Acessibilidade / Reportar erro

Plantas alimentícias na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus, Amazônia Central

Food plants in Piagaçu-Purus Sustainable Development Reserve, Central Amazon

Resumo

A Amazônia é o berço de rica biodiversidade alimentícia ainda muito pouco estudada seja em âmbitos biológicos, nutricionais ou socioculturais. As comunidades tradicionais da região conhecem e manejam historicamente a floresta, preservando hábitos culturais e contribuindo para sua conservação. Neste trabalho, realizamos um levantamento de plantas alimentícias, formas de preparo e diferenças entre padrões sociais no conhecimento botânico através de listagens livres, turnês-guiadas e entrevistas semi-estruturadas. As 220 espécies identificadas e as variadas formas de consumo demonstram o imenso potencial das plantas alimentícias, nativas da Amazônia em maioria, para diversificação agrícola e de hábitos alimentares. As espécies levantadas devem gerar subsídios para novas pesquisas de valorização de plantas alimentícias nativas e da alimentação regionalizada. Os padrões de conhecimento entre grupos sociais distintos apontam para a importância das mulheres na incorporação do conhecimento de espécies silvestres na alimentação cotidiana e de sua valorização como integrante da cultura e como recurso para garantir a soberania alimentar.

Palavras chave:
formas de preparo; gênero; PANC; soberania alimentar

Abstract

The Amazon constitutes a cradle of rich food biodiversity still poorly know whether in biological, nutritional or socio-cultural scopes. Traditional communities know and manage the amazon forest historically, preserving their cultural habits and contributing to biodiversity conservation. In this study, we performed a survey of food plants, food processing and differences between social standards in botanical knowledge through free listings, walking-in-the-woods and semi-structured interviews. The 220 identified species and all different ways of consumption demonstrate the giant potential of food plants, native of the Amazon in majority, for diversification of agriculture systems and food habits. This list of species should subside new research on the appreciation of native food plants and regional food. Patterns of knowledge among distinct social groups point to the importance of women in the incorporation of wild species in daily food and its valorization as a part of the culture and as a resource to guarantee food sovereignty.

Key words:
food processing; gender; neglected food plants; food sovereignty

Introdução

O termo “plantas alimentícias” se refere a plantas que possuem uma ou mais partes que podem ser utilizadas na alimentação humana, incluindo assim plantas substitutas de sal, plantas edulcorantes, corantes, condimentos, temperos, como também bebidas, tonificantes ou infusões (Kinupp & Lorenzi 2014Kinupp VF & Lorenzi H (2014) Plantas alimentícias não convencionais (PANC) no Brasil: guia de identificação, aspectos nutricionais e receitas ilustradas. Plantarum, Nova Odessa. 768p.). Apesar de não serem conhecidos no Brasil muitos trabalhos sobre a porcentagem de plantas alimentícias nos diferentes ecossistemas, Kinupp (2007) comparando estudos em diferentes regiões, com levantamento de plantas úteis ou não, calcula que a porcentagem de plantas alimentícias em determinado ambiente aproxima-se a 21%. Mesmo com este intrigante número, 90% da alimentação humana é restrita a 20 espécies vegetais, independente do conhecimento milenar acumulado pelo convívio com as diferentes floras regionais do Brasil e do mundo (Kinupp 2007Kinupp VF (2007) Plantas alimentícias não-convencionais da região metropolitana de Porto Alegre, RS. Tese de Doutorado. Faculdade de Agronomia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 562p.). Estas espécies foram incorporadas nas mais diversas culturas, e continuam sendo, agora acompanhadas da industrialização dos alimentos, da mecanização agrícola, da globalização e homogeneização alimentar (Santilli 2009Santilli J (2009) Agrobiodiversidade e direitos dos agricultores. Petrópolis, São Paulo. 519p.).

Apesar dos esforços em estimar os números da imensa diversidade vegetal na Amazônia, existem lacunas no conhecimento e muitas áreas com escassas coletas botânicas (Hopkins 2007Hopkins MJG (2007) Modelling the known and unknown plant biodiversity of the Amazon Basin. Journal of Biogeography 34: 1400-1411.). Estão registradas atualmente 10.674 espécies de plantas com semente para a Amazônia brasileira, considerando restrições de ambientes e altitude (Cardoso et al. 2017Cardoso D, Särkinen T, Alexander S, Amorim SM, Bittrich V, Celis M, Daly D, Fiaschi P, Funk V, Giacomin L, Goldenberg R, Heiden G, Iganci J, Kelloff C, Knapp S, Lima H, Machado A, Santos R, Mello-Silva R, Michelangeli F, Mitchell J, Moonlight P, Moraes L, Mori S, Nunes T, Pennington T, Pirani J, Prance G, Queiroz L, Rapini A, Riina R, Rincon C, Roque N, Shimizu G, Sobral M, Stehmann J, Stevens W, Taylor C, Trovó M, van den Berg C, van der Werff H, Viana P, Zartman C & Forzza R (2017) Amazon plant diversity revealed by a taxonomically verified species list. Proceedings of the National Academy of Sciences 114: 10695-10700.). Com este número, sabidamente subestimado, e com o percentual de 21% de plantas com potencial alimentício, pode-se pressupor cerca de 2.200 plantas alimentícias na parte brasileira do bioma, ou seja, um mundo de plantas a ser conhecido e estudado nos seus âmbitos biológicos, agronômicos, nutricionais, culturais e sociais.

O acúmulo do conhecimento humano sobre a biodiversidade sofre influências diversas e se diferencia tanto entre culturas, como também entre grupos sociais que constituem uma mesma cultura (Godoy et al. 1998Godoy R, Brokaw N, Wilkie D, Colón D, Palermo A, Lye S & & Wei S (1998) Of trade and cognition: markets and the loss of folk knowledge among the Tawahka Indians of the Honduran rain forest. Journal of Anthropological Research 54: 219-233.; Benz et al. 2000Benz BF, Cevallos EJ, Santana MF, Rosales AJ & Graf MS (2000) Losing knowledge about plant use in the sierra de manantlan biosphere reserve, Mexico. Economic Botany 54: 183-191.; Pfeiffer & Butz 2005Pfeiffer JM & Butz RJ (2005) Assessing cultural and ecological variation in ethnobiological research: the importance of gender. Journal of Ethnobiology 25: 240-278.). O (re)conhecimento da biodiversidade alimentícia é o primeiro passo para a incorporação destas nos hábitos alimentares. Em um país onde a maior parte de alimentos consumidos, comercializados, cultivados e exportados é exótica, a agricultura é dependente de insumos químicos, apesar de uma imensa diversidade de plantas com potencial alimentício (Kinupp & Lorenzi 2014Kinupp VF & Lorenzi H (2014) Plantas alimentícias não convencionais (PANC) no Brasil: guia de identificação, aspectos nutricionais e receitas ilustradas. Plantarum, Nova Odessa. 768p.), conhecer e alimentar-se de alimentos regionais e produzidos localmente é um ato político.

Tendo em vista este cenário, objetivamos caracterizar as espécies de plantas alimentícias conhecidas por cinco comunidades ribeirinhas da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus (RDS-PP), relacionando este conhecimento botânico ao contexto social em que estão inseridas. Como objetivos específicos, destacam-se três principais (i) identificar as partes comestíveis, o ambiente de ocorrência, formas de preparo e usos tradicionais das plantas alimentícias conhecidas; (ii) identificar as plantas alimentícias culturalmente mais importantes (iii) identificar padrões de conhecimento entre grupos sociais - homens, mulheres e crianças e jovens.

Material e Métodos

Área de estudo

A Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus (RDS-PP) está localizada no baixo Purus, em áreas de interflúvios dos rios Purus-Madeira e Purus-Juruá. Criada pelo decreto 23.723, em 2003, conta com 834.245 ha. Sua rica biodiversidade, ainda escassamente conhecida pela ciência, é uma das justificativas na sua prioridade para a conservação (Instituto Piagaçu 201Instituto Piagaçu (org.) (2010) Plano de gestão da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus. Versão para consulta pública. Instituto Piagaçu, Manaus. 374p.0).

A maior parte da RDS-PP é caracterizada como floresta ombrófila densa aluvial e floresta ombrófila densa de terras baixas, sendo 45% de sua área ocupada por terrenos de várzea. O clima dominante na região é tropical chuvoso, com temperaturas constantemente altas (Instituto Piagaçu 2010Instituto Piagaçu (org.) (2010) Plano de gestão da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus. Versão para consulta pública. Instituto Piagaçu, Manaus. 374p.). Desde o início do século XX, populações não-indígenas foram atraídas para a ocupação da região do Purus para atuar na economia gomífera, mas também na pesca, sobretudo do pirarucu (Arapaima gigas) e na extração de castanha (Bertholletia excelsa Bonpl.). Estas últimas são, atualmente, os fatores mais importantes economicamente para as populações da região (Instituto Piagaçu 2010Instituto Piagaçu (org.) (2010) Plano de gestão da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus. Versão para consulta pública. Instituto Piagaçu, Manaus. 374p.).

A origem dos habitantes não-indígenas é de locais próximos à RDS-PP ou da calha do rio Purus, particularmente o alto rio Purus. Esta população, que usa diretamente a área da RDS-PP, gira em torno de 4.000 pessoas. Os principais problemas levantados pelos líderes comunitários no Plano de Gestão da RDS-PP relacionam-se a falta de merenda escolar e a falta de apoio à produção e comercialização de produtos, além da desvalorização dos produtos locais (Instituto Piagaçu 2010Instituto Piagaçu (org.) (2010) Plano de gestão da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus. Versão para consulta pública. Instituto Piagaçu, Manaus. 374p.).

Comunidades participantes

Foram convidadas cinco comunidades da região norte da RDS-PP para participar desta pesquisa (Fig. 1). Para que fosse possível obter uma diversidade maior de espécies vegetais e seus hábitats, optou-se por comunidades em ambientes tanto de várzea quanto de terra-firme, como também em situações intermediárias, onde os dois ambientes coexistem na vida dos comunitários.

Figura 1
Localização das cinco comunidades participantes na RDS Piagaçu-Purus, baixo Purus, Amazônia central.
Figure 1
Location of the five participating communities in the Piagaçu-Purus Sustainable Development Reserve, lower Purus river, central Amazon.

Aspectos éticos

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia com o CAAE de número 68477417.5.0000.0006. Código de cadastro no Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético: AC618FF. Ao final da pesquisa, foi realizada a devolutiva dos resultados em todas as comunidades participantes através de reuniões com debates, troca de sementes e receitas.

Plantas alimentícias conhecidas, formas de preparo e importância cultural

A pesquisa de campo foi realizada entre setembro de 2016 e novembro de 2017, totalizando 133 dias em campo distribuídos em quatro viagens. Foi realizada amostragem probabilística para seleção de participantes (Albuquerque et al. 2010Albuquerque UP, Lucena RFP & Neto EMFL (2010)Seleção dos participantes da pesquisa. In: Albuquerque UP, Lucena RFP & Cunha LVFC (orgs.) Métodos e técnicas na pesquisa etnobiológica e etnoecológica. NUPPEA, Recife. 559p.), e no mínimo 20% do total de casas de cada comunidade foi sorteado, onde todos os moradores presentes foram convidados a participar, na busca de contemplar todas as faixas etárias.

As plantas alimentícias conhecidas foram levantadas a partir de listagens livres com entrevistas semi-estruturadas associadas para identificar o local de ocorrência, a parte utilizada e as formas de preparo (Bernard 2006Bernard HR (2006) Research Methods in Anthropology. Qualitative and quantitative approachs. 4a ed. Walnut Creek, Altamira Press. 803p. ). As plantas mencionadas foram coletadas em turnês-guiadas (Alexiades 1996Alexiades MN (1996) Collecting ethnobotanical data: an introduction to basic concepts and techniques. In: Alexiades MN (ed.) Selected guidelines for ethnobotanical research: a field manual. New York Botanical Garden, Nova York. Pp. 54-93.) com especialistas locais e fotografadas na inviabilidade de coleta. As coletas foram identificadas cientificamente, herborizadas (Mori et al. 1989Mori SA, Silva LA & Coradin L (1989) Manual de manejo do Herbário Fanerógamo. Centro de Pesquisas do Cacau, Ilhéus. 45p.) e depositadas no herbário do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. A atualização nomenclatural e consulta da origem das espécies (nativa, cultivada ou naturalizada) foi realizada na Lista de Espécies da Flora do Brasil (Flora do Brasil 2018Flora do Brasil 2020 (em construção) 2018. Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://floradobrasil.jbrj.gov.br/>.
http://floradobrasil.jbrj.gov.br/...
) e em Tropicos (2018)Tropicos.org (2018) Missouri Botanical Garden. Disponível em <http://www.tropicos.org/Home.aspx/> Acesso em 19 de abril de 2017.
http://www.tropicos.org/Home.aspx/...
. Para identificação das plantas que possuem um valor cultural relevante foi considerado o Índice de Saliência Cognitiva (Sutrop 2001Sutrop U (2001) List Task and a cognitive salience index. Field Methods 13: 263-276. ), calculado de acordo com a fórmula: S = F /(MP.N), onde a saliência (S) é o resultado da frequência de citações de uma planta dividida pelo produto da posição média (MP) da planta nas listas em que foi mencionada com o número total de entrevistados (N).

Para este método, além da frequência de citações, a ordem em que o termo é lembrado no momento da listagem livre (a posição) também está relacionada com a importância cultural a ele atribuída. O cálculo do Índice de Saliência Cognitiva foi executado no programa R (R Development Core Team 2013R Development Core Team (2013) R: a language and environment for statistical computing. R foundation for statistical computing, Vienna. Disponível em <http://www.r-project.org> Acesso em 21 de março de 2017.
http://www.r-project.org...
).

Resultados e Discussão

Conhecimento de plantas alimentícias

Foram entrevistadas 195 pessoas em 78 famílias, entre 4 e 92 anos, dentre os quais 71 mulheres, 66 homens e 58 crianças e jovens (entre 4 e 18 anos). Foram registrados 275 nomes populares nas listagens. Destes, 61 não puderam ser coletados ou fotografados. Além das plantas citadas nas entrevistas, seis espécies foram mencionadas apenas nas turnês-guiadas. Assim, foram determinadas 220 espécies, distribuídas em 53 famílias (Tab. S1, disponibilizada no material suplementar <https://doi.org/10.6084/m9.figshare.12421100.v1>). As famílias mais representativas foram Arecaceae (21 espécies) seguidas de Fabaceae e Myrtaceae (20 cada), Rubiaceae (13), Malvaceae (10), Annonaceae e Sapotaceae (9 cada), Moraceae (8), Solanaceae e Cucurbitaceae (7 cada), Celastraceae (6), Melastomataceae, Chrysobalanaceae e Anacardiaceae (5 cada). As demais famílias são representadas por menos de cinco espécies.

A grande riqueza de espécies de palmeiras utilizadas como alimento por populações na Amazônia é constatada em diversos trabalhos (Araújo & Lopes 2012Araújo FR & Lopes MA (2012) Diversity of use and local knowledge of palms (Arecaceae) in eastern Amazonia. Biodiversity and Conservation 21: 487-501.; Rabelo 2012Rabelo A (2012) Frutos nativos da Amazônia comercializados nas feiras de Manaus. Editora Inpa, Manaus. 390p.; Ammann 2014Ammann S (2014) Etnobotânica de árvores e palmeiras em três comunidades ribeirinhas do Rio Jauaperi, na divisa entre Roraima e Amazonas. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Botânica do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, Manaus. 94p.; Chaves 2016Chaves MS (2016) Plantas alimentícias não convencionais em comunidades ribeirinhas na Amazônia. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Agroecologia da Universidade Federal de Viçosa, Viçosa. 108p.). Todas as espécies de palmeiras mencionadas são nativas, com exceção do coqueiro (Cocos nucifera L.), e apresentam importância nutricional, econômica e cultural para os povos da Amazônia. A riqueza de espécies encontrada para Fabaceae se deve, consideravelmente, ao gênero Inga, o qual é amplamente distribuído na Amazônia e possui diversas espécies são comestíveis. Resultados semelhantes são encontrados em Gonçalves (2017)Gonçalves GG (2017) Etnobotânica de plantas alimentícias em comunidades indígenas multiétnicas do baixo rio Uaupés - Amazonas. Tese de Doutorado. Faculdade de Ciências Agronômicas da Uiversidade de São Paulo, Botucatu. 193p., onde os ingás representam importante parcela no conhecimento botânico de comunidades indígenas multiétnicas no Amazonas, bem como Myrtaceae que apresenta inúmeras espécies de valor econômico e cultivadas em diferentes países. Com um número expressivo de espécies citadas, destaca-se o gênero Eugenia, popularmente chamados “araçás”, que frutificam em tempo de cheia nas florestas inundadas. Em tempos de seca, emergem ilhas de Eugenia inundata DC. que frutifica antes das águas subirem novamente e enganam a fome de pescadores, pescadoras e crianças. O gênero Psidium também é expressivo por reunir 182 citações para apenas três espécies: Psidium acutangulum DC; P. guajava L. e P. guineense Sw.; as conhecidas e apreciadas “goiabas”.

Do total de espécies identificadas, 54,55% são árvores, 18,64% são ervas, 9,55% são arbustos, 9,55% são palmeiras e 7,73% são lianas. A parte comestível mais citada foi o fruto, incluindo pseudofrutos (178 espécies fornecendo), seguida por folha (24 espécies), semente (16), órgão tuberoso (12), casca (5), palmito (4), látex (3) e flor (1), sendo que 19 espécies apresentaram mais de uma parte comestível. É esperado que em um ambiente caracterizado pela floresta haja uma predominância de culturas arbóreas, e além disso, Clement (1999)Clement CR (1999) 1492 and the loss of amazonian crop genetic resources. I. The relation between domestication and human population decline. I. Economic Botany 53: 188-202. alerta que esta predominância pode ser um artefato de abandono dos vegetais domesticados pelos indígenas anteriormente ao contato com os europeus em 1492, uma vez que cultivos anuais tendem a desaparecer mais rapidamente do que os perenes. Ainda, a discrepância numérica registrada tendendo o conhecimento de plantas alimentícias para árvores frutíferas pode indicar também hábitos culturais, que preterem o consumo de folhas, ervas e saladas (Katz et al. 2012Katz E, López CL, Fleury M, Miller RP, Payê V, Dias T, Silva F, Oliveira Z & Moreira E (2012) No greens in the forest? Note on the limited consumption of greens in the Amazon. Acta Societatis Botanicorum Poloniae 81: 283-293.).

O local mais expressivo de ocorrência das espécies alimentícias são as florestas inundadas (32,57%), o que pode determinar diferenças no consumo destas plantas conforme o regime hidrológico da região. Além das especificidades do período de frutificação das espécies, na estação da cheia, as várzeas e igapós são acessíveis enquanto que na seca ficam isoladas, e o acesso aos frutos destas espécies torna-se restrito (Fernandes 2012Fernandes RS (2012) Frutas, sementes e amêndoas silvestres alimentícias na comunidade indígena Tunuí-Cachoeira, AM. Tese de Doutorado. Programa de Pó-Graduação em Engenharia Florestal. Universidade Federal de Lavras, Lavras. 202p.). Esta lista de espécies (Tab. S1) pode fornecer subsídios para estudos bromatológicos de plantas alimentícias nativas da Amazônia, que são ainda muito raros, mas que se mostram promissores para salientar o potencial alimentício dessas plantas (Kinupp 2007Kinupp VF (2007) Plantas alimentícias não-convencionais da região metropolitana de Porto Alegre, RS. Tese de Doutorado. Faculdade de Agronomia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 562p.; Kinupp & Barros 2008Kinupp VF & Barros IBI (2008) Teores de proteína e minerais de espécies nativas, potenciais hortaliças e frutas. Ciência e Tecnologia de Alimentos 28: 846-857.).

Formas de consumo

Foram categorizadas 105 formas de preparo, de acordo com os usos mencionados pelos participantes. Estas formas de preparo foram agrupadas em 10 categorias de preparo: in natura, cozido, bebida, tempero, “vinho”, doce, fritura, assado, farinha e derivados, e óleo (Tab. 1). A categoria que se destaca no número de citações de uso é in natura, que reúne quase a metade do total de citações (46,20%). Em seguida, a categoria “cozido” recebeu 15,03% do total de citações de uso e reúne o maior número de formas de preparo (25). A importância do consumo de vegetais em sua forma natural, sem preparações elaboradas, é encontrada em diferentes comunidades tradicionais em regiões do país e do mundo, como relatado por Martins et al. (2005)Martins AG, Rosário DL, Barros MN & Jardim MAG (2005) Levantamento etnobotânico de plantas medicinais, alimentares e tóxicas da Ilha do Combu, Município de Belém, estado do Pará, Brasil. Revista Brasileira de Farmácia 86: 21-30.; Chaves & Barros (2008)Chaves EMF & Barros RFM (2008) Resource use of the flora of the brushwood vegetation in Cocal county Piauí, Brasil. Functional Ecosystems & Communities 2: 51-58.; Amaral & Neto (2008)Amaral C & Neto G (2008) Os quintais como espaços de conservação e cultivo de alimentos: um estudo na cidade de Rosário Oeste (Mato Grosso, Brasil). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Ciências Humanas 3: 329-341.; Kalle & Sõukand (2012)Kalle R & Sõukand R (2012) Historical ethnobotanical review of wild edible plants of Estonia (1770s-1960s). Acta Societatis Botanicorum Poloniae 81: 271-281.; Agea et al. (2013)Agea JG, Okia CA, Kimondo JM, Woiso DA, Obaa BB & Obua J (2013) Harvesting, preparation and preservation of commonly consumed wild and semi-wild food plants in Bunyoro-Kitara Kingdom, Uganda. International Journal of Medicinal and Aromatic Plants 3: 262-282.; Pereira et al. (2017)Pereira LS, Soldati GT, Duque-Brasil R, Coelho FMG & Schaefer CEGR (2017) Agrobiodiversidade em quintais como estratégia para soberania alimentar no semiárido norte mineiro. Ethnoscientia 2: 1-25; Leal et al. (2018)Leal ML, Alves RP & Hanazaki N (2018) Knowledge, use, and disuse of unconventional food plants. Journal of Ethnobiology and Ethnomedicine 14: 1-9..

Tabela 1
Categorias de preparo e formas de preparo das plantas alimentícias citadas pelos entrevistados das comunidades participantes nas listagens livres, RDS Piagaçu-Purus. F = Frequência relativa de citações de cada categoria, em porcentagem. N citações = 6328.
Table 1
Categories of preparation and ways of preparation of the mentioned food plants in the free lists, RDS Piagaçu-Purus. F = Relative frequency of citations of each category, in percentage. N citations = 6328.

Destacam-se como formas tradicionais de consumo, o látex de árvores de amapá (Brosimum spp.) ou de souva (Couma spp.) sob a forma de “arabu”, que consiste no látex batido com um garfo em um prato até que pare de gerar espuma, então acrescenta-se açúcar e farinha e come-se de colheradas (Fig. 2a). Assim como o mingau, descrito por Câmara Cascudo (2011)Cascudo LC (2011) História da alimentação no Brasil. 4a ed. Global, São Paulo. 972p. como uma das preparações mais vulgares, diárias e normais da culinária indígena, que pode ser preparado a partir de diversas espécies, em ordem decrescente de citações: banana, jerimum, milho, castanha, babaçu (Fig. 2b), cará, macaxeira, arroz e cará-de-espinho.

Figura 2
Formas tradicionais de consumo - a. arabu de amapá feita com o látex batido, açúcar e farinha; b. mingau de babaçu feito com a goma, após sete trocas de água; c. beiju, feito com a massa de mandioca “puba” (fermentada), castanha e sal; d. arubé, molho de pimenta feito com tucupi, massa de mandioca e pimentas.
Figure 2
Traditional ways of consumption - a. arabu of amapá made with beaten latex, sugar and flour; b. babassu porridge made with its gum, after seven water changes; c. beiju, made with “puba” (fermented) cassava, Brazil nut and salt; d. arubé, pepper sauce made with tucupi, manioc and peppers.

As demais categorias foram menos expressivas em número de citações. As “bebidas” incluem os sucos, vitaminadas, licores, o látex sob a forma de leite, normalmente adicionado ao café e os chás. Os chás representam apenas aqueles com fins alimentícios, consumidos como “substitutos do café”, foram desconsiderados aqueles mencionados exclusivamente para fins medicinais. A categoria “vinho” foi separada de “bebida” por se tratar de uma preparação tradicional, onde o líquido extraído, principalmente de Arecaceae, é mais grosso e consumido de forma diferente que uma simples bebida, usualmente com colher, com adição de farinha d’água ou de tapioca e açúcar.

As “farinhas e derivados”, apesar de pouco expressivos em número de citações, são importantes na cultura alimentar local, por ser a mandioca, a principal fonte de amido e consumida diariamente sob diferentes formas (Dufour et al. 2016Dufour DL, Piperata BA, Murrieta RSS, Wilson WM & Williams DD (2016) Amazonian foods and implications for human biology. Annals of Human Biology 43: 330-348.). Pode-se dizer que muitos povos da Amazônia são, historicamente, especialistas em processar a mandioca, e desta extrai-se diversos produtos, desde diferentes tipos de farinha, doces, beijus (Fig. 2c) tempero, caldos, polvilho, carimã (ou cruera) e goma. Os “fritinhos” são bolinhos fritos feitos ora das próprias farinhas e seus derivados como o polvilho, a goma, o carimã, a farinha de macaxeira, o milho moído, ora de banana madura ou imatura. A única espécie mencionada cujo preparo envolve extração de óleo da semente foi a castanha, e foi mencionado pelos moradores mais antigos o uso deste óleo para fritura de quitutes em um passado recente.

Os “temperos” incluem os condimentos acrescentados nas panelas e pratos. São principalmente sob esta forma que são consumidas as folhas de herbáceas como cebola-palha (Allium fistulosum L.), cheiro-verde (Coriandrum sativum L.), chicória (Eryngium foetidum L.), cominho (Pectis brevipedunculata (Gardner) Sch.Bip.), couve (Brassica oleracea var. acephala L.), jambu (Acmella ciliata (Kunth) Cass.) e manjericão (Ocimum basilicum L.). Dentre os temperos também estão as diversas variedades de pimenta, o urucum (Bixa orellana L.) usado no coloral caseiro e produtos da mandioca como o tucupi e o arubé (Fig. 2d), um molho de pimenta feito com massa de mandioca, sal e pimentas. Acredita-se que o arubé seja um dos primeiros molhos do Brasil (Cascudo 2011Cascudo LC (2011) História da alimentação no Brasil. 4a ed. Global, São Paulo. 972p.), autêntico, nativo, e atualmente negligenciado.

Os “assados” são as preparações levadas diretamente ao fogo a lenha ou ao forno, e inclui o pé-de-moleque, tradicional receita feita de farinha de mandioca e castanha, além de bolos e tubérculos, como o cará-do-ar (Dioscorea bulbifera L.), apreciado durante as torrações de farinha. Dentre os doces, destacam-se a paçoca de castanha de caju e a cocada de castanha. Doces em calda eram preparados cozinhando tubérculos, como o cará ou macaxeira, na garapa da cana em um passado recente.

Importância cultural das plantas mencionadas

Dentre os 275 nomes citados como plantas alimentícias nas cinco comunidades, os dez mais salientes cognitivamente estão distribuídos entre os diferentes ambientes, com exceção do mercado: florestas (3), roçado (2), sítio (4) e canteiro (1) (Tab. 2). O termo “florestas” inclui florestas inundáveis e de terra-firme distantes e pouco manejadas; os roçados são os espaços de plantio direto, normalmente distantes do núcleo de residências; os sítios são as áreas comuns da comunidade, onde as casas são construídas e árvores frutíferas são plantadas ou poupadas; e os canteiros são as hortas, onde são cultivadas, diretamente no chão, em caixas ou em canoas antigas, plantas herbáceas de uso constante na culinária ou na medicina.

Tabela 2
As dez plantas com maior e menor índice de saliência cognitica (ISC) mencionadas pelos menos cinco vezes nas listagens livre realizadas nas cinco comunidades da RDS Piagaçu-Purus participantes. Classificação no ordenamento do ISC, nome popular, local de ocorrência (Local), Origem, número das listagens em que a planta ocorre (F), posição média da planta nas listagens em que ocorre (MP) e índice de saliência cognitiva (ISC). N=195.
Table 2
Top ten plants with higher and lower cognitive salience index (ISC) mentioned at least five times in the free lists performed in the five participant communities of the RDS Piagaçu-Purus. ISC ranking, popular name, place of occurrence (Local), Origin, number of lists in which the plant occurs (F), average position of the plant in the lists (MP) and cognitive salience index (ISC). N = 195.

Das dez plantas mais salientes cognitivamente, apenas três são cultivadas, sendo seis nativas da Amazônia e apenas uma classificada como naturalizada. Estes dados apontam para uma íntima relação das comunidades com o entorno, e com espécies adaptadas à região. A planta mais saliente cognitivamente é a goiaba (Psidium guajava L.), seguida da banana (Musa x paradisiaca L.), ambas as espécies cultivadas e consumidas por todas as faixas etárias, o que pode ter determinado a importância destas. O açaí (Euterpe spp.) e uixi (Endopleura uchi (Huber) Cuatrec.) aparecem em seguida como plantas importantes, ambos frutos regionais muito consumidos e apreciados, nos meses que frutificam.

Dentre as dez plantas com índice de saliência mais baixos, e que foram mencionadas pelo menos por cinco entrevistados, seis são das florestas (Fig. 3). Pode-se dizer que estas são algumas das plantas alimentícias não convencionais (PANC) das comunidades participantes (Kinupp & Lorenzi 2014Kinupp VF & Lorenzi H (2014) Plantas alimentícias não convencionais (PANC) no Brasil: guia de identificação, aspectos nutricionais e receitas ilustradas. Plantarum, Nova Odessa. 768p.). Pouco conhecidas e provavelmente pouco consumidas, são plantas menos acessíveis de uma maneira geral. A copaíba (Copaifera spp.) é a que apresentou menor índice de saliência cognitiva. Apesar de ser importante medicinalmente, poucos afirmaram consumir o chá da casca como alimento na merenda em substituição ao café. O jambu, em seguida, é um dos menos salientes, apesar de consumido em pratos típicos da Região Norte do país, com apelo comercial, é pouco utilizado nas comunidades como planta alimentícia, e as suas formas de consumo são pouco conhecidas. O jambu é um exemplo de como uma planta alimentícia pode ser tradicional sem que seja convencional.

Figura 3
Plantas silvestres com menores índices de saliência cognitiva com pelo menos cinco citações - a. pepino-do-mato (Ambelania acida Aubl.); b. araumari (Humiriastrum sp.nov.); c. amapá (Brosimum sp.); d. mata-fome (Paullinia clathrata Radlk.).
Figure 3
Wild plants with lower rates of cognitive salience index mentioned at least five times - a. "pepino-do-mato" (Ambelania acida Aubl.); b. "araumari" (Humiriastrum sp.nov.); c. "amapá" (Brosimum sp.); d. "mata-fome" (Paullinia clathrata Radlk.).

As plantas mais salientes na vida destas comunidades são cultivadas, oriundas da agrobiodiversidade, e as nativas presentes nas florestas são menos frequentes, menos conhecidas e, consequentemente, menos consumidas. As plantas silvestres, por alguns autores descritas como plantas emergenciais ou famine foods podem ser importantes alimentos em momentos de escassez ou durante as caminhadas na floresta e atividades de caça, pesca e trabalho na roça. Guinand & Lemessa (2001)Guinand Y & Lemessa D (2001) Wild-food plants in Ethiopia: reflections on the role of wild foods and famine foods at a time of drought. In: The potential of indigenous wild foods. Kenyatta C & Henderson A. USAID/OFDA, CRS, Southern Sudan. 85p. definem estas plantas emergenciais como aquelas pouco consumidas devido à sua sazonalidade e limitada disponibilidade, tabus locais, natureza ofensiva da planta, certas características desagradáveis e/ou efeitos colaterais.

É recorrente trabalhos mencionarem a desvalorização dos alimentos vegetais silvestres por associarem estes a “comidas de pobre”, de momentos de necessidade e escassez (Nascimento et al. 2012Nascimento VT, Vasconcelos M, Maciel MIS & Albuquerque UP (2012) Famine foods of Brazil”s seasonal dry forests: ethnobotanical and nutritional aspects. Economic Botany 66: 22-34.; Łuczaj et al. 2012Łuczaj Ł, Pieroni A, Tardío J, Pardo-De-Santayana M, Sõukand R, Svanberg I & Kalle R (2012) Wild food plant use in 21st century Europe: the disappearance of old traditions and the search for new cuisines involving wild edibles. Acta Societatis Botanicorum Poloniae 81: 359-370.; Cruz et al. 2014Cruz MP, Medeiros PM, Combariza IS, Peroni N & Albuquerque UP (2014) “I eat the manofê so it is not forgotten” : Local perceptions and consumption of native wild edible plants from seasonal dry forests in Brazil. Journal of Ethnobiology and Ethnomedicine 10: 1-11.). O mesmo ocorre com os sistemas alimentares tradicionais. Ainda que estes contribuam para o modelo alimentar nacional de diferentes países, como a mandioca para o Brasil, costumam ser invisibilizados e relegados à condição de pobreza ou de falta de “civilização” (Katz 2009Katz E (2009) Alimentação indígena na América Latina: comida invisível, comida de pobres ou patrimônio culinário? Espaço Amerindio (Porto Alegre) 3: 25-41.). Esta percepção aumenta com a introdução de novos recursos alimentares e aumento do poder de compra em comunidades tradicionais, levando ao abandono de alguns recursos alimentícios locais (Katz 2009Katz E (2009) Alimentação indígena na América Latina: comida invisível, comida de pobres ou patrimônio culinário? Espaço Amerindio (Porto Alegre) 3: 25-41.). Esta tendência faz com que aumente nestas populações a dependência de recursos externos e auxílios governamentais e reduz suas opções para garantir soberania alimentar (Łuczaj et al. 2012Łuczaj Ł, Pieroni A, Tardío J, Pardo-De-Santayana M, Sõukand R, Svanberg I & Kalle R (2012) Wild food plant use in 21st century Europe: the disappearance of old traditions and the search for new cuisines involving wild edibles. Acta Societatis Botanicorum Poloniae 81: 359-370.; Cruz et al. 2014Cruz MP, Medeiros PM, Combariza IS, Peroni N & Albuquerque UP (2014) “I eat the manofê so it is not forgotten” : Local perceptions and consumption of native wild edible plants from seasonal dry forests in Brazil. Journal of Ethnobiology and Ethnomedicine 10: 1-11.).

Algumas espécies de plantas alimentícias silvestres subutilizadas oferecem alternativas para diversificar a dieta, como também aprimorar a produção de alimentos, uma vez que tais plantas, mais do que as cultivadas, são capazes de suportar condições de estresse ambiental, são mais resistentes, podem contribuir para sistemas de produção de baixo custo (Baldermann et al. 2016Baldermann S, Blagojević L, Frede K, Klopsch R, Neugart S & Neumann A (2016) Are neglected plants the food for the future? Critical Reviews in Plant Sciences 2689: 1-14.) e são altamente resilientes, produzindo sementes botânicas e propágulos que tornam os agricultores e agricultoras autossuficientes e independentes da indústria de sementes (Kinupp & Lorenzi 2014Kinupp VF & Lorenzi H (2014) Plantas alimentícias não convencionais (PANC) no Brasil: guia de identificação, aspectos nutricionais e receitas ilustradas. Plantarum, Nova Odessa. 768p.).

Os baixos índices de saliência cognitiva (ISC) encontrados refletem uma idiossincrasia das citações, ou seja, apenas um pequeno número de plantas foi citado repetidas vezes nas listas (16 plantas foram citadas mais de 80 vezes), enquanto 131 plantas (47,64 % do total) são citadas no máximo quatro vezes. Este fato alerta para um baixo compartilhamento do conhecimento entre as comunidades e entre seus respectivos moradores.

Padrões de conhecimento entre grupos sociais

As plantas das florestas predominam nas citações masculinas, as de roçado nas femininas e as do sítio nas de crianças e jovens (menores de 18 anos) (Fig. 4). Este padrão está relacionado com os papéis sociais que cada grupo desempenha, em que as atividades de coleta e caça são de responsabilidade majoritariamente masculina, enquanto as mulheres cuidam do processamento do alimento trazido. O roçado é responsabilidade de ambos os gêneros, cujo trabalho crianças e jovens colaboram. O sítio, com as árvores frutíferas, área comum das comunidades, são mais frequentados pelas crianças e jovens. Diferentes estudos relacionando idade e gênero com o conhecimento local de plantas demonstram padrões semelhantes, inferindo que o papel social de cada grupo nas diferentes culturas influencia suas relações com o ambiente e o acúmulo de conhecimento sobre a biodiversidade (Pfeiffer & Butz 2005Pfeiffer JM & Butz RJ (2005) Assessing cultural and ecological variation in ethnobiological research: the importance of gender. Journal of Ethnobiology 25: 240-278.; Ayantunde et al. 2008Ayantunde AA, Briejer M, Hiernaux P, Udo HMJ & Tabo R (2008) Botanical knowledge and its differentiation by age, gender and ethnicity in Southwestern Niger. Human Ecology 36: 881-889.; Albuquerque et al. 2011Albuquerque UP, Soldati GT, Sieber SS, Ramos MA, De Sá JC & De Souza LC (2011) The use of plants in the medical system of the Fulni-ô people (NE Brazil): a perspective on age and gender. Journal of Ethnopharmacology 133: 866-873.; Souto & Ticktin 2012Souto T & Ticktin T (2012) Understanding interrelationships among predictors (age, gender, and origin) of local ecological knowledge. Economic Botany 66: 149-164.; Pedrollo et al. 2016Pedrollo CT, Kinupp VF, Shepard G & Heinrich M (2016) Medicinal plants at Rio Jauaperi, Brazilian Amazon: ethnobotanical survey and environmental conservation. Journal of Ethnopharmacology 186: 111-124.)

Figura 4
Ambiente das plantas citadas nas listagens livres sobre plantas alimentícias conhecidas por grupo de entrevistados nas cinco comunidades da RDS Piagaçu-Purus participantes. Porcentagem de plantas alimentícias citadas por cada grupo de entrevistados e seus ambientes de ocorrência.
Figura 4
Place of occurrence of plants mentioned in the free lists about known food plants by group of interviewed in the five participating communities of the Piagaçu-Purus Sustainable Development Reserve. Percentage of food plants mentioned by each group of respondents and their place of occurrence.

Estes resultados também podem ajudar a entender a idiossincrasia encontrada e a importância das plantas cultivadas no índice de saliência cognitiva, em detrimento das plantas silvestres, as quais predominaram na lista das PANC. Tal resultado antecipa uma possível monotonia alimentar, baseada nas espécies de conhecimento compartilhado, sobretudo as cultivadas. Uma vez que as mulheres são responsabilizadas pela alimentação familiar, nota-se a importância de que estas sejam incluídas no conhecimento dos frutos silvestres, para que possam incorporá-las na dieta.

Existem duas formas de enxergar as diferenças de experiências vividas por mulheres e homens no meio rural: pela divisão sexual do trabalho a partir de uma “complementaridade” de funções ou a partir da desnaturalização destas diferenças no sentido de questionar as desigualdades existentes (Siliprandi 2015Siliprandi E (2015) Mulheres e Agroecologia: transformando o campo, as florestas e as pessoas. Editora UFRJ, Rio de Janeiro. 356p.). Assim, o papel das mulheres de cuidadoras da família, das hortas, dos sítios e roçados, que contribui significativamente para a diversificação alimentar das famílias, por vezes é desvalorizado em relação ao trabalho remunerado desenvolvido pelos homens, que frequentam as florestas em busca de caça, pesca e produtos florestais não madeireiros para a venda (Siliprandi 2015Siliprandi E (2015) Mulheres e Agroecologia: transformando o campo, as florestas e as pessoas. Editora UFRJ, Rio de Janeiro. 356p.). Ressalta-se a importância de proporcionar às mulheres acesso a informações em iguais condições que os homens em momentos de cursos e capacitações que venham a ser realizadas nas comunidades, para que possam se posicionar e tomar espaços de decisão. Assim como espaços voltados exclusivamente para as mulheres, com o intuito de compartilhar o conhecimento e processamento de frutos silvestres nativos.

Conclusões

Foram registrados 275 nomes populares de plantas alimentícias, referentes a 220 espécies identificadas, preparadas e consumidas sob diversas formas. Destacam-se em número as frutas nativas, apontando o imenso potencial das plantas da Amazônia como cultivos para a diversificação de áreas agrícolas e dos hábitos alimentares. Em maioria, as plantas conhecidas listadas são oriundas de florestas inundadas, a principal parte alimentícia é o fruto, os quais são consumidos principalmente in natura. O papel social que cada grupo desempenha na cultura influencia suas relações com o ambiente e o acúmulo de conhecimento sobre a biodiversidade alimentícia. De uma forma geral, as plantas cultivadas são culturalmente mais importantes. Ressalta-se a desvalorização de recursos alimentícios silvestres, por estarem associados às épocas de escassez e pobreza, o que aliado à pouca utilização destes recursos, aumenta a dependência de recursos externos e auxílios governamentais, ameaçando a soberania alimentar destas comunidades.

Agradecimentos

Os autores agradecem a Capes o financiamento através do Programa Pró-Amazônia, projeto nº 52, ao CNPq, ao Programa de Pós Graduação em Botânica do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, ao Instituto Piagaçu e, principalmente, as lideranças comunitárias envolvidas e todos os que participaram das entrevistas.

Referências

  • Agea JG, Okia CA, Kimondo JM, Woiso DA, Obaa BB & Obua J (2013) Harvesting, preparation and preservation of commonly consumed wild and semi-wild food plants in Bunyoro-Kitara Kingdom, Uganda. International Journal of Medicinal and Aromatic Plants 3: 262-282.
  • Albuquerque UP, Lucena RFP & Neto EMFL (2010)Seleção dos participantes da pesquisa. In: Albuquerque UP, Lucena RFP & Cunha LVFC (orgs.) Métodos e técnicas na pesquisa etnobiológica e etnoecológica. NUPPEA, Recife. 559p.
  • Albuquerque UP, Soldati GT, Sieber SS, Ramos MA, De Sá JC & De Souza LC (2011) The use of plants in the medical system of the Fulni-ô people (NE Brazil): a perspective on age and gender. Journal of Ethnopharmacology 133: 866-873.
  • Alexiades MN (1996) Collecting ethnobotanical data: an introduction to basic concepts and techniques. In: Alexiades MN (ed.) Selected guidelines for ethnobotanical research: a field manual. New York Botanical Garden, Nova York. Pp. 54-93.
  • Ammann S (2014) Etnobotânica de árvores e palmeiras em três comunidades ribeirinhas do Rio Jauaperi, na divisa entre Roraima e Amazonas. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Botânica do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, Manaus. 94p.
  • Amaral C & Neto G (2008) Os quintais como espaços de conservação e cultivo de alimentos: um estudo na cidade de Rosário Oeste (Mato Grosso, Brasil). Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Ciências Humanas 3: 329-341.
  • Araújo FR & Lopes MA (2012) Diversity of use and local knowledge of palms (Arecaceae) in eastern Amazonia. Biodiversity and Conservation 21: 487-501.
  • Ayantunde AA, Briejer M, Hiernaux P, Udo HMJ & Tabo R (2008) Botanical knowledge and its differentiation by age, gender and ethnicity in Southwestern Niger. Human Ecology 36: 881-889.
  • Baldermann S, Blagojević L, Frede K, Klopsch R, Neugart S & Neumann A (2016) Are neglected plants the food for the future? Critical Reviews in Plant Sciences 2689: 1-14.
  • Benz BF, Cevallos EJ, Santana MF, Rosales AJ & Graf MS (2000) Losing knowledge about plant use in the sierra de manantlan biosphere reserve, Mexico. Economic Botany 54: 183-191.
  • Bernard HR (2006) Research Methods in Anthropology. Qualitative and quantitative approachs. 4a ed. Walnut Creek, Altamira Press. 803p.
  • Cardoso D, Särkinen T, Alexander S, Amorim SM, Bittrich V, Celis M, Daly D, Fiaschi P, Funk V, Giacomin L, Goldenberg R, Heiden G, Iganci J, Kelloff C, Knapp S, Lima H, Machado A, Santos R, Mello-Silva R, Michelangeli F, Mitchell J, Moonlight P, Moraes L, Mori S, Nunes T, Pennington T, Pirani J, Prance G, Queiroz L, Rapini A, Riina R, Rincon C, Roque N, Shimizu G, Sobral M, Stehmann J, Stevens W, Taylor C, Trovó M, van den Berg C, van der Werff H, Viana P, Zartman C & Forzza R (2017) Amazon plant diversity revealed by a taxonomically verified species list. Proceedings of the National Academy of Sciences 114: 10695-10700.
  • Cascudo LC (2011) História da alimentação no Brasil. 4a ed. Global, São Paulo. 972p.
  • Chaves EMF & Barros RFM (2008) Resource use of the flora of the brushwood vegetation in Cocal county Piauí, Brasil. Functional Ecosystems & Communities 2: 51-58.
  • Chaves MS (2016) Plantas alimentícias não convencionais em comunidades ribeirinhas na Amazônia. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Agroecologia da Universidade Federal de Viçosa, Viçosa. 108p.
  • Clement CR (1999) 1492 and the loss of amazonian crop genetic resources. I. The relation between domestication and human population decline. I. Economic Botany 53: 188-202.
  • Cruz MP, Medeiros PM, Combariza IS, Peroni N & Albuquerque UP (2014) “I eat the manofê so it is not forgotten” : Local perceptions and consumption of native wild edible plants from seasonal dry forests in Brazil. Journal of Ethnobiology and Ethnomedicine 10: 1-11.
  • Dufour DL, Piperata BA, Murrieta RSS, Wilson WM & Williams DD (2016) Amazonian foods and implications for human biology. Annals of Human Biology 43: 330-348.
  • Fernandes RS (2012) Frutas, sementes e amêndoas silvestres alimentícias na comunidade indígena Tunuí-Cachoeira, AM. Tese de Doutorado. Programa de Pó-Graduação em Engenharia Florestal. Universidade Federal de Lavras, Lavras. 202p.
  • Flora do Brasil 2020 (em construção) 2018. Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://floradobrasil.jbrj.gov.br/>.
    » http://floradobrasil.jbrj.gov.br/
  • Godoy R, Brokaw N, Wilkie D, Colón D, Palermo A, Lye S & & Wei S (1998) Of trade and cognition: markets and the loss of folk knowledge among the Tawahka Indians of the Honduran rain forest. Journal of Anthropological Research 54: 219-233.
  • Gonçalves GG (2017) Etnobotânica de plantas alimentícias em comunidades indígenas multiétnicas do baixo rio Uaupés - Amazonas. Tese de Doutorado. Faculdade de Ciências Agronômicas da Uiversidade de São Paulo, Botucatu. 193p.
  • Guinand Y & Lemessa D (2001) Wild-food plants in Ethiopia: reflections on the role of wild foods and famine foods at a time of drought. In: The potential of indigenous wild foods. Kenyatta C & Henderson A. USAID/OFDA, CRS, Southern Sudan. 85p.
  • Hopkins MJG (2007) Modelling the known and unknown plant biodiversity of the Amazon Basin. Journal of Biogeography 34: 1400-1411.
  • Instituto Piagaçu (org.) (2010) Plano de gestão da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus. Versão para consulta pública. Instituto Piagaçu, Manaus. 374p.
  • Kalle R & Sõukand R (2012) Historical ethnobotanical review of wild edible plants of Estonia (1770s-1960s). Acta Societatis Botanicorum Poloniae 81: 271-281.
  • Katz E (2009) Alimentação indígena na América Latina: comida invisível, comida de pobres ou patrimônio culinário? Espaço Amerindio (Porto Alegre) 3: 25-41.
  • Katz E, López CL, Fleury M, Miller RP, Payê V, Dias T, Silva F, Oliveira Z & Moreira E (2012) No greens in the forest? Note on the limited consumption of greens in the Amazon. Acta Societatis Botanicorum Poloniae 81: 283-293.
  • Kinupp VF (2007) Plantas alimentícias não-convencionais da região metropolitana de Porto Alegre, RS. Tese de Doutorado. Faculdade de Agronomia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 562p.
  • Kinupp VF & Barros IBI (2008) Teores de proteína e minerais de espécies nativas, potenciais hortaliças e frutas. Ciência e Tecnologia de Alimentos 28: 846-857.
  • Kinupp VF & Lorenzi H (2014) Plantas alimentícias não convencionais (PANC) no Brasil: guia de identificação, aspectos nutricionais e receitas ilustradas. Plantarum, Nova Odessa. 768p.
  • Leal ML, Alves RP & Hanazaki N (2018) Knowledge, use, and disuse of unconventional food plants. Journal of Ethnobiology and Ethnomedicine 14: 1-9.
  • Łuczaj Ł, Pieroni A, Tardío J, Pardo-De-Santayana M, Sõukand R, Svanberg I & Kalle R (2012) Wild food plant use in 21st century Europe: the disappearance of old traditions and the search for new cuisines involving wild edibles. Acta Societatis Botanicorum Poloniae 81: 359-370.
  • Martins AG, Rosário DL, Barros MN & Jardim MAG (2005) Levantamento etnobotânico de plantas medicinais, alimentares e tóxicas da Ilha do Combu, Município de Belém, estado do Pará, Brasil. Revista Brasileira de Farmácia 86: 21-30.
  • Mori SA, Silva LA & Coradin L (1989) Manual de manejo do Herbário Fanerógamo. Centro de Pesquisas do Cacau, Ilhéus. 45p.
  • Nascimento VT, Vasconcelos M, Maciel MIS & Albuquerque UP (2012) Famine foods of Brazil”s seasonal dry forests: ethnobotanical and nutritional aspects. Economic Botany 66: 22-34.
  • Pedrollo CT, Kinupp VF, Shepard G & Heinrich M (2016) Medicinal plants at Rio Jauaperi, Brazilian Amazon: ethnobotanical survey and environmental conservation. Journal of Ethnopharmacology 186: 111-124.
  • Pereira LS, Soldati GT, Duque-Brasil R, Coelho FMG & Schaefer CEGR (2017) Agrobiodiversidade em quintais como estratégia para soberania alimentar no semiárido norte mineiro. Ethnoscientia 2: 1-25
  • Pfeiffer JM & Butz RJ (2005) Assessing cultural and ecological variation in ethnobiological research: the importance of gender. Journal of Ethnobiology 25: 240-278.
  • Rabelo A (2012) Frutos nativos da Amazônia comercializados nas feiras de Manaus. Editora Inpa, Manaus. 390p.
  • R Development Core Team (2013) R: a language and environment for statistical computing. R foundation for statistical computing, Vienna. Disponível em <http://www.r-project.org> Acesso em 21 de março de 2017.
    » http://www.r-project.org
  • Santilli J (2009) Agrobiodiversidade e direitos dos agricultores. Petrópolis, São Paulo. 519p.
  • Siliprandi E (2015) Mulheres e Agroecologia: transformando o campo, as florestas e as pessoas. Editora UFRJ, Rio de Janeiro. 356p.
  • Souto T & Ticktin T (2012) Understanding interrelationships among predictors (age, gender, and origin) of local ecological knowledge. Economic Botany 66: 149-164.
  • Sutrop U (2001) List Task and a cognitive salience index. Field Methods 13: 263-276.
  • Tropicos.org (2018) Missouri Botanical Garden. Disponível em <http://www.tropicos.org/Home.aspx/> Acesso em 19 de abril de 2017.
    » http://www.tropicos.org/Home.aspx/

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2018
  • Aceito
    26 Fev 2019
Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro Rua Pacheco Leão, 915 - Jardim Botânico, 22460-030 Rio de Janeiro, RJ, Brasil, Tel.: (55 21)3204-2148, Fax: (55 21) 3204-2071 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: rodriguesia@jbrj.gov.br