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Dois problemas decisivos sobre Para uma filosofia do ato: o mundo cindido e os atributos do Ser e do ato ético

Resumos

Para uma filosofia do ato, ensaio fragmentado e inacabado de Mikhail Bakhtin, é um dos textos da década de 1920 que melhor permitem entrever o sutil e complexo diálogo que o filósofo russo estabelece com o campo filosófico de seu tempo, através, sobretudo, de uma empolgante virada interpretativa do legado kantiano. O presente estudo objetiva discutir como o conceito de divisão entre o mundo da vida e o mundo da cultura e os problemas dos atributos do Ser e da transitividade e eventicidade aberta do ato responsável são instrumentalizados de modo a permitir essa virada filosófica, configurando o que representa a primeira grande contribuição de Mikhail Bakhtin ao pensamento ocidental.

Ato ético; Responsividade; Arquitetônica responsiva; Neokantismo


Toward a Philosophy of the Act, a fragmented and unfinished essay written by Mikhail Bakhtin, is one of the texts of the 1920s that better let us glimpse the subtle and complex dialogue established by the Russian philosopher with the philosophical field of his time, in particular through an exciting interpretive turn in Kant's legacy. This paper seeks to discuss how the concept of an apartness between the world of life and the world of culture and the problems of both the attributes of Being and the open eventness of the responsible act are instrumentalized in a way that allows this philosophical turn, setting what accounts for Bakhtin's first great contribution to occidental thinking.

Ethical act; Responsivity; Architectural responsiveness; Neo-kantianism


ARTIGOS

Dois problemas decisivos sobre Para uma filosofia do ato: o mundo cindido e os atributos do Ser e do ato ético

Edson Soares MartinsI; Francisco de Freitas LeiteII; Newton de Castro PontesIII

IProfessor na Universidade Regional do Cariri – URCA, Crato, Ceará, Brasil; edsonmartins65@hotmail.com

IIProfessor na Universidade Regional do Cariri – URCA, Crato, Ceará, Brasil; freitas_leite@hotmail.com

IIIProfessor na Universidade Regional do Cariri – URCA, Crato, Ceará, Brasil; newtondecastrop@hotmail.com

RESUMO

Para uma filosofia do ato, ensaio fragmentado e inacabado de Mikhail Bakhtin, é um dos textos da década de 1920 que melhor permitem entrever o sutil e complexo diálogo que o filósofo russo estabelece com o campo filosófico de seu tempo, através, sobretudo, de uma empolgante virada interpretativa do legado kantiano. O presente estudo objetiva discutir como o conceito de divisão entre o mundo da vida e o mundo da cultura e os problemas dos atributos do Ser e da transitividade e eventicidade aberta do ato responsável são instrumentalizados de modo a permitir essa virada filosófica, configurando o que representa a primeira grande contribuição de Mikhail Bakhtin ao pensamento ocidental.

Palavras-chave: Ato ético; Responsividade; Arquitetônica responsiva; Neokantismo

ABSTRACT

Toward a Philosophy of the Act, a fragmented and unfinished essay written by Mikhail Bakhtin, is one of the texts of the 1920s that better let us glimpse the subtle and complex dialogue established by the Russian philosopher with the philosophical field of his time, in particular through an exciting interpretive turn in Kant's legacy. This paper seeks to discuss how the concept of an apartness between the world of life and the world of culture and the problems of both the attributes of Being and the open eventness of the responsible act are instrumentalized in a way that allows this philosophical turn, setting what accounts for Bakhtin's first great contribution to occidental thinking.

Keywords: Ethical act; Responsivity; Architectural responsiveness; Neo-kantianism

Algumas palavras iniciais

Alguns textos entram para a vida acadêmica sob um epíteto que determinará, para sempre, seu destino junto aos leitores. Há os que nascem clássicos, há os que são revolucionários... Não é mesmo raro que, a despeito do designativo, o revolucionário seja um clássico. Triste sina, contudo, é a dos que nascem difíceis. Teoria do romance (de Lukács), Teoria Estética (de Adorno) e Para uma filosofia do ato responsável (de Bakhtin) são o que se tem chamado de textos difíceis. A digressão pela qual iniciamos nossas considerações aproxima, assim, dois textos difíceis e pretende explorar semelhanças entre eles, preparando o caminho para discutir sua dificuldade e o que nos parece estar por trás dela.

Tudo leva a crer que os dois fragmentos que sobreviveram como Para uma filosofia do ato faziam parte de um projeto de investigação filosófica mais amplo e situado, ao que parece, no plano de uma zona de fronteira entre os domínios da estética e da filosofia moral. Profundo conhecedor do texto e do(s) seu(s) tema(s), Adail Sobral lhe reconhece um caráter programático, cuja execução se estenderia até os últimos textos bakhtinianos da década de 70. Quanto ao desde-sempre célebre Teoria Estética, de Theodor W. Adorno, também não é um texto acabado e compunha, assim como o Para uma filosofia do ato, um projeto maior, igualmente irrealizado: ao lado do Teoria Estética (deixado inconcluso), teríamos o Dialética Negativa e uma terceira obra, de filosofia moral, que não foi escrita. Algumas ideias contidas nas duas obras são, aliás, inquietantemente próximas. Adorno afirma, por exemplo:

O ter-estado-em-devir da arte remete o seu conceito para aquilo que ela não contém. A tensão entre o que animava a arte e o seu passado circunscreve as chamadas questões estéticas de constituição. A arte só é interpretável pela lei do seu movimento, não por invariantes. Determina-se na relação com o que ela não é. O caráter artístico específico que nela existe deve deduzir-se, quanto ao conteúdo, do seu Outro; apenas isto bastaria para qualquer exigência de uma estética materialista dialética. Ela especifica-se ao separar-se daquilo por que tomou forma; a sua lei de movimento constitui a sua própria lei formal. Ela unicamente existe na relação ao seu Outro e é o processo que a acompanha (1988, p.13).

Algumas ideias desse fragmento de Adorno lembram muito o texto de Bakhtin. Subjaz ao passo citado, por exemplo, a presença, de uma noção implicada de temporalidade, indireta, ainda que seja quase palpável no trecho, que põe em simetria a arte e seu passado. Do campo dessa temporalidade também não escapa a noção de evento, indispensável à formulação do raciocínio bakhtiniano pelo qual prolongaremos, um pouco mais adiante, a tessitura de nossas considerações. Acrescente-se a isso que há, igualmente posta em ambos os autores, a questão de uma espacialidade, disposta através da analogia da apartação de um mundo-segundo (seja ele da cultura ou da arte) da esfera de um mundo-primeiro (identificado pelos dois pensadores como o mundo da empiria, da vida experimentada). Este é, aliás, o tópico que pretendemos explorar mais detidamente nesta reflexão — a cisão entre o mundo da vida e o mundo da cultura —, o que logo faremos, a partir da próxima seção.

Mas as semelhanças, que não são em nada irrelevantes para justificar um estudo contrastivo mais amplo entre Bakhtin e Adorno, param por aí, se formos observar os arredores contextuais em que os textos foram escritos e, principalmente, em que são lidos. Se a dificuldade do texto de Adorno decorre de uma incontestável culminância intelectual, própria de uma opera magna, e se seu caráter fragmentário é testemunho da morte que colheu das mãos de Adorno pena e livros, aos 65 anos, a obra de Bakhtin tem de ser, necessária e razoavelmente, difícil por outros motivos.

Nascido em 17 de novembro de 1895, teria produzido os manuscritos de Para uma filosofia do ato entre 1919 e 1921, isto é, entre seus 24 e 26 anos, quando é lícito presumir que estivesse, ainda, longe da plena maturidade intelectual. Enquanto Adorno transitava por círculos intelectuais privilegiadíssimos no Ocidente e se expressava no idioma de Kant e Hegel, Bakhtin amargava a dupla distância do gelo setentrional e do idioma de Pushkin. A obra de Adorno tem como interlocutores a totalidade da magna philosophia de seu tempo e do tempo de seus antecessores, o que diferia muito do cenário russo, recém-saído de um universo feudal. Os leitores de Adorno não hesitam em reconhecê-lo filósofo, sem perífrases. E seus leitores mais contumazes são, habitualmente, versados em filosofia. Os leitores de Bakhtin, oriundos de um campo muito mais heterogêneo no que se refere à formação intelectual, se o tratam por filósofo, sondam a plateia, em busca das reações e são, eles mesmos, majoritariamente estrangeiros no campo da filosofia.

Não negamos a complexidade do texto do jovem Mikhail Mikhailovich nem, tampouco, superestimamos o arrazoado comparativo que acabamos de propor. Sequer são razões - mas, contingências - e não se cogita negar a dificuldade que o texto de Para uma filosofia do ato representa para o estudioso das obras de Bakhtin. Mas não devemos hiperbolizar essa dificuldade, como se ela fosse traço indicial de uma opera magna, o que, aliás, tanto seria injusto como injustificável. Está por se reconstituir o conjunto dos interlocutores (filosóficos, literários, sociológicos etc.) de Bakhtin, pouco se sabe (ou saberá) da lombada dos outros livros em suas estantes, à época em que escrevia Para uma filosofia do ato (e que dizer, então de suas anotações de leitura?); pouco se conseguirá de verdadeiramente útil para clarear este texto de juventude, sem percorrer o trabalhoso e, no entanto, elementar caminho que vai de Sócrates a Hegel. Ou de Aristóteles a Husserl, como quer Adail Sobral.

Por fim, cumpre também não negar o caráter verdadeiramente seminal desta obra. Arriscamos, contudo, afirmar que ela é mais importante pelos problemas que antecipa do que pelas respostas prontas que ali, vez ou outra, nos querem fazer encontrar; respostas, aliás, que, se existissem, seriam forçosamente premeditadas e, todavia, estariam enigmaticamente ocultas em um texto em que, por exemplo, a repetição – entendida não como fenômeno estilístico, mas como prova do noviciado – é uma evidência retumbante da entonação de humildade intelectual que Bakhtin começava a exercitar (com a grandeza que, seja dito, é admirável em um jovem intelectual).

Para além dos motivos de espectro mais amplo e dirigindo nosso olhar para os problemas que Para uma filosofia do ato inaugura, pretendemos refletir, nesta breve análise, sobre dois componentes que temperam a complexidade com que esse ensaio bakhtiniano desafia seus estudiosos. O primeiro componente é o tópico da divisão entre o mundo da vida e o mundo da cultura, ao qual se segue, em nossa investida, os problemas dos atributos do Ser e da transitividade e eventicidade aberta do ato responsável. Pretendemos discutir a hipótese interpretativa, por nós levantada, segundo a qual esses componentes instrumentalizam a virada filosófica de Bakhtin em relação aos delineamentos (neo)kantianos dos quais seu pensamento, progressivamente, começa a se afastar, a partir de então.

1 A cisão entre o mundo da cultura e o mundo da vida

Um momento argumentativo crucial de Para uma filosofia do ato, que nos parece merecer mais atenção do que habitualmente lhe é dedicado, é aquele em que Bakhtin se depara com o problema que será referido, em uma profusão de comentários da mais variada cepa, como sendo o da cisão entre o mundo da cultura e o mundo da vida. Essa redução formular é (apenas) aparentemente inofensiva, estando longe de ser uma forma breve de retomar o problema ali discutido. Ao afirmar que este é um problema crucial, não estamos propondo nenhuma pletora analítica ao tópico em questão na interpretação do pensamento do jovem Bakhtin.

A apartação dos mundos é, ao lado de outros problemas teóricos e metodológicos, um ponto alto do debate filosófico levado a cabo por Bakhtin e vemos nela a grande aporia de Para uma filosofia do ato. Preocupa-nos, pela importância que a ela atribuímos no repertório metodológico das primeiras obras de Bakhtin, a percepção de seu destino na fortuna crítica desse texto.

Para nos situarmos, com cautela e proveito, retomaremos a fonte inaugural de nossa preocupação e evidenciaremos, sem mais demora, o teor de nossa preocupação. Na Introdução à edição russa, Sergei Bocharov, aproximando Para uma filosofia do ato e Arte e responsabilidade, mas se referindo a este último, afirma:

É com um discurso sobre "responsabilidade" que Bakhtin entrou na vida intelectual do seu tempo nos anos imediatamente pós-revolucionários: sua mais antiga publicação conhecida (1919) foi um artigo intitulado "Arte e responsabilidade". Ele fala em tom apaixonado sobre superar o velho divórcio entre a arte e a vida através de sua mútua responsabilidade; e essa responsabilidade deveria se realizar na pessoa individual, "que precisa se tornar totalmente responsável" [...]. Bakhtin provavelmente começou a trabalhar no tratado Para uma filosofia do ato logo depois desse artigo programático, e ele é inspirado pelo mesmo desejo de superar "a perniciosa não-fusão e não-interpenetração entre a cultura e a vida". [...] [grifo nosso] (BOCHAROV in BAKHTIN, 1993, p.xxii-xxiii)

Ao considerarmos o trecho grifado acima, a primeira questão que nos ocorre é: trata-se do mesmo problema nos dois trabalhos? Lendo-se atentamente o pequeno texto de 1919 e o longo fragmento de ensaio de 1919-1924, somos levados a concluir afirmativamente. Uma segunda questão se insinua: trata-se do mesmo contexto? Os limites reduzidos do texto de 1919 não permitem determinar, com razoável grau de certeza, o alcance heurístico pretendido por Bakhtin. Mas é certo que sua preocupação tem como foco a colocação do problema sob o contexto discursivo do papel da responsabilidade na produção e na apreciação artísticas. O título do texto publicado em O dia da arte (Arte e responsabilidade) já é argumento suficiente para deixar a questão suficientemente clara: o problema é o mesmo; o contexto de sua discussão, não.

Em Para uma filosofia do ato, dá-se uma ampliação radical desse contexto. Ali Bakhtin introduzirá o tema em outro cenário argumentativo, partindo da ideia de que a atividade estética possuiria um momento comum com o discurso científico-filosófico (das ciências naturais e da filosofia) e o discurso expositivo-descritivo histórico: para todos eles, haveria uma divisão entre o ser real do ato-atividade e seu conteúdo/sentido.

Faremos aqui uma nova e breve digressão, preparatória para a discussão das assertivas que vimos de fazer logo acima. Bénédicte Vauthier, em um instigante artigo dedicado às obras de juventude de Bakhtin e à obra mais célebre de Pavel Medvedev (O método formal nos estudos literários), trabalha a hipótese de que as três primeiras obras de Bakhtin comporiam um tríptico inacabado, dedicado à estilística da criação verbal. Embora seja um tópico palpitante, não iremos, aqui, além da declaração, de valor metodológico, da acolhida parcial que damos à hipótese. Assim sendo, Para uma filosofia do ato seria a primeira parte de um texto cuja continuação teria, em posição central, O autor e o herói na atividade estética e, como parte final, O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária. Naturalmente, é preciso considerar que este último ensaio tem um grau de acabamento textual diferenciado, pelas circunstâncias que já se conhecem: o original que conhecemos havia sido preparado para O Contemporâneo Russo, e só não foi publicado porque a revista foi fechada antes.

Importa-nos, para retomar a discussão, que em O problema do conteúdo abundam argumentos que nos permitem retomar o tópico da cisão ou dualidade. Para deleite de quem sinta a paixão das dificuldades, cumpre observar que muitos desses argumentos parecem se erguer em contraponto nítido ao que seria a leitura consagrada entre os comentadores de primeira linha e que se constitui, em maior ou menor grau, de variações em torno daquele juízo de Bocharov a que já aludimos.

Comecemos tentando captar o valor da oposição colocada por Bakhtin entre o ser real do ato-atividade e de seu conteúdo/sentido. Em O problema do conteúdo, o jovem filósofo afirma, ainda na primeira seção do ensaio:

De modo geral, deve-se distinguir rigorosamente (o que nem sempre se faz) o conteúdo, momento indispensável no objeto artístico [...] e a diferenciação cognitiva objetal, momento não indispensável nele; estar livre da determinação do conceito absolutamente não equivale a estar livre de conteúdo, ausência de objeto não significa ausência de conteúdo; também em outros campos da cultura há valores que, por princípio, não admitem uma diferenciação objetal nem uma limitação imposta por um conceito preciso e estável: assim, o procedimento moral, nos seus ápices, cumpre um valor que somente se pode realizar, mas não exprimir nem conhecer numa concepção adequada. (BAKHTIN, 1993, p.21)

Em Para uma filosofia do ato, como já dissemos, Bakhtin formula a cisão entre mundo da cultura e mundo da vida a partir de um emolduramento mais amplo. Não deixa de fazê-lo também em O problema do conteúdo, ainda que a percepção da amplitude esteja prejudicada pela disposição difusa do argumento, o que, de qualquer forma, ainda é diferente do contexto de Arte e responsabilidade. O fragmento citado acima, todavia, não nos deixa duvidar que Bakhtin admita a cisão como regra do caminho metodológico por ele trilhado, ainda que a dificuldade que ele examina ali seja já outra. Imaginemos os desdobramentos possíveis, postos em movimento, pelo raciocínio exposto. Se uma obra literária for rigorosamente diferente de uma obra musical, seu conteúdo como produto objetivado pode se confundir com o momento da determinação do conceito (emparelhando objeto e conteúdo em momento distinto, ainda que necessariamente em relação mediata com aquele da forma). Já a música repeliria tal arranjo (permitindo uma relação imediata entre forma e conteúdo, sendo aí ausente, ou, como preferimos, inapreensível ou indiscernível, o objeto conceitual). Se não há cabimento em uma diferenciação como esta, poder-se-ia postular como possível situar uma obra literária no terreno daquelas artes livres (livres da determinação puramente cognitiva e de diferenciação do conteúdo, ou, em que pese o prejuízo da sumariedade formular, livres como artes abstratas). Obviamente, Bakhtin está às voltas, na passagem de que extraímos o trecho, com o tratamento das relações entre conteúdo, material e forma. Opta por não recorrer ao mesmo tratamento que utilizou em Para uma filosofia do ato; aqui não estão presentes nem o nível fortemente teórico necessário à reflexão nos marcos de uma estética geral nem o nível metateórico que envolve os conceitos-chave de que se serve naquele primeiro (fragmento de) ensaio do tríptico, como bem o notou Jean Peytard (Cf. VAUTHIER, 2008, p. 79).

A compreensão que extraímos do trecho citado acima é muito semelhante àquela que atingimos diante de uma passagem de Para uma filosofia do ato, que contém, igualmente, uma reflexão metodológica derivada da admissão do dualismo como regra:

E, assim, enquanto separamos um juízo da unidade da ação-ato historicamente real de sua atualização e o relacionamos a uma unidade teórica qualquer, do interior de seu conteúdo-sentido, não há saída que conduza ao dever no evento real singular do existir. Qualquer que seja a tentativa de superar o dualismo entre cognição e vida, entre o pensamento e a realidade concreta singular é, do interior do conhecimento teórico, absolutamente sem esperança. [...] procurar a ação-ato cognitivo real no conteúdo de sentido separado dele é como tentar levantar-se puxando-se pelos cabelos. Do conteúdo separado do ato cognitivo apropriam-se suas próprias leis imanentes, com base nas quais ele se desenvolve sozinho, autonomamente. Inseridos neste conteúdo, consumado um ato de abstração, estaremos à mercê de suas leis autônomas; mais exatamente, cada um de nós não está mais presente nele como ativo no sentido individual e responsável. (BAKHTIN, 2010, p.49)

A operação de teorização descrita por Bakhtin é de fácil compreensão, desde que não descuidemos de manter ativas as associações necessárias. O juízo que constitui um ato-evento real será marcado por um vir-a-ser-acabado enquanto ele permanecer imerso no mundo da vida. A transferência que o situa no mundo da teoria elimina essa eventividade e seu vir-a-ser. O juízo deixa de ser um ato e perde sua vocação indeclinável para o devir.

Todavia, é ao referir-se, no trecho citado de O problema do conteúdo, ao procedimento moral que a cisão entre mundo da vida e da cultura aparece em sua plenitude no trecho: se o procedimento moral cumpre um valor que é realizável, mas que não se pode exprimir nem conhecer adequadamente, o procedimento como ato-evento único nega-se à objetivação como ato-atividade. Em outros termos, Bakhtin refere-se a um tipo de ato cujo conteúdo-sentido, existente no ato-evento-único real e irrepetível, não se reduz à determinação conceitual necessária para pensar o ato como ato-atividade. Acrescentamos, se for útil: o ato-evento uno e singular, desprovido da universalidade e necessidade, escaparia ao campo do a priori e sua entrada seria recusada no mundo transcendental.

2 A hora da aporia

O ato-atividade se objetiva, para Bakhtin, dentro da unidade de um dado domínio (arte, ciência, filosofia), mas seu Ser real permanece como verdade viva somente fora destes domínios objetivos, onde o Ser real existe na plenitude da posse daqueles predicativos. Sobrevive como verdade viva no momento do ato-evento. A cisão que afeta o ato-atividade permite, assim, que ele pertença ao mundo da cultura (e nele se autodetermine, objetivado, como produto, em uma unidade que torna possível um sentido-conteúdo pleno cuja validade é determinada pelos constituintes específicos de um dado domínio de objetivação do qual ele participa), embora somente no mundo da vida ele possa ostentar a unicidade irrepetível da vida como uma experiência humana. A questão leva à aporia a que já nos referimos e que agora explicitamos: como constituir uma prima philosophia sem (re)produzir a passagem do pensamento vivo, tomado como ato-ocorrência, para o pensamento teorizado, tomado como ato-tipo? Em outras palavras, como propor uma filosofia da participação1 1 Há, aqui, motivos para suspeitar que seria razoavelmente prudente estudar, de modo mais sistemático, a semelhança entre os conceitos de participação de Bakhtin e de Platão. A teoria da participação platoniana está proposta em dois de seus diálogos mais importantes: o Parmênides, que a esboça, e o Sofista, que a arremata. A primeira parte do Parmênides contém uma apresentação de cinco problemas, ao fim dos quais está inteiramente delineada uma divisão entre o mundo humano (tomado como o mundo das coisas sensíveis) e o mundo divino (a ser entendido como o mundo das Ideias). A teoria da participação responderá, justamente, à relação entre as Ideias e as coisas sensíveis. Sem homologação mútua, é claro, mas eis o paralelo com a divisão entre mundo da cultura e mundo da vida, tal como proposta por Bakhtin. No outro diálogo, Platão vai além da defesa da relação entre as Ideias e o mundo sensível, demonstrando, em um passo brilhante, a relação entre as Ideias. Também no Sofista, um paralelo importante estará dado: o da methexis como separação e união, bem familiar aos que lembrarem daquele expresso por Bakhtin como diferença e unidade. Retomando Platão, precisamos sintetizar o passo no seguinte raciocínio: a unidade promovida pela participação não implica o desaparecimento dos seres individuais, uma vez que, considerando-se a teoria dos cinco gêneros supremos, a existência do mesmo implica a existência do outro (diríamos, participa de). Se há algo de que não se pode acusar Bakhtin é de não ter insistido nessa assertiva. O exame mais detalhado do que parece ser um substrato platoniano em Bakhtin pode suscitar contribuições substancialmente inovadoras para a compreensão da complexidade da elaboração filosófica do nosso pensador de Orel. Cada vez mais acreditamos que Bakhtin tem grande familiaridade com a explosão multivocal de Platão, filósofo (ancestral) dos diálogos. se, ao teorizar, o pensamento se torna objetivação e perde vínculos com a historicidade? A resposta é a que já se esperava: o ato-responsável se apresenta como superação da aporia.

Acrescentemos também que pouco há de produtivo em perceber que Bakhtin qualifica a cisão entre vida e teoria como perniciosa, se a percepção para por aí. Tal cisão não é perniciosa para a vida, porque esta pode ser vivida independentemente de ser pensada! É perniciosa, isso sim, para a teoria, que tem a obrigação de pensar e, sob o ponto de vista de Bakhtin, o dever de pensar a partir de uma posição que não seja exterior ao mundo da vida! Se não fosse assim, teria sido suficiente alinhar-se, crítica e contributivamente, a qualquer uma das filosofias morais de seu tempo ou dos tempos passados...

A entoação avaliativa dentro da qual Bakhtin se move, portanto, não o leva, meramente, a censurar a divisão entre teoria e vida. Tampouco poderia ficar apenas no seu reconhecimento. A prima philosophia que ele persegue precisa superar, no seio do método, a cisão, de modo a poder constituir-se dentro do mundo da vida e não mais fora dele, na transcendentalidade de um pensamento puro. Ele parte desse reconhecimento e dirige-nos ao entendimento de que, em face dessa divisão, o ato e seu conteúdo somente podem ser apreendidos como um agir humano se o acento valorativo opera entre eles, reunindo-os em uma unicidade verdadeira. Sem esse acento valorativo, não haveria fundamento moral que devesse impelir a consciência consciente a buscar o plano do ainda-por-ser-realizado. Em outras palavras, o que mantém, no esboço de prima philosophia do jovem M. Bakhtin, o sujeito (integrado em contraposição ao que sua consciência institui como o outro e integrado na conexão com o Ser real da história) é a responsibilidade do ato ético. Nas palavras de Sobral:

[...] Bakhtin considera vital, em todo empreendimento humano, evitar a separação entre "o conteúdo ou sentido de um dado ato/atividade e a concretude histórica do ser desse ato/atividade, a experiência atual e uni-ocorrente dele" [...], separação que a seu ver atinge tanto o pensamento teórico discursivo [...] como a descrição-exposição histórica e a intuição estética. O "conteúdo ou sentido do ato/atividade" refere-se ao produto do ato, aquilo que o ato gera; a "experiência atual e uni-ocorrente" do ato é o processo do ato, que se atualiza [...] numa situação concreta que não permanece imutável e, portanto, ocorre uma única vez (2008, p.226).

É nesse contexto - eminentemente metodológico - que surgem, ao longo de todo o Para uma filosofia do ato, apelos que chamaremos de refundacionais. Tomaremos um desses apelos e, da consideração dos efeitos que dele se poderiam produzir, entenderemos como Bakhtin faz do reconhecimento da cisão entre os dois mundos um componente metodológico operatório decisivo para o entendimento de largas passagens do texto:

Reconhecemos, então, como infundados e essencialmente sem esperança todas as tentativas de orientar uma filosofia primeira, a filosofia do existir-evento uno e único, em relação ao aspecto do conteúdo-sentido, de produto objetivado, fazendo abstração da ação-ato singular e do seu autor - aquele que pensa teoricamente, contempla esteticamente e age eticamente (BAKHTIN, 2010, p.79).

Bakhtin não cai no desespero. Vê-se diante da aporia e trabalha para superá-la. Está aí, no passo, a ressalva, para quem quiser entendê-la: infundada ao fazer-se abstração do ato-ação real, único e de seu autor. O apelo do filósofo russo consiste em destranscendentalizar generalizadamente a ética, a estética e a ciência, como entende Sobral (2010, p.106). É refundacional, ao propor deslocar as teorias do conhecimento para dentro do campo material e concreto do histórico e, portanto, do social. E é refundacional na medida em que se opõe àquele reino "independente e idealista dos 'sentidos puros', dos 'valores', das 'formas transcendentais'" (MEDVIÉDEV, 2012, p.44).

Já podemos propor uma síntese de como se resolve a aporia na reflexão que Bakhtin desenvolve no tríptico?

A formulação textual explícita do momento aporético surge, estrategicamente, no fim da introdução:

O mundo no qual o ato se orienta fundado na sua participação singular no existir: este é o objeto da filosofia moral. Mas o ato não o conhece como algo de conteúdo determinado; ele tem a ver somente com uma pessoa única e com um objeto único, que, além do mais, lhes são dados em tons emocionais-volitivos individuais. É um mundo de nomes próprios, destes objetos singulares e de certos dados cronológicos da vida. Uma descrição <?> exemplificativa do mundo de uma vida-ato singular do interior do ato, fundada no seu não-álibi no existir, seria uma espécie de confissão, entendida como um relato no sentido de uma prestação de contas individual e única (BAKHTIN, 2010, p.114).

Bakhtin vai postular, para superar o estado aporético da reflexão, a existência de momentos comuns, presentes em todos os inumeráveis e imiscíveis mundos individuais. Ele tem, vale ressaltar, o cuidado de frisar que esses momentos não se apresentam como leis ou conceitos universais. Age, assim, de modo a desvencilhar-se da corrente neokantista, à qual seu pensamento se contrapõe, mas da qual extrai – não sem uma extraordinária perspicácia metodológica, já que se trata de destranscendentalizar para refundar — um renovado aparato metodológico assentado sobre as noções de espaço e tempo, que lhe serão tão caras por toda a vida:

[...] todos os valores da vida real e da cultura se dispõem ao redor destes pontos arquitetônicos fundamentais do mundo real do ato: valores científicos, estéticos, políticos (incluindo também os éticos e sociais) e, finalmente, religiosos. Todos os valores e as relações espaço-temporais e de conteúdo-sentido tendem a estes momentos emotivos-volitivos centrais: eu, o outro, e eu para o outro (BAKHTIN, 2010, p.114-115).

3 Os atributos do Ser: transitividade e eventicidade aberta do ato ético

Caminhando para um momento de conclusão desta reflexão, é hora de percorrer as formulações de Para uma filosofia do ato. Bakhtin sustenta, já nas primeiras linhas do texto, que o ser produzido pela atividade estética é objetivado como sentido. Esta atividade estética não é outra senão a de nossos sentidos, propiciadores das percepções dos objetos exteriores à nossa consciência. Adiante ele se servirá também da expressão intuição estética, muitas vezes formando par com a expressão correlata cognição teórica. É assim que o ser dos objetos sensíveis (e dos cognoscíveis) difere do Ser real, que se encontra em permanente devir e ao qual Bakhtin atribui os predicativos de transitividade e eventicidade aberta. Aquele que contempla, isto é, cuja consciência apreende representações advindas da atividade estética, pode, deste modo, intuir do ser objetivado-como-representação apenas o que nele é um momento da consciência (viva e vivente) do próprio sujeito que contempla, embora a existência do Ser real esteja dada em completa independência das condições em que nossos sentidos produzem representações dele. Poderíamos resumir, grosseiramente, com a imagem de que não se vive dentro da contemplação estética ou da cognição teórica e que, portanto, lá não haverá sujeitos, mas objetos. Sujeitos existem no Ser real da história, transitivo e aberto em sua eventicidade.

A transitividade desse Ser mal chega a ser definida por Bakhtin. E, no entanto, sua qualidade é essencial à correta compreensão do edifício teórico do texto. O termo aparece em todas as edições que consultamos (transitiveness, na tradução de Liapunov para o inglês; transitivité, na tradução de Bardet para o francês; transitividade, na tradução de Faraco e Miotello), exceto na tradução de Bubnova para o espanhol, em que lemos caducidad. Confessamos que, sem o recurso à tradução espanhola, teríamos sido vítimas de um lapso de compreensão provocado pela familiaridade com o uso do termo nos estudos de linguagem. Líamos transitividade e entendíamos incompletude de significação a requerer um complemento; em outras palavras, estivemos confusos ao entender Ser transitivo como Ser da incompletude ou da movência de sentido de si para o Outro. Não era nada disso afinal. O Aurélio registra, para transitivo, como primeira acepção, transitório. A transitividade do Ser é, afinal, sua processualidade, sua transformação permanente a impedir uma coincidência absoluta e definitiva do Ser consigo mesmo. Eternamente mutável, o Ser só pode ser idêntico a si mesmo na ficção de uma imobilidade que só tem validade na dimensão teórica do discurso e que só tem verdade (istina) na teoria.

A eventicidade aberta não recebe, por sua vez, tratamento muito diferente. É dada como um predicado do ser e a ela o texto fará repetidas referências. Mas, sob um aspecto, o texto põe o conceito em conexão com outro momento importante do desenvolvimento de sua argumentação. A eventicidade tem relação necessária com o conceito de dever. Por isso é tão importante o passo em que Bakhtin refuta a tese de Rickert. Ao desativar o conceito de dever como fundante da veridicidade, Bakhtin mantém o Ser dentro daquela eventicidade aberta de que fala nas linhas iniciais do texto. Houvesse o dever-ser nos termos de Rickert, não seria sustentável a existência do Ser em aberta eventicidade. Em outras palavras, as coisas e os seres e os fenômenos e tudo o mais seriam, não aconteceriam.

Para sintetizarmos, tanto quanto possível, o ponto conceitual em questão, as ideias de transitoriedade (deixemos a transitividade de lado, pela inconveniente concorrência com seu outro uso não-filosófico) e de eventicidade aberta determinam o que devemos entender por ato neste texto de Bakhtin. O Ato, portanto,

a) tem um sentido de processo (como indicam a transitoriedade e a abertura de sua eventicidade), o que o situa mais próximo do verbo que do substantivo, daí podermos, ou admitirmos como preferível, pensar no agir humano;

b) determinado pela caducidade que lhe é inerente, é um agir que termina e principia incessantemente (como indicam a transitoriedade e a abertura de sua eventicidade);

c) implica um sujeito, mas não no sentido único de aquele que atua (faz algo ocorrer no espaço-tempo), contendo igual e principalmente a noção de aquele que é sujeito porque obrigatoriamente atua (está contido no acontecer e age, incessantemente, do contrário se diluiria no acontecer), donde se faz necessário entender um plus de não-passividade superior ao da primeira noção;

d) no seio de uma filosofia que se pretenda moral, somente pode ser tratado como indissoluvelmente ligado a uma avaliação (determinação de valor) conectada a um dever-ser, o que limita o debate a um tipo de ato, o que não nos deixam esquecer a tradução espanhola, aliás, quando registra no título acto ético e não apenas acto, e a tradução de Faraco e Miotello, com o adjunto responsável.

Sem manter em mente tais injunções orientadoras da leitura, podemos cair – por descuido, por erudição perniciosa ou por puro cabotinismo – na esparrela de inserir este debate em uma teoria do ato tout court.

4 O dever-ser da realidade histórica do ato responsável

Retomemos a refutação de Rickert por Bakhtin. A tese de Rickert, formulada em Der Gegenstand der Erkenntnis [O objeto do entendimento], segundo a qual o entendimento (ou cognição) é um juízo verdadeiro que consistiria em reconhecer valores e condenar desvalores, está contida no terreno ético e frisamos isso para confirmar obediência à injunção interpretativa que erguêramos há pouco (o ato que Bakhtin discute é o ato ético). É a esta tese que Bakhtin responde quando afirma que o ser-verdadeiro é o dever de pensar. Para o líder de escola dos neokantianos, a cognição opera avaliativamente, através de um conhecimento prévio do que é valor, o que Bakhtin não admite para o campo da cognição teórica ou da intuição estética, uma vez que um ato ético é uma ação histórica real do mundo da vida, diferente dos produtos (conteúdo-sentido) dos campos do mundo da cultura:

Ao separarmos abstratamente o conteúdo de uma experiência direta de sua real vivência, o conteúdo se nos apresenta como absolutamente indiferente a respeito do valor enquanto valor real e afirmado; até um pensamento sobre o valor pode ser separado de uma avaliação real (BAKHTIN, 2010, p.86).

Todavia, o produto do pensamento (tomado como possível experiência vivida e não como produto da cognição ou intuição) que seja válido-em-si pode se fazer participante do ser história da cognição real. Para isso,

[...] precisa entrar em uma ligação essencial com a valoração efetiva; somente como valor efetivo ele é por mim experimentado (pensado), isto é, somente posso pensá-lo verdadeira e ativamente em tom emotivo-volitivo. [...] Nenhum conteúdo seria realizado, nenhum pensamento seria realmente pensado se não se estabelecesse um vínculo essencial entre o conteúdo e o seu tom emotivo-volitivo, isto é, o seu valor realmente afirmado por aquele que pensa (BAKHTIN, 2010, p.86-87).

Nossa primeira conclusão sobre o dever, neste contexto, é, portanto, que traduz uma capacidade avaliativa; deriva, de certo modo, de uma dada noção de valor. Mas Bakhtin vai muito mais além, pois sua reflexão tenta destranscendentalizar a contribuição kantiana de que partira, e se recusa a aceitar a cisão dos mundos, embora a reconheça diversas vezes. As páginas desse manuscrito são a lâmina com a qual ele alucina rasgar o véu entre os mundos e pôr-se do lado de dentro da vida. Assim, o pensamento é o pensamento vivo, encarnado. E este só existe na teoria como uma descrição, que é o objetivo imanente à reflexão de Bakhtin em seus trabalhos (se for lícito postular que ele não a tenha abandonado, tal injunção interpretativa, segundo suspeitamos, imporia uma releitura radical de muitos postulados pacificados pelos comentadores de sua obra).

Ao dever, reserva-se o mesmo destino. Assim sendo, ao propor uma descrição do dever-ser do ato ético, Bakhtin mantém a interconexão com a dimensão valorativa. Nossa segunda conclusão, que já não vai surpreender os mais atentos, é que essa dimensão valorativa da cognição real no Ser real da história é aquilo que Bakhtin nomeia de responsibilidade.

Como nosso esforço é de compreender, cabe aqui localizar alguns passos em que a proposta explicativa que acabamos de traçar se permita entrever com a clareza da demonstração. O primeiro, dentre os que selecionamos, é aquele em que Bakhtin empreende, em certa altura do texto, o esforço de melhor caracterizar o que ele chama de tom emotivo-volitivo, sem dúvida diante da necessidade metodológica de diferenciá-lo de um contexto semelhante ao do psicologismo combatido pelo Círculo. É então que ele afirma:

O tom emotivo-volitivo, que abarca e permeia o existir-evento singular, não é uma reação psíquica passiva, mas uma espécie de orientação imperativa da consciência, orientação moralmente válida e responsavelmente ativa. Trata-se de um movimento da consciência responsavelmente consciente, que transforma uma possibilidade na realidade de um ato realizado, de um ato de pensamento, de sentimento, de desejo, etc. Com o tom emotivo-volitivo indicamos exatamente o momento do meu ser ativo na experiência vivida, o vivenciar da experiência como minha: eu penso-ajo com o pensamento (BAKHTIN, 2010, p.91).

Lemos o trecho como um passo em que Bakhtin descreve, no campo da teoria, uma reflexão (pensamento) realizada como ato, através da qual ele, negando valor à compreensão do dever como uma necessidade, tal como se fixara na tradição filosófica com a qual dialoga, afirma um dever-ser (a possibilidade do ser é atualizada, isto é, passa a existir no presente através de um ato). É de dentro de seu estar no mundo da vida que ele, Bakhtin, avalia a filosofia moral e impõe-se, por amor ao ser humano, o dever de propor-lhe uma filosofia tal. Realiza-a como resposta, atualiza-a e assume-se responsável por ela, faz que ela seja primeiro por pensamento e depois descreve-a nas quase cem páginas do manuscrito. É assim que propomos interpretar dever de consciência.

5 O tronco e os ramos do diálogo com o kantianismo

Bakhtin mantém, como se sabe, um produtivo diálogo com o legado kantiano (sem que isso queira significar, evidentemente, qualquer tipo de afiliação intelectual), embora seja palpável a tensão em sua interlocução com os neokantianos que constituíam, na suite de gerações engendrada por Kant, o elo que ficou conhecido como Escola de Freiburg, chefiada por Rickert. Se conceitos importantíssimos como o de arquitetônica podem remontar ao capítulo A arquitetônica da razão pura (Cf. KANT, 2001, p.669-681.) e as noções de tempo e espaço como intuições a priori, desenvolvidas na Estética Transcendental (Cf. KANT, 2001, p.87-113.) são interlocutores sutis, mas rigorosamente ativos em O autor e a personagem na atividade estética, além de poderem ser, como suspeitamos, o momento ancestral de conceitos como exotopia e cronotopo, seria, nesta matéria, inapropriado sustentar assertoricamente que Bakhtin refute Kant. Kant é, mal comparando, o Jano bifronte de Bakhtin, na medida em que o acerto de contas com a sua contribuição filosófica aponta o caminho a seguir e o caminho a superar naquela quadra do desenvolvimento filosófico de Bakhtin. E Bakhtin seria, se não nos excedemos, o ponteador de opostos que, em uma percepção inigualável para a sua época, intui que um caminho trilha exatamente sobre o outro, de modo que transpõe o problema para a direção da via e não para a via em si. Esperamos ter demonstrado isto ao longo das quatro seções anteriores.

Com a escola de Freiburg, porém, o diálogo se conclui de forma mais abrupta. Bakhtin encerra peremptoriamente a questão da refutação a Rickert, quando sustenta que a "inclusão responsável na singularidade única reconhecida do ser-evento é o que constitui a verdade [pravda] da situação" (BAKHTIN, 2010, p.95). Assim, retomamos, o dever verdadeiro, o dever de pensar, é o dever de assumir-se existindo na unicidade dentro do Ser realidade histórica e essa unicidade/singularidade é um fato concretamente individual sem que, contudo, o eu, em seu lugar irrepetível e único, possa deixar de aspirar à eventicidade aberta do Ser. Essa aspiração se dá pelo reconhecimento de que o dever-ser pertence a uma arquitetônica. Bakhtin define esta arquitetônica, nos seguintes termos:

[...] é o plano ainda-por-se-realizar [zadannyi], da minha orientação no existir-evento, uma arquitetônica incessante e ativamente realizada por meu ato responsável, edificada por meu ato e que encontra a sua estabilidade somente na responsabilidade do meu ato (2010, p.143).

Não nos custa repetir, para finalizar e inserir-nos na mesma dimensão não-puramente-estilística que impingimos a Bakhtin, que o centro vivo dessa arquitetônica – e de suas implicações sobre os problemas do mundo cindido e dos atributos do Ser e do ato ético – é o ser humano concreto, tomado amorosamente em sua existência, pelo seu ato responsivo; ato que é o chamamento refundacional das teorias do conhecimento, de modo a permitir que nossa consciência consciente se acerque do conhecimento das formas sem padecer de formalismo, frua o Ser objetivado na estética sem padecer de qualquer um dos esteticismos possíveis e, por fim, opere a descrição da acontecência do Ser na teoria sem reduzi-lo pelos vícios do teoreticismo.

Recebido em 15/08/2012

Aprovado em 27/11/2012

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    Há, aqui, motivos para suspeitar que seria razoavelmente prudente estudar, de modo mais sistemático, a semelhança entre os conceitos de
    participação de Bakhtin e de Platão. A teoria da participação platoniana está proposta em dois de seus diálogos mais importantes: o
    Parmênides, que a esboça, e o
    Sofista, que a arremata. A primeira parte do
    Parmênides contém uma apresentação de cinco problemas, ao fim dos quais está inteiramente delineada uma divisão entre o mundo humano (tomado como o mundo das coisas sensíveis) e o mundo divino (a ser entendido como o mundo das Ideias). A teoria da participação responderá, justamente, à relação entre as Ideias e as coisas sensíveis. Sem homologação mútua, é claro, mas eis o paralelo com a divisão entre mundo da cultura e mundo da vida, tal como proposta por Bakhtin. No outro diálogo, Platão vai além da defesa da relação entre as Ideias e o mundo sensível, demonstrando, em um passo brilhante, a relação entre as Ideias. Também no
    Sofista, um paralelo importante estará dado: o da
    methexis como separação e união, bem familiar aos que lembrarem daquele expresso por Bakhtin como diferença e unidade. Retomando Platão, precisamos sintetizar o passo no seguinte raciocínio: a unidade promovida pela participação não implica o desaparecimento dos seres individuais, uma vez que, considerando-se a teoria dos cinco gêneros supremos, a existência do mesmo implica a existência do outro (diríamos,
    participa de). Se há algo de que não se pode acusar Bakhtin é de não ter insistido nessa assertiva. O exame mais detalhado do que parece ser um substrato platoniano em Bakhtin pode suscitar contribuições substancialmente inovadoras para a compreensão da complexidade da elaboração filosófica do nosso pensador de Orel. Cada vez mais acreditamos que Bakhtin tem grande familiaridade com a explosão multivocal de Platão, filósofo (ancestral) dos diálogos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      15 Ago 2012
    • Aceito
      27 Nov 2012
    LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
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