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ENTREVISTA COM FAN XING

Fan Xing é professora assistente do Departamento de Espanhol, Português e Italiano (https://deyp.sfl.pku.edu.cn/) da Universidade de Pequim, atuando nas áreas de Literatura Brasileira, Estudos Culturais e Tradução Literária. É doutora e mestre em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Traduziu do português para o chinês Tenda dos Milagres, A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água, Três Contos Ilustrados e O Menino Grapiúna, de Jorge Amado; Brasil: País do Futuro, de Stefan Zweig; O Demônio e a Srta. Prym, de Paulo Coelho; Jesusalém, de Mia Couto, entre outros. Fan Xing participou como colaboradora e tradutora da edição bilíngue chinês/português do livro de Ai QingQing, Ai & Hardman, Francisco Foot (Org.). Viagem à América do Sul. Tradução de Fan Xing. São Paulo: Editora da Unesp, 2019. Viagem à América do Sul, que recebeu o prêmio ABEU em 2020 e no mesmo ano foi um dos finalistas do Prêmio Jabuti na categoria tradução. A sua tradução de Jesusalém foi eleita como um dos dez melhores livros em 2018 pelo jornal chinês Jing Bao. Além de se dedicar ao ensino da língua portuguesa e da tradução literária, Fan Xing também faz pesquisas na área e tem publicado frequentemente artigos em revistas da China e do Brasil. Nesta entrevista, Fan Xing nos conta sobre o seu percurso acadêmico, a sua carreira como professora universitária de língua portuguesa, o interesse do mercado chinês pelas obras literárias de língua portuguesa e ainda compartilha a sua experiência como tradutora literária.

Cadernos de Tradução (CT): Poderia nos contar sobre o seu percurso acadêmico, iniciando com a sua formação na graduação em Português na Universidade de Pequim?

Fan Xing (FX): Fui aluna da primeira turma de Português da Universidade de Pequim. Entrei em setembro de 2007 e me formei em julho de 2011. Entre 2009 e 2010, a nossa turma fez um ano de intercâmbio no Instituto Politécnico de Macau1 1 A partir de 01 de março de 2022, o Instituto Politécnico de Macau passou a ser designado Universidade Politécnica de Macau. . Em fevereiro de 2012, entrei no programa de mestrado no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, e a partir de 2014, comecei a fazer doutorado na mesma instituição. Em março de 2017, defendi a tese intitulada “Criança Isolada e Ato de Resistência: Uma poética da infância em Infância de Graciliano Ramos”2 2 Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12733/1631281. . Poucos meses depois, passei no concurso da Universidade de Pequim para ser professora assistente no curso de língua portuguesa.

(CT): Como eram as disciplinas do curso: havia alguma específica de tradução? Em caso afirmativo, quais foram os primeiros textos que traduziu? Que desafios encontrou?

(FX): Nos primeiros dois anos da graduação os alunos tinham aulas de leitura intensiva (para aprender a gramática) e extensiva (para ampliar o vocabulário), compreensão oral, redação, além da história e cultura de Portugal e do Brasil. No terceiro ano, quando estávamos em Macau, tínhamos aulas de tradução e interpretação. Na aula de tradução, a professora Min Xuefei nos mandou traduzir “Adeus”, de Eugênio de Andrade; “A Aia”, de Eça de Queiroz; “Felicidade Clandestina”, de Clarice Lispector, capítulos de O vencedor está só, de Paulo Coelho etc., enfim, uma grande variedade de textos literários. Para mim, cada texto apresentava-se como um desafio singular. É difícil manter o sentido poético de Eugênio de Andrade, buscar equivalentes para as metáforas de Eça de Queiroz (por exemplo, “Uma roca não governa como uma espada”), entender completamente o que Clarice queria expressar; a naturalidade dos diálogos de Paulo Coelho (ainda me lembro que ele usou muitas vezes a palavra “droga” como exclamação e eu, naquele momento, não sabia como traduzir “adequadamente”).

(CT): Como foi seu primeiro contato com as literaturas de língua portuguesa?

(FX): Comecei a ler as traduções de obras de José Saramago no primeiro ano da faculdade e gostei muito. A partir do segundo ano, podíamos ler alguns livros diretamente em português, como por exemplo, A Menina do Mar, de Sophia de Mello Breyner Andresen. No terceiro ano, lemos contos de Mia Couto, Miguel Torga, Sophia de Mello Breyner Andresen na aula de português. E na aula de literatura portuguesa, estudamos os romances de Camilo Castelo Branco, Almeida Garrett, Eça de Queiroz. No último ano de universidade, tínhamos aulas de literatura brasileira, e lemos Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Graciliano Ramos, Jorge Amado etc.

(CT): Qual foi a sua primeira tradução e como se deu o processo?

(FX): No final do terceiro ano da faculdade, fui recomendada pela professora Min Xuefei para traduzir o Demônio e a Srta. Prym, de Paulo Coelho. Traduzi um capítulo para comprovar a minha capacidade de tradução, fui aprovada e assinei o contrato diretamente com a agência de publicação. O livro saiu em 2011, quando eu me formei na graduação.

(CT): Você já traduziu diversas obras literárias da língua portuguesa para o chinês. Pode nos contar sobre a sua carreira tradutória? E quais foram as obras de língua portuguesa que traduziu até o presente momento?

(FX): Logo depois do lançamento do Demônio e a Srta. Prym, comecei a traduzir do português o livro Brasil: O País do Futuro, de Stefan Zweig. Zweig é um escritor austríaco muito famoso na China e, quando eu entrei na faculdade, quase todos os livros dele já tinham sido traduzidos para o chinês. Mas Brasil: O País do Futuro era uma exceção. Li o livro em português quando estava no segundo ano e gostei muito. Sabendo da minha paixão pelo livro, a professora Min Xuefei entrou em contato com um editor que concordou em publicar a minha tradução. Terminei a tradução do livro Brasil: O País do Futuro no final de 2011 e no início de 2012 comecei a cursar o mestrado. Como a minha dissertação foi sobre Jorge Amado, traduzi vários livros do escritor baiano entre 2012 e 2014, tais como Tenda dos Milagres, A morte e a morte de Quincas Berro d’Água, Três contos ilustrados, O Menino Grapiúna. Naquela época, eu também traduzi quatro contos publicados na revista Granta, de uma edição dedicada aos melhores jovens escritores brasileiros. Em 2015, comecei a traduzir os poemas de Ai Qing, em colaboração com o professor Francisco Foot Hardman3 3 Para mais informações sobre esse projeto, ver entrevista publicada em Cadernos de Tradução v. 42, n. 1, 2022. Disponível em: . . O projeto levou 4 anos para ser terminado e o livro Viagens à América do Sul só saiu em 2019. O último romance que traduzi foi Jesusalém, de Mia Couto, que foi publicado em 2018. Além de obras citadas anteriormente, também traduzi vários livros infantis, tais como O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, A Bola e o Goleiro, de Jorge Amado; A Água e a Águia, O Beijo da Palavrinha, O Gato e o Escuro, de Mia Couto.

(CT): Você já ganhou algum prêmio nacional ou internacional por suas traduções?

(FX): Na China, Jesusalém foi eleito como um dos dez melhores livros em 2018, pelo jornal Jing Bao de Shenzhen. No Brasil, Viagem à América do Sul ganhou o primeiro lugar do Prêmio da Associação Brasileira de Editoras Universitárias (ABEU) e foi um dos cinco finalistas do Prêmio Jabuti de 2020.

(CT): Entre as suas traduções literárias, destacam-se as obras de Jorge Amado e Mia Couto. A escolha foi sua ou foi uma preferência das editoras em contratar a mesma tradutora?

(FX): Na verdade, as obras de Jorge Amado foram publicadas por diversas editoras. Assim como respondi anteriormente, a minha dissertação é sobre Jorge Amado. Portanto, para mim, a tradução e a pesquisa se apoiam mutuamente. Usei na minha dissertação os livros traduzidos por mim como referências bibliográficas e escrevi posfácios para todos os romances que traduzi. Os posfácios de Tenda dos Milagres e A morte e a morte de Quincas Berro d’Água foram publicados no Jornal de Literatura e Arte (Wen Yi Bao) como artigos acadêmicos em 2014 e 2016, respectivamente. E em 2019, a minha pesquisa sobre a cultura mestiça do Brasil em Tenda dos Milagres foi publicada na revista Foreign Literature Review4 4 Disponível em: http://www.nssd.cn/articles/article_detail.aspx?id=7001384904. , o melhor periódico acadêmico na China da área da literatura estrangeira. Quanto a Mia Couto a história é outra, considerando que normalmente só traduzo obras brasileiras ou relacionadas com o Brasil. Aceitei traduzir Jesusalém porque a Editora Citic Press ia lançar três livros de Mia Couto ao mesmo tempo, e os outros dois livros, Terra Sonâmbula e A Confissão de Leoa, estavam sendo traduzidos pelas minhas colegas do departamento. Naquele momento, não tínhamos tempo para conseguir outro tradutor habilitado e experiente, por isso eu aceitei o contrato. Depois do lançamento de Jesusalém, a editora me convidou para traduzir mais três livros infantis de Mia Couto. Aceitei o convite por dois motivos: li e gostei das histórias de Mia Couto; os livros têm poucas páginas e podem ser traduzidos em pouco tempo.

(CT): Você sugere textos de língua portuguesa para as editoras?

(FX): Neste ano fui contratada pela Editora Lijiang como consultora especial de literatura brasileira. Criamos um projeto designado “Pau-Brasil” e vamos publicar de 15 a 18 títulos da literatura brasileira contemporânea nos próximos cinco anos. Já escolhi seis livros para compor a primeira série e a editora está negociando os direitos autorais. Por isso ainda não posso revelar quais são os livros. Além disso, também ajudo outras editoras a escolherem livros e recomendo tradutores qualificados. Normalmente as editoras chinesas na área de literatura estrangeira conhecem agências literárias internacionais que recomendam obras de língua portuguesa. Antes de comprar os direitos autorais, as editoras solicitam o nosso parecer antes da decisão final.

(CT): Você poderia nos falar sobre a recepção na China de obras traduzidas de língua portuguesa? Há público interessado?

(FX): Sim, há público interessado, mas os motivos desse interesse são muito variados: José Saramago é bem aceito na China porque foi ganhador do Prêmio Nobel da Literatura; Paulo Coelho vende bem porque é best-seller internacional; O Meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro de Vasconcelos fez muito sucesso na China por duas razões principais: apareceu numa novela coreana muito famosa na China e porque o editor responsável pelo livro sabe bem como divulgar os livros. Nos últimos anos, Fernando Pessoa, Clarice Lispector e Agualusa estão atraindo cada vez mais leitores chineses, sendo aclamados tanto pelos críticos quanto pelo público. Por outro lado, os livros de Mia Couto e Antônio Lobo Antunes, mesmo que tenham recebido elogios dos resenhistas e pesquisadores literários, não vendem tão bem como Agualusa ou Saramago.

(CT): Antes de começar a traduzir uma obra literária, você faz algum trabalho preparatório para conhecer o estilo do autor ou da obra em si?

(FX): Sim, preciso ler a obra inteira para decidir se aceito o contrato ou não. Por exemplo, mesmo que reconheça o valor e a importância de Cidade de Deus, de Paulo Lins, não aceitaria traduzir a obra pois não conheço bem as gírias de rua chinesa. Como posso arranjar três formas diferentes para traduzir “baseado”, “bagulho” e “crivo” se só conheço a tradução de “maconha”?

(CT): Durante a realização da tradução de obras literárias, você segue, conscientemente, algum método de tradução, ou usa algum tipo de teoria da tradução?

(FX): Não conheço bem as teorias da tradução. Porém, quando traduzo as obras literárias, quero manter o máximo possível o estilo e o charme literário do texto original. Por exemplo, Jorge Amado é um ótimo contador de histórias, até as pessoas de pouca escolaridade gostam de ler os romances dele. Então, é muito importante manter a fluidez do texto e evitar aos leitores chineses dificuldades de compreensão. Por isso, traduzo “corno” em português como “chapéu verde” em chinês, para implicar “homem traído pela mulher”. E acrescento a função dos orixás do Candomblé, traduzindo “oxun” como “Oxum, a deusa do rio”, para que os leitores possam continuar a leitura sem precisar parar para consultar as notas de rodapé. Quanto a Mia Couto, que é reconhecido como poeta e romancista, o mais importante é reproduzir o valor poético da sua obra e garantir que os leitores chineses possam sentir a mesma surpresa e estranheza que os leitores de língua portuguesa sentem. Por isso, faço questão de manter os neologismos, jogos de palavras, entre outros.

(CT): Entre os autores que traduziu, quem foi o mais complexo em termos de tradução? Quais foram os principais desafios encontrados durante a tradução? E como fez para superá-los?

(FX): O mais complexo foi Graciliano Ramos. Traduzi Infância e vários contos dele, mas não publiquei nenhum, porque acho que a tradução ainda não está satisfatória. Comecei a traduzir Graciliano Ramos porque a minha tese analisou Infância, um livro autobiográfico dos primeiros anos do autor. Gostei muito do livro e queria apresentá-lo aos leitores chineses, mas não consegui manter o estilo conciso e preciso.

(CT): Você traduz do português para o chinês e do chinês para o português? Poderia comentar as especificidades desse processo?

(FX): Sim, traduzi do chinês para o português Viagens à América do Sul, em colaboração com o professor Francisco Foot Hardman. Seja traduzindo do português para o chinês, seja do chinês para o português, acredito que as minhas traduções são “fiéis” e precisas, mas só no primeiro caso posso garantir que o valor estilístico e literário do autor é mantido. Quando traduzo uma obra literária do chinês para o português, preciso de um colaborador e de um revisor.

(CT): Você se considera autora ou/e coautora dos livros que traduz? Em outras palavras, na sua perspectiva, qual é a tarefa e qual o papel do tradutor?

(FX): Não me considero coautora dos livros que traduzo, o que não significa que eu não reconheça a importância da tradução. Contudo, sendo uma tradutora e pesquisadora ao mesmo tempo, entendo que escrever (de forma original) é um processo totalmente diferente e muito complexo do que traduzir. O dever do escritor é criar coisas completamente novas, enquanto o do tradutor é recompor as coisas já criadas em uma nova língua. Ou seja, para que uma obra de tradução seja feita de maneira satisfatória, é indispensável um bom tradutor, isso é verdade, mas ele não é autor, pois desempenha outro papel, assim como os editores ou organizadores. Por isso, na minha opinião, o tradutor deve ser orgulhoso e humilde ao mesmo tempo. Humilde porque precisa entender que ele não é autor, a sua tarefa não é criar as coisas, mas traduzi-las mantendo ficar o mais próximo possível do autor; orgulhoso porque traduzir, mantendo o conteúdo e o estilo, é uma tarefa muito difícil, e é necessário usar estratégias criativas para realizar tal objetivo.

(CT): Entre as traduções literárias que já realizou, existe uma tradução que é a sua preferida? Por quê?

(FX): Sim, há uma preferida: Brasil: País do Futuro. Mesmo que não seja uma tradução direta, é o livro que me levou ao Brasil para estudar literatura brasileira, então essa obra ocupa um lugar muito especial na minha carreira. Nos quatro anos de faculdade, estudamos português de Portugal, e foi através dos autores portugueses que estabeleci os primeiros contatos com a literatura de língua portuguesa. Porém, depois de ler Brasil: País do Futuro em português no segundo ano de faculdade, com muita dificuldade e com ajuda de um dicionário impresso, fiquei fascinada pelo Brasil. Quando finalmente tive a oportunidade de traduzir o livro para chinês, dediquei 6 meses inteiros a esse trabalho, pois entre julho de 2011 (fim da graduação) e fevereiro de 2012 (início de mestrado) não tinha outra coisa para fazer. O primeiro autor que traduzi foi Paulo Coelho. Mas é a partir de Brasil: País do Futuro que comecei a ser reconhecida como uma boa tradutora. Não escrevi nada para O Demônio e a Srta. Prym, mas foi com o livro de Zweig que estabeleci o costume de escrever posfácios para os livros que traduzo. Além disso, Brasil: País do Futuro também é a primeira tradução minha que ganhou uma segunda edição. Na primeira edição foram impressos 20.000 exemplares, e na segunda 10.000.

(CT): Há autores e obras que você gostaria de traduzir?

(FX): De romances, gostaria de traduzir O Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto; Macunaíma, de Mário de Andrade; São Bernardo; de Graciliano Ramos e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa; de contos, Sagarana, de Guimarães Rosa; de poemas, Morte e Vida Severina e outros poemas, de João Cabral.

(CT): Como está o mercado de tradução de obras literárias de língua portuguesa na China?

(FX): Acho que, nos últimos 10 anos, há cada vez mais procura por obras literárias de língua portuguesa no mercado chinês. Tanto a Copa do Mundo de 2014 quanto os Jogos Olímpicos de 2016 ajudaram na divulgação da literatura brasileira na China. Autores como Mia Couto e Agualusa ganharam fama por causa dos prêmios internacionais. A ampliação dos cursos de língua portuguesa na China também contribui para dar maior visibilidade às literaturas de língua portuguesa.

(CT): A tradução literária é valorizada na China? E a posição dos tradutores? São invisíveis?

(FX): É e não é. Me parece que há alguns tradutores famosos cujas traduções são muito valorizadas na China. Mas a grande maioria dos tradutores são invisíveis mesmo. Além disso, normalmente o preço de tradução também é muito baixo na China.

(CT): Você é professora de português da Universidade de Pequim. Há disciplinas de tradução no curso que você leciona? Em caso afirmativo, como são organizadas essas aulas?

(FX): No nosso curso, tem uma disciplina anual que se chama “Tradução Literária”, ministrada pela professora Min Xuefei. A disciplina foi criada em 2019 e, na primeira turma, os alunos traduziram alguns contos de Machado de Assis. Cada aluno se responsabilizou por dois contos diferentes. Logo que a tradução foi feita, a professora Min Xuefei fez uma revisão detalhada e discutiu com os alunos na sala de aula. Em 2020, depois de terminar a disciplina, as traduções foram reunidas no livro Contos selecionados de Machado de Assis, publicado pela editora Citic Press.

(CT): As traduções que você realizou têm sido utilizadas em pesquisas acadêmicas?

(FX): Sim, eu mesmo aproveitei as minhas traduções de Jorge Amado para fazer pesquisas acadêmicas. Além dos artigos a que me referi acima, também escrevi um livro que estuda as contribuições de Jorge Amado para a construção da identidade nacional brasileira. O livro foi lançado em 2022 pela Commercial Press, uma das maiores editoras na China. Outros pesquisadores também têm se dedicado às obras amadianas nos últimos anos. Por exemplo, Gu Lili publicou em Wen Hui Bao, jornal fundado em 1938 para divulgar culturas e pensamentos, uma resenha dedicada à A morte e a morte de Quincas Berro d’Água intitulada “Em nome de carnaval, tudo é possível”; Fu Hao publicou no periódico Nan Feng Chuang “O efeito do samba em Tenda dos Milagres”. As obras de Mia Couto também estão chamando a atenção dos pesquisadores. Li Xiaoying, uma professora associada da Universidade de Guangxi, acabou de publicar um artigo acadêmico que analisa a visão de vida e morte em Jerusalém.

(CT): Ao levar em consideração a sua própria experiência de tradução e estudos literários e os novos tempos, você pode nos dizer quais desafios poderiam ter os tradutores e professores de língua portuguesa na China no que diz respeito à tradução de obras de língua portuguesa ou vice-versa?

(FX): A meu ver, “novos tempos” significam, em primeiro lugar, tempos da tecnologia e informação. Numa época em que os tradutores automáticos estão cada vez mais “inteligentes”, os leitores e alunos também têm expectativas mais altas tanto em relação às obras traduzidas quanto aos professores que lecionam a disciplina de tradução. E em segundo lugar, “novos tempos” também significam novos rumos de pesquisa acadêmica e novas necessidades de comunicação intercultural, que exigem conhecimentos profundos e interdisciplinares. Em ambas as perspectivas, os tradutores e professores precisariam ser especialistas de uma (ou mais de uma) área, além de dominar as línguas. Gostaria de levantar alguns exemplos a respeito, como a revisão de duas obras traduzidas por meus alunos: Uma Breve História do Brasil, de Mary del Priore e Renato Venâncio, publicada em 2022 pela Commercial Press e 1808, de Laurentino Gomes, também publicada em 2022 pela Shanghai People’s Press. Sendo livros de história brasileira, contém palavras e orações que não se usam no dia a dia e não têm equivalência em chinês, tais como capitania, missão (jesuíta), bandeirante etc. Então, precisamos inventar palavras novas em chinês, traduzindo capitania como território donatário-feudal (分封「地), missão como aldeia missionária (「「村), bandeirante como homens de bandeira (旗士). Além disso, é possível que uma palavra portuguesa seja traduzida de formas diferentes em chinês, como por exemplo, o termo “colono”. Quando se refere aos primeiros portugueses que habitaram no Brasil, pode ser traduzido como “colonizador” (殖民者); e quando se fala sobre os imigrantes europeus que chegaram no Brasil no Século XIX, seria melhor traduzir por lavrador (佃「). Mas às vezes a escolha de uma forma e outra não é tão fácil e cada página de livro pode ter dezenas de palavras assim. Por isso, só as pessoas que conhecem suficientemente a história do Brasil podem traduzir bem os livros dessa área. Até onde eu sei, na China continental não se publicou nenhum livro da história do Brasil diretamente do português e os livros de Mary del Priore e Laurentino Gomes seriam os primeiros. No futuro, acredito que veremos obras brasileiras de outras áreas de conhecimento. Em vista disso, acho que os desafios que enfrentamos nesta época também são oportunidades para refletir e melhorar nossos trabalhos.

Referências

  • Guerini, Andréia; Li, Ye. “Entrevista com Fan Xing e Francisco Foot Hardman”. Cadernos de Tradução, 42(1), p. 1-13, 2022. DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e84008.
    » https://doi.org/10.5007/2175-7968.2022.e84008
  • Qing, Ai & Hardman, Francisco Foot (Org.). Viagem à América do Sul Tradução de Fan Xing. São Paulo: Editora da Unesp, 2019.

Publication Dates

  • Publication in this collection
    17 Nov 2023
  • Date of issue
    2023

History

  • Received
    01 Feb 2023
  • Accepted
    22 Feb 2023
  • Published
    Mar 2023
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