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AMARANTE, Dirce Waltrick; Tápia, Marcelo. Donaldo Schüler: entrevista. Curitiba: Medusa, 2018, 166 p. GUERINI, Andréia; Medeiros, Sérgio. Aurora Bernardini: entrevista. Curitiba: Medusa, 2018, 116 p.

AMARANTE, Dirce; Waltrick, Tápia, Marcelo. Donaldo Schüler: entrevista. Curitiba: Medusa, 2018. 166
GUERINI, Andréia; Medeiros, Sérgio Marcelo. Aurora Bernardini. : entrevista. Curitiba: Medusa, 2018. 166

Encenações da tradução como ato desmedido

Em sua coletânea de ensaios intitulada Tradução, ato desmedido, datada de 2011, Boris Schnaiderman interpreta o trabalho do tradutor como um processo de “contínuo aperfeiçoamento”, uma “marcha tortuosa que se empreende [...] por um caminho cheio de armadilhas” (Schnaiderman 15Schnaiderman, Boris. Tradução, ato desmedido. São Paulo: Perspectiva, 2011.). Esse “ato desmedido”, repleto de acertos, erros, êxitos, fracassos, lições e incertezas, demanda de quem a ele se dedica nada menos que uma “entrega total”, uma “caminhada de pedras, em obsessão contínua”, que, no entanto, reserva “momentos de raro deslumbramento”, aquilo que eventualmente fundaria a “verdadeira recompensa do tradutor” (Schnaiderman 20Schnaiderman, Boris. Tradução, ato desmedido. São Paulo: Perspectiva, 2011.). É a partir dos versos de um poema de Pasternak, traduzidos por ele mesmo e Haroldo de Campos, que Schnaiderman (19-20)Schnaiderman, Boris. Tradução, ato desmedido. São Paulo: Perspectiva, 2011. desvela os laços permanentes e instáveis entre tradução e entrega, naufrágio e desvelamento:

Mas a velhice é Roma. Não lhe peça Que venha com estórias de ninar. Ela exige do ator mais que uma peça, Uma entrega total, um naufragar. Quando o verso é um ditado do mais íntimo, Ele imola um escravo em cena aberta. E aqui termina a arte, o pano fecha, Ao respirar da terra e do destino.

São justamente encenações da tradução como uma “entrega total” ou um “ato desmedido”, postura que por vezes resulta no próprio naufragar e na revelação decorrente da perda de si, o que vemos nos dois primeiros volumes de entrevistas da coleção “palavra do tradutor”, iniciativa da Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina (PGET/UFSC). Os livros da série pretendem, como anunciam os professores da PGET que coordenam o projeto, “dar voz ao tradutor, a fim de que ele possa expor, nesta coleção, suas realizações e oferecer ao leitor as concepções teóricas que embasam seu trabalho prático”. Como um “ato desmedido”, entretanto, menos que uma simples concepção teórica instrumentalizada ou operacionalizada em seus processos tradutórios – um saber estático a que se submeteriam, entre outros, os textos literários –, o que os entrevistados nos oferecem são verdadeiras jornadas intelectuais, amostras de vidas dedicas à tradução que, como tais, colocam-se como diferentes facetas ou instâncias desse ato desmedido. A lição que nos deixam, longe de constituir um saber a ser de novo aplicado a obras futuras, revela-se antes uma determinada atitude diante dos objetos, um gesto de abertura, reflexão e escolha que jamais elimina os riscos de quem se dedica a enfrentar os desafios impostos pelo imprevisto.

O primeiro volume da coleção, sob a organização de Dirce Waltrick do Amarante e Marcelo TápiaAmarante, Dirce Waltrick; Tápia, Marcelo. Donaldo Schüler: entrevista. Curitiba: Medusa, 2018, 116 p., professores que conduzem as entrevistas, foi publicado em 2018 e volta-se para a trajetória intelectual e tradutória de Donaldo Schüler, professor emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde ensinou língua e literatura grega, e tradutor, entre tantas outras obras, de Finnegans Wake, de James Joyce, e Odisseia, de Homero. Conforme os entrevistadores observam, em suas respostas, “Donaldo nos oferece uma saborosa aula de literatura que atravessa séculos, unindo tradição e vanguarda” (9). As formulações de Schüler, ao longo das mais de 150 páginas de diálogo, exibem “toda a sua experiência e sua familiaridade com o pensamento e a literatura ocidentais, bem como com a prática do ensino da língua e literatura gregas” (10). Por meio de um sobrevoo teórico retrospectivo que atravessa o seu contato, como leitor e tradutor, com nomes que vão desde poetas da antiguidade clássica como Calino, Safo de Lesbos, Píndaro, Teócrito – passando, é claro, por Homero, sua influência maior –, até escritores da tradição moderna como Mallarmé, G. Trakl, os concretistas brasileiros, além do próprio Joyce, Schüler versa sobre temas como a sua formação inicial, a questão do “intraduzível”, a relação entre tradução e recriação poética, os vínculos entre a sua obra ficcional e a atividade como tradutor, entre outros. No campo dos ensinamentos, vislumbramos aqui e ali um recado que sempre percorre uma via negativa, convite à autoanálise permanente:

A linguagem é um acontecimento. A palavra que você profere bate nas paredes, ecoa em palavras que você ouviu, leituras que você fez, ideias que lhe passam pela cabeça. Significado que não é vivo não significa. As palavras registradas no dicionário começam a significar no momento em que você as consulta. Consultadas, elas são provocadas. A palavra literária acontece num universo verbal em que tudo se conecta. Você toca num lugar, mexem-se mundos. Em outro lugar, a palavra traduzida entra em novas ressonâncias. (161).

A entrevista apresenta-se dividida em três seções fundamentais, cujos títulos mimetizam o mesmo tema da viagem que prova ser tão caro ao tradutor: “a partida”, “o retorno” e “de volta à nau”. A viagem constitui, para Donaldo Schüler, tanto a expressão metafórica da arriscada travessia empreendida durante o processo tradutório – “o mar que provoca naufrágios é fonte de vida, os dados são pedaços que flutuam nas águas. O navio é o poema, a escrita, a página em branco” (136) –, quanto a encarnação formal de suas respostas, que via de regra inauguram um deslocamento constante, uma errância teórica que de saída abole a estabilidade das noções de início e fim que o ponto de partida, a pergunta, deixa entrever. Em outras palavras, desvelando as nuances de um ato desmedido, Schüler insiste numa concepção de tradução e de linguagem literária como risco, experiência, elaboração, montagem, justaposição e, principalmente, criação, palavras que esclarecem a natureza processual e experimental do gesto de traduzir, afinal, “a palavra literária é uma unidade visual-significativa-sonora. Poesia que não desemboca em poesia é rio que secou” (161). Ou ainda, “palavras libertas de cadeias alargam o território da reflexão, da invenção” (162). Em suma, a atividade do tradutor se situa no “entre”, lugar em que habitam as coisas vivas, como a linguagem.

O segundo livro da coleção “palavra de tradutor”, também datado de 2018, foi organizado pelos professores Andréia Guerini e Sérgio MedeirosGuerini, Andréia; Medeiros, Sérgio. Aurora Bernardini: entrevista. Curitiba: Medusa, 2018, 116 p. e discute o percurso intelectual de Aurora Bernardini, professora titular do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo e tradutora, entre outros, de nomes como Khlébnikov, Pasternak, Pirandello, Ungaretti e Montale. Se o volume de entrevistas com Donaldo Schüler concentra-se, por um lado, na jornada sem fim que cada pergunta desperta, o livro dedicado à atividade tradutória de Aurora prova ser, por outro, uma verdadeira antologia ou reunião de documentos decisivos, que vão desde os diálogos com a tradutora em si, passando por um ensaio de sua autoria intitulado “Tradução, história e literatura comparada”, um apêndice a esse mesmo ensaio, sob o título “Pedra e luz na poesia de Dante”, até amostras de tradução de poemas e excertos de diferentes autores. Como os organizadores do volume assinalam, nas entrevistas, Aurora deixa entrever diferentes facetas da sua “[...] dedicação ao aprendizado de línguas estrangeiras, a qual marcou toda a sua atuação acadêmica e profissional” (11). Aqui vemos, uma vez mais, uma das instâncias da tradução como ato desmedido: o movimento tradutório nunca se restringe à mera passagem de um texto a outro; antes, depende diretamente de uma entrega à conquista impossível de alteridades que jamais se revelam por completo, de nomes desconhecidos ou obras ainda não traduzidas que impõem, por isso mesmo, o risco do erro ou então da não aceitação ou difícil penetração do novo. Conforme a tradutora comenta, do ponto de vista editorial, por exemplo, nem sempre a novidade é bem recebida pelos editores, e a tradução assume, assim, ares de aposta arriscada:

Então, você está vendo a dificuldade que a gente tem? [...] Nós estamos nesse mundo. A gente traz as obras aqui, os autores realmente bons. [...] A obra vale, você indica para o editor, o editor publica... E o pessoal não compra. Então os editores dizem assim: “Bom, nós temos que ter alguns grandes nomes, porque pelos grandes nomes a gente consegue recuperar o investimento!”. Então vai Maiakovski, Dostoiévski, isso vai! Tolstói, Dumas, Dickens, os nomes consagrados, e aí você tem os leitores, que vão pelos nomes mesmo. (49).

A atividade tradutória de Aurora Bernardini vincula-se, portanto, à iniciativa cultural mais abrangente de preencher eventuais lacunas identificadas principalmente no campo da tradução de obras literárias italianas e russas, de modo a ampliar as possibilidades formativas e o repertório dos leitores brasileiros. Nesse sentido, longe de um trabalho estrito de especialização e aplicação de técnicas de tradução, Aurora investe na tarefa ao mesmo tempo gratificante e difícil de abrir-se ao inexplorado, de procurar “interessar os editores brasileiros a respeito de certas obras, ou italianas ou russas, ou mesmo de outras nacionalidades [...], que não existem no Brasil” (26). Assim, seus depoimentos, em vez de simplesmente buscar elucidar uma teoria sua de tradução, percorrem o complexo campo editorial brasileiro, a partir da consciência crítica de que “não basta traduzir”, cabe também “encontrar o filão”, isto é, conhecer as necessidades e oportunidades criadas por um mercado acima de tudo complexo e instável. Como ato desmedido, enfim, a tradução desdobra-se numa dupla empreitada: de um lado, o texto a ser traduzido e os desafios que ele encerra; de outro, o lugar da obra na esfera de suas possibilidades de circulação. Do tradutor, nada mais se espera do que – para utilizar novamente as palavras dos organizadores – “uma firme tomada de posição diante da literatura” (11) e dos espaços que se ocupam de fazê-la chegar ao leitor.

A coleção “palavra do tradutor” encontra-se ainda em sua fase inicial, com os dois volumes aqui referidos, mas promete desde já futuros encontros com nomes como Paulo Henriques Britto e Fábio de Souza Andrade, figuras decisivas da tradução literária hoje no Brasil. Quem ganha com a iniciativa da PGET/UFSC é o leitor, que agora tem acesso privilegiado às concepções teóricas e críticas que fundamentam o trabalho dos tradutores, o que antes só era possível por meio de um duro exercício de inferência – muito embora sempre prazeroso – a partir do contato direto com as obras traduzidas.

Referências

  • Amarante, Dirce Waltrick; Tápia, Marcelo. Donaldo Schüler: entrevista. Curitiba: Medusa, 2018, 116 p.
  • Guerini, Andréia; Medeiros, Sérgio. Aurora Bernardini: entrevista. Curitiba: Medusa, 2018, 116 p.
  • Schnaiderman, Boris. Tradução, ato desmedido São Paulo: Perspectiva, 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    9 Set 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    20 Dez 2018
  • Aceito
    22 Mar 2019
  • Publicado
    Maio 2019
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