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INTERTEXTUALIDADE NAS TRADUÇÕES DO CONTO “O ESPELHO”, DE MACHADO DE ASSIS, EM LÍNGUA INGLESA

INTERTEXTUALITY IN THE TRANSLATIONS OF MACHADO DE ASSIS’ SHORT STORY “O ESPELHO” INTO ENGLISH

Resumo

Este artigo, resultado de parte de uma pesquisa de mestrado, tem como objetivo descrever algumas ocorrências de intertextualidade no conto “O espelho”, de Machado de Assis. Serão analisadas cinco traduções para o inglês: a de Grossman de Caldwell (1963), a de Loria (1995), a de Gledson (2008), a de Chasteen (2013) e, finalmente, a de Costa e Patterson (2018). A partir da identificação da rede intertextual do conto, serão examinadas as escolhas dos tradutores em relação a esses elementos intertextuais nas cinco versões do conto para o inglês. Os trechos selecionados serão apresentados em tabelas. A análise dos fragmentos identificou estratégias diferentes entre as cinco traduções.

Palavras-chave
Machado de Assis; “O espelho”; intertextualidade; tradução para o inglês

Abstract

This paper, the result of part of a Master’s thesis, aims to describe some instances of intertextuality in the short story “O espelho” by Machado de Assis. Five translations into English are analysed: that of Grossman and Caldwell (1963), that of Loria (1995), that of Gledson (2008), that of Chasteen (2013) and, finally, that of Costa and Patterson (2018). From the identification of the intertextual network of the short story, the translators’ choices regarding these intertextual elements in the five versions of the short story will be examined. The selected fragments are presented in tables. The analysis of the fragments revealed different strategies used by the translators.

Keywords
Machado de Assis; “O espelho”; intertextuality; translation into English

Introdução

Este artigo é um desdobramento da pesquisa feita em nível de mestrado, no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução – POET, em que cinco versões em língua inglesa do conto “O espelho” (1882), de Machado de Assis, foram analisadas diacronicamente. O conto foi traduzido por W. L. Grossman e Helen Caldwell (1963), Wilson Loria (1995), John Gledson (2008), John Chasteen (2013) e por Margaret Jull Costa e Robin Paterson (2018).

Este artigo pretende analisar a relação entre a intertextualidade e a atividade tradutória. O conceito de intertextualidade trata da relação existente entre o texto e seus pré-textos. Julia Kristeva, que cunhou o termo, discute o fenômeno da intertextualidade “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto” (Kristeva, 1974Kristeva, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974., p. 64). Gerard Genette propõe como definição de intertextualidade a presença de textos concretos dentro de um outro texto, ou seja, “uma relação de copresença entre dois ou vários textos, isto é, essencialmente, e o mais frequentemente, como presença efetiva de um texto em um outro” (Genette, 2005Genette, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Traduzido por Luciene Guimarães & Maria Antônia R. Coutinho. Ed. bilíngue. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2005., p. 14). Para Genette (2005)Genette, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão. Traduzido por Luciene Guimarães & Maria Antônia R. Coutinho. Ed. bilíngue. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2005., um intertexto pode ser uma citação, uma alusão ou até mesmo plágio.

A intertextualidade subverte o conceito de um texto como uma unidade estanque, e pode mostrar como as práticas literárias e os textos se alimentam uns dos outros, com intricadas redes intertextuais que questionam originalidade, autoria e reescrita, e que podem, portanto, oferecer perspectivas produtivas no campo da tradução literária e dos estudos de tradução como um todo. De acordo com Elam (1993, p. 621)Elam, Helen Regueiro. “Intertextuality”. In: Preminger, Alex & Brogan, T.V.F. (Ed.). The New Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics. Nova York: MJF Books, 1993. p. 620-621., “textos são fragmentos sem conclusão nem resolução. Nenhum texto é autossuficiente; cada texto está repleto de aspas explícitas ou invisíveis que dissipam a ilusão da sua autonomia e o remetem infinitamente a outros textos”1 1 Tradução nossa de: “Texts are fragments, without closure or resolution. No text is self-sufficient; each text is fraught with explicit or invisible quotation marks that dispel the illusion of its autonomy and refer it endlessly to other texts.” .

Há de se levar em consideração que, no texto-fonte, o intertexto foi pensado cuidadosamente pelo autor para compor especificamente aquela narrativa. A identificação e o exame de referências intertextuais pelo tradutor vão depender da sua bagagem de língua, cultura, história e literatura, sendo, dessa forma, desigual e reveladora.

Considerando-se que a referência pode não ser explícita, a tradução de intertextos exige conhecimento de mundo por parte do tradutor. De fato, o tradutor pode reconhecer ou não perceber o intertexto e, se reconhecer, criar uma estratégia que seja capaz de transpor de modo eficaz um intertexto do contexto de partida para o contexto de chegada. É igualmente possível que o tradutor perceba o elemento textual e opte por não o traduzir. Desse modo, as escolhas do tradutor, a inserção de novos elementos ou sua omissão, influenciam a experiência do leitor que, por sua vez, interpretará os intertextos conforme seu próprio conhecimento de mundo. Os intertextos podem ser, pois, elementos conflituosos nas decisões do tradutor.

A intertextualidade em Machado de Assis

O uso de intertextos se revela um dos principais estilemas na obra de Machado de Assis. Segundo Eugênio Gomes, um dos primeiros teóricos a discutir a intertextualidade na obra do autor, a análise dessas referências se faz necessário na medida em que “abre caminho à elucidação do processo de criação ou recriação artística em muitas de suas minúcias reveladoras” (Gomes, 1958Gomes, Eugênio. Machado de Assis. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1958., p. 97). Em A poética do legado, Gilberto Pinheiro Passos observa as diversas “presenças” externas que permeiam os escritos machadianos: “A caminhada do leitor, portanto, se fará com frequentes incursões no amplo domínio de uma vasta gama literária” (Passos, 1996Passos, Gilberto Pinheiro. A poética do legado: presença francesa em Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Annablume, 1996., p. 11).

Na ficção machadiana, a intertextualidade é identificada por meio de citações ou alusões a textos clássicos da literatura mundial, bem como à Antiguidade Clássica, e a elementos de ordem mitológica e histórica. Esse diálogo com diversas obras importantes do cânone ocidental revela a erudição de Machado, bem como retrata as suas afinidades e influências no campo literário e estético (Senna, 2008Senna, Marta de. “O búfalo e o cisne: a coexistência de contrários na ficção de Machado de Assis, leitor de Shakespeare e de Dante”. In: Fantini, Marli (Org). Crônicas da antiga corte: literatura e memória em Machado de Assis. Belo Horizonte, 2008.). O espectro de referências do autor é bastante amplo:

Cita desde as orientais As mil e uma noites, deuses da mitologia hindu e obras sobre o islamismo, até os ocidentalíssimos poetas norte-americanos Edgar Allan Poe e Henry Wardwsworth Longfellow. Entre esses extremos, alusões ou citações a Dante, a Camões, a Shakespeare – que são, junto com Homero, os autores individualmente mais citados – e ainda, a Heráclito, Sócrates, Platão, Aristóteles; a Tito Lívio, Virgílio, Horácio, Cícero; a Tertuliano, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Sir Thomas Morus, Erasmo de Roterdã; a Petrarca, Ariosto, Tasso; a Corneille, Molière, Racine, Pascal, La Fontaine La Rochefoucauld, Voltaire, Diderot, Stendhal, Victor Hugo; a Goethe, Schiller e Heine; a Swift, Fielding, Smollet, Sterne, Wordsworth, Charles Lamb, Carlyle; a Cervantes, a Vieira, Padre Bernardes, D. Francisco Manuel de Melo, Nicolau Tolentino, Bocage, e ao seu querido Garret.

(Senna, 2008Senna, Marta de. “O búfalo e o cisne: a coexistência de contrários na ficção de Machado de Assis, leitor de Shakespeare e de Dante”. In: Fantini, Marli (Org). Crônicas da antiga corte: literatura e memória em Machado de Assis. Belo Horizonte, 2008., p. 269-270).

Uma pesquisa realizada por Marta de Senna dá conta de mais de dois mil registros de citações diretas ou referências e alusões nos contos e romances machadianos (Senna, 2008Senna, Marta de. “O búfalo e o cisne: a coexistência de contrários na ficção de Machado de Assis, leitor de Shakespeare e de Dante”. In: Fantini, Marli (Org). Crônicas da antiga corte: literatura e memória em Machado de Assis. Belo Horizonte, 2008., p. 270). O diálogo constante de Machado de Assis com tantos autores de estilos e origens distintas demonstra ainda sua habilidade tanto na apropriação quanto na recriação de referências em novos contextos, proporcionando novas leituras.

As traduções

A primeira tradução de “O espelho” (“The Looking Glass”) para a língua inglesa aparece em The Psychiatrist & other stories (1963), a primeira coleção de contos de Machado de Assis em inglês. Os tradutores W. L. Grossman e Helen Caldwell também contribuíram para o fomento da literatura machadiana no contexto anglófono por meio de outras traduções, como os romances Dom Casmurro (Grossman, 1953) e Epitaph of a Small Winner (Caldwell, 1963), a primeira tradução em inglês de Memórias póstumas de Brás Cubas.

Wilson Loria, o único brasileiro a realizar uma tradução de “O espelho” para o inglês, publicou “The Mirror” no ano de 1995, na extinta revista Brazzil, que noticiava os principais fatos políticos e sociais brasileiros para o público estadunidense.

Em 2008, John Gledson lançou The Chapter of Hats and Other Stories, pela editora Bloomsbury. A coletânea, que foi lançada por ocasião do centenário de morte de Machado de Assis, traz 20 contos traduzidos, incluíndo “The Mirror: A Sketch for a New Theory of the Human Soul”.

Ao lado de outros sete contos machadianos, “The Looking Glass” foi publicado no livro The Alienist and Other Stories of Nineteenth Century Brazil, lançado em 2013, foi organizado e traduzido por John Charles Chasteen, professor de história latino-americana da Universidade da Carolina do Norte, Chapel Hill.

The Collected Stories of Machado de Assis, a mais recente das coletânea do autor carioca aqui analisadas, foi lançada em julho de 2018 e conta com 76 contos traduzidos, entre os quais “The Mirror”, em um total de 960 páginas. A obra foi organizada e traduzida pelos britânicos Margaret Jull Costa e Robin Patterson, e publicada pela editora W. W. Norton & Company. A edição pela primeira vez reuniu todas as histórias contidas nas sete coletâneas de contos que Machado de Assis publicou em vida (Contos Fluminenses, Histórias da meia-noite, Papéis Avulsos, Histórias sem data, Várias histórias, Páginas recolhidas, Relíquias de casa velha).

A intertextualidade em “O espelho”

Os elementos intertextuais presentes em “O espelho” aqui analisados foram escolhidos pelas autoras deste artigo. Cabe ressaltar que, neste artigo, não há a pretensão de esgotar as ocorrências de intertextos no texto. Os intertextos aqui selecionados figuram na ordem em que aparecem no conto, seguidos de comentários a respeito das escolhas tradutórias de cada versão em língua inglesa. A primeira das referências de ordem intertextual do conto é uma menção a um trecho da peça O Mercador de Veneza, de William Shakespeare: “Shylock, por exemplo. A alma exterior daquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. ‘Nunca mais verei o meu ouro’, diz ele a Tubal; ‘é um punhal que me enterras no coração’”.

Federici afirma que traduzir referências intertextuais não é tarefa simples e que os tradutores precisam lidar com “referências mais ou menos diretas a obras canônicas ou menos conhecidas, às vezes até referências diretas de traduções anteriores do mesmo texto ou a inserção de alusões a elementos culturais ou sociopolíticos no contexto em que o texto-fonte foi publicado”2 2 Tradução nossa para: “to more or less direct references to canonical or lesser-known works, sometimes even direct references from former translations of the same text or the insertion of allusions to cultural and socio-political elements in the context where the original work was published.” (Federici, 2007Federici, Eleonora. “The Translator’s Intertextual Baggage”. Forum for Modern Language Studies, 43(2), p. 147-160, 2007. DOI: https://doi.org/10.1093/fmls/cqm005
https://doi.org/10.1093/fmls/cqm005...
, p. 152-153). No caso, a opção por traduzir de forma mais próxima ao texto-fonte shakespeariano (“Thou stickest a dagger in me: I shall never see my gold again”) foi a opção de Gledson e de Costa e Patterson:

Tabela 1
Menção a um trecho da peça O Mercador de Veneza

Percebe-se que os demais tradutores optaram por traduzir o que Machado escreveu em seu conto, o que, por sua vez, já é uma versão criada a partir do original shakespeariano. Um dos tradutores, Chasteen, explicita a referência e explica que Shylock é um personagem de Shakespeare, o que nos faz supor que o tradutor em questão avalie que seu leitor não seria capaz de reconhecer imediatamente a alusão à peça. Curiosamente, a adição de uma explicação da referência na tradução de Chasteen aparece não como um paratexto, ou seja, como um texto externo à narrativa, mas como uma informação contida no corpo do conto traduzido, expediente de que ele lança mão com alguma frequência ao longo do conto traduzido.

Dessa forma, no trecho acima, tem-se Grossman e Caldwell mantendo o texto próximo ao do Machado, ou seja, o emprego criativo do Shakespeare; Gledson e Costa e Patterson corrigem a citação; Chasteen explica ao acrescentar the Shakespearean character ao texto e Loria fez a tradução que mais se afasta do texto-fonte e do intertexto shakespeareano ao simplificar o texto em sua tradução.

O elemento intertextual seguinte é uma referência à carta que Camões, em seus últimos dias, teria escrito a um amigo para quem diz “enfim, acabarei a vida e verão todos que fui tão afeiçoado à minha pátria, que não me contentei de morrer nela, mas com ela” (Moisés, 1998Moisés, Carlos Felipe. “Apresentação”. In: Camões, Luís. Os Lusíadas. Apresentação, Seleção e Notas de Carlos Felipe Moisés. 5. ed. São Paulo: Ática, 1998., p. 26). No conto “O espelho” vemos:

“Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria”.

Tabela 2
Referência à carta de Camões

Em relação às traduções acima, Grossman e Caldwell e Loria seguem o texto machadiano de perto e Chasteen omite o trecho todo. A omissão de trechos do conto aparece como uma constante em toda a tradução de Chasteen, conforme veremos ainda nos próximos exemplos. Costa e Patterson foram os únicos a não reproduzir a versão reduzida de Machado, mas traduziram a versão da carta conforme originalmente foi atribuída a Camões (“morrer nela, mas com ela”), além de ter acrescentado o advérbio de modo famously, o que pode indicar que os tradutores acreditavam que seus leitores não reconheceriam a menção feita pelo autor do conto, ou não teriam a curiosidade de buscar a informação sobre o citado Camões no texto. Em suas Translator’s Notes, que vêm ao final do seu livro, John Gledson apresenta brevemente o contexto de onde esse intertexto foi retirado: “Luís de Camões (1524-1580), the great Portuguese poet and author of the national epic, ‘The Lusiad’, is said to have uttered these words on his deathbed. In 1580, the Spanish king, Philip I, ascended the Portuguese throne, and Portugal ceased to be independent until 1640”. Cabe acrescentar que notas históricas são constantes na prática tradutória de Gledson, o que permite aos leitores de suas traduções acesso ao universo político, social e histórico do século XIX de Machado. Além da excelente nota, chama a atenção o acréscimo de “love for” em “like love for one’s country” mudando o sentido do texto de Machado.

Na sequência do conto, outra referência intertextual aparece de forma implícita. De acordo com o hipertexto que concerne esse trecho no site www.machadodeassis.net3 3 Disponível em: http://www.machadodeassis.net/hiperTx_romances/obras/papeisavulsos.html. Acesso em: 9 ago. 2020. , Machado estaria se referindo à mitologia clássica, em que a personagem Eris (ou discórdia), não tendo sido convidada para o casamento de Tétis e Peleu, nele apareceu, portando um pomo que deveria ser dado a mais bela das deusas. No conto machadiano, vemos o seguinte: “Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia” (Machado, s/pAssis, Machado de. The Alienist and Other Stories of Nineteenth-Century Brazil. Edição, Tradução e Introdução de John Charles Chasteen. Indianapolis & Cambridge: Hackett Publishing, 2013.).

Machado bebe da mitologia clássica, mas subverte o texto em uma construção à moda de Sterne. Em vez de “pomo da discórdia” como na mitologia, ele trata ironicamente a curiosidade como “pomo da concórdia”.

Tabela 3
Referência à mitologia clássica

As opções de Grossman e Caldwell e de Costa e Paterson ressaltam o caráter antigo da referência. Gledson cita a referência, mas, diferentemente das traduções de Grossman e Caldwell e de Costa e Paterson, ele opta por não arcaizar o texto. Loria parece não ter identificado a referência, o que se pode intuir pela sua escolha de traduzir “pomo da concórdia” por “fruit of harmony”, perdendo, assim, a referência pretendida no texto fonte. Já a opção de Chasteen é pela omissão do trecho, estratégia recorrente do tradutor. Contudo, essa omissão em particular incorre em negar ao seu leitor um dos traços característicos de Machado: a ironia. Há duas questões que chamam a atenção nas traduções acima: a) Grossman e Caldwell, Gledson e Costa e Patterson enfatizam a diferença de sabor aludida no final do fragmento com far, completly e quite respectivamente e b) Gledson traduz alma por nursemaid em “Not only are you the civilisation’s nursemaid, you are also the apple of the concord”, o que parece se afastar do sentido do texto-fonte, sendo a sua tradução a única analisada que apresentou essa opção de interpretação.

A Bíblia também é fonte de referência para Machado de Assis em “O espelho”. No conto, temos: “Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escrituras”. Seguem abaixo as traduções:

Tabela 4
Referência à Bíblia

Na Bíblia de JerusalémBíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2003., temos: “e os lançaram na fornalha ardente. Ali haverá choro e ranger de dentes” (Mateus 13, 42) e “Lá haverá choro e ranger de dentes, quando virdes Abraão, Isaque, Jacó e todos os profetas no Reino de Deus, e vós, porém, lançados fora” (Lucas 13, 28). Na Authorized King James Version, temos respectivamente: “And shall cast them into a furnace of fire: there shall be wailing and gnashing of teeth” (Matthew 13, 42) e “There shall be weeping and gnashing of teeth, when ye shall see Abraham, and Isaac, and Jacob, and all the prophets, in the kingdom of God, and you yourselves thrust out” (Luke 13, 28).

Nesse caso, observamos que enquanto a versão em português registra apenas “choro e ranger de dentes” nos dois versículos, em inglês, tem-se wailing and gnashing of teeth e weeping and gnashing of teeth, o que se refletiu nas traduções do conto com as duas primeiras traduções citando Lucas e as três últimas citando Mateus.

Machado também menciona o refrão da poesia “The Old Clock on the Stairs” (1845), do autor estadunidense Henry Wadsworth Longfellow:

“Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei este famoso estribilho: Never, for ever! - For ever, never!”

Tabela 5
Menção a “The Old Clock on the Stairs”

Nesse caso, quatro das cinco traduções transcreveram o trecho como estava no poema. Gledson, no entanto, mais uma vez, corrige a citação, apresentando os versos de Longfellow na ordem em que estão em “The Old Clock on the Stairs”: Forever – never! Never – forever”. A estratégia de Gledson chama a atenção por lembrar um dos expedientes defendidos pela estética francesa das belas infiéis, ou seja, a de aperfeiçoar o texto fonte. O problema dessa estratégia é partir do pressuposto de que Machado se confundiu em vez de considerar que o autor pode ter escolhido a inversão como está no conto; ou, até mesmo, no caso de Machado ter se confundido, por que a correção?

Grossman e Caldwell, Loria e Costa e Patterson mantêm a citação como está apresentada no texto-fonte; já a estratégia de Chasteen chama a atenção pelos excessos em tão pouco espaço. Chasteen omite o trecho “e topei este famoso estribilho” e clarifica o que ele acredita ser inescrutável para o seu leitor, a saber, acrescenta o título do poema, “The Old Clock on the Stairs” e, em seguida, “I confess that I got chills. The pendulum in the poem says...”.

O conto do autor francês Charles Perrault intitulado “Barba Azul”, que faz parte do livro Histórias da mamãe gansa (1697), aparece em uma referência intertextual na qual o protagonista de “O espelho” remete à fala de uma das personagens:

“Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Sœur Anne, sœur Anne, ne vois-tu rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa”.

Tabela 6
Referência ao conto “Barba Azul”

Os cinco tradutores optaram aqui por transcrever o que aparece no texto de partida. Machado escreve de modo a deixar a referência desse item implícito, apenas referindo-se a uma lenda francesa. Grossman e Caldwell são os tradutores que mais seguem a letra do texto e Loria e Gledson ficam bastante próximos do texto-fonte. Chasteen, no entanto, adiciona ao seu texto uma explicação sobre a lenda a que o intertexto alude: “como a esposa de Barba Azul implorando que sua irmã a salve”. O tradutor pode ter imaginado que seu potencial leitor desconhece o conto de Charles Perrault, estratégia que é, de certa forma, condescendente com o leitor. Chasteen ainda adiciona uma nota em que traduz para o inglês a citação: “Meaning: ‘Sister Anne, sister Anne, do you see no help on the way?’”. Costa e Patterson, por seu turno, reorganizam e limpam o texto, com algumas opções que o tornam mais idiomático.

Conclusão

Apenas por meio da observação de alguns exemplos de intertextualidade, conseguimos vislumbrar alguns padrões. Podemos observar nos exemplos acima que Machado não cita textos ou autores, por mais canônicos que sejam, de forma submissa; às vezes, como diz Senna (2018, p. 30)Senna, Marta de. “Machado de Assis no século XXI: indexação e hipertexto”. In: Freitas, Luana F.; Torres, Marie-Hélène & Costa, Walter (Org.). Machado de Assis, Literatura e Tradução. Fortaleza: Substânsia, 2018., é apenas uma piscadela ao leitor. O autor submete a citação à narrativa de tal forma que o leitor culto identifique a referência, mas perceba o emprego autônomo em maior ou menor grau. Em algumas ocasiões, como no episódio de Shylock, vimos Costa e Patterson e Gledson, à moda das belas infiéis, corrigindo Machado.

Assim, com base nas breves análises feitas neste artigo, podemos dizer que Grossman e Caldwell têm as traduções mais próximas à letra do texto; Loria tente à simplificação e modernização do texto; Costa e Patterson têm alguma tendência a empregar estratégias para facilitar a leitura do público-alvo; Gledson parece ter uma tendência a intervir de forma mais direta no texto, seja por meio de acréscimos, seja por meio de correções e Chasteen ora omite trechos, negando ao seu leitor as referências de Machado, ora clarifica o que era implícito.

Conforme vimos nos cinco exemplos em análise, o conhecimento que o tradutor tem, em primeiro lugar, da língua e da literatura da cultura fonte, e depois, do autor e da sua fortuna crítica, revela-se fundamental na identificação das marcas intertextuais. A estratégia escolhida para cada uma dessas referências também demonstra a maneira como o tradutor deseja possibilitar a seu potencial leitor o acesso às informações intertextuais. O tradutor pode explicitar a referência no próprio texto ou usar os paratextos como recurso para explicitar o que ainda está obscuro na tradução. A rede intertextual no conto “O espelho” é reconhecível, em grande medida, no contexto meta anglófono das traduções, visto que é formada por textos da literatura universal, da mitologia ou da Bíblia. Na contramão, a omissão das marcas intertextuais priva o leitor de uma série de implicações que aqueles intertextos carregam e acrescentam à experiência de leitura.

  • 1
    Tradução nossa de: “Texts are fragments, without closure or resolution. No text is self-sufficient; each text is fraught with explicit or invisible quotation marks that dispel the illusion of its autonomy and refer it endlessly to other texts.”
  • 2
    Tradução nossa para: “to more or less direct references to canonical or lesser-known works, sometimes even direct references from former translations of the same text or the insertion of allusions to cultural and socio-political elements in the context where the original work was published.”
  • 3

Referências

  • Assis, Machado de. A Chapter of Hats: Selected Stories by Machado Assis Tradução de John Gledson. Londres: Bloomsbury, 2008.
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  • Assis, Machado de. The Collected Stories of Machado de Assis Tradução de Margareth Jull Costa & Robin Patterson. Nova York: Liveright Publishing Corporation, 2018.
  • Assis, Machado de. The Psychiatrist & Other Stories Tradução de W. L. Grossman & Helen Caldwell. Berkeley: University of California Press, 1963.
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    » https://doi.org/10.1093/fmls/cqm005
  • Genette, Gérard. Palimpsestos: a literatura de segunda mão Traduzido por Luciene Guimarães & Maria Antônia R. Coutinho. Ed. bilíngue. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2005.
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    » http://www.machadodeassis.net/hiperTx_romances/obras/papeisavulsos.html
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  • The Bible: Authorized King James Version with Apocrypha Oxford: Oxford University Press, 1997.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Ago 2022
  • Aceito
    22 Jan 2023
  • Publicado
    Abr 2023
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