estaduais e municipais), a Associação Nacional do Ministério Público em Defesa da Saúde (Ampasa), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), o movimento popular de saúde, entre outras.

O SUS dispõe de uma rede de instituições de ensino e pesquisa como universidades, institutos e escolas de saúde pública que interage com as secretarias estaduais e municipais, Ministério da Saúde, agências e fundações. Essa rede contribui para a sustentabilidade institucional, pois possibilita que um conjunto de pessoas adquiram conhecimentos, habilidades e valores vinculados aos princípios e diretrizes do SUS. Muitas dessas pessoas sustentam o SUS, mesmo em conjunturas difíceis, tornando-se militantes de sua defesa. A formação de sanitaristas e de outros trabalhadores em universidades e escolas assegura a reprodução e disseminação de informações e conhecimentos, além da apropriação de poder técnico.

O Brasil empreendeu a descentralização de atribuições e de recursos, ampliando a oferta e o acesso aos serviços e ações, com impacto nos níveis de saúde. Essa diretriz constitucional, com comando único em cada esfera de governo, foi implementada em menos de uma década para 27 unidades da federação e quase 5.600 municípios, garantindo a participação da comunidade através de conferências e conselhos, bem como criando instâncias de pactuação, a exemplo das comissões intergestoras tripartite e bipartite. Esse processo de construção do SUS tem gerado entusiasmo e compromisso de trabalhadores da saúde vinculados às secretarias e ao Ministério, apesar das limitações impostas pela gestão do trabalho nas três esferas de governo que geram insatisfações nos serviços públicos.

Uma engenharia político-institucional criativa possibilitou a elaboração de normas operacionais básicas, pactos, programação pactuada integrada, plano de desenvolvimento da regionalização e plano diretor de investimentos que contribuíram para a sustentabilidade institucional do SUS e para a sua materialidade expressa em estabelecimentos, equipes, equipamentos e tecnologias. Daí o legado de avanços no sistema de vigilância em saúde, na vigilância sanitária, na assistência farmacêutica, nos transplantes, no SAMU e no controle do tabagismo, do HIV/AIDS e da qualidade do sangue. O Programa Nacional de Imunizações é o maior do mundo, induzindo a autossuficiência de imunobiológicos. Merece destaque a atenção primária em saúde, vinculando cerca de 60% da população brasileira às equipes de Saúde da Família.

O país avançou no desenvolvimento de sistemas de informação em saúde, a exemplo dos referentes à mortalidade, às internações hospitalares e aos agravos de notificação, importantes para o monitoramento e avaliação de políticas, planos e programas.

Cabe, ainda, destacar o reconhecimento formal do direito à saúde que tem possibilitado a difusão dessa conquista na sociedade, seja nas manifestações da cidadania e na mídia, seja nos processos de judicialização relevantes do ponto de vista cultural, pois podem evoluir para uma consciência sanitária crítica.

Quais são os obstáculos e ameaças ao SUS?

Em termos ideológicos, os valores dominantes na sociedade brasileira tendem mais para a diferenciação, o individualismo e a distinção do que para a solidariedade, a coletividade e a igualdade. Esse aspecto negativo é agravado pelas limitadas bases sociais e políticas do SUS que não conta com a força de partidos, nem com o apoio de trabalhadores organizados em sindicatos e centrais para a defesa do direito à saúde inerente à condição de cidadania, tal como ocorrera em países europeus que optaram pelo Estado de Bem-Estar Social.

O SUS sofre resistências de profissionais de saúde, cujos interesses não foram contemplados pelas políticas de gestão do trabalho e educação em saúde. Além da crítica sistemática e oposição da mídia, o SUS enfrenta grandes interesses econômicos e financeiros ligados a operadoras de planos de saúde, a empresas de publicidade e a indústrias farmacêuticas e de equipamentos médico-hospitalares.

O predomínio da doutrina do neoliberalismo justamente no período de implantação do SUS, com as limitações do Welfare State nos países europeus e a crise econômica de 2008, representam um sério obstáculo para o desenvolvimento de sistemas universais de saúde. Do mesmo modo, a proposta político-ideológica da Cobertura Universal em Saúde, patrocinada por organismos internacionais, só faz reforçar tal doutrina e fragilizar os valores civilizatórios do SUS.

Apesar de a Constituição proclamar a saúde como direito de todos e dever do Estado, o Estado brasileiro através dos poderes executivo, legislativo e judiciário, não tem assegurado as condições objetivas para a sustentabilidade econômica e científico-tecnológica do SUS. Problemas de gestão como a falta de profissionalização, o uso clientelista e partidário dos estabelecimentos públicos, número excessivo de cargos de confiança, burocratização das decisões e descontinuidade administrativa, têm sido destacados, embora as alternativas acionadas impliquem a desvalorização dos trabalhadores de saúde, através das terceirizações e da precarização do trabalho.

Outros aspectos negativos na construção do SUS podem ser identificados nas políticas de medicamentos e de assistência farmacêutica, no controle do Aedes e na segurança e qualidade do cuidado. A insuficiência da infraestrutura pública, a falta de planejamento ascendente, as dificuldades com a montagem de redes na regionalização e os impasses para a mudança dos modelos de atenção e das práticas de saúde também comprometem o acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde. Verifica-se a reprodução do modelo médico hegemônico, centrado mais na doença que na saúde, no tratamento que na prevenção ou promoção, no hospital e nos serviços especializados, e menos na comunidade, no território e na atenção básica.

Durante muito tempo o subfinanciamento crônico era identificado como um dos maiores obstáculos para o SUS. Diversas iniciativas foram adotadas para contorná-lo, a exemplo da Contribuição Provisória de Movimentação Financeira, da EC-29/2000 e do movimento Saúde+10, mas não alteraram, efetivamente, a estrutura do financiamento, de modo que o gasto público, como percentagem do Produto Interno Bruto destinado a saúde, continuou inferior à proporção do gasto privado4.

Com insuficientes recursos o SUS enfrenta problemas na manutenção da rede de serviços e na remuneração de seus trabalhadores, limitando os investimentos para a ampliação da infraestrutura pública. Diante dessa realidade, a decisão de compra de serviços no setor privado torna-se fortalecida e a ideologia da privatização é reforçada. Prevalece, assim, um boicote passivo através do subfinanciamento público e ganha força um boicote ativo, quando o Estado premia, reconhece e privilegia o setor privado com subsídios, desonerações e sub-regulação. O executivo assegura um padrão de financiamento para o setor privado com o apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social e da Caixa Econômica Federal, bastante distinto em relação às instituições públicas do SUS. Essa ação estatal através dos boicotes pelas vias do executivo, do legislativo e do judiciário comprometeu a vigência da concepção de seguridade social, além de facilitar a privatização da saúde. Com a aprovação da EC-95/2016, o subfinanciamento crônico do SUS fica constitucionalizado, cristalizando as dificuldades acumuladas desde 19884.

Os obstáculos acima mencionados geralmente se apresentam nas discussões sobre o SUS, negligenciando a articulação público-privada predatória onde os interesses privados predominaram nesses 30 anos. Entretanto, como essa ameaça do capital não é tão visível como as filas, a falta de profissionais ou o acesso aos medicamentos, tem sido menos problematizada e investigada.

A privatização da saúde que esteve presente na evolução das políticas públicas, mesmo antes do SUS, apresenta distintas configurações decorrentes dos movimentos e circuitos do capital no setor. Atualmente, a articulação público-privada exibe novas facetas, sob a forma de financeirização da saúde vinculada à dominância financeira5. Pesquisas recentes3-5dão conta da complexidade dessa nova fase da articulação público-privada, com a venda de empresas, seus ativos e carteiras de clientes, aprofundando a intermediação entre prestadores e consumidores, assim como novas relações entre aparelhos do Estado e o capital financeiro (inclusive internacional)5. Essa determinação econômica representa a maior ameaça à consolidação do SUS.

Quais são as alternativas que se apresentam?

A defesa do SUS constitucional e do SUS proposto pela Reforma Sanitária Brasileira (RSB) indica alternativas contrárias à segmentação e à americanização do sistema de saúde brasileiro. O SUS realmente existente, com todas as suas dificuldades e fragilidades, produziu conquistas e resultados significativos nessas três décadas. A sua institucionalidade pode ser realçada pelos seus gestores, pelo Ministério Público, conselhos de saúde e trabalhadores, favorecendo a resistência contra o seu desmonte.

As alternativas a serem acionadas não são definidas no âmbito da técnica, reiterando-se a tese de que o maior desafio do SUS é político. Desse modo, para além das ações que podem ser realizadas no interior da sociedade civil, há que se reconhecer a necessidade de atuação na sociedade política, ou seja, no Estado e nos seus aparelhos e instituições. Isso significa a possibilidade de atuar junto aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como nos aparelhos de hegemonia.

No caso do Executivo, independentemente da atuação de profissionais e trabalhadores nas instituições do SUS nos níveis municipal, estadual e federal, a definição de alternativas pensadas para serem viabilizadas passam, necessariamente, pelos propósitos e pela ação de governos. Assim, as eleições sempre representam uma oportunidade de discutir as alternativas nos programas dos candidatos, a despeito das circunstâncias adversas, seja no âmbito federal, seja no nível das unidades federadas.

Nessa perspectiva, é possível conceber algum diálogo em defesa do SUS constitucional e do SUS democrático nas eleições junto às forças e candidaturas da esquerda e da centro-esquerda, com alguma incursão no centro do espectro político. Já a centro-direita e a direita, sendo vitoriosas no nível federal ou estadual tendem a inviabilizar alternativas, pois seu compromisso tem sido com o desmonte do SUS. Portanto, a construção de um amplo bloco democrático, popular e socialista em defesa da RSB e do SUS merece ser incluída na agenda política das forças progressistas.

Como ampliar as bases sociais e políticas para a sustentação do SUS?

Desde as origens do movimento sanitário sempre esteve presente a preocupação com as bases de sustentação política para a RSB/SUS. O empenho no envolvimento das entidades de saúde, sindicatos e segmentos populares foi muito debatido. Partidos políticos e parlamentares ligados às forças democráticas foram acionados no processo constituinte e na elaboração e aprovação da Lei Orgânica da Saúde. A instalação e o funcionamento da Plenária da Saúde representou um espaço de articulação entre essas forças, configurando um saldo organizativo para a implantação do SUS.

O protagonismo exercitado pelo Conass e pelo Cosasems a partir da década de noventa, junto à instalação dos conselhos estaduais e municipais, permitiu ampliar a base de apoio ao SUS. Presentemente, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) tem demonstrado um ativismo significativo, mobilizando grupos sociais e confrontando certas iniciativas do governo. Do mesmo modo, a expansão dos gestores municipais de saúde tem reforçado essas bases sociais e políticas.

Ainda assim, o golpe de 2016 incidiu sobre a correlação de forças a ponto de parte desses sujeitos passar a apoiar iniciativas do Ministério da Saúde criticadas pelo movimento sanitário. Se não é conveniente jogá-los no colo dos golpistas, também não é pertinente contar a priori com a suposição do seu apoio, apenas considerando a parceria positiva do passado. Daí a necessidade de manter pontes de diálogo para que as contradições possam ser explicitadas e os conflitos trabalhados.

Considerando as peculiaridades da revolução passiva no Brasil que invadiu o processo da RSB, torna-se fundamental constituir sujeitos da práxis (sujeitos da resistência, novos servidores públicos, sujeitos transformadores), individuais e coletivos, capazes de defender o SUS, e sujeitos da antítese aptos em desequilibrar o binômio da conservação-mudança a favor das transformações, radicalizando a democracia e a RSB6.

A constituição de sujeitos não se restringe à dimensão pedagógica, podendo se realizar em diferentes níveis (trabalho, militância e lutas sociais). Para além dos movimentos sociais progressistas e das entidades do MRSB (Cebes, Abrasco, Rede Unida, Abres, etc.), a conjuntura pós-golpe de 2016 ensejou a construção da Frente Povo sem Medo e da Frente Brasil Popular, entre outras iniciativas, que tem possibilitado mobilizações e articulação política contra o retrocesso e os ataques à democracia, em torno da bandeira Nenhum Direito a Menos. Tais movimentos tendem a se expressar no processo eleitoral e na configuração das forças políticas que conquistarem espaços nos âmbitos federal e estadual.

O SUS vai acabar?

Esta é uma pergunta sempre presente em debates com interessados. Apesar dos ataques e golpes sofridos, incluindo os boicotes do Estado Brasileiro, não é plausível a extinção do SUS. Além da força relativa dos seus defensores e militantes, existe um conjunto de interesses vinculados ao capital, ao próprio Estado e às classes dominantes que apontam para a sua manutenção, seja como meio de legitimação ou cooptação, seja como lócus de acumulação, circulação e expansão do capital. A articulação público-privada no âmbito da saúde engendrada no Brasil possibilitou um fortalecimento econômico e político das empresas privadas em detrimento do interesse público e independente da Constituição e das leis.

Mesmo admitindo que não haja política irreversível, a agenda desses representantes do capital não contempla a extinção do SUS. Pelo contrário, o SUS realmente existente tem sido orgânico aos seus negócios e não há porque matar a galinha dos ovos de ouro. Este SUS real que em parte se apresenta como SUS para pobres já faz parte do senso comum de gestores, políticos, mídia, profissionais de saúde e, até mesmo, da população. Ele pode se reproduzir no presente e no futuro, mesmo que restrito, na dependência da dinâmica e da expansão do capital, assim como das respostas do movimento sanitário.

Voltado fundamentalmente para a parte da população mais pobre que não tem acesso ao mercado e limitado na atuação típica de saúde pública como a prevenção e o controle de riscos, danos e epidemias, trata-se de um SUS reduzido. Assegurando a realização de procedimentos de alto custo para o setor privado5, distancia-se do SUS constitucional e do SUS democrático proposto pela RSB1. Significa um arremedo ou simulacro do SUS.

Que estratégias e táticas que podem ser acionadas para viabilizar a consolidação do SUS?

Esta é uma pergunta das mais relevantes a exigir certa reflexão. Seguramente é uma das mais difíceis em termos de resposta. Primeiro, porque não é qualquer sujeito ou ator capaz de definir um desenho estratégico. Essa práxis – pensamento e ação – exige não só legitimidade de quem indica as estratégias e aponta as táticas, mas especialmente a capacidade de realizar as análises concretas da situação e de ter o insight político acerca do momento mais indicado para a organização e a intervenção sobre a realidade. A experiência e as habilidades acumuladas são fundamentais para o alcance da efetividade da atuação. Segundo, porque não é qualquer intelectual ou indivíduo isolado que se pode arvorar a responder essa questão, mas sim sujeitos coletivos como partidos políticos ou outras organizações que disponham de acúmulos históricos e capacidade de iniciativa para a ação. São eles que lidam com a dialética da transparência/opacidade7 e são capazes de escolher a dose adequada de um e do outro termo da dicotomia, pois não cabe mostrar o jogo aos adversários.

No desenvolvimento do processo da RSB foram acionadas três vias estratégicas: a legislativo-parlamentar, a técnico-institucional e a sociocomunitária. Presentemente, diante das limitações dos partidos e do protagonismo dos movimentos sociais, a busca da hegemonia político-cultural e a luta pela radicalização da democracia implicam a construção de equivalências entre agendas e sujeitos coletivos, para além da contradição capital-trabalho. Assim, a atuação do Cebes desde a sua refundação em 2006 e, especialmente, o seu envolvimento nas Jornadas de Junho e nas frentes populares depois do Golpe de 2016 recomenda a exploração de outras estratégias e táticas no processo da RSB em defesa da democracia, do SUS e dos direitos sociais6.

Não bastam, porém, o proselitismo em defesa do SUS e a prática ideológica do movimento sanitário. Daí a necessidade de reuniões periódicas do Fórum da RSB e a articulação progressiva com os conselhos nacional, estaduais e municipais de saúde para o desenho de estratégias e o estabelecimento de táticas mais adequadas à conjuntura, a despeito da participação limitada de partidos políticos.

Ao serem identificados movimentos do capital que articulam dimensões econômicas, políticas e ideológicas no âmbito setorial, o arco de alianças e a unidade a serem perseguidos pelas forças democráticas, populares e socialistas vão demandar instâncias organizativas de outra natureza para enfrentar o poder acumulado pelos empresários e seus representantes na sociedade e nos aparelhos de Estado.

Portanto, unidade, agilidade e efetividade são fundamentais. A busca de formas organizativas mais orgânicas pode sugerir a criação de uma secretaria executiva para que o Fórum da RSB possa atuar mais prontamente na conjuntura, evitando que o movimento seja atropelado ou dirigido pelos fatos. Assim, alguns sinais recentes de afastamento do Conass e do Conasems em relação ao movimento sanitário devem ser considerados e trabalhados, politicamente, para que se recomponham pontes de diálogos em defesa da democracia, da RSB e do SUS.

Comentários finais

A retomada de um balanço sobre os vetores positivos, obstáculos e ameaças nesses 30 anos de SUS não significa complacência com equívocos e descaminhos. Para além de fortalecer a motivação para a luta dos que defendem o direito universal à saúde, a reflexão sobre estudos e perguntas poderá reforçar certas estratégias e criar novas para a preservação do SUS.

Cumpre incidir sobre a correlação de forças, altamente desfavorável no presente, e acumular novas energias para tempos mais propícios, sem desprezar a atuação aqui e agora, com novas formas organizativas. É esta prática política que requer o melhor da militância e convoca para a ação em defesa do direito à saúde e do SUS. Se o Estado sabota o SUS, resta à sociedade civil lutar pela RSB e por um sistema de saúde universal, público, de qualidade e efetivo, cabendo ao movimento sanitário contribuir para imprimir um caráter mais progressista à revolução passiva brasileira.

Referências

  • 1 Paim JS. A Constituição Cidadã e os 25 anos do Sistema Único de Saúde. Cad Saude Publica 2013; 29(10):1927-1953.
  • 2 Vieira FS. Crise econômica, austeridade fiscal e saúde: que lições podem ser aprendidas? Brasília: Ipea; 2016. [Nota técnica].
  • 3 Monteiro MG. Trayectoria y cambios de dirección em las políticas públicas: análisis de la reforma del sistema sanitario brasileño (1975-2015) [tesis]. Barcelona: Universitad Autónoma de Barcelona; 2016.
  • 4 Melo MFGC. Relações público-privadas no sistema de saúde brasileiro [tese]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas; 2017.
  • 5 Sestelo JAF. Planos e seguros de saúde do Brasil de 2000 a 2015 e a dominância financeira [tese]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2017.
  • 6 Paim JS. Reflexiones teóricas sobre sujetos de la práxis y sujetos de la antítesis para la Reforma Sanitaria Brasileña. Salud Colectiva 2017; 13(4):599-610.
  • 7 Testa M. Pensamento estratégico e lógica de programação. O caso da saúde São Paulo, Rio de Janeiro: Hucitec, Abraco; 1995.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    05 Jan 2018
  • Revisado
    30 Jan 2018
  • Aceito
    05 Abr 2018
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