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Escutar silêncios, povoar solidões: há vida secreta nas palavras

Listening to silence, populate solitude: there are secret life in words

Resumos

O objetivo deste ensaio é problematizar políticas hegemônicas de subjetivação, imagéticas, linguagem, atenção, corpo, gênero ou sexualidade. Em diálogo com ofilme A vida secreta das palavras, toma-se o silêncio emblemático da trama deIsabel Coixet para forçar um pensamento intempestivo que produza conhecimento na articulação entre ciência e arte. Perscrutando o sentido de problematização de imagens clichês, sobretudo, de imagens de masculinidade, a finalidade é a de partir da análise do filme, construir um território de experimentação política e ética, por meio do qual se possa povoar solidões, habitar silêncios, traçar um mapa onde as palavras têm uma força secreta.

políticas de subjetivação; imagem; atenção; corpo; gênero


The purpose of this essay is to problematize hegemonic politics of subjectivity, imagery, language, attention, body, gender or of sexuality. In dialogue with the film The Secret Life of Words, silence becomes emblematic of the plot Isabel Coixet to force a preposterous thought that dares to produce knowledge on the relationship between science and art. Peering into the sense of questioning the cliché images, especially images of masculinity, the purpose is to use up the analysis of the film to build a territory of experimentation politics and ethics, through which you can populate solitudes, inhabiting silences, draw a map right there where words have a secret force.

politics of subjectivity; image; attencion; body; gender


Escutar silêncios, povoar solidões: há vida secreta nas palavras

Listening to silence, populate solitude: there are secret life in words

Michele de Freitas Faria de Vasconcelos* * Endereço para correspondência: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Educação,Programa de Pós-Graduação em Educação/GEERGE. Avenida Paulo Gama. s/n. Prédio 12201 sala 511 Farroupilha, Porto Alegre, RS Brasil - CEP 90046-900. E-mail: michelevasconcelos@hotmail.com, patriciaabelbalestrin8@gmail.com, simonepaulon@gmail.com ; Patrícia Abel Balestrin; Simone Mainieri Paulon

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil

RESUMO

O objetivo deste ensaio é problematizar políticas hegemônicas de subjetivação, imagéticas, linguagem, atenção, corpo, gênero ou sexualidade. Em diálogo com ofilme A vida secreta das palavras, toma-se o silêncio emblemático da trama deIsabel Coixet para forçar um pensamento intempestivo que produza conhecimento na articulação entre ciência e arte. Perscrutando o sentido de problematização de imagens clichês, sobretudo, de imagens de masculinidade, a finalidade é a de partir da análise do filme, construir um território de experimentação política e ética, por meio do qual se possa povoar solidões, habitar silêncios, traçar um mapa onde as palavras têm uma força secreta.

Palavras-chave: políticas de subjetivação; imagem; atenção; corpo; gênero.

ABSTRACT

The purpose of this essay is to problematize hegemonic politics of subjectivity, imagery, language, attention, body, gender or of sexuality. In dialogue with the film The Secret Life of Words, silence becomes emblematic of the plot Isabel Coixet to force a preposterous thought that dares to produce knowledge on the relationship between science and art. Peering into the sense of questioning the cliché images, especially images of masculinity, the purpose is to use up the analysis of the film to build a territory of experimentation politics and ethics, through which you can populate solitudes, inhabiting silences, draw a map right there where words have a secret force.

Keywords: politics of subjectivity; image; attencion; body; gender.

Silêncio por favor/ Enquanto esqueço um pouco a dor no peito/ Não diga nada sobre meus defeitos/ E não me lembro mais quem me deixou assim// Hoje eu quero apenas/ Uma pausa de mil compassos/ Para ver as meninas/ E nada mais nos braços// Só este amor assim descontraído // Quem sabe de tudo, não fale/ quem não sabe nada, se cale/ Se for preciso eu repito/ Porque hoje eu vou fazer/ Ao meu jeito eu vou fazer/ Um samba sobre o infinito

(PAULINHO DA VIOLA, 2000).

Olhar um filme e refletir com ele. Com que finalidade? De que modo? A partir de qual perspectiva? Na contramão de posições relativistas, perspectiva aqui não diz respeito ao exercício de olhar por diferentes ângulos uma realidade sempre idêntica a si própria. Ao contrário, com a palavra perspectiva, almejamos marcar uma postura de desnaturalização da realidade, atentando para a raridade dos fatos que a compõem, tal como anuncia Veyne (2008, p. 239): "os fatos humanos são raros, não estão instalados na plenitude da razão; há um vazio em torno deles para outros fatos que o nosso saber nem imagina, pois o que é poderia ser diferente". Perspectiva sugere, assim, a produção de realidades e, nesse sentido, a produção de modos singulares de olhar e de pensar.

Mas, ao olhar e pensar com um filme, com que "políticas" de pensamento, de pesquisa, imagéticas, de linguagem, de educação, de cognição, de atenção, de corpo, de gênero e sexualidade, de vida, então, compor?

A palavra política tem uma vida secreta que precisa ser pontuada. Sobre isso, na apresentação do livro Clínica e Política 2, Janne Mourão (2009, p. 11) oferece uma pista: "Repensar como propriamente políticas, determinadas experiências do nosso tempo, habitualmente consideradas como exteriores à esfera do político, como os efeitos do confinamento nas plataformas em alto mar"; como os silenciamentos produzidos pela violência de Estado, pelos efeitos da tortura nos corpos (ainda hoje presentes na plataforma do Estado Democrático de Direito); como a solidão de corpos confinados em sua individualização. Pensar essas experiências políticas, na medida em que as mesmas parecem produzir uma espécie de "silêncio povoado" que, mesmo mudo, grita aquilo que não quer calar.

Escutar esse "silêncio povoado" a fim de romper uma espécie de clausura do individualismo que nos toma contemporaneamente pode ser uma estratégia que permita devolver a dimensão coletiva à história. No intuito de experimentar (im)possíveis situados além e aquém dos mapas preestabelecidos, de bifurcar, (re)existir, nos servirmos da nossa história em proveito de outra coisa, de um "esboço daquilo em que vamos nos tornando" (DELEUZE, 1996, p. 4). A escrita "sempre" nos convidando "ao", sempre nos produzindo um descaminho. O gerúndio aqui não é por acidente, ou por hábito, mas justo pelo que alude à coisa acontecendo; àquilo que se vai tecendo.

Neste artigo, a tentativa é justamente esta: com o filme A vida secreta das palavras, de Isabel Coixet (2005), escutar silêncios, povoar solidões, inclusive as nossas. Uma vez que este filme parece nos convidar a pensar a politização de nossas experiências, pretendemos, na articulação com ele, construir um território de experimentação ético-política. Entendendo, com Foucault (2010, p. 256), que "a história, é o que fazemos dela", se quer problematizar o tempo presente incidindo em alguns de seus perigos, pois, como alerta o filósofo, se "nem tudo é ruim, mas tudo é perigoso", então, "temos sempre algo a fazer" (FOUCAULT, 2010, p. 256). A proposta do presente texto, portanto, é, olhar o filme A vida secreta das palavras como modo de pinçar alguns perigos a enfrentar, chamá-los a participar de nossa análise, compor novos olhares, talvez novas palavras e, quem sabe, num empreendimento ético, compor um processo de (re)escrita de nós mesmas, num movimento artesão de (des)aprendizagem, de desarraigar-se do que já foi feito, abrindo-se ao descaminho, ensaiando novas formas de vida, mesmo que silenciosas e secretas.

Antes de prosseguir, parece ser preciso assinalar uma questão de método: na tessitura desse território de experimentação ético-política, recorremos a uma "atenção flutuante" (KASTRUP, 2007), que rastreia "falas dispersas" (FERRERI; NOBRE, 2010; RODRIGUES, 2010), assim como gestos e paisagens corporais também "dispersas", onde explodem singularidades. Eis o demorado movimento: pinçar gestos, vozes, falas que vão construindo junto com o percurso teórico um certo plano de análise, por meio do qual se produzam narrativas singulares e parciais, algumas respostas provisórias e, sobretudo, perguntas. E ainda que muitas destas não sejam respondidas – pelo menos não agora, não aqui – não importa, pois perguntar é onde tudo começa e não se finaliza. Perguntar, quando não se repete com essa ação simplesmente o que já está dado, pode abrir caminhos e estilhaçar certezas claras e razoáveis, ao estilo de Foucault, ao estilo de Butler,1 1 Sobre a escrita butleriana, afirma Salih (2012, p. 11): "Ao ler os textos de Butler, notamos que fazer perguntas é o seu estilo preferido, mas apenas muito raramente ela lhes dá resposta. Às vezes, essa tendência de enfileirar uma questão atrás de outra pode parecer desconcertante, mas não se trata propriamente de um defeito estilístico, mas de entender a escrita como um processo no qual a origem e o fim são rejeitados como sendo opressivamente – e talvez mesmo violentamente – lineares ou 'teleológicos' (isto é, movendo-se em direção a um fim ou a um resultado final)". estilos que, de tão fascinantes, se tenta roubar, se ensaia fazer uso.

HABITAR SILÊNCIOS, POVOAR SOLIDÕES

Que silêncios e solidões são possíveis no nosso tempo? No contexto contemporâneo das sociedades capitalísticas,2 2 Em Guattari e Rolnik (2000, p. 15), Guattari acrescenta o sufixo "ístico" ao termo capitalista, para englobar não somente sociedades qualificadas como capitalistas, mas que vivem "uma espécie de dependência e contradependência do capitalismo". Para ele, em tais sociedades, também funciona uma forma de poder indexada na economia subjetiva, ou seja, centrada na tomada de poder sobre os modos de produção de subjetividades. silêncio e solidão parecem ser palavras renegadas, modos de existir rechaçados. Nossas experiências devem ser tagarelas e devem, imediatamente, se tornar comuns. Não há aqui um outro verbo mais apropriado que o "dever": devemos comungar das experiências mesmo as mais triviais, ordinárias, mais insossas, já rotuladas e demasiadamente registradas, etiquetadas. Devemos "comunicar" todas aquelas experiências que nos identificam entre os "comuns", que falam de nossa humanidade, condição "de rebanho" para usar uma expressão nietzschiana (1998). A par desse registro do "deve-se-ser-em bando", do deve-se falar, nunca estivemos tão sós. Nunca falamos tanto para dizer tão pouco.

A vida secreta das palavras borra a evidência das palavras "silêncio" e "solidão". Os personagens nos convidam a calar nossa tagarelice, a abdicar de nossa vontade de verdade e, duvidando do sentido reto e cristalino das palavras e das coisas, convocam nossa vontade de invenção. Pensar diferentes silêncios e solidões, multiplicar seus sentidos, este é o desafio. Silêncios-vergonha, silêncios-culpa, silêncios-medo, silêncios-indivíduo. Há silêncios de toda ordem, silêncios em ordem (ordenados de forma coerente a uma verdade que é dita e repetida em detrimento de tantas que devem permanecer apagadas, amortecidas, muitas vezes dilacerando vidas). Silêncios-segredo, silêncios-coletivo, silêncios-vírus, silêncios-poesia, silêncios que irrompem verborrágicas vidas ordinárias para pedir mais delas. Silêncios perturbadores, silêncios fora da ordem, que dobram a solidão de indivíduos encarcerados em si mesmos e gritam: - Silêncio, por favor!

Hanna, protagonista do filme, trabalha, come sempre frango, arroz e maçãs, lava sempre as mãos com o mesmo sabão, necessita, inusitada e incomodamente, viver sozinha. Ela parece fazer isso para se manter num território existencial prescrito por um dado mapa de conduta, para permanecer fixada a um possível plano pré-estruturado para prosseguir num "seu" mundo, restritivo, porém, conhecido. Para conservar as coisas sob controle, ela trabalha, come, lava as mãos... Ao ver-se obrigada a tirar férias, já na viagem, para utilizar a expressão de Kundera (1999[1917]), um "pássaro do acaso":3 3 Como indica Foucault (2004, p. 59), "é preciso aceitar introduzir a casualidade como categoria na produção dos acontecimentos. [...] introduzir na raiz mesma do pensamento o acaso, o descontínuo, e a materialidade". Ainda de acordo com o autor (FOUCAULT, 2001b), acontecimento refere-se a situações que produzem uma inversão no arranjo de forças vigente; é quando algo emerge, desestabilizando paisagens instituídas, afetando uma quantidade considerável de corpos e produzindo algo absolutamente imprevisível no interior do plano. Daí Foucault associar acontecimento a novidade, a contrafluxo. Marcar acontecimentos diz respeito, assim, a espreitar emergências, rupturas, fazendo surgir, no estrato histórico, uma singularidade. ela esbarra com a possibilidade de trabalhar como enfermeira numa plataforma de petróleo.

Aquele lugar, as vidas que ali habitam parecem ser exemplares de vidas forjadas pelo dispositivo de confinamento, vidas confinadas em águas de individualização e normalização. Mas ali mesmo se observam linhas de fuga, linhas de subjetivação que fazem dessas mesmas águas abertura para aqueles sujeitos e seus corpos sujeitados, encontro com o inusitado. Lá, compondo com "rostos" masculinos, o "mundinho" de Hanna se desestabiliza e se expande, bem como o "mundinho" dos homens trabalhadores da plataforma é afetado pela presença silenciosamente perturbadora de Hanna.

Os encontros ali produzidos talvez não fossem possíveis em outro lugar. Será o efeito do mar envolto (revolto?) na plataforma? Um lugar que poderia ser sinônimo de mesmice, rotina vazia, vida sem graça, paradoxalmente, mostra-se como um lugar de reinvenção, de deslocamento de posições, de movimentos que ousam não se conformarem. No filme, a plataforma, que foi desativada após um acidente-incêndio, abriga agora apenas alguns poucos trabalhadores. Embora não gere mais "recursos capitalísticos", parece engendrar vida, vida revolta – vida após a morte... Um lugar que visivelmente não se move, é movido por e faz mover (tantas) forças que não se pode controlar. Será a força do encontro? Será a força do mar? Será a força daquilo que não se consegue nomear? Será a força do silêncio? O que será?

DE COMO SE AGENCIAR COM UM FILME: EXPERIMENTANDO OUTRAS MODALIDADES ATENCIONAIS

No mundo em que habitamos – sociedades de informação, de consumo, era das imagens-clichês –, uma certa modalidade de atenção parece hegemônica: tendemos a experienciar um tipo de atenção que "desliza incessantemente entre fatos e situações, transparecendo uma certa dificuldade de concentração" (KASTRUP, 2008, p. 156).

Nesse contexto, um boom de informações disponibilizadas em uma velocidade hiperacelerada invade, (in)forma nossos corpos a todo instante, nos diz o que fazer de nós mesmos, o que consumir hoje no "supermercado de identidades" e que deve ser rapidamente descartado, para dar lugar ao supostamente novo (BAUMAN, 2001). Desejamos, consumimos, descartamos, logo desejamos, consumimos, descartamos: sumimos! Existimos? Ou sobrevivemos? Nessa busca acelerada por novas fórmulas que indiquem melhores direções para o que podemos fazer de nossas relações conosco, com os outros e com o mundo, o novo já nasce velho: "a atenção é passageira, muda constantemente de foco e é sujeita ao esgotamento em frações de segundos" (KASTRUP, 2008, p. 156).

Vivemos, assim, no engodo de que sabedoria é dispor de informações, versão da 'velha' necessidade de tomada de consciência. Nesse espaço, que tendemos a habitar sem muitos questionamentos, se engendram e se hegemonizam modalidades atencionais que não sofrem "de falta de foco, mas de excesso de focalização" (KASTRUP, 2008, p. 172). Essa aprendizagem da atenção, como qualquer outra, embora ganhe corpo em experiências individuais, "configura um problema de cognição coletiva", não pode, portanto, ser dissociada desse contexto atual histórico-político das sociedades capitalísticas. Ao afirmarmos a historicidade, a espacialidade, a temporalidade dessa modalidade de atenção, queremos desnaturalizar o fluxo cognitivo hegemônico, pois é isto que parece tornar possível a experimentação de novos caminhos. Almejamos, com isso, pensar e experimentar outras modalidades de atenção, ou seja, em vez de barrar, acolher e abrir espaço para desestabilizações, ousando a difícil tarefa de engendrar práticas que ativem "outras atenções que, fazendo parte de um funcionamento complexo, constituam vias de resistência ao excesso de focalização que nos asfixia no tarefismo fatigante dos dias atuais" (KASTRUP, 2008, p. 173).

Anunciamos, assim, a tentativa de desenvolver uma escrita comprometida com uma outra modalidade de atenção, agenciando-nos ao filme, às palavras, aos conceitos, às imagens, às intensidades que nos tomam ao escrever este artigo. Diz-se que a única unidade do agenciamento é a do cofuncionamento, liga entre dizeres, estado de coisas e de corpos, articulando-os em relações de vizinhança com limites deslocáveis. Agenciarmo-nos às intensidades que dão corpo ao encontro-acontecimento com o filme, esse é o objetivo desta escrita. Encontro que se desdobra em outros, produzindo desestabilizações em nossos mapas linguísticos, imagéticos, afetivos, encontros que desembocam em novos acontecimentos: Hanna-homens da plataforma, solidão de Hanna-vidas isoladas no mar, Hanna-palavras caladas, nós-Isabel Coixet-Hanna, imagens cinematográficas-escrita, nós-nossos/as leitores/as, solidões povoadas...

A tentativa é a de fugir do foco da enfadonha tarefa de escrever mais um artigo para engrossar a linha de montagem da produtividade acadêmica. Fugir, também, de clássicas escritas sobre um filme, associando-o a leituras "do momento", representá-lo, interpretá-lo, ilustrá-lo, traduzi-lo. Escapar da obsessão de uma atenção seletiva orientada por um interesse e uma ação preestabelecidos. Ao contrário, a tentativa foi a de nos agenciar com o filme por meio do acionamento de uma atenção sensível, experimentando uma errância da escritura. Escrever, pois, para forçar um pensamento intempestivo, que, pela habitação de uma zona problemática, espaço de atrito em que se arrisca o não familiar, vemo-nos impulsionadas a diferir. Escritura-fruição. Sentir o prazer de ver acontecer as palavras no encontro conosco, com as imagens, com o filme, com a trilha sonora, com o inesperado. Palavras que brotam do que ficou silenciado...

HABITAR SILÊNCIOS, PRODUZIR IMAGENS: A FORÇA DA ARTE

Diz-se por aí que vivemos numa época em que nunca se viu tamanha produção de imagens. Por todos os lados, imagens nos são oferecidas para serem consumidas e descartadas rapidamente, a fim de dar espaço para outras que virão logo em seguida: pela TV, pelo cinema, pela internet, pelo celular, pelas câmeras fotográficas e filmadoras, pela publicidade que nos assedia constantemente, pelos "olhos eletrônicos do poder". Mas será que se trata mesmo de uma produção de imagens em todas essas que nos assolam o olhar cotidianamente? Sigamos a resposta de Deleuze (2005, p. 32): "Civilização da imagem? Na verdade uma civilização do clichê, na qual todos os poderes têm interesse em encobrir as imagens [...] em nos encobrir alguma coisa nas imagens".

O que todas essas imagens que vemos proliferar por todos os lados parecem ter em comum é o fato de serem clichês, imagens reguladas pela urgência do dia, regime de imagens que compõe a cena do tempo acelerado do capitalismo, dando substrato ao regime atencional supracitado. O que Deleuze (1992) chamou de sociedade de controle tem, então, como traço importante esse regime de imagens-clichês que se vendem como espelhos de uma suposta realidade imutável, articuladas a essa experiência acelerada do tempo que nos convoca a um regime atencional específico. As formas de poder contemporâneas fazem desses clichês palavras de ordem. A esse respeito, Parente (1993, p. 17) assinala que:

Vivemos num mundo onde tudo circula. Tudo deve circular o mais rapidamente possível: os veículos, os enunciados, as imagens, as informações, os homens. No entanto, tudo parece estar no lugar, todas as diferenças se anulam, tudo se tornou impermutável. [...] E assim a subjetividade, que parecia ter nas novas tecnologias um aliado no processo de desterritorialização e nomadização é, dessa forma, ameaçada de paralisia, de modo tal que cada um nós parece só possuir clichês psíquicos dentro de si.

Os clichês são palavras de ordem, pois, nos dizem o que devem interessar nas imagens, ditam nossa percepção. Deleuze (1992), partindo de Bergson, afirma que a percepção de uma coisa é sempre menor que essa coisa. Ao percebê-la, extraímos da imagem algo. Para ele, há uma defasagem entre a ação sofrida pelas imagens e a reação executada. É essa defasagem que nos dá o poder de estocar outras imagens, isto é, perceber. O que tendemos a estocar é somente o que "nos" interessa nas outras imagens: "perceber é subtrair da imagem o que não nos interessa, sempre há menos na nossa percepção. Estamos tão repletos de imagens que já não vemos as imagens que nos chegam do exterior por si mesmas" (DELEUZE, 1992, p. 58).

E assim, como habitantes de uma campânula de vidro, vamos nos furtando à errância, à aventura, ao indizível, a qualquer coisa que não tenha "um significado", vamos embotando o sensível. Vendo com lentes de contato cada vez mais apuradas, seguimos presos a significações dominantes, como "prisioneiros políticos", presas fáceis: "Na linguagem, nunca nada é selvagem, tudo é codificado" (BARTHES, 2004a, p. 435). Como nos descolar das imagens clichês, das palavras de ordem? Decolando!, responde o mesmo autor. E aqui não podem ficar de fora – trazendo vida, oferecendo uma porosidade virulenta ao "dentro" – as "vidas do fora",4 4 Vidas do Fora: Habitantes do Silêncio é o título de livro publicado pela Editora UFRGS, em 2010, que reúne artigos acerca de vidas exiladas nos hospícios e outros silenciados. Os organizadores são Tânia Galli Fonseca e Luciano Bedin. ou seja, o que ficou fora das imagens que percebemos. Em conexão com esse "fora" das imagens, abre-se a possibilidade de habitarmos outros territórios, de enfrentarmos a constante ameaça de paralisia de nossas subjetividades, pela sua indexação às economias de poder vigentes.

Produzir linguagens, produzir imagens, produzir subjetividades. Nesses ensaios da existência, parece ser fecundo compor uma habitação entre a ciência e a arte, experimentar profanar a fabricação de um corpo de sustentação: corpo-suporte para se fazer do estranhamento produzido por encontros com vidas do fora uma experimentação dessa potência de diferir.

Essa experiência e essa aliança com as linguagens estranhas podem estar a serviço [...] dessa contaminação positiva e criativa que toda linguagem sofre quando busca traduzir, ou se aliar, a outras linguagens – e é o que o autor brasileiro João Guimarães Rosa chama de "fecundante corrupção das nossas formas idiomáticas de escrever" (GOLDMAN, 2006, p. 169).

E a arte nos convida a experimentar alianças monstruosas com outras linguagens e outras imagens, linguagens que se fazem outras. Tal é a força da arte apontada por Deleuze: ela se situa na possibilidade de fazer frente a esse regime de clichês, a esse tempo acelerado da produção capitalista, a essas palavras de ordem. "Des-ventosar" a linguagem, diria Barthes (2004a). Guaguejar em sua própria língua, diria Deleuze (1992, p. 56):

Estar na própria língua como um estrangeiro, traçar para linguagem uma espécie de linha de fuga. [...] Linhas de fuga subterrâneas: algo como o silêncio, ou como a gagueira, ou como o grito, algo que escorreria sobre as redundâncias e as informações, que escorraçaria a linguagem e que apesar disso seria ouvido.

Produzir imagens que façam, então, escutar silêncios, suportar gaguejar, gritar outras linguagens, compor outros territórios existenciais. Pensamos a imagem aqui como "puro sensível e ser de sensação", que faz sair dos trilhos de uma razão calculista-calcificante a realidade, nós, nossas subjetividades, nossa cognição, nossa percepção, nossa atenção, nossos corpos. O que conta aqui é a imagem como acontecimento, uma passagem entre imagens que suprima o ser representado (um real pressuposto) por elas. Nesse sentido, o real é um aberto de possibilidades (PARENTE, 1993, p. 30). Nessa mesma direção, Marcello (2008, p.153) nos convida a problematizar "a 'rapidez' com a qual as imagens podemser povoadas de sentidos pré-determinados". Para a autora, é preciso, portanto, subverter a imagem, chocar-se com ela, disputar um campo estável, fazendo um movimento duplo: problematizar as imagens-clichês e compor com imagens que façam frente a palavras de ordem. Neste caso, provavelmente, "estamos lidando com imagem-arte" (MARCELLO, 2008, p. 153).

Enfocando a arte do cinema, Marcello (2008, p. 144), em diálogo com o Foucault (1999) de Las Meninas, assinala que "a potência desestabilizadora da imagem cinematográfica": "como que, fugidia, rejeita integralmente o que poderia refletir, [...] acima de tudo [...], 'nada diz do que já foi dito'". Tal imagem tensiona "qualquer estabilidade do olhar", comprometendo "de maneira insuperável as categorias de representação, objeto e espectador", borrando mapas linguísticos e imagéticos que possam guiar aprioristicamente e, de uma vez por todas, o olhar. O caminho metodológico que aí se abre vai na contramão das imagens-espelhos (representações) à irrupção da singularidade nas imagens. A aposta é, então, num pensamento não representacional, situado menos em torno de uma significação da imagem e mais em suas vibrações, ressonâncias, dispersões. "Trata-se de ver, de analisar e mesmo de buscar caracterizar a força que a imagem expressa" (MARCELLO, 2008, p. 157). Nesse sentido é que Marcello afirma que a potência das imagens não se situa no que elas captam. "Ao contrário, quadro e câmera não fixam as imagens, mas, antes, 'fazem-nas passar'" (MARCELLO, 2008, p. 147).

Imagens-arte, cinemas-criação. Imagem-intensidade, como sugere o título do texto em que Beatriz Furtado (2007) toma o filme Arca Russa para reunir Sokurov, Godard, Wenders e outros/as tantos/as (aos/às quais juntaríamos Isabel Coixet) numa análise acerca da possibilidade de entendermos o cinema, pelo menos alguns, como resistência-criação, (re)existência no terreno da arte e do pensamento. Arrebatando as imagens em direção a uma experiência de pura intensidade, o ato criador, longe de constituir uma finalidade em si mesmo, pode ser concebido, seguindo rastros nietzscheanos e deleuzianos, como um ato de absoluta necessidade: a de expandir a vida. Da vontade de saber à vontade de potência: uma vontade de invenção. É a imagem que emerge dessa vontade que parece poder contestar o tempo banalizado midiático, para reinvidicar não o 'real', mas a sua produção, à insubmissão a uma dada realidade.

A composição dessa escrita dá-se justamente no ensaio de uma montagem entre ciência e arte, na direção de rastrear imagens-acontecimento, imagens-intensidade. Como produção de linguagens e de imagens, a realidade dessa escrita também o é abertura ao indizível e ao (im)possível de se produzir uma habitação bem ali no silêncio das palavras, na gagueira da linguagem, no borramento de mapas políticos, imagéticos, subjetivos e corporais.

UM OLHAR (DE GÊNERO) SOBRE A EXPERIÊNCIA DO SILÊNCIO E DA SOLIDÃO NO CINEMA DE ISABEL COIXET

A imagem fílmica (incluindo o som) é o quê? Um engodo. [...] a imagem me cativa, me captura: colo à representação, e é essa cola que funda a naturalidade da cena filmada. [...] Tudo se passa como se uma longa réstia de luz viesse recortar uma fechadura, e olhássemos todos, siderados, por esse buraco. O quê? Nada, nesse êxtase vem pelo som, pela música, pelas palavras? (BARTHES, 2004b, p. 430).

A vida secreta das palavras é uma instalação, uma experimentação errante que nos convida a pensar em outras possibilidades de relação entre imagens e sons, imagens e silêncios, a experimentar outros regimes de sensibilidade. Nele, o som parece permanecer "no tempo pelo intenso das forças do silêncio. [...] O som é uma arquitetura dos espaços que castiga e aprisiona a ação protagonista". Neste filme, "o trabalho com o som deixa de ter um caráter meramente ilustrativo e surge como um cinema sonoro paralelo ao cinema imagético" (FURTADO, 2007, p. 51-52).

Ao dizer isso, Beatriz Furtado (2007, p. 47) nos acena a pensar num terceiro regime de imagem, que não é nem imagem-movimento, nem imagem-tempo, mas, o da imagem-intensidade, que força "o sentir do insensível, o ver do invisível, o ouvir do insonoro, o tocar do intangível". Uma imagem que subsume o tempo à intensificação de uma sensação. Um cinema-criação que não é a apresentação de um tempo puro. É um tempo força. O que podemos ver nesse cinema vem de blocos intensivos de pura sensação.

Se, para que haja sensação, é necessário que uma força se exerça sobre um corpo, no caso do filme em questão, a força que toca nossos corpos espectadores parece advir do silêncio, de uma "lentidão povoada por micro-acontecimentos" (FURTADO, 2007, p. 56). Tal é a solidão povoada de Godard apontada por Deleuze (1992), tal é o silêncio povoado de Hanna: força, no sentido nietzscheano (1998). E "exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força" (NIETZSCHE, 1998, p. 36).

Mas, como analisar um filme de acordo com a perspectiva teórica-política-ética aqui delineada? Algumas pistas: investir sobre pequenos momentos disruptivos (MARCELLO, 2008), em falas e gestos "dispersos" (FERRERI; NOBRE, 2010; RODRIGUES, 2010), os quais trazem consigo a possibilidade de deslocar das imagens "aquilo que uma vontade de verdade criou para ela" (MARCELLO, 2008, p. 157). Rastrear o que resta, o que sobra, o vazio, o silêncio que se instauram nos arredores dessas imagens e a desprendem de sua sina. Pensar no silêncio das imagens, nesse silêncio povoado de possibilidades outras que não "os hábitos da história pessoal ou coletiva". Habitar esse silêncio, à espreita da eclosão da dispersão da ideia-representação de homem, de mulher, de criança, de humanidade com as quais estamos habituados. Ainda de acordo com Marcello (2008), o trabalho de análise fílmica, desde a perspectiva teórico-metodológica que aqui estamos tentando delinear, movimenta-se justamente no espaço em que se deixa de ser o que "é" para quem sabe "devir", quando se entende que o devir não é a produção de um objeto transformado. Ao contrário, é fruto de uma aliança mestiça, monstruosa; de misturas e composições heterogêneas, movimento em que não há reversibilidade (DELEUZE; GUATTARI, 1997).

Como dar língua às intensidades que tiveram passagem ao assistir A vida secreta das palavras? Onde pousar nossa atenção? Que territórios de observação construir? Num movimento zigue-zagueante, eis que aparece uma possibilidade: "A apreensão de material em princípio desconexo e fragmentado, de cenas e discursos, requer uma concentração sem focalização, [...] uma atenção à espreita" (KASTRUP, 2007, p. 15), um rastreio de falas e gestos dispersos. Seguindo a pista da atenção-rastreio, sem concentrar o foco "num" problema dado de antemão, colocamo-nos diante do filme e, agora, entre a tela do cinema e a do computador, escavamos um território para a (re)existência de uma personagem: nós, mesmas? Outro(a)s em nós? Sem conhecer o alvo a ser perseguido– e sem desejar ter um alvo – , de repente ele surge mais ou menos de forma imprevisível: escutar o(s) silêncio(s) dos corpos que habitam o filme, na medida em que tais silêncios parecem se tratar justamente de uma espécie de povoamento a que Deleuze (1992) se referia, e na medida em que entendemos corpos como montagens produzidas entre formas de sujeição e forças de experimentação (PARAÍSO, 2011; VASCONCELOS, 2013).

Desassossega-nos, sobretudo, essa marca silenciosa que grita por ser impressa sobre a pele: o silêncio sobre a morte (suicídio) de um dos trabalhadores da plataforma; o silêncio sobre o "passado" de Hanna, o silêncio sobre as relações afetivas daqueles trabalhadores, o silêncio das águas, o desaguar de silêncios que habitam as palavras e as fazem mais que "palavras de ordem": palavras que selam destinos. Palavras que (en)cerram vidas. Palavras que se desacomodam e desacomodam. Silêncios que gritam, urram, berram, nesses tempos de tagarelices. A proposta é, pois, pensar a possibilidade de transmissão e articulação com o silêncio de corpos que (re)existem, "um silêncio fértil que atravessa o corpo no instante em que resiste". Testemunhar silêncios, para criar, rasgar um modo de escutar – não estamos invocando aqui a confissão – , de olhar, de cuidar,5 5 Essas experimentações não-verbais, essa habitação de silêncios podem também trazer consigo um desfazer-se do verbo da própria prática clínica, colocando-a em análise, desarticulando-a, por exemplo, da reificação de um modo de fazer que se tece pelo verbo e no verbo. Abrir espaço para se exercitar uma clínica que escuta com o corpo, com os pés, uma clínica do descaminho, da experimentação, preocupada com a abertura de corpos para novos sentidos e práticas, inclusive, do seu próprio caminho trilhado (PASSOS; BENEVIDES, 2006, p. 14). Em outros termos, escutar silêncios, do modo como proposto nesse artigo pode ser uma ferramenta fundamental à clínica, não como quem vai buscar, por detrás deles, encontrar o que se ver, mas como quem, por meio deles, cria contextos específicos e singulares para o encontro, para o acaso, para que os silêncios se deixem dizer e anunciar, talvez, novas palavras. fazendo "irromper uma convulsão de sentidos" (VILELA, 2010, p. 324).

No filme, "o silêncio existe como uma ferida no interior do movimento de uma história sem destino" (VILELA, 2010, p. 328). Uma mulher "irrompe" o silêncio daqueles homens, que, por sua vez, habitam seu próprio silêncio. Hanna, a protagonista, ao longo do desenrolar da trama, entra e desestabiliza, colocando em análise um território6 6 Nesse texto, território não diz respeito a um local geográfico, mas a um território existencial, um território cognitivo. Nesse sentido, por território masculino, entendemos um 'rosto' hegemônico de masculinidade veiculada em nossas sociedades capitalísticas contemporâneas. masculino, em que se veicula e se reifica uma dada imagem de masculinidade, por meio da qual os corpos tendem a se tecer acoplados. Tal imagem se tece articulada ao corpo-sexuado do homem heterossexual, viril, "encorpado", másculo, sadio, trabalhador, consumidor, cheio de cartões de crédito, com moradia fixa, provedor, pai, "chefe" de família, que controla e domina sua 'fêmea', que só ele a trai ou pode traí-la, que controla o uso que faz de drogas.

Uma vez que este texto está discutindo a constituição e a naturalização de uma determinada imagem de masculinidade, a qual produz silenciamentos, acreditamos ser importante dizer que entendemos gênero como uma norma regulatória fundamental do processo de feitura de corpos "normalizados", os quais se tecem acoplados à sequência corpo humano-sexo-genitália-gênero-sexualidade, materializando uma determinada e reta direção (im)posta por tal norma. Registre-se, ainda, que as normas regulatórias de gênero encontram-se inscritas no "dispositivo sexualidade", o qual funciona através de um conjunto heterogêneo de linhas de visibilidade e dizibilidade, por meio do qual naturaliza-se e reitera-se o dimorfismo sexual (homem vs. mulher) e a heterossexualidade (o único tipo pensável e possível de relação sexual, justificada pela reprodução), forjando um possível pré-estruturado para os corpos (FOUCAULT, 2001a). Daí falarmos que as normas regulatórias de gênero citam uma heterossexualidade compulsória, uma heteronorma, repetindo continuadamente que "somos o que nossas genitálias nos informam" (BENTO, 2006, p. 13), veiculando e naturalizando uma correspondência sem frestas entre gênero, sexualidade e corpo biológico. No entanto, pode-se dizer que corpos sempre (extra)vazam normas regulatórias e constituem-se como zonas conflitivas entre sujeição e subversão. Bem ali onde se escapa de tais normas, parece haver possibilidades de composição de outras formas de vida e de feitura de corpos, as quais se produzem sem quaisquer parâmetros, por meio de performances que não se deixam nominar. Experimentações do invivível na tessitura de corpos que, quem sabe, possam desfazer o modo gênero A ou B, possam desarranjar as divisões que os hierarquizam e abrirem-se à criação de um mundo para além dos códigos de gênero. Deslocamentos existem e persistem, subvertendo a paisagem corporal, genital, sexuada e generificada.

A fim de problematizar a naturalização de tal imagem de masculinidade, a partir daqui serão apresentados alguns esquetes do filme que tratam do encontro entre uma estranha figura feminina e um território masculino hegemonizado, borrando suas fronteiras.

1) Do silêncio-segredo

Uma conversa entre Hanna e um dos trabalhadores "revela" o segredo do acidente que a levou a trabalhar como enfermeira na plataforma de petróleo como cuidadora das graves queimaduras de Josef:

Dimitri: O homem que se atirou no fogo queria se matar. Josef tentou salvá-lo. Mas tudo aconteceu muito rapidamente. Nós todos vimos como ele se atirou no fogo. Não contamos tudo o que aconteceu para a empresa. Deixamos que acreditassem que foi um acidente. Aquele homem deixou mulher e dois filhos. Então, por que dizer a verdade? Eles que acreditem que foi um acidente. A família receberá mais dinheiro e lá no fundo, tudo é acidente.

No decorrer da trama, Hanna "descobre" que o homem do "acidente" cometeu suicídio porque havia sido traído por sua mulher com seu melhor amigo. Dupla traição, da fidelidade feminina e da "camaradagem" entre os homens, que põe em dúvida a imagem de masculinidade exposta anteriormente.

Faz-se um silêncio coletivo sobre um acontecimento que diz respeito a um grupo. Que diferença faria saber "a" verdade? Para quem? O silêncio sobre "a" "verdade" da causa da morte do trabalhador da plataforma? E no fundo tudo já não é desde sempre um acidente? Acidente de percurso... acidente geográfico? Um terreno acidentado... Novamente, camaradagem entre homens. Sobre a morte-suicídio, silencia-se, para, além de garantir o recebimento de indenização por parte de seus familiares, esses homens, seus colegas de trabalho, conseguirem suportar viver ali? Esse segredo coletivo parece aliviar a dor, fazer silenciar o julgamento pelo funcionamento de uma política da amizade. A pressão de ter que explicar, ter que justificar, ter que saber, entretanto, abrirá espaço para outros dizeres, outros saberes e até para a experimentação de outros sabores.

2) O silêncio-rotina ou sobre as férias-clichê

Na cena inicial, o chefe de Hanna na fábrica afirma, constrangido, a "compulsoriedade" de colocá-la 30 dias em férias. É uma funcionária exemplar, há quatro anos sem atrasos, folga ou férias e os(as) outros(as) funcionários(as) estão comentando esse assunto, além da pressão do sindicato. Para confortá-la (ou a si mesmo?), mostra-lhe folhetos de viagens turísticas e conta, com um ar meio melancólico, que ele mesmo está, há um tempo, planejando tirar férias, por isso, os tem guardado. Aqui parece que os dois não tiram férias por motivos distintos: ele, para garantir a posição de chefia e, com isso, a de "bom" homem, de um homem "de verdade", que, enquanto trabalha, sonha com as férias de folhetos: praias, piscinas com aeróbica, palmeiras. Hanna, por sua vez, não deseja férias, não deseja sair de seu possível plano pré-estruturado a fim de silenciar seu "passado" pela rotina. Mas esse desejo e esse não desejo se articulam em, pelo menos, um ponto: ambos parecem agarrar-se a um mundo pré-visto, seja pela rotina, seja pelas férias-clichê.

3) Do silencioso desejo transgressor da heteronorma

Scott e Liam, os funcionários da sala de máquinas, dois homens casados com mulheres e filhos, vivem entre si uma relação homoerótica.7 7 Com base na perspectiva foucaultiana (FOUCAULT, 2001a), usa-se o termo "erótica" no sentido de desnaturalização do "dispositivo sexualidade". Do mesmo modo, utiliza-se a concepção "homoerótica" na direção de problematizar a essencialização da concepção "(homo)sexualidade", por meio da qual práticas que se situam fora do registro da heteronorma tendem a ser traduzidas como desvio, anormalidade, como doença (homossexualismo). Numa cena em que Hanna está passando pelo corredor, Liam a chama e mostra a ela uma foto de sua família.

Liam: Crianças são o máximo, não acha? Scott tem dois filhos. A vida é estranha.

Hanna: É. Muito.

Em uma outra cena, Scott e Liam estão de mãos dadas, dançando tal e qual crianças na chuva, o que nos faz lembrar da força disruptiva das águas salgadas cantada por Marisa Monte, Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes (2000):

Água também é mar/ E aqui na praia também é margem/ Já que não é urgente/ Aguente e sente aguarde o temporal// Chuva também é água do mar lavada/ o céu imagem/ Há que tirar o sapato e pisar/ Com tato nesse litoral// Gire a torneira, perigas ver/ Inunda o mundo, o barco é você// Na distância, há de sonhar/ Há de estancar/ gotas tantas não demora/ Sede estranha.

4) Do silêncio-culpa ou Josef e a mancha na "camaradagem" masculina

Josef: Há certas coisas que não devemos fazer. [...] Não devemos nos apaixonar pela mulher do nosso melhor amigo. E, acima de tudo, não devemos contar ao nosso melhor amigo.

[...]

Josef: Cora ['falso'8 8 "Eu falso da minha vida o que quiser" (MOSKA, 2001). nome que Hanna assumira ao cuidá-lo], como alguém vive com o que aconteceu? Com as consequências? Como alguém vive com os mortos?

Hanna: Não sei. Terá que seguir em frente, eu acho. Todos continuam tocando a vida de algum modo. Ou não. Alguns não conseguem.

5) Do silêncio perturbador

Os diálogos, ou as tentativas de se ter um diálogo com Hanna, são sempre iniciadas pelos homens. Eles parecem incomodados com tantos silêncios. O silêncio de Hanna não é como o que costuma ser solicitado e experienciado pelas mulheres, a saber, um silêncio acomodado, resignado. Vê-se resistência no silêncio de Hanna. Seu silêncio perturba esses homens. Incomoda mais ainda a virtualidade de suas palavras e a força que elas têm quando tomam forma. A respeito da força de palavras que brotam do silêncio povoado de Hanna, destacamos aqui fragmentos de conversa de Victor com Hanna e, posteriormente, do médico com Hanna:

Victor: Você quer ver a lista de remédio que o médico passou?

Hanna: Se o médico disse que sim, está OK.

Victor: São hierarquias diferentes, certo? Se vem lá de cima... é a pirâmide do poder.

Médico: Já cuidou de pessoas com queimaduras antes?

Hanna: Trabalhei em uma unidade de recuperação de queimaduras.

Médico: Você já trabalhou em um hospital neste país?

Hanna: Não. Isso é muito importante? Uma fratura é uma fratura, uma queimadura é uma queimadura, aqui e em qualquer lugar. Devo controlar a temperatura dele, administrar analgésicos, ajudá-lo a urinar, limpá-lo. Já fiz isso antes com pacientes em estado bem mais grave que o dele. Se ele piorar muito, ligo para você, eu suponho.

Médico: [constrangido] Claro, claro. Desculpe. Minha esposa também é estrangeira, ela é colombiana [pigarro na garganta]. [...] Não quero que você pense que sou preconceituoso. Sério, não sou esse tipo de pessoa.

Hanna: Talvez você não seja, mas eu sou!

Além de desestabilizar a ideia de um silêncio-submissão feminina, o filme rompe com o estereótipo de que as mulheres falam sempre mais do que os homens, para não dizer que falam demais. Piadas, conversas informais, diversas imagens midiáticas informam sobre essa "diferença" naturalizada entre homens e mulheres. Quando uma norma como essa é desestabilizada, algo mais pode ser perturbardo...

Admitir ser preconceituosa num mundo do "politicamente correto" tende a beirar a ousadia. O preconceito de Hanna parece não ser construído por meio de abstrações, suposições universalizantes. Seu preconceito declarado parece aludir às violências que sofreu em tempos de guerra na Bósnia, violências perpetradas por homens estrangeiros, paramilitares, quando seu país estava em guerra. Agora, ela é a estrangeira na mesma língua dos homens que lhe torturaram.

A língua, o sotaque, o peso de ser estrangeira em mais de um sentido – estrangeira de nacionalidade, de gênero (única mulher entre homens), estrangeira na sua própria língua e na língua desses homens, estrangeira de sua existência, estranha a si mesma, ao que lhe aconteceu, estranhando o que lhe está acontecendo, habitante da fronteira entre sua história e a história que em alto-mar vai-se escrevendo, pondo-a em devir. Estrangeira para além de marcas identitárias, algo que irrompe na cena instituída e perturba lugares dados, convidando territórios existenciais, inclusive o seu, a diferir, a mover-se.

6) Do silêncio-medo e do silêncio-vergonha

Aqui, discutiremos o silenciamento individualizante dos estupros como arma de guerra. Mais do que isso, queremos falar dessa tortura perpetrada ao corpo de mulheres para além dos tempos de guerra, nas guerras machistas cotidianas. "A tortura não quer 'fazer' falar, ela quer calar, e é justamente essa a terrível situação: por meio da dor, da humilhação e da degradação, tentam transformar-nos em coisa, em objeto" (COIMBRA, 2009, p. 28). "Fazer calar e esquecer" (COIMBRA; BRASIL, 2009, p. 54).

Hanna, sem ares confessionais, urra seu silêncio para Josef. Através da personagem Cora, uma de suas múltiplas almas, narra o que lhe aconteceu durante a guerra dos Balcãs. Ela foi presa num hotel onde foi violentada (estuprada, surrada, esfaqueada, sangrada, xingada):

Hanna: Eles [...] nos levaram para um hotel. [...] Os soldados eram nossos. Eram soldados que falavam como eu, falavam a minha língua. Alguns deles tinham só dezoito anos. Lembro do dia em que as tropas da ONU chegaram e achamos que eles iam nos tirar de lá. Não. Vozes como a sua, Josef, falando como você. Eu me lembro de que um deles se desculpava o tempo todo. Ele se desculpava enquanto ria. Imagine que eles nos estupravam várias vezes e surravam nossos ouvidos para que só nós ouvíssemos: "desculpe, sinto muito, perdoe-me". Éramos 15 mulheres, às vezes mais, mas nós sabíamos que, quando a comida acabasse, eles matariam algumas de nós. Fizeram uma mulher matar a filha [...] dizendo algo como: "agora você não vai mais ser avó" [...].

Nahoum-Grappe (2004, p. 15-16) analisa "a prática dos estupros sistemáticos e coletivos acompanhados de sivícias e assassinatos de mulheres e meninas, enclausuradas com esta finalidade em apartamentos, casas e hotéis" como fazendo parte de um "programa de limpeza étnica". Segundo a autora, os estupros eram praticados, sobretudo, por grupos paramilitares que compõem "o conjunto do dispositivo militar e têm, na prática, um papel preciso que é sempre o mesmo: estão na linha de frente da limpeza propriamente dita, aterrorizam as populações civis com os primeiros massacres, os estupros e as torturas, e roubam, sistematicamente, os bens das vítimas". Estupros, "uma arma de guerra adequada contra o inimigo feminino" (NAHOUM-GRAPPE, 2004, p. 18).

Na trama de uma cultura de virilidade agressiva, como a da Bósnia em tempos de guerra, que restringe "a definição do feminino à sua história sexual e que, ao mesmo tempo, nega toda capacidade de transmissão de identidade autônoma a sua descendência (que herda, portanto, do pai o nome e a identidade 'étnica'), a violação é o pior crime que se pode imaginar contra uma mulher" (NAHOUM-GRAPPE, 2004, p. 23). Via estupro, acontece, então, "um assassinato de gênero que pode poupar a vida da vítima" (NAHOUM-GRAPPE, 2004, p. 23). Aquelas mulheres que, por um acaso do destino, conseguiram viver para contar, como coloca a orientadora de Hanna, "se envergonham de ter sobrevivido. [...] E essa vergonha que é maior que a dor, que é maior que qualquer coisa, pode durar pra sempre".

Também discutindo a tortura como prática de guerra, Cecília Coimbra (2009, p. 29-30) relata o que sofreu quando, prisioneira da ditadura militar brasileira, a fizeram crer, numa madrugada, que seria "[...] desovada' como num 'trabalho' do Esquadrão da Morte...Acredito...Naquele momento morro um pouco...em silêncio, aterrorizada". Silêncios que são facilmente esquecidos, silenciamentos produzidos pela memória oficial e, assim, as práticas dos estupros maciços são excluídas "da memória histórica, sempre construída então pelos assassinos quando se tornam vencedores" (NAHOUM-GRAPPE, 2004, p. 20).

Ao desejar enunciar esses silêncios calados, estamos, pois, falando da produção e potencialização de uma (contra)memória coletiva que resiste à versão dos vencedores: "parece que foi ontem...Esta e muitas histórias continuam em nós marcadas a ferro e fogo...Fazem parte de nossas vidas...Falar delas é ainda duro e difícil demais...Parece realmente que foi ontem, hoje, agora...Envolve-nos desde então na luta contra a ditadura de corpo e alma" (COIMBRA, 2009, p. 30).

Knijnik (2009, p. 64), inspirando-se em Gagnebin, afirma que a privação de palavra, as diferentes estratégias de silenciamento são estratégias de aniquilamento. Daí a importância do testemunho, que "diferentemente de outras formas de relatar, não almeja sustentar uma verdade reveladora, permite coexistências". Nesse sentido, o testemunho de Hanna, como o de Coimbra, "não resulta da ação de um sujeito. É derivado de um encontro, corte ou acontecimento, é impessoal e tem a experiência como condição". Foi o encontro com Josef que gerou condições para que a fala testemunhal de Hanna acontecesse, em relatos que não seguem uma direção retilínea. "Nessa modalidade histórica, passado, presente ou futuro não fazem parte da natureza das coisas, não são estados eternos, mas condições transitórias"... Parece que foi ontem, hoje, agora... Parece que foi comigo, com você, conosco, com todas nós.

Parece que foi com todas nós. Nesta afirmação reside um perigo político, ou melhor, o perigo da política deixar de existir, pelo apagamento da singularidade do acontecimento "mulheres massacradas na Guerra da Bósnia" tal como Hanna o foi, incluindo essas mesmas mulheres numa humanidade consensualizada e mundializada ou, o que dá no mesmo, na categoria identitária, universalizada e naturalizada "mulheres". Assim, atrelando-nos a esse tipo de pensamento, nos manteríamos no terreno da vitimização. Sobre isso, aponta Rancière (1996, p. 135):

O agir político encontra-se hoje preso entre as tenazes das polícias estatais da gestão e da polícia mundial do humanitário. De um lado, as lógicas dos sistemas consensuais apagam as marcas da aparência, do erro na contagem e do litígio político. Do outro, convocam a política expulsa de seus locais a se estabelecer no terreno de uma mundialidade do humano, que é mundialidade da vítima, definição de um sentido de mundo e de uma comunidade de humanidade a partir da figura da vítima. De um lado, elas remetem o colocar em comum da contagem dos incontados à enumeração dos grupos sociais passíveis de apresentar uma identidade: [...] de sexo, de religião, de raça ou de cultura. Do outro, elas a mundializam, elas a exilam nos desertos do pertencimento nu da humanidade a si mesma.

A partir da argumentação de Rancière (1996), indo na contramão da mundialização de um político que, assim, se esvazia, podemos afirmar a necessidade de instauração de um vínculo político feito não de uma identificação com as vítimas, mas de uma desidentificação em relação ao "sujeito" humano, homem, que fala inglês, globalizado, consumidor, heterossexual, viril, macho provedor, pai de família, dono de si e do mundo. Este "sujeito" ganha contornos singulares em locais singulares, ele é contingente e imanente. Desidentificar esse sujeito que havia massacrado essas mulheres e as subtraído a toda contagem. Desse modo, sem sair do solo político para um consensual-policial, negar-se-ia uma suposta Humanidade, com "h" maiúsculo, negação esta construída na afirmação local e singular de um litígio político: "uma comunidade política não é a atualização da essência comum ou da essência do comum. É a comunhão do que não está dado como em-comum. [...] É nessa construção que a humanidade comum se manifesta e faz efeito" (RANCIÈRE, 1996, p. 136-137).

Existem várias formas de narrar a história. Ao falar do que se viveu, ao ativar uma memória que é coletiva, localizada, contingente, tem-se a possibilidade de teimar pela produção de outras maneiras de ser, outras sensibilidades. "Acreditávamos...Sim, queríamos um outro mundo, outras relações, outras possibilidades....e queremos hoje" (RANCIÈRE, 1996, p. 30). É essa teimosia que encarnamos quando falamos da tortura de mulheres – mulheres singulares, em lugares singulares – em tempos de "guerra" distintos: para, problematizar a narração oficial, que ignora, "desfigura e distorce os embates dos 'vencidos', como se estes não estivessem presentes no cenário político" (COIMBRA; SILVA, 2009, p. 43).

7) Do encontro-alimento

No filme, Hanna trabalha, come sempre frango, arroz e maçãs, lava sempre as mãos com o mesmo sabão, vive solitária numa espécie de necessidade de ficar sozinha. Ao se ver obrigada a tirar férias, já na viagem, por acaso, Hanna se esbarra com a possibilidade de trabalhar como enfermeira numa plataforma de petróleo. Lá, ao compor seu pálido e desfigurado cotidiano com novos "rostos" masculinos, algo acontece. Lá, Hanna experimenta uma abertura na sua atenção e na sua cognição, uma fresta que não é recoberta por sua história passada. Lá, Hanna atualiza-se, "ela é em devir": parte da história e parte do atual (DELEUZE, 1996). Lá, ela exercita uma atenção e uma consciência presentes na experiência, desfocando seu "eu", desativando a atitude recognitiva. Ao fugir aos repetitivos registros de um Eu solitário, Hanna experimenta uma relação consigo que não dá lugar a lembranças, ao contrário, a dobra que ela faz sobre si mesma lhe possibilita sair de si, criando uma memória atual.

Ao entrar com Victor de volta no helicóptero que lhe levara até a plataforma, uma voz povoa seu silêncio e sua solidão:

Aonde vão? Isso realmente importa? Você acha que ela se importa de sobrevoar cinquenta mil toneladas de aço atingidos por vinte e oito mil ondas por dia, às vezes mais? Matar o tempo antes que ele mate você. Isso é tudo? Ondas e mais ondas. Isso é tudo? Ondas, nunca há duas iguais.

Hanna. Isso é tudo? Não. Isso não é tudo. Como as ondas, nunca há duas iguais. Ao experimentar uma atenção que encontra novos elementos afetivos que lhes "habitavam num plano pré-egóico ou pré-reflexivo" (KASTRUP, 2008, p. 172), Hanna experimenta um devir-consciente, encarnando algo que lhe habitava virtualmente, e que, agora, lhe permite saborear um devir-Cora. A palavra "saborear" não está aí em vão. Como indica Isabel Coixet, a comida é a porta pela qual Hanna vai se abrindo, é a porta de entrada para a expansão de sua atenção e cognição, como podem indicar dois fragmentos apresentados abaixo:

Josef: Que tipo de comida você gosta Cora?

Hanna: Eu gosto de frango.

Josef: Aleluia. É a primeira informação que você me dá fora dizer que você é ruiva, o que eu duvido. Continue, agora estou empolgado. Frango? O quê mais?

Hanna: Arroz branco e maçãs.

Josef: Continue.

Hanna: Mais nada.

Josef: Mais nada? Você só come isso? Qual é? Não gosta de chocolate? Não tem queda por chocolate com coco? Amendoim torrado com mel? Semente de girassol? Sorvete de gengibre com lechia? Qual é Cora? Vamos! E lasanha de espinafre? Cordeiro ao curry com passas e tâmaras? Meu Deus, o que há com você Cora? Sob que tipo de rocha você se esconde?

Hanna sai do quarto onde se encontra Josef, senta na escada e prova do nhoque, do sorvete (mascarpone). Depois disso, ela aparece comendo com os homens da plataforma sobre a mesa da cozinha. Alguns deles reclamavam do cardápio do dia, suflê de queijo, o que gerou uma discussão interrompida pela seguinte frase de Hanna: "acho que é a melhor comida que eu já comi em toda a minha vida". E, quando retorna para a fábrica, no horário da refeição, ela abre seu vasilhame e, ao invés de frango e arroz, se encontra o quê? Suflê de queijo.

Saliente-se ainda aqui o tema do "cuidado". Hanna cuida de Josef de uma outra forma que não aquela, em geral, esperada de um cuidado supostamente feminino. Hanna cuida de um outro jeito. Ela não é "maternal", nem é "sedutora" nos sentidos comumente atribuídos a esses adjetivos. Hanna também não veste jalecos mentais nem se cola às formas preestabelecidas dos especialismos, tampouco fundamenta seus cuidados em manuais, ou restringe seu fazer a procedimentos homogeneizantes e tecnicistas. Hanna realiza um cuidado estrangeiro, situado para além de normas regulatórias do gênero, para além das normalizações e universalizações requeridas pelos saberes e fazeres biomédicos. A relação que Hanna estabelece com Josef não está nem no registro da sedução, nem no de mãe, ou do técnico, tampouco no da moral. Ela não cuida para salvar o outro, nem para se salvar. O cuidado aqui não entra no registro do controle e da tutela (como aponta Cecília Coimbra,9 9 Fala de Cecília Coimbra em palestra intitulada "Práticas Psi e Subjetividades Punitivas" promovida pelo Conselho Regional de Psicologia RS, realizada em Porto Alegre, no dia 22 de setembro de 2010. em nome do cuidado e da proteção, costumam operar formas de controle e tutela). Hanna desenha um jeito de cuidar outro, que não subjuga, não submete, que não se deixa subjugar. A relação entre Hanna e Josef é construída no deslocamento de ambos, fora do registro de identidades institucionais e profissionais, num entre-lugares, onde já não é possível ser o que se era. Não há uma base, um protocolo para esse cuidado e para essa relação. Ela é da ordem do inusitado.

DAS SOLIDÕES E DOS SILÊNCIOS POVOADOS

Lá no fundo, há tão pouco. Milhões e milhões de toneladas de água, pedras e gás. Afeição. Sangue. Cem minutos. Mil anos. Cinzas. Luz. Agora. Este agora...há algum tempo. Eu já te disse antes, não disse? Há muito poucas coisas: silêncio e palavras (A VIDA secreta das palavras, 2005).

Ao olhar e refletir com o filme A vida secreta das palavras, a tentativa é a de construir um território de habitação político-ética, não como quem quer logo encontrar palavras que, tagarelando silêncios e emudecendo solidões, estanquem o sofrimento da experimentação do fluxo do mundo, das vidas do fora num corpo, mas como quem quer escavar o desgaste, a dor, o disparate, fazendo emergir o acontecimento que, no limiar de seu instante, solicita um sentido, transforma uma vida, tece uma subjetivação, abre um corpo (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011). Buscar por essas experiências-limite vividas na carne sem palavras: eis uma tarefa fundamental, quando se quer por meio de práticas de pesquisa, de análise de imagens ou mesmo clínicas, habitar silêncios e povoar solidões.

"Como alguém vive com o que aconteceu? Com as conseqüências? Como alguém vive com os mortos?" Neste momento em que encaminhamos para a finalização do texto, as perguntas feitas por Josef retornam e fazem eco. Elas parecem falar da possibilidade de adoção de políticas cognitivas diversas: uma ressentida, fincada em imagens mnésicas preexistentes e uma ativa, aberta ao devir, à invenção e, nesse sentido, ao esquecimento. Não àquele esquecimento passivo do qual falávamos anteriormente, perpetrado aos nossos corpos, aos corpos de nossos ancestrais, às nossas memórias silenciadas pela história oficial, como "'uma ignorância sabiamente mantida', ainda que sejam realizadas ações. Mas ações que omitem o acontecimento e que são construídas para 'virar a página" (COIMBRA; BRASIL, 2009, p. 54). Ao contrário, estamos falando de um esquecimento ativo, no sentido nietzscheano: "experimentar e elaborar a experiência de forma coletiva, o que implica em reconhecer o acontecimento, coletivizá-lo" (COIMBRA; BRASIL, 2009, p. 54), resistir "re-existindo" coletivamente.

As palavras inundadas-povoadas por silêncios podem movimentar-se, deixar de ser letras mortas, assim como a consciência não é só reflexão. Há uma virtualidade nas palavras e na consciência. Com o filme, se aprende a prestar atenção às palavras mudas. São elas que trazem a potência de instaurar um devir da consciência:

não nos estimamos mais o bastante, quando nos comunicamos. Nossas experiências mais fundamentais não são, de forma alguma, tagarelas. Elas não saberiam se comunicar, mesmo que quisessem. É que lhes falta a palavra. Aquilo para que encontramos palavras, já ultrapassamos (NIETZSCHE, 1978, p. 339).

Nesses tempos em que se proliferam e se acumulam imagens e ideias como palavras de ordem, o filme "anuncia uma poética do silêncio. Aí, o olhar é uma abertura táctil ao mundo, uma forma de respiração" (VILELA, 2010, p. 335). Respirar o (em) silêncio para não sufocar na tagarelice de palavras que, de tão repletas de sentidos (únicos), esvaem os sentidos. E o desejo aqui é o de inventar. Inventar sentidos sentindo. O silêncio das palavras, seu segredo (que aqui não significa um suposto não-dito que se encontra por detrás delas), há vida secreta nas palavras, há vida secreta no silêncio, há solidões e silêncios que são povoados.

Como diria Lispector (1993, p. 32), "minha força está na solidão". Mas de que solidão estaríamos falando? Essa pergunta nos convida a pensar em uma das cenas finais, na qual Hanna e Josef se encontram na saída da fábrica em que ela trabalha. Ela caminha, parecendo querer evitá-lo. Ele a segue com o convite para que os dois fiquem juntos, ao que ela responde que não poderia:

Hanna: Um dia, não hoje ou amanhã, eu começaria e não pararia mais, encheria o quarto de lágrimas e nos afogaríamos [...].

Josef: Eu aprenderia a nadar.

Os dois olham-se, aproximam-se e se beijam. O plano da cena se abre e, com ele, enxergamos, atrás de Hanna, de um corpo massacrado pela guerra, destroços de uma construção; e, atrás de Josef, de um corpo ferido em alto-mar, destroços de um navio. Vemos acontecer, por entre as solidões de ambos, a força do encontro, da composição entre corpos num terreno baldio situado na frente da fábrica, um deserto, uma área lisa, que dá passagem ao povoamento de solidões, bem ali onde se escuta o segredo das palavras, bem ali onde corpo e linguagem vibram, bem ali onde se experimenta uma poética, uma erótica do silêncio:

O senhor sabe o que silêncio é? É a gente mesmo, demais. Vivendo se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas. A gente sabe mais, de um homem, é o que ele esconde. A gente só sabe bem aquilo que não entende. Amor é a gente querendo achar o que é da gente (GUIMARÃES ROSA, 1986[1956], p. 37).

NOTAS

Recebido em: 17 de fevereiro de 2011

Aceito em: 15 de maio de 2013

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  • 1
    Sobre a escrita butleriana, afirma Salih (2012, p. 11): "Ao ler os textos de Butler, notamos que fazer perguntas é o seu estilo preferido, mas apenas muito raramente ela lhes dá resposta. Às vezes, essa tendência de enfileirar uma questão atrás de outra pode parecer desconcertante, mas não se trata propriamente de um defeito estilístico, mas de entender a escrita como um processo no qual a origem e o fim são rejeitados como sendo opressivamente – e talvez mesmo violentamente – lineares ou 'teleológicos' (isto é, movendo-se em direção a um fim ou a um resultado final)".
  • 2
    Em Guattari e Rolnik (2000, p. 15), Guattari acrescenta o sufixo "ístico" ao termo capitalista, para englobar não somente sociedades qualificadas como capitalistas, mas que vivem "uma espécie de dependência e contradependência do capitalismo". Para ele, em tais sociedades, também funciona uma forma de poder indexada na economia subjetiva, ou seja, centrada na tomada de poder sobre os modos de produção de subjetividades.
  • 3
    Como indica Foucault (2004, p. 59), "é preciso aceitar introduzir a casualidade como categoria na produção dos acontecimentos. [...] introduzir na raiz mesma do pensamento o
    acaso, o
    descontínuo, e a
    materialidade". Ainda de acordo com o autor (FOUCAULT, 2001b), acontecimento refere-se a situações que produzem uma inversão no arranjo de forças vigente; é quando algo emerge, desestabilizando paisagens instituídas, afetando uma quantidade considerável de corpos e produzindo algo absolutamente imprevisível no interior do plano. Daí Foucault associar acontecimento a novidade, a contrafluxo. Marcar acontecimentos diz respeito, assim, a espreitar emergências, rupturas, fazendo surgir, no estrato histórico, uma singularidade.
  • 4
    Vidas do Fora: Habitantes do Silêncio é o título de livro publicado pela Editora UFRGS, em 2010, que reúne artigos acerca de vidas exiladas nos hospícios e outros silenciados. Os organizadores são Tânia Galli Fonseca e Luciano Bedin.
  • 5
    Essas experimentações não-verbais, essa habitação de silêncios podem também trazer consigo um desfazer-se do verbo da própria prática clínica, colocando-a em análise, desarticulando-a, por exemplo, da reificação de um modo de fazer que se tece pelo verbo e no verbo. Abrir espaço para se exercitar uma clínica que escuta com o corpo, com os pés, uma clínica do descaminho, da experimentação, preocupada com a abertura de corpos para novos sentidos e práticas, inclusive, do seu próprio caminho trilhado (PASSOS; BENEVIDES, 2006, p. 14). Em outros termos, escutar silêncios, do modo como proposto nesse artigo pode ser uma ferramenta fundamental à clínica, não como quem vai buscar, por detrás deles, encontrar o que se ver, mas como quem, por meio deles, cria contextos específicos e singulares para o encontro, para o acaso, para que os silêncios se deixem dizer e anunciar, talvez, novas palavras.
  • 6
    Nesse texto, território não diz respeito a um local geográfico, mas a um território existencial, um território cognitivo. Nesse sentido, por território masculino, entendemos um 'rosto' hegemônico de masculinidade veiculada em nossas sociedades capitalísticas contemporâneas.
  • 7
    Com base na perspectiva foucaultiana (FOUCAULT, 2001a), usa-se o termo "erótica" no sentido de desnaturalização do "dispositivo sexualidade". Do mesmo modo, utiliza-se a concepção "homoerótica" na direção de problematizar a essencialização da concepção "(homo)sexualidade", por meio da qual práticas que se situam fora do registro da heteronorma tendem a ser traduzidas como desvio, anormalidade, como doença (homossexualismo).
  • 8
    "Eu falso da minha vida o que quiser" (MOSKA, 2001).
  • 9
    Fala de Cecília Coimbra em palestra intitulada "Práticas Psi e Subjetividades Punitivas" promovida pelo Conselho Regional de Psicologia RS, realizada em Porto Alegre, no dia 22 de setembro de 2010.
  • *
    Endereço para correspondência: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Educação,Programa de Pós-Graduação em Educação/GEERGE. Avenida Paulo Gama. s/n. Prédio 12201 sala 511 Farroupilha, Porto Alegre, RS Brasil - CEP 90046-900.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      17 Fev 2011
    • Aceito
      15 Maio 2013
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