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Vigotski e Bakhtin: a ação educacional como projeto dialógico de produção de sentido

Resumos

Este texto se propõe a estabelecer um diálogo entre Vigotski e Bakhtin, tomando como parâmetros o quadro referencial de conceitos associados à orientação vigotskiana sobre Zona de Desenvolvimento Imediato e à orientação bakhtiniana sobre o dialogismo da linguagem. Utilizando tais parâmetros, propõe-se a refletir sobre a fundamentação do processo educacional através de princípios teóricos ou aforismas que afirmam a especificidade da mediação com que se realiza a relação educador/educando.

Vigotski; Bakhtin; Zona de desenvolvimento imediato; Dialogismo; Mediação


This paper aims at establishing a dialogue between Vygotsky and Bakhtin, using Vygotsky's concepts associated with the zone of immediate development and Bakhtin's concepts related to dialogism as theoretical parameters. By using these parameters, it proposes to reflect upon the educational process through the theoretical principles or aphorisms which claim the specificity of the mediation that establishes the educator/educatee relation.

Vygotsky; Bakhtin; Zone of immediate development; Dialogism; Mediation


ARTIGOS

Vigotski e Bakhtin: a ação educacional como projeto dialógico de produção de sentido

Júlio Flávio de Figueiredo FernandesI; Mauro Giffoni CarvalhoII; Edson Nascimento CamposIII

IProfessor na Universidade Estadual de Minas Gerais – UEMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil; profjuliofernandes@hotmail.com IIProfessor na Universidade Estadual de Minas Gerais – UEMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil; maurogiffoni@yahoo.com.br IIIProfessor na Universidade Estadual de Minas Gerais – UEMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil; edncampos@gmail.com

RESUMO

Este texto se propõe a estabelecer um diálogo entre Vigotski e Bakhtin, tomando como parâmetros o quadro referencial de conceitos associados à orientação vigotskiana sobre Zona de Desenvolvimento Imediato e à orientação bakhtiniana sobre o dialogismo da linguagem. Utilizando tais parâmetros, propõe-se a refletir sobre a fundamentação do processo educacional através de princípios teóricos ou aforismas que afirmam a especificidade da mediação com que se realiza a relação educador/educando.

Palavras-chave: Vigotski; Bakhtin; Zona de desenvolvimento imediato; Dialogismo; Mediação

ABSTRACT

This paper aims at establishing a dialogue between Vygotsky and Bakhtin, using Vygotsky's concepts associated with the zone of immediate development and Bakhtin's concepts related to dialogism as theoretical parameters. By using these parameters, it proposes to reflect upon the educational process through the theoretical principles or aphorisms which claim the specificity of the mediation that establishes the educator/educatee relation.

Keywords: Vygotsky; Bakhtin; Zone of immediate development; Dialogism; Mediation

Introdução

Lev Semenovich Vigotski (1896-1934) e Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975) figuram entre os teóricos, do início do século XX, que mais privilegiaram a dimensão interativa das atividades humanas, de grande alcance para os estudos da linguagem, no caso de Bakhtin, e da educação, no caso de Vigotski. Suas contribuições, sob inspiração dos pressupostos materialistas históricos, chamaram a atenção para a dimensão das relações e da ação mediada (VIGOTSKI, 1991; BAKHTIN, 2010a).

Um dos problemas enfrentados pelos dois autores era o de compreender, nos domínios da palavra e da consciência, interseções, disjunções, deslocamentos, aproximações, afastamentos e limites, cuja materialização possibilitasse diversos modos de realização da linguagem em sua inserção nas relações sociais de aprendizagem e de construção do conhecimento.

Ligados às suas próprias coordenadas de tempo e espaço, e por suas vivências face aos acontecimentos da investigação do materialismo histórico do início do século XX, Vigotski e Bakhtin foram capazes de perceber o fundamento da natureza dialógica da experiência humana como elemento essencial para compreensão e transformação da realidade. Na relação educativa - por excelência, o espaço da dialogia - constroem-se os conhecimentos e habilidades sociais num processo de interação que pressupõe encontros e colisões de ideias, com movimento polifônico e posições enunciativas entre educadores e educandos entendidas como acontecimentos totalmente contingentes e singulares, e com efeitos decisivos para a apropriação subjetiva das construções culturais, sejam elas científicas, artísticas ou advindas da experiência.

Neste trabalho, apresentamos, inicialmente, algumas considerações sobre conceitos-chave para compreender a dimensão dialógica da interação pressuposta na ação educativa. Em seguida, numa perspectiva bakhtiniana, sintetizamos, em dez categorias temáticas, articulações teóricas sobre os efeitos discursivos da efetivação do projeto vigotskiano da zona de desenvolvimento imediato.

Dialogismo e Zona de Desenvolvimento Imediato

Bakhtin (1997; 2010a) problematizou a perspectiva da mediação como determinação recíproca da responsividade e da responsabilidade dos interlocutores: responsividade, visto que cada lance da relação dialógica se dá como resposta à posição da alteridade, constituinte do diálogo (BAKHTIN, 2010a); responsabilidade, na medida em que não há álibi quanto aos efeitos da posição arquitetônica de cada um dos agentes na relação dialógica (BAKHTIN, 2010b). Essa condição já se materializava com a imagem da ponte:

A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV,1999, p.113).

Para esse autor, a riqueza do processo de constituição dos enunciados dos interlocutores é produto da força de enunciação da linguagem, cujo movimento expressa a não-coincidência do sentido do dizer dos agentes. A mediação, então, é justamente o terreno da tensão entre enunciados no trabalho de construção do laço representado pela ponte.

Outro elemento essencial da concepção de mediação em Bakhtin refere-se ao excedente de visão presente no encontro entre interlocutores. Ambos se posicionam em exotopia, isto é, em exterioridade em relação ao dizer do outro (BAKHTIN, 2010a). A responsividade e a responsabilidade dos interlocutores baseiam-se e manifestam-se nessa distinção que é, ao mesmo tempo, índice da alteridade e da aproximação presentificada pelas possibilidades discursivas. O diálogo que se constitui na interação realizada com a materialidade da linguagem verbal e não-verbal é dotado de um certo acabamento. Entretanto, dada a tensão dialógica, na convivência de coincidência e não-coincidência entre os dizeres, prevalece seu caráter de inacabamento e destaca-se o movimento constitutivo do dialogismo como anteposição de palavra e contrapalavra dos interlocutores.

Já Vigotski (1991; 2009), em meio às investigações no seio de sua concepção dialética das relações entre o sujeito e o social, entre o individual e o grupal, cunhou a noção de Zona de Desenvolvimento Imediato (ZDI). Não se trata de uma "zona" ideal pela qual se confrontasse abstratamente o vivido e o possível nem de uma concepção reducionista, pela qual se considerasse uma transferência mecânica das capacidades do grupo para capacidades individuais. Quando busca entender o ato de pensar presente em operações como "dedução, compreensão, evolução de noções de mundo, interpretação da causalidade física, o domínio das formas lógicas de pensamento e o domínio da lógica abstrata" (VIGOTSKI, 1991, p.90), inversamente ao que se concebia a partir de uma posição naturalizante do pensamento humano, Vigotski vê operações necessariamente constituídas nas relações eu/outro.

Para Vigotski, "os processos de aprendizagem e desenvolvimento não são dois processos independentes ou o mesmo processo, e existem entre eles relações complexas" (VIGOTSKI, 2009, p.310). Entretanto, as relações sociais que as aprendizagens implicam situam o desenvolvimento do ato de pensar em um lugar dependente e não de causa das aprendizagens. Por isso, os processos formais de escolarização gozam de tão grande valor em nossas sociedades.

Pelo acento colocado nas aprendizagens, Vigotski dá à noção de desenvolvimento um novo caráter: o surgimento do ato de pensar terá para ele um sentido cultural e histórico e não um sentido naturalizante. Nisso difere dos psicólogos do final do século XIX e início do século XX e, em função disso, se atribui a seu trabalho a denominação de teoria "sócio-histórica", expressão de Leontiev1 1 LEONTIEV, A. N., 1983, apud Prestes, 2010. . Segundo este último autor, Vigotski, em sua noção de desenvolvimento, contrapõe o cultural ao natural (LEONTIEV, 1983, p. 19 apud PRESTES, 2010, p.126)2 2 IAROCHEVSKI, M. G. (2007). Obra em russo, citada por Prestes (2010), afirma que "Vigotski não deu nome algum a sua teoria, assim como também é sabido que a ela, atualmente, são atribuídos diferentes nomes: sócio-histórica, sócio-cultural, sócio-interacionista" (PRESTES, 2010, p.126). . Para se afastar da ideia de pensamento "na forma 'pura', completamente independente do aprendizado" (VIGOTSKI, 1991, p. 90), Vigotski concebe uma inusitada teoria do desenvolvimento do pensamento como elemento tensionado pelas aprendizagens às quais os sujeitos são submetidos ao longo da vida, e não o contrário (VIGOTSKI, 2009, p.336). A crença em uma forma pura ideal do pensamento era, na concepção de Vigotski, consequência do esquecimento da dimensão dialógica, constituinte das relações sociais.

Em toda situação educativa, a relação assimétrica entre um sujeito aprendiz e a fonte do saber que ele busca (pessoas mais experientes, objetos da cultura, instrumentos de trabalho) faz aparecer uma diferença entre capacidades já adquiridas e aquelas conquistadas pelo grupo social. É nessa direção que se apresenta para Vigotski a necessidade teórica de formular um conceito fundante: o de uma zona intermediária entre aquilo que o grupo social já desenvolveu, coletivamente, como capacidade potencial de cada indivíduo que venha pertencer ao grupo, e aquilo que um aprendiz possa ter de capacidade já desenvolvida. À capacidade já desenvolvida, isto é, "aquilo que elas [as pessoas] conseguem fazer por si mesmas", Vigotski denomina de "nível de desenvolvimento real" (VIGOTSKI, 1991, p.97), uma vez que é assim referida pela maioria das investigações de sua época. Àquilo que o grupo social pretensamente teria de capacidade já desenvolvida e que pode ser transmitido de alguma forma aos aprendizes, ele denomina de "desenvolvimento potencial" (VIGOTSKI, 1991, p.97). Entre esses dois momentos lógicos da constituição do saber está a zona de desenvolvimento imediato (ou iminente)3 3 Prestes (2010, p.109-110), discutindo a tradução da expressão russa zona blijaichego razvitia, diz que a expressão em português "zona de desenvolvimento iminente" a traduziria com vantagens em relação à palavra "proximal" ou "imediato", este último termo proposto por Bezerra (2009, p.X-XI). Essa discussão, além de se ater à equivocidade dos usos da linguagem, indica as dificuldades da tradução dos conceitos de Vigotski, cujo teor merece cuidados terminológicos. De toda sorte, para nossos propósitos, a imediaticidade ou a iminência do desenvolvimento em causa são dependentes da mediação e sem ela não tem lugar. , que representa, na teoria de Vigotski, uma capacidade pertencente ao mesmo tempo ao aprendiz e ao grupo social, mas que somente é exercida pelo aprendiz na relação com os outros, isto é, em situação de mediação.

As aproximações possíveis entre Bakhtin e Vigotski, voltadas para compreender a interação educacional, exigem que a pensemos como ocorrência social, inserida em uma estrutura político-econômica e calcada na constituição da cultura. Para explicitar de modo articulado alguns sentidos da aproximação entre os dois autores, apresentamos a seguir dez aforismas, que pretendem levar o leitor a refletir sobre a dimensão dialógica da ação educativa.

I - A constituição da sociedade opera por mediação

A relação que constitui a sociedade pode ser entendida do ponto de vista da mediação. Ou seja, a relação entre a infraestrutura e a superestrutura não acontece como relação causal em que a infraestrutura, unilateralmente, determinaria o funcionamento da superestrutura. A relação acontece pela determinação recíproca da superestrutura e da infraestrutura (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1999), o que significa dizer que tal relação acontece por mediação. Por isso, é possível dizer que a educação, na construção da sociedade, não é um fenômeno que se localizaria apenas na superestrutura, mas um fenômeno de superestrutura que é determinado, em parte, pela infraestrutura da sociedade. Isso significa dizer, ainda, que tal fenômeno é determinado, também, em parte pela superestrutura, que reproduziria o projeto econômico da infraestrutura ainda que opere como força que atua, contraditoriamente, com a especificidade do que é próprio da educação, no sentido da transformação das relações localizadas no econômico. Por isso, é possível dizer que a educação, no interior de uma sociedade, como força de mediação, atua na determinação recíproca, das posições estruturais ou estruturantes, da organização social, assumindo uma direção de sentido atravessada pela reprodução e pela contradição.

II - A mediação na educação opera por interação

A mediação que opera a relação do educador com o educando, na especificidade daquilo que constitui o fenômeno educativo, acontece pela interação dos interlocutores localizados, enunciativamente, no movimento de linguagem dos agentes educacionais. Ou seja, o educador, ao atuar como locutor, constrói com a linguagem verbal e não-verbal um projeto de produção de sentido que o identifica como educador, tipificando, simultaneamente, do ponto de vista do educador, a identidade do educando, o que significa dizer que o educador e o educando, assim constituídos, constituem-se a partir da mediação de um projeto de linguagem. É claro que esse projeto, na direção significativa desenhada pela relação do educador com o educando, precisa ser marcado pela direção de sentido da reprodução, ainda que se deva e se possa admitir que o projeto do educador possa e deva ser atravessado pela mudança desenhada a partir da direção de sentido constituída pelo projeto de produção de sentido articulado pela força da contradição. Com isso, é preciso, então, admitir que a construção de linguagem, instituída na mediação educador/educando, é atravessada pela determinação recíproca da reprodução e da contradição na especificidade constituinte do que é próprio para a construção dialética, ou dialógica, da educação nos limites estruturantes da organização da sociedade.

III - A interação na educação opera por enunciação

Se o educador e o educando - na mediação, ou determinação recíproca, construída com as vozes de locutor e alocutário que atravessam a condição dos agentes educacionais como interlocutores de um projeto de produção de sentido - atuam com a linguagem, nessa atuação os interlocutores estão operando com uma propriedade da linguagem que não é a de se reduzir a mero veículo de produção e recepção de sentido, mas, ainda, e sobretudo, com a propriedade da ação que os mobiliza na interação. Essa ação, que acontece com a participação dos interlocutores, é que faz a experiência de linguagem acontecer como enunciação, ou seja, como ação interlocutiva praticada pelo locutor e pelo alocutário na mediação que os aproxima e os distancia enquanto agentes educacionais mobilizados, enfim, pela reprodução e pela contradição.

IV - A enunciação na educação opera o discurso

Se os interlocutores, educador e educando, nas posições específicas de locutor e alocutário, atuam com a propriedade de ação da linguagem na interação verbal e não-verbal que os aproxima e os distancia, o movimento de linguagem que ocorre nessa interação vai constituir o que seria a experiência do discurso, ou seja, aquela experiência de enunciação - de ação dos interlocutores – que é força mobilizadora daquilo que se constitui como os efeitos produzidos com a linguagem. Tais efeitos de sentido, que não se reduzem, evidentemente, aos efeitos esperados pelo projeto de palavra do locutor, se ampliam com os efeitos inesperados que têm origem, em parte, no projeto de contrapalavra do alocutário. É claro que essa experiência de produção de sentido, como experiência de discurso, ou seja, da ação interlocutiva da enunciação, não se reduz aos estritos limites do enunciado. Isso porque o processo que a institui só se realiza com a linguagem enquanto força que materializa, na forma legível e visível das possibilidades do enunciado - produto da enunciação, a força do processo teatral da enunciação, que não se reduz, enfim, nem à superfície de linguagem do produto, enunciado, nem se reduz à extensão dos espaços de ação do processo, enunciação. Isso traz à tona o postulado de que todo produto traz, no seu corpo, as marcas do processo que o institui: o enunciado traz no seu corpo as marcas da enunciação (BAKHTIN, 2010a).

V - Os efeitos discursivos da dependência e da independência na interação educativa: a reprodução e contradição – operadores da educação

O educador, nas relações assistemáticas e sistemáticas da educação informal e formal, mantém com o educando uma interação verbal e não-verbal alicerçada num projeto de aprendizagens assistemáticas e sistemáticas, sob a forma de uma construção enunciativa que institui o discurso do mais experiente e do menos experiente. O que se espera socialmente é que o discurso do mais inexperiente, o do educando, se submeta ao discurso instituído, ao do educador, em que se localiza a construção discursiva do mais experiente. E o que se constrói enunciativa e discursivamente é o efeito discursivo da dependência, submetendo, na mediação pedagógica, a dependência do educando ao educador e do educador ao educando, com o propósito de se instituir, como resultado, o efeito discursivo da independência dos agentes educacionais. Enfim, no processo educativo, informal e formal, a dependência é um efeito discursivo provisório que, enquanto projeto, atua como processo para a gestação, ou desenvolvimento, de outro efeito discursivo: o da independência. Por isso, é possível dizer que na provisoriedade da dependência reside, em tensão dialógica, o projeto da independência, o que confere ao processo educacional o caráter de movimento dialógico de produção de sentido atravessado, como mediação pedagógica, pela reprodução, em que se localiza o esperado pela tradição, e pela contradição, em que se localiza o inesperado da inovação.

VI - Os efeitos discursivos da dependência e da independência na interação educativa: operação do discurso educacional

Se o efeito discursivo do que é esperado, como construção enunciativa da tradição, institui na relação do educador com o educando uma interação centrada na reprodução, é possível dizer que o educador ocupa a posição enunciativa daquele que detém o controle do discurso educacional a fim de produzir o efeito discursivo da dependência para perpetuá-la, garantindo a si o lugar burocrático de quem decide e ao educando o lugar burocrático de quem não-decide. Mas o efeito discursivo do esperado, a dependência do educando na reprodução das relações burocráticas da organização da sociedade, com a mediação da especificidade das relações burocráticas da educação, pode, na prática da educação, conviver com o efeito discursivo do inesperado. Aqui o educando, até certo ponto, reproduz o discurso esperado, produzindo, em parte, os efeitos discursivos da dependência, mas, por outro lado, contradizendo o esperado, indicando, nessa contradição, a força enunciativa dos efeitos discursivos da independência como atividade responsiva e responsável do discurso que suscita a expressão do inesperado. Desse modo, o educando, até certo ponto, não decide, pois o ritual de decisão está sob o controle da ação burocrática de quem decide: o educador; mas, até certo ponto, decide, uma vez que a sua ação enunciativo-discursiva o coloca na posição contraditória de romper com as exigências reprodutoras do ritual de decisão da burocracia que controla as relações educacionais.

VII - A zona de desenvolvimento imediato (ZDI) como fenômeno de superação da dependência da interação educativa: operação discursiva

Se o efeito discursivo da dependência é produzido na relação do educador com o educando, o que se espera desse efeito é que ele seja a construção de linguagem que module a mediação pedagógica para o salto qualitativo da independência. Isso pelo seguinte: se o educando já é capaz de, por seus recursos próprios, ou por recursos que são originários de companheiros mais experientes, realizar, com a linguagem verbal e não-verbal, aquelas tarefas que antes só seriam possíveis pelo discurso da dependência instituída na relação com o educador, tem-se o educando na posição de quem, até certo ponto, reproduz a dependência inicial; e, até certo ponto, contraria tal reprodução, com a manifestação da contradição do novo que agora se inaugura, manifesto como efeito discursivo da independência. Assim, do ponto de vista da enunciação que o educando experimenta, o que ocorre é a posição enunciativa de um locutor integrado ao projeto de produção da independência esperada, o que pode fazer da experiência discursiva o espaço de produção de sentido que inaugura uma nova posição enunciativa: a posição da zona de desenvolvimento imediato, ou seja, a posição em que o educando opera nos limites de uma nova mediação pedagógica, em que se mostra capaz de fazer com independência o que antes fazia com dependência (VIGOTSKI, 1991; 2009).

VIII - Os agentes educativos na constituição dialógica da relação pedagógica

O educador, ocupando a posição dialógica de um, projeta para o educando, na posição dialógica de o outro, certo deslocamento, que o coloca numa certa exterioridade: um lugar fora, uma extralocalidade (BAKHTIN, 2010a). É dessa posição que o educador pode observar o educando, de modo singular, na mediação pedagógica: a de poder ver, de modo singular, o que o educando não pode observar em si próprio, ou seja, o observado não vê o que o observador observa. E é justamente dessa posição - ver o outro de fora - que o educador constitui a possibilidade de agir responsivamente, respondendo ao educando e assumindo, nesse agir, a responsabilidade para com o outro. E é, ainda, essa exterioridade do educando, projetada pelo educador, que possibilita a constituição, para o educando, de um excedente de visão que materializa um sentido que o educando não vê em si, pois o educador, da exterioridade, vê mais que o outro efetivamente pode ver. O educador vê o educando a partir de um tempo e de um lugar orientado por valores que singularizam o perfil da interação em que acontece, concretamente, a mediação pedagógica, vendo que a relação educativa é atravessada pela incompletude relativa dos agentes pedagógicos que, provisoriamente, vão adquirindo certa completude e certo acabamento, o que se harmoniza com a inevitável condição de incompletude e inacabamento que constitui o ser humano.

IX - A zona de desenvolvimento imediato (ZDI) como fenômeno de realização dialógica: da dependência à independência – efeitos discursivos da educação

A zona de desenvolvimento imediato, como construção enunciativa de um discurso que opera com a potencialidade de superação da dependência do educando ao educador, conta com a projeção pedagógica, efetuada pelo educador, a fim de efetivar seu trabalho educativo. O educador, nesse caso, responde à exigência da produção dialógica de certa exterioridade: o educador projeta para o educando outro lugar de produção de sentido. Dessa posição, o educando passa a ser observado pelos olhos alternativos do educador, passa a ser observado como agente educativo para o qual se produz certo excedente de visão, ou seja, o de um novo projeto de produção de sentido. Aqui o sujeito que habita a condição do educando está sendo articulado num projeto de dependência provisório, porque existe, a partir da efetivação dessa dependência funcional, a inclusão de outro projeto alternativo: o dos efeitos discursivos da independência. Nesse sentido, a constituição da experiência da zona de desenvolvimento imediato pressupõe, prévia e provisoriamente, a construção dialógica de um projeto de discurso marcado pelos efeitos discursivos da dependência do educando em relação ao educador. Mas, por outro lado, há, na realização da zona de desenvolvimento imediato, ainda, a projeção dialógica de uma nova exterioridade e de um novo excedente de visão: o educando, agora efetivada a constituição dos efeitos discursivos da dependência, é projetado pelo educador para ocupar um novo lugar, deslocando-se do lugar de dependência para o qual fora projetado, assumindo, nesse novo lugar de exterioridade, um novo excedente de visão: o projeto de sentido de quem realiza a sua ação enunciativo-discursiva com demonstrações de linguagem que indicam a presença dos efeitos discursivos da independência em relação ao educador. Nesses termos, é possível dizer que a zona de desenvolvimento imediato, a partir de Vigotski, pode ser pensada, com o dialogismo de Bakhtin, como espaço social de produção enunciativo-discursiva de efeitos de sentido que, dialogicamente, se articulam na tensão entre a reprodução da dependência do educando ao educador e, contraditoriamente, a superação desses efeitos discursivos de dependência com a incorporação dos efeitos discursivos da independência do educando em relação ao educador. Enfim, a zona de desenvolvimento imediato como processo de produção do desenvolvimento humano pela educação não acontece como trabalho de linguagem produzido pela mediação dos agentes educativos na interação que os mobiliza, senão pela duplicidade dialógica da exterioridade e do excedente de visão que delineiam os projetos de dependência e de independência do educando.

X - A zona de desenvolvimento imediato (ZDI) como mediação em que se pratica a responsividade e a responsabilidade da relação educativa

Na mediação que constitui a interação educador-educando, tal interação só se efetiva se o educador agir com a responsividade de quem responde ao educando, assumindo, com isso, a prática de responsabilidade que faz o educador se assumir e se constituir - enquanto posição dialógica de quem se organiza como um - como agente que é constituído por esse educando, organizado na posição dialógica de o outro - sem o que não haveria interação. Por isso, a dimensão da responsividade e da responsabilidade são orientações que, eticamente, movimentam o nascimento da interação constitutiva da mediação dos agentes educativos. Nesse sentido, tais dimensões atuam como forças que dinamizam, dentro da interação, a constituição dialógica da exterioridade do educando, ser dotado de incompletude relativa, ao ser descolado da condição habitual em que, até então, se encontrara pela ação praticada na história das mediações educativas sistemáticas e assistemáticas concretamente efetivadas. E nisso o educador, na posição de um, na incompletude relativa da condição que também o habita, observa o educando com um estilo de observação sui generis. Só ele corporifica tal estilo, pois o educando não pode ver a si com o olhar de observador daquele que responsiva e responsavelmente se propõe ao projeto de descolá-lo da condição de incompletude relativa que ocupa. E sem o que não seria possível a projeção, para esse educando, da produção de um excedente de visão, pois o educando, não podendo ver a si mesmo com a exterioridade projetada pelo educador, não pode ver, com os seus próprios olhos, os sentidos que materializam tal excedente. Assim, educar o educando, ou seja, fazê-lo sair de sua incompletude relativa, com a incompletude relativa do projeto responsivo e responsável do educador, materializado na exterioridade e no excedente de visão delineados para a interação dos agentes educativos, constitui ação que incorpora certo acabamento que também é relativo, pois os agentes são seres atravessados pelo inacabamento que os faz humanos. Por isso, na zona de desenvolvimento imediato, a constituição do primeiro projeto - em que a exterioridade e o excedente de visão que materializam os efeitos de linguagem, ou discursivos, da dependência, que dão conta de certa completude e de certo acabamento na relação educador-educando - precisa dialogar, em tensão dialógica, com um segundo projeto. Aqui, o primeiro projeto dialoga com a exterioridade e com o excedente de visão que materializam, responsiva e responsavelmente, a superação da dependência do educando em demonstrações públicas que desafiam a relação educativa na direção da conquista dos limites impostos pela sua independência. O que se espera, pois, no interior desse segundo projeto, reside na conquista da superação da relatividade da completude e do acabamento experimentados no primeiro projeto de efetivação dos efeitos discursivos da dependência. Com isso, é possível dizer que o projeto de produção de sentido, no discurso, ou linguagem, da zona de desenvolvimento imediato, constitui-se como realização dialógica de dois projetos que, contraditoriamente, se mobilizariam em reunião: o projeto dos efeitos discursivos da dependência e o projeto dos efeitos discursivos da independência como construções que, dialeticamente, seriam mobilizadas na mediação dialógica do movimento discursivo, ou de linguagem, dos agentes educacionais.

Considerações finais

Conforme as afirmações assumidas por nós neste trabalho, as relações educativas constituem-se de ações de mediação. Os elementos da cultura, advindos da criação artística, científica, do cotidiano são o material aos quais os encontros de ensino e aprendizagem dão conformação pessoal e irrepetível. Isso se torna possível desde que se configure, no diálogo educativo, o respeito e o incentivo aos projetos de autonomia e de apropriação da herança simbólica e material nos arranjos sociais de cada época.

Nessa herança destacam-se a condição e a potencialidade da linguagem de permitir a apropriação da palavra, em todas as suas possibilidades criativas e em toda a extensão da vida nos grupos sociais. Nos termos de Vigotski, é necessário permitir o exercício de zonas de desenvolvimento imediato para dotar os aprendizes da potencialidade dos grupos humanos, trabalho que, nos termos de Bakhtin, se constitui pelo diálogo responsivo e responsável – dialógico. A ação educativa é, portanto, na articulação dos saberes advindos de Vigostki e do pensamento bakhtiniano, privilegiadamente o lócus de investigações do dialogismo na invenção de zonas de desenvolvimento imediato como realização das possibilidades da linguagem.

Nesse sentido, a mediação não é nada menos do que a conformação da própria relação social e, em consequência, daquilo que há de substantivo nas sociedades humanas, produtoras de patrimônio simbólico. O privilégio da interação educativa e seu caráter tenso advêm do seu papel de aproximar diferentes projetos de produção de sentido – de educador e educando – visando à superação da alienação do segundo, isto é, visando à emergência de um projeto de independência integrativa que permita capacidades de operação ativa na estrutura social. Os discursos gerados pela ação educativa, bem como os que a condicionam como lugar de contradições, são representativos da contraposição de dizeres múltiplos no âmbito social.

Articular a noção de zona de desenvolvimento imediato (ou iminente) à experiência do ser da linguagem, como dialogia, pode nos levar a compreender a ação educativa como atividade eminentemente humanizadora, no sentido de invenção sempre relançada do ser humano, como infinita possibilidade. Além disso, torna-se mais plausível a relação da linguagem não somente com a especificidade do ensino das línguas, mas com todo o contexto educativo, incluindo-se o ensino das ciências, das artes e a apreensão constante dos objetos culturais herdados pelas sucessivas gerações.

Recebido em 13/07/2012

Aprovado em 29/11/2012

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  • BAKHTIN, M. (VOLOCHÍNOV, V. N.). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 1999.
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  • _______. A construção do pensamento e da linguagem Trad. Paulo Bezerra. 2.ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
  • 1
    LEONTIEV, A. N., 1983, apud Prestes, 2010.
  • 2
    IAROCHEVSKI, M. G. (2007). Obra em russo, citada por Prestes (2010), afirma que "Vigotski não deu nome algum a sua teoria, assim como também é sabido que a ela, atualmente, são atribuídos diferentes nomes: sócio-histórica, sócio-cultural, sócio-interacionista" (PRESTES, 2010, p.126).
  • 3
    Prestes (2010, p.109-110), discutindo a tradução da expressão russa
    zona blijaichego razvitia, diz que a expressão em português "zona de desenvolvimento iminente" a traduziria com vantagens em relação à palavra "proximal" ou "imediato", este último termo proposto por Bezerra (2009, p.X-XI). Essa discussão, além de se ater à equivocidade dos usos da linguagem, indica as dificuldades da tradução dos conceitos de Vigotski, cujo teor merece cuidados terminológicos. De toda sorte, para nossos propósitos, a
    imediaticidade ou a
    iminência do desenvolvimento em causa são dependentes da mediação e sem ela não tem lugar.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      13 Jul 2012
    • Aceito
      29 Nov 2012
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