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Bakhtin completamente nu

ARTIGO

Bakhtin completamente nu

ou

Uma leitura de Bakhtin em diálogo com Medvedev, Voloshinov, Vygotsky ...

ou, ainda:

Dialogismo: as desventuras de um conceito (?) quando ele se torna muito amplo, mas "dialogismos" assim mesmo

Fréderic François

Universidade de Paris Descartes (Paris V), Paris, Île de France, France; j.frederic.francois@wanadoo.fr

Nota Preliminar

Este texto é duas vezes um "texto de circunstância". Primeiramente ele foi proposto como texto de apoio de uma conferência apresentada no seminário "Linguagem, diálogo, interação" (LDI), organizado por Maryse Bournel-Bosson, e no quadro do ensino de psicologia do trabalho de Yves Clot, em fevereiro de 2012. É essa "circustância" que explica que em particular, no fim, a questão do "dialogismo" seja associada ao que pode ser uma "psicologia concreta" nas suas relações com a narrativa e o diálogo. O fato de que essa conferência tenha sido pronunciada diante de "psicólogos do trabalho" e não, por exemplo, diante de semioticistas especialistas em Bakhtin justifica, parece-me, o número de citações e o esforço correlativo – conseguido ou não, é uma outra questão – para não levar tanto em consideração que fossem conhecidos os dados do problema.

A segunda circunstância é a publicação da obra de Jean-Paul Bronckart e Cristian Bota, Bakhtin desmascarado. História de um mentiroso, de uma fraude de um delírio coletivo1 1 No Brasil: BRONCKART, J-P.; BOTA, C. Bakhtin desmascarado: história de um mentiroso, de uma fraude, de um delírio coletivo. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2012. . É porque essa obra se apresenta como uma destruição do mito de um Bakhtin total que se deu esse primeiro título: "Bakhtin completamente nu". Enquanto o segundo título remete aos outros autores levados em consideração. E o último indica que se queria ao mesmo tempo exprimir certa reserva relativamente à inflação do uso do termo "dialogismo", reconhecendo ao mesmo tempo que, se pode haver "psicologia concreta"(?), ela passa, sem dúvida, pelas modalidades diversificadas de um diálogo com os outros e consigo mesmo.

Não apenas se trata de um texto de circunstância, mas também de um texto que não poderia ser um texto erudito. Em primeiro lugar, porque não leio russo e praticamente nada de alemão. Por outro lado (e correlativamente), não conheço a maioria dos autores fonte daqueles que são evocados aqui (quer sejam eles alemães, quer sejam russos). Não estou em condições, portanto, de reposicionar esses três autores na história das ideias, de estabelecer os laços de causalidade ou de influência, fontes que giram em torno do tema do "dialogismo", do "gênero" ou outros.

Assim como não estou em condições de dominar bem algumas questões, em particular, aquela sobre o que pode ser uma análise marxista da cultura e, especificamente, da literatura. Sobre esse assunto assim como sobre outros, não tenho a pretensão de construir "uma teoria". Espero apenas que esse texto possa ajudar fulano ou cicrano na construção de seu próprio "ponto de vista". (Deixo suspensa a questão da validade da metáfora do "ponto de vista".) Além disso, sou incapaz de tomar partido cientificamente sobre os problemas de atribuição. Tento apenas construir para mim mesmo alguma coisa como uma "opinião razoável".

Por outro lado, no momento (julho-agosto de 2012) em que eu reli esse texto, outros artigos apareceram. Em particular, a resenha do livro de Paul Bronckart e Cristian Bota escrita por Serge Zenkine2 2 Também presente neste número especial de Bakhtiniana. , que me pareceu muito documentado e comedido.

Em todo caso, inicio aqui a leitura do livro de Bronckart e Bota (a partir daqui "Bronckart" ou "B.&B.") sem ter consultado o conjunto dos documentos aos quais eles fazem referência e, ainda menos, aqueles que eles não mencionam. Também retomo os dados convergentes expostos no prefácio de Patrick Sériot para a edição crítica e para a tradução francesa de Marxismo e filosofia da linguagem (daqui para frente MFL), publicado um pouco antes. Não há razão específica, parece-me, que explicaria ou justificaria por que, em determinado momento, apelo a tal livro em vez de outro: o texto de Sériot é certamente mais condensado; sem dúvida, mais documentado sobre a época, também tem um tom menos polêmico. Espero, em todo caso, não ter traído nenhum dos dois, exceto por razões, inevitáveis, de brevidade.

Sinto-me, portanto, mais leitor "participante" do que especialista na reconstituição da verdade histórica, para a qual não tenho, mais uma vez, competência. E, sobretudo, pareceu-me que se poderia, uma vez reconhecida a validade das críticas dirigidas ao mito do "Bakhtin total", voltar, de maneira mais parcial, evidentemente, à questão da maneira como eu/nós/nós todos3 3 N.T.: Traduzimos o pronome pessoal indefinido on por "nós todos", incluindo o pronome indefinido em português nas diversas ocorrências da expressão je-on-nous ou je-nous-on. O on corresponderia também, talvez até de forma mais exata, à expressão "a gente", indeterminada e mais coloquial; ou ao pronome pessoal oblíquo "se" utilizado como índice de indeterminação do sujeito. Este último, porém, não ocupa a função gramatical sujeito no português; no francês, on sempre ocupa a função sujeito, assim como pode ocorrer com "nós todos" ou "a gente". (deixo aqui em aberto a questão sobre a que pode remeter esse "eu/nós/nós todos") podemos receber os pensamentos de Bakhtin, Medvedev e Voloshinov (em ordem alfabética) e a eles reagir. E, além disso, deixei-me levar pela (re-)leitura de alguns outros autores, principalmente Vygotsky. De qualquer forma, não se pode, a rigor, resumir uma obra. Não se pode também, menos ainda, citá-la por completo. Daí a estranheza ou o aspecto vacilante, como se dirá, dessas citações parciais/parciais (nos dois sentidos do termo).

Na sua segunda parte, o texto tenta, de um lado, apontar alguns aspectos do que escreveram propriamente Voloshinov e Medvedev. Em seguida, procura retomar a questão mais especificamente bakhtiniana (parece-me) do que pode ser a relação de uma "ciência humana" ao mesmo tempo com a prática cotidiana e, por outro lado, com a recepção de obras, em particular, romances.

Enfim, na última parte, proponho algumas ideias, também sem ser um especialista sobre elas, o que pode nos trazer uma reflexão sobre o diálogo e a narrativa na prática da psicologia, quer seja a psicologia banal ou ingênua de cada um, quer seja aquela que imagino ser a do "psicólogo profissional". Quer se trate de outros em carne e osso, de textos, ou ainda da relação de cada um consigo mesmo, mantenho no horizonte – sem poder, é claro, "tratar dela completamente" – a questão "dialógica" das formas diferentes do que pode ser a recepção-compreensão-resposta que se institui em nossa relação com os outros, conosco mesmos, e com obras. Isso em situações diferentes. O que dizer do que pode ser esse "diálogo" em situações diferentes? Por exemplo, o que é compreender (suficientemente, é lógico, "compreender completamente" é desprovido de sentido) um outro familiar, em circunstâncias normais ou extraordinárias, um outro não familiar, pertencente a uma cultura muito diferente. Ainda com a diferença entre compreender com um fim preciso: para ajudar, por exemplo, ou consolar, o que coincide apenas parcialmente com "compreender para explicar a um terceiro o que se passa". O que será então da compreensão de si mesmo e das suas modalidades variáveis? E da compreensão orientada para um objetivo na vida profissional. O que também levanta a questão do que é presumível que o "sujeito compreenda". O que é feito da articulação entre um conhecimento expresso e genérico (aquele que encontramos em tratados) e a prática que se manifesta em nossas relações efetivas com os outros (quer seja no quadro das interações correntes, quer seja na prática interpretativa do psicólogo), ou ainda, nosso modo de compreender um herói de romance ou de filme? Sem querer fechar o debate antes de abri-lo, pode-se dizer que os diferentes autores com os quais vamos tentar (de maneira muito breve) dialogar nos ajudarão talvez a abrir perspectivas, a nos orientar, a explicitar o que nos parece "absolutamente natural" em nossas relações conosco mesmos e com os outros (isso é o que se pode ou deve ser chamado de "fenomenologia"?) ou, o que é um outro aspecto do mesmo diálogo, para nos ajudar a ver que o "absolutamente natural" para nós não é absolutamente natural para algum outro ou em geral. Em todo caso, não se trata aqui de culminar numa "teoria". Não se sabe qual relação admitir entre o que pode, talvez, ser proposto como "verdadeiro em geral", o que é evidente para uma época (a nossa) ou objeto de uma reflexão individual eventualmente compartilhada pelo que se poderia chamar, em contraste com o grande "nós" da época, o pequeno "nós" de "eu-você e alguns outros". Não há nenhuma razão para que o processo termine. O reinício está, ao contrário, inscrito em primeiro lugar na sucessão das gerações. Imaginemos que, para tomar apenas o exemplo da significação, para nós, das obras literárias, que possamos dizer: "Agora sabemos o sentido da obra de Proust ou de Hamlet. Leia o comentário do Sr. X preferencialmente à obra em si. É mais seguro (ou mais rápido)"? Assim como é duvidoso que possamos afirmar: "Desde Marx, Freud ou o progresso das imagens cerebrais (ad libitum), sabemos o que é explicar um comportamento humano". Permanece a ideia de que é com uma reflexão como essa, com certeza muito geral, sobre "diálogos e compreensões" que procuro ler os autores e apresentar a questão da "psicologia concreta".

*

Para circunscrever um pouco mais detalhadamente as duas primeiras partes, em primeiro lugar, tento resumir rapidamente, a partir dos dois textos mencionados acima, as críticas do mito de um "Grande Bakhtin", o autor das obras de Voloshinov e Medvedev, apresentação que se tornou dominante (mesmo que não fosse unânime) de 1970 até nossos dias. Esclareço que só posso repetir aqui a análise dos autores e que não estou certo de ter compreendido quais foram as razões para o sucesso dessa representação do "Grande Bakhtin". Também não domino a questão das exatas relações de influência entre esses três autores (e outros). E não tenho autoridade para explicitar o "clima intelectual" da circulação dos temas e das abordagens na URSS nascente.

Restaurar a legitimidade de "assinaturas" não resolve a questão da circulação das ideias não mais do que a do significado exato da noção de autor e, mais amplamente, a questão de "quem fala através de nós?", questões que permanecem subjacentes.

A segunda parte tentará, portanto, apresentar alguns aspectos da minha leitura desses três (quatro) autores. E tenho bastante consciência de seus limites e de sua parcialidade forçada. Trata-se apenas de propor direções de reflexão, não a partir de "ideias" resumidas, mas, tanto quanto possível em um período de tempo limitado, a partir do movimento de algumas citações que são aqui apresentadas para permitir discussão mais do que analisadas. Os problemas de atribuição não resolvem a questão da relação entre diferentes linhas de pensamento, particularmente "marxista" ou, pelo menos, "sociológica", de Voloshinov, marcado de preferência por uma reflexão, inspirada em parte pelo neokantismo, acerca do lugar do indivíduo, e a inevitável diversidade de abordagens de Bakhtin, que também dominou, mais e mais, ao que parece, a referência à significação do romance e de sua história. Como indicado no título, eu me questiono também sobre os limites em que tudo isso pode ou deve ser resumido em torno da noção de "dialogismo".

Mais especificamente, parece-me que, além da análise "autoral", o livro de Bronckart e Bota apresenta uma leitura violentamente crítica do pensamento mesmo dos textos de "Bakhtin reduzido", ou, se se quiser, "completamente nu", leitura com a qual eu não concordo. Aqui não se trata mais de "ciência histórica", mas de ponto de vista sobre textos, sobre o que significa "ler", o que significa "compreensão responsiva", se se quiser. Para evitar um estilo polêmico inútil, não me fixarei na maneira como os julgamentos de valor que trazem B.&B. não me parecem fazer justiça à especificidade do pensamento de Bakhtin. Assim como eles consideram apenas muito pouco a totalidade daquilo que Bakhtin escreveu sobre o romance, particularmente nos textos coletados em Estética da criação verbal e em Estética e teoria do romance. Parece-me, também, que não souberam ou não quiseram "entrar" num texto precoce como Por uma filosofia do ato, próximo sem dúvida do que ele escreveu no fim de sua vida. Para dizê-lo de imediato, trata-se, para mim, de apresentar Bakhtin como um pensador da heterogeneidade da existência justamente como ela se manifesta na história do romance. O que certamente nos desvia de uma determinada forma totalizante de marxismo ou de "materialismo histórico".

Da mesma forma, não posso seguir completamente as críticas que Sériot dirige ao MFL. No fim do seu prefácio, Sériot expressa seu repúdio à visão ocidental e particularmente francesa – digamos, de 1968 e dos anos seguintes - de Bakhtin-Voloshinov, mas também uma crítica desse último em nome da "ciência". Mais precisamente, parece-me que Sériot tem razão ao duvidar parcialmente daquilo que teria de "marxista" o apelo a uma perspectiva social em Voloshinov. Mas me parece que isso não justifica a apreciação crítica que ele apresenta sobre o conjunto de MFL como uma obra "não científica".

Mas uma crítica das críticas é, no mínimo, um gênero duvidoso. Relendo os textos de Bakhtin assim como os de Voloshinov, reencontrei o entusiasmo que se apoderou de mim na minha primeira leitura (é "o mesmo" entusiasmo? Sem dúvida, não. Em todo caso, é impossível determiná-lo). É alguma coisa desse entusiasmo que eu gostaria de compartilhar. Começando por recordar algumas das "ideias de base" encontradas em MFL. Assim como em O Freudismo. Porque seria impossível, me parece, falar de Bakhtin sem lembrar sua distância ou seu parentesco, alternativamente, com o que se pode propor como o pensamento específico de Voloshinov.

Permito-me também citar algumas passagens da obra de Medvedev, mesmo porque ela não teve, na França (primeiro pela simples razão de uma tradução mais tardia), o mesmo sucesso que a dos outros dois autores. Reconhecer a especificidade do pensamento de Bakhtin não impede que se leve em conta o que está dividido também com Medvedev (ou vem diretamente dele): a crítica da abordagem unicamente "formal" ou formalista dos textos.

No que diz respeito a Bakhtin, que permanece no centro deste texto, só posso, evidentemente, debruçar-me sobre uma pequena parte de sua obra, em particular, a que concerne à filosofia do romance. Os limites deste trabalho são, portanto, consideráveis. Sem mencionar a multiplicidade das perspectivas que poderia abrir a comparação especialmente com o Vygotsky de Psicologia da arte. Como, por outro lado, as considerações globais de Voloshinov sobre o pensamento e o signo ganhariam se confrontadas à abordagem desse problema, de modo muito mais rico e argumentado, a meu ver, no conjunto da obra de Vygotski.

À medida que o texto avança, ele se diversifica (e se torna mais denso), por encontros múltiplos. Além disso, não tenho a pretensão de achar que o que se apresenta aqui, seja o "essencial" do pensamento dos autores. Menos ainda, essa leitura não pode pretender ser exaustiva. É, portanto, com toda "subjetividade", no sentido menor em que "subjetividade" quer dizer "particularidade", que eu volto a algumas passagens que me tocam nos autores em questão. Pareceu-me mais oportuno, de fato, comentar passagens relativamente longas dos autores do que propor um "pensamento de X" ou "de Y" ilustrado por algumas citações breves. Disse a mim mesmo que isso permitirá mais facilmente aos leitores enfatizarem esses textos, por sua vez, de forma diferente. Na medida em que um texto me parece caracterizar-se por seu movimento e não pelo resumo que se pode produzir dele. Por outro lado, minha decisão foi de apresentar, sobretudo, textos que me tocavam pelo que eles pareciam me oferecer, mais do que aqueles que eu podia julgar criticáveis. Naturalmente, espero que, apesar de sua parcialidade, este texto tenha "certa relação" com as obras que cita, talvez até com "o pensamento" global dos autores em questão.

Parti da convicção de que toda leitura cria uma forma de contemporaneidade com os autores lidos, que não é incompatível com o fato de se levar em consideração a sua distância, como, afinal, nenhuma proximidade entre nós implica "identidade" ou "identificação", mas preferencialmente "comunidade-distância". Mesmo que uma leitura de erudita, que não é a minha, permitisse "recolocar os autores em seu tempo", isso não os impede de fazer uma incursão no nosso, ou, dito de outra forma, não impede nossa leitura de criar uma espécie frágil de "intertemporalidade".

Dito isso, aí está o risco – deve-se dizer "dialógico"? – que corre qualquer ensaio para relatar o pensamento de outros autores. Na medida em que este é (relativamente) breve. E então, bem, evidentemente não se trata aqui de substituir a leitura dessas duas obras. Menos ainda a de Bakhtin, Medvedev, Voloshinov ou Vygotsky.

1 A "autorialidade" respectiva de Bakhtin, Medvedev e Voloshinov

A questão, portanto, aqui é: por que se atribuíram a Bakhtin textos que foram publicados sob o nome de Voloshinov e Medvedev? Sobre esse ponto, essencial, a crítica de Bronckart & Bota [B.&B.] (que converge com a retomada feita por Sériot mais rapidamente) parece ser fundamentada.

O preâmbulo do livro de Bronckart lembra que, em 1961, três jovens admiradores do texto de Bakhtin sobre Dostoiévski foram para Saransk para encontrá-lo e contribuíram então para fazer seu nome sair do esquecimento. É, portanto, quase trinta anos depois das primeiras publicações que o autor Bakhtin ressurgiu com a publicação, em 1963, de uma versão expandida do Dostoiévski, seguida de uma versão revisada da tese sobre Rabelais. O Dostoiévski foi traduzido para o francês em 1970, para o inglês em 1973; o Rabelais para o inglês em 1968, para o francês em 1970. O que será acompanhado da tradução em inglês de Marxismo e filosofia da linguagem em 1973, em francês em 1977 e do livro de Medvedev em inglês em 1978 (a tradução francesa é muito mais recente: 2008).

1.1 A construção do "mito"

Um dado cronológico: Bakhtin morreu em 1975. Voloshinov morreu de tuberculose em 1936, e Medvedev foi fuzilado em 1938, o que, de alguma forma, deixou para Bakhtin (ou aqueles que falavam em seu nome) uma posição em que os dois outros "envolvidos" não podiam responder.

Foi dez anos após a redescoberta que acabamos de evocar que apareceu o "caso" dos "textos disputados". A "revelação" foi feita em primeiro lugar por V. Ivanov em uma palestra que proferiu em 1970, publicada em 1973 na revista Travaux sur les systèmes de signes da Escola de Tartu. Sob forma de bibliografia, atribuindo as obras em questão a Bakhtin. Seus "alunos" Medvedev e Voloshinov, tendo contribuído apenas com algumas pequenas modificações (e/ou com o título, no caso do MFL). Ele acrescenta que o pertencimento a um único autor é "confirmado por testemunhas" e "aparece de maneira evidente a partir do texto em si". Pode-se notar, de passagem, que o texto de Ivanov toma emprestado de textos originalmente assinados por Voloshinov e Medvedev a maior parte de suas citações de "Bakhtin", a unidade da obra evoluindo naturalmente para ser atribuída a ele. Correlativamente, é apenas em Psicolinguística de Leontiev (1967) que se encontra evocada uma "Escola de Bakhtin" ou um "Círculo de Bakhtin".

Mas, além desse surgimento tardio, a situação é, desde o início, duas vezes obscura. Primeiro, os defensores da tese da "escola de Bakhtin" justapõem frequentemente fórmulas diferentes. Em sua biografia "oficial", Clark e Holquist (citada por B.&B.), lembram, em primeiro lugar, que "nunca se poderá destrinchar de maneira indiscutível a questão de saber como e por quem esses textos foram escritos" (p.146). Visto que Bakhtin se recusou a assinar o documento oficial elaborado em 1975, indicando que ele era realmente o autor dos três livros.

Não retomo aqui as declarações contraditórias de Bakhtin nem o significado a ser atribuído aos comentários de sua esposa sobre o livro assinado por Medvedev: "Quantas vezes eu não o recopiei" ou seu testemunho segundo o qual Bakhtin teria ditado para Voloshinov seu livro Freudismo (De qualquer forma nenhum manuscrito foi preservado). O que se acompanha de juízos de valor, apresentando Medvedev e Voloshinov como autores medíocres. Da mesma forma que a retomada da expressão "Círculo de Bakhtin".

B.&B. lembram que essa doxa nunca constituiu unanimidade: Titunik, primeiro tradutor para o inglês de MFL e do Freudismo, não leva em conta o discurso de Ivanov (p. 59) e, mais precisamente, não vê nenhuma razão para segui-lo (p. 60). Eu me contento em citar Bronckart:

os tradutores americanos e alemães (Titunik e Weber em particular) simplesmente ignoraram essas alegações, depois eles as recusaram firmemente com base em três tipos de argumentos:

- a ausência, evocada acima, de qualquer testemunho verdadeiro;

- a impossibilidade, para um homem somente, nas condições de vida e de trabalho da época, de produzir quatro livros e nove artigos em três anos;

- as diferenças evidentes, de estilo e de conteúdo, entre os textos assinados de uns e do outro, apesar das afirmações peremptórias e gratuitas de Ivanov a esse respeito. E esses especialistas sempre continuaram em seguida a manifestar seu ceticismo em relação à omnipaternidade bakhtiniana (p.83).

Há, mais tardiamente, declarações de Bakhtin. Com a questão da contradição entre essas declarações tardias e suas primeiras declarações, a questão permanece obscura.

Sériot observa a diversidade das soluções adotadas no mundo com respeito à apresentação dos nomes dos autores:

Na Rússia, além da edição de textos de Voloshinov por N.Vasiliev (1995), todas as reedições dos "textos polêmicos" foram feitas apenas no nome de Bakhtin, em uma coleção cujo nome evoca um romance policial: "Bakhtin sob a máscara". Em outros países, ora apenas Voloshinov foi mencionado... ora em par com Bakhtin (p.47).

Sériot cita nove textos no primeiro caso, seis no segundo, com soluções tipográficas diferentes: vírgula, barras ou parênteses. Ele acrescenta ainda que algumas atribuições "viram seu percurso invertido, dependendo do país".

Permanece a ideia de que essa doutrina se espalha em particular na França e, em primeiro lugar, por meio do prefácio escrito por Jakobson à edição francesa de MFL. Jakobson, em escritos anteriores, tinha citado primeiro Voloshinov como autor da obra. Aqui ele dá como certa a atribuição a Bakhtin: "Acabou-se descobrindo que o livro em questão e várias outras obras... foram na verdade compostos por Bakhtin".

Bakhtin "se recusaria a fazer concessões à fraseologia da época". O que teria feito Voloshinov, assim como trazer um título oportuno. Marina Yaguello, a tradutora, evoca, ao mesmo tempo, a intransigência de Bakhtin, sua modéstia, o seu amor pelo carnavalesco, explicações um tanto demasiadamente ad hoc e múltiplas e, pelo menos para os dois primeiros, não atribuídas para a publicação sob o nome de Bakhtin do Dostoiévski de 1929. Além disso, não há nada que permita distinguir o que, no texto, diria respeito a um autor ou a outro.

1.2 Aguns dados factuais sobre a vida cultural na União Soviética dos anos Vinte

Entre os dados factuais, o mais importante é, sem dúvida, que não houve "Círculo de Bakhtin", expressão utilizada pela primeira vez por Leontiev (1967) e que Bakhtin não retoma em sua entrevista com Duvakin (Sériot, p.19-20). Sobre esse ponto, sigo o texto de Sériot, que lembra que o círculo em questão continha outros membros além dos três que são atualmente traduzidos na França e, especialmente, que nenhuma razão de idade e/ou de prestígio faz deles um "círculo de Bakhtin". Ele também lembra que o grupo pode ser chamado, no início, de "Seminário Kantiano", organizado por Kagan, que havia feito seus estudos em filosofia na Alemanha, na medida em que os judeus não podiam cursar o ensino superior na Rússia czarista. Resta para nós que esse grupo reuniu-se em primeiro lugar em 1919 na pequena cidade de Nevel, 300 quilômetros a sudoeste de Petrogrado e, em seguida, em Vitebsk onde "numerosos intelectuais e artistas de Petrogrado se instalaram temporariamente para fugir de uma cidade devastada pelo 'comunismo de guerra', no qual as pessoas literalmente morriam de fome e de frio" (Sériot, p.21).

Bakhtin e Voloshinov tinham 24 anos e conheceram, entre outros, "um grupo de talentosos jovens refugiados". Entre eles, Pumpjanskij, a propósito de quem Sériot acrescenta em nota:

A primazia cronológica do trabalho de Pumpjanskij sobre a obra de Dostoiévski, a natureza do riso de Gogol, a filosofia da natureza, o método formal, fazem dele largamente um precursor Bakhtin. Ele era, junto com Kagan, o personagem mais carismático dos grupos de Nevel e Vitebsk...

Sériot relata alguns traços da vida intelectual intensa nessa cidade, em especial um curso de literatura proferido por Bakhtin, bem como sua participação em um debate público sobre "Deus e o socialismo" e em um outro sobre "O cristianismo e a crítica", no qual Bakhtin apresentou a atitude de Nietzsche em relação ao cristianismo, sobre "o caráter nacional russo na literatura ou na filosofia" ou ainda sobre "o papel da pessoa", enfim, perspectivas variadas, mais filosóficas, religiosas e culturais do que marxistas.

O segundo ponto histórico interessante para o leitor atual é que, a essa época, os jornais que dão conta desses debates são manifestamente hostis à "religião", mas os intelectuais que a defendem de uma forma ou de outra podem desenvolver livremente seu ponto de vista.

É com o convite de Medvedev, reitor da Universidade Popular de Vitebsk, que Bakhtin e Voloshinov se dirigem a essa cidade maior. Tem-se, portanto, uma vida intelectual compartilhada, a mais de três certamente, sem que Bakhtin tenha uma supremacia específica.

Em todo caso, para além de Kagan e Pumpjanskij, aparece aqui o papel central de Pavel Medvedev (1892-1936). Em primeiro lugar advogado, membro do conselho municipal de Vitebsk, organiza a vida cultural dessa cidade, e escreve sobre literatura desde 1912. Em 1918, organiza a Universidade popular e cria, no quadro da Universidade, uma "Sociedade de livre estética" e um seminário de sociologia. Traz Pumpjanskij para Vitebsk, que é seguido por Bakhtin (1920) e Voloshinov (1921). Está no coração da atividade cultural da qual participam Chagall e Malevich. Fala-se então da "Renascença de Vitebsk". Por outro lado, Medvedev escreve de 1910 a 1920, portanto antes de Bakhtin, que deveria, sobretudo, ser considerado primeiramente discípulo de Kagan, de Pumpjanskij, e depois, pelo menos inspirado por Medvedev, que, aliás, se preocupou certamente em encontrar trabalho para Bakhtin.

Acrescento, sobre Medvedev, alguns pontos tirados da biografia anexada à recente tradução do O método formal nos estudos literários. Antes de tudo, ele publicou uma série de trabalhos dedicados aos poetas Dem'jan Bednyj e depois a Alexander Blok (em 1923 e em 1928), assim como (em colaboração) a Serge Esenin. Sua bibliografia inclui 20 artigos entre 1914 e 1937, em particular sobre Dostoiévski. O conjunto de seus trabalhos faz dele um autor certamente notável e que (incidentemente) publicou antes de Bakhtin.

Além disso, ele tem um papel institucional importante. Sendo "companheiro de viagem", é ele quem publica a primeira edição do livro assinado por Bakhtin dedicado a Dostoiévski. Em 1936, convidado a Saransk (pequena cidade onde é eleito curador da Universidade), contribui para que Bakhtin, então exilado político, obtenha um posto de professor. Acusado de kantismo e de outros crimes, ele é executado.

Da mesma forma, tomo do prefácio de Sériot (p.50 e segs.) alguns aspectos da atividade de Voloshinov que permitem estabelecer uma imagem diferente daquela de uma relação mestre-discípulo entre Bakhtin e ele (fora de sua contemporaneidade). Voloshinov publica primeiramente poemas e textos sobre a música. Depois de seu retorno a Petrogrado - Leningrado, em 1924, ele se inscreveu no ILJaZV (Instituto de História Comparada da Literatura e Linguagem no Ocidente e Oriente), onde prepara um doutorado, desenvolvendo um trabalho sobre "a transmissão do discurso de outros", e torna-se professor em janeiro de 1925, ao mesmo tempo em que cresce sua notoriedade. Sériot observa que ele deixa uma tese e também uma tradução do primeiro volume de A filosofia das formas simbólicas, de Cassirer, igualmente inacabadas.

Acrescento algumas palavras (emprestadas de Sériot e, especialmente, do artigo citado de Ivanova) sobre Lev Jakubinskij (1892-1945). Certamente esquecido, pelo menos no Ocidente, aluno de Baudouin de Courternay, em 1917-1919 ele funda a Sociedade para o estudo da linguagem poética (OPOJAZ) e trabalha ao mesmo tempo no Instituto Jafético (dirigido por Nicolas Marr). Publica, entre outros, em 1923, um artigo "Sobre o discurso dialógico", dedicado à articulação da psicologia e da sociologia na linguagem e sobre a relação entre a fala cotidiana e a palavra poética, que influenciou ao mesmo tempo Voloshinov e Vygotsky. Foi ele quem desenvolveu em primeiro lugar o exemplo dostoyevskiano da palavra pronunciada com diferentes entonações (posteriormente retomado por Voloshinov). É na obra dele que se desenvolveu a apresentação da entonação tomada no sentido amplo de significado relacional trazido pela mímica e globalmente pelo corpo. Essas considerações sobre o diálogo provêm elas próprias em parte de Chtcherba (1915).

Ivanova lembra que o problema das relações entre linguagem poética e linguagem comum era, com a reflexão sobre a noção de "função", um dos lugares recorrentes do intercâmbio intelectual na URSS. Além de levar em conta a entonação, Jakubinskij desenvolve a noção de produção interior de réplicas, mais ou menos automatizadas, da articulação das palavras sobre a percepção de um mundo comum, assim como da possibilidade de mudança de plano, do retorno dialogal para propósitos precedentes. Nesse sentido, poder-se-ia, talvez, estabelecer algo como uma identidade de relações: Jakubinskij / Voloshinov = Voloshinov / Bakhtin no sentido de que o primeiro introduz o segundo na problemática do diálogo (Voloshinov foi aluno de Jakubinsk em seu seminário da ILJaZV.

Ao mesmo tempo, Ivanova insiste no fato de que Jakubinskij parte da forma do texto e Voloshinov da situação global de comunicação. Ela acrescenta:

A relação entre o artigo de Jakubinskij e os trabalhos de Volosinov e o valor científico deles torna-se mais evidente se considerarmos um outro trabalho que atualmente também caiu no esquecimento. É o trabalho de V. Vinogradov A poesia de Anna Akhmatova (1925). Nesse trabalho, dedicado à especificidade do estilo dessa poetisa, V. Vinogradov introduz um capítulo: "As caretas do diálogo", no qual estuda o papel do diálogo na poesia de Akhmatova. Essa introdução dos diálogos permite à poetisa não apenas evitar a monotonia, mas também criar uma gama de efeitos emocionais que organizam a arquitetônica do sentido de seus poemas.

Há, portanto, uma grande corrente de autores trabalhando em torno do diálogo e da "sociologia da linguagem", na qual Bakhtin estava longe de ser o "centro ativo".

1.3 Relações "estranhas" de Bakhtin com a verdade factual

Por outro lado, são estabelecidas o que se pode chamar de, pelo menos, relações "estranhas" de Bakhtin com a verdade factual. Sériot (p.33 e seg.) observa que em diferentes lugares onde Bakhtin ensinou, ele apresentou currículos variados, particularmente sobre a data de nascimento assim como sobre o lugar onde completou seus estudos universitários.

Ora não há nenhum vestígio de que ele tenha passado nem mesmo pelo equivalente ao vestibular, ao contrário de seu irmão Nikolaj [...] O nome de Mikhail Bakhtin não aparece em nenhuma lista de alunos nem de ouvintes [...] Os detalhes que Bakhtin fornece sobre sua própria vida estão calcados nos de seu irmão Nikolai, e se modificam com o tempo. Ele também usa partes da biografia de M. Kagan, que parece ter substituído Nikolaj no papel de mentor de Mikhail após a partida do irmão mais velho.

Assim como parece que seja de forma equivocada que ele tenha se apresentado como de origem nobre...

Além disso, coloca-se a questão da prática de plágio (por oposição à única retomada temática ou circulação de ideias). Assim, Bronckart cita (p.298) Matejka: no que diz respeito a O problema do conteúdo,

O fato mais marcante é, sem dúvida, que Bakhtin, em seu artigo, não faz nenhuma vez referência à Philosophie der Kunst neokantiana de Broder Christiansen embora ele explore esse livro de uma forma que, para os padrões da Europa Ocidental, seria considerada plágio.

Da mesma forma, Poole (p.299) encontra, em Rabelais, cinco páginas de Cassirer, retiradas de O indivíduo e o cosmos na filosofia do Renascimento, copiadas tal e qual, apenas com algumas observações Bakhtin intercaladas de vez em quando.

Além disso, no que diz respeito ao contexto histórico, pode-se questionar a imagem de hostilidade ao regime, para que ele tenha podido dirigir, a partir de 1945, o departamento de literatura geral da Universidade de Mordóvia, cargo que manteve por 15 anos. Aliás, aqueles que puderam consultar os manuscritos originais encontraram neles "homenagens reverenciais" a Lênin e a Stalin. Ele deixa de ser um banido a partir de 1930. E suas ideias participam da circulação intelectual da época.

1.4 Sobre a "autorialidade"

Para tentar concluir esta questão, pode-se notar, com Sériot (p.37), que "Bakhtin deu apenas respostas evasivas, contraditórias e decepcionantes" (p.42). Sériot acrescenta que "no extremo final de sua vida, ele [Bakhtin] recusou-se a assinar um reconhecimento de paternidade, apesar do pedido oficial da Associação Soviética dos Direitos de Autor (VAAP)" E (B.&B., p.239 segs.), em um texto de 1994, Bocharov (um dos três pesquisadores, com Kozhinov e Gachev, que retomaram contato com Bakhtin em 1961) cita uma carta de Bakhtin para Kozhinov que contém em particular, essa passagem:

Eu conheço bem os livros O método formal nos estudos literários e Marxismo e filosofia da linguagem. V. N. Voloshinov e P. N. Medvedev eram meus amigos; na época em que foram escritos esses livros, trabalhávamos no mais estreito contato criativo. Bem mais, esses livros, assim como o meu estudo sobre Dostoiévski, baseiam-se numa concepção comum da linguagem e da obra verbal. Nossos contatos no desenvolvimento de nossos trabalhos não diminuem nem a autonomia nem a originalidade de cada um desses três livros.

Ele acrescenta que esse não é o caso para os outros trabalhos de Medvedev e Voloshinov. Sigo aqui Bronckart, para quem o texto é perfeitamente claro sobre a questão da autoria. Mas ele acrescenta que tudo isso conflita com as declarações posteriores de Bakhtin, segundo as quais ele teria escrito as obras em questão inteiras. Assim como a situação aqui posta de colaboração "não é absolutamente compatível com aquela, tantas vezes proposta, de uma relação de mestre (Bakhtin) com estudantes (Voloshinov e Medvedev)".

Copio textualmente a conclusão de Sériot a esse respeito:

O mais plausível é que todas essas obras sejam fruto de discussões multifacetadas, que a influência possa ser multilateral, e que cada autor tenha elaborado, à sua maneira, temas que eram discutidos em numerosas ocasiões com interlocutores variados. É possível que o jurista Voloshinov em Nevel e Vitebsk tenha aprendido muito com os filósofos Bakhtin e Kagan, mas que, em Leningrado, o sociólogo e filósofo da linguagem Voloshinov tenha servido para Bakhtin mais de iniciador à nova ciência que estava se estabelecendo. Naquela época, Voloshinov era cada vez mais independente de Bakhtin relativamente a questões tão essenciais quanto o marxismo, o freudismo, o marrismo (p.45-46).

Pode-se acrescentar, no plano da plausibilidade, que os campos do marxismo, freudismo e marrismo constituem muito pouco ou nenhum objeto de referência nos textos que são certamente de Bakhtin. Bronckart diz mais ou menos a mesma coisa. Ele lembra que se pode propor, com Morton e Emerson (B.&B., p.214), que o primeiro Bakhtin não pensa em termos de "dialogismo" e que é Voloshinov que orientou Bakhtin em direção a esse tema. Assim como se pode atribuir a Medvedev a introdução da problemática do gênero.

Mas então Bronckart se pergunta sobre as condições de redação do primeiro Dostoiévski: em sua entrevista com Duvakin, Bakhtin primeiro reconhece que foi Kozhinov que fez todo o trabalho de reedição do livro em questão (B.&B., p.267). Mas por que, pergunta-se Bronckart, Bakhtin parece hesitar em considerar esse livro como seu? Para o primeiro Dostoiévski (B.&B., p.272 e segs.), é preciso primeiro reconhecer que havia urgência em publicar, para poder contar com publicações para a sua libertação ou para a mitigação da sentença inicial (deportação nas Ilhas Solovetski). Ora, a obra contém duas partes: considerações filosófico-religiosas, de acordo com os termos de Bronckart, e um método de análise semelhante ao de Voloshinov e Medvedev. (Tomo a liberdade de acrescentar que a primeira parte se justifica pela centralidade do problema religioso em Dostoiévski) Então Bronckart propõe que a atribuição desse livro (pelo menos da segunda parte) a Bakhtin é que seja questionada, falando mais de um presente de seus companheiros para lhe assegurar uma notoriedade (p.272). Reconhecendo que há aí apenas uma "pista para uma verdade provável" (p.268).

Além disso, Bronckart denuncia com mais virulência do que Sériot o que se pode chamar de a evidência violenta com a qual o "pan-bakhtinianismo" se impôs. Permanece a questão: por que se difundiu tão rapidamente essa crença na "omnipaternidade" de Bakhtin, assim como na existência de um "Círculo de Bakhtin"? Bronckart (p.100 e segs.) observa que a afirmação às vezes toma uma forma paradoxal. Assim, em Mikhail Bakhtin, o princípio dialógico, seguido de Escritos do Círculo de Bakhtin, Todorov começa por expor o que torna o caso obscuro. E ele observa assim:

Os escritos assinados por Voloshinov e Medvedev, mas atribuídos a Bakhtin se integram, portanto, muito bem na série dos escritos desses mesmos autores; há, em revanche, diferenças notáveis entre os escritos assinados por Bakhtin e os atribuídos a ele (p. 20).

Para dizer de forma breve: composição clara do texto de Medvedev, dogmatismo daquele de Voloshinov, que comporta afirmações sem provas. Composição confusa e repetições nos textos de Bakhtin. (Vale ressaltar que a maioria dos textos de Bakhtin não foi publicada durante sua vida, o que torna compreensível que esses textos sejam mais ou menos preparados para a sua publicação) E, de fato (por exemplo, em algumas citações que faremos mais tarde), os textos apresentam estilos muito diferentes. Mas Todorov acrescenta: "Naturalmente, essas diferenças de superfície deixam subsistir uma grande homogeneidade de pensamento, é a razão pela qual a afirmação de Ivanov parece tão plausível".

Além disso, Todorov refuta a ideia de uma vaga terminologia marxista pela qual Medvedev e Voloshinov seriam responsáveis. Ele observa (e eu acredito que se pode segui-lo) que marxista ou não, essa apresentação não é pulverização superficial, mesmo que se possa duvidar, com Sériot – voltaremos a esse ponto mais tarde - da "profundidade" dessa inspiração marxista. A partir desse ponto, Todorov afirma:

É inadmissível que se apague pura e simplesmente os nomes de Voloshinov e Medvedev e que se vá assim contra o desejo manifesto de Bakhtin de não assumir a publicação de tais escritos. Mas é também impossível não levar em conta a unidade de pensamento que testemunha o conjunto dessas publicações (e que se pode atribuir, seguindo vários testemunhos, à influência de Bakhtin) (p. 23).

Finalmente, o livro de Todorov tende a unificar, sob a noção de "princípio dialógico", o conjunto da produção desses autores, considerada como obra de Bakhtin, mas a partir, sobretudo, de formulações emprestadas a MFL, o que é problemático se se reconhece que os textos que são com certeza da pena de Bakhtin manifestam uma inspiração amplamente divergente. Eu estaria inclinado, preferencialmente aqui, a seguir três vezes o pensamento de Bronckart (e de Sériot):

- não há testemunho de que Bakhtin tenha, de alguma maneira, "pensado mais" do que os outros dois autores;

- o magistério de Bakhtin é assumido sem argumento;

- assim como os múltiplos juízos de valor depreciativos contra os dois foram proferidos sem provas.

Além disso, como já se disse, os primeiros textos conhecidos de Bakhtin não têm de forma alguma a orientação sociológica ou marxista que se encontra em MFL, como se deseja afirmar.

Que os herdeiros de Bakhtin tenham tido um interesse financeiro (os direitos de autor) ou "moral" (o prestígio) nessa crença, está fora de dúvida. Entre as questões factuais, Bronckart fala dos "promotores russos de Bakhtin que continuavam a gerir a lucrativa difusão internacional da obra reconstituída do mestre" (p.237).

Salvo engano de minha parte, o aspecto financeiro não está concretamente preciso. Mas as provas são talvez difíceis de levantar.

Além disso, pode-se certamente apelar a uma tendência geral à fabricação de uma história povoada por heróis, esquecendo-se a massa dos "outros", mas essa tendência é, com certeza, demasiado geral para ter aqui papel explicativo. Uma explicação mais precisa pode apelar para o clima ideológico: na Rússia de hoje, e numa parte dos autores americanos, uma hostilidade ao marxismo. Ora, Voloshinov professou marxismo e Bakhtin certamente não (ou muito menos). Daí o desejo de fazer de Bakhtin o "grande homem". Essa é a explicação que já dava Gardin em seu artigo Do Pensamento, de 1978: pode tratar-se da vontade, em um período de refluxo do marxismo, de preferir citar um autor não marxista a dois autores que se declaram ligados ao marxismo.

Sobre a atribuição de Dostoiévski, eu não posso tomar partido, especialmente porque não tenho acesso à primeira versão. E a entrevista de Bakhtin e de Duvakin, tal como a relata Bronckart (p.267), se ela confirma o papel de Kozhinov nessa reedição, não está totalmente claro. Só posso constatar que Dostoiévski encontra seu lugar entre os textos consagrados ao romance reconhecidos atualmente pela crítica como sendo de Bakhtin.

Mas, sobretudo, pode-se, me parece, eliminar o mito do "Grande Bakhtin" e encontrar um grande número de empréstimos ou de influências, explícitas ou mais frequentemente não explícitas nos textos de Bakhtin, sem que tal fato retire desses textos significado e valor.

*

Portanto, antes de passar à leitura propriamente dos textos dos três autores, alguns pontos sobre o que pode ser essa leitura.

Parece-me que ler um livro, qualquer que seja, é, antes de tudo, deixar-se tomar pelo seu movimento. Afrontar-se também com a diferença de nossos primeiros modos de reação: pode haver acordo imediato, recusa primeira, questões... Isso a partir do que nossa compreensão responsiva se esforçar a esclarecer na parte mais íntima de nossa leitura:

- elucidação do lugar histórico do autor em relação a outros ou a si mesmo;

- esclarecimentos concernentes às palavras representativas de conceitos que ele utiliza (ele mesmo ou o tradutor). Esse trabalho do sentido é potencialmente infinito,

- considerando que ele comporta também (especialmente?) a elucidação de nossa própria atitude.

Creio ver algo como um "projeto fundamental" (eu não sei se a noção é boa) em Bronckart para demolir a estátua de Bakhtin, assim como quando ele nos diz que o desenvolvimento da indústria de Bakhtin tinha, além da glorificação do mestre, suscitado "um conjunto de estudos detalhados de seus escritos, que colocaram em evidência a pobreza conceitual e estilística dos textos iniciais..." (p.237), julgamento que ele aprova, retoma e amplia frequentemente. Constato que tenho mais a atitude oposta: tentar ler os textos de Bakhtin com menos preconceitos hostis possíveis (o que - banalidade, será que se pode pedir a não importa qual leitura, em relação com uma outra ou em relação consigo mesmo? Embora ninguém seja "puro" - eu não, em todo caso, posso também me atribuir hostilidade para com Bronckart ou pelo menos, para com uma forma de marxismo... ).

De preferência pode se constatar no autor a presença de campos de pensamento: inspiração religiosa, cultural neokantiana ou fenomenológica, o parentesco do que ele escreve com o que se encontra nos outros dois autores. Mas não se deve então se apressar em falar de contradição, por exemplo, entre o tema da distância, exotopia do autor e do dialogismo. Trata-se, antes, de se perguntar como podem funcionar esses dois conceitos, aliás polissêmicos, como eles podem interagir. Eles não podem, em todo caso, ser "contraditórios" (termo usado frequentemente por Bronckart), como são o a e o não-a dos lógicos. E, além disso, uma vez admitida a autoria de Medvedev e de Voloshinov, isso implica que Bakhtin não teve nenhum papel na gênese, a discussão anterior a esses textos e a elaboração das noções? Bronckart, então, não corre o risco de inverter o movimento dos defensores do "todo Bakhtin" apenas para fazer dele um mentiroso triste?

Bronckart observa, o que é garantido, que em textos de 1953 a 1975, Bakhtin mantém em parte a inspiração que se manifesta nos textos anteriores, dos quais acabamos de ver as razões para atribuir mais a Medvedev e a Voloshinov que a ele, que entretanto não cita nunca. Ficando, com modificações, fiéis, parece-me, à linha de pensamento delineada em Para uma filosofia do ato. Bronckart conclui então que houve empréstimo, ou até mesmo plágio, o que não leva mais em conta a probabilidade de uma elaboração comum, que justificaria parcialmente a ausência de citação.

Duvido que se possa introduzir uma disposição final. Parece-me que não se pode mais defender, o "princípio dialógico" como unificador do "bakhtinianismo" de acordo com Todorov. Mas não há que se criticar um autor porque seu pensamento é múltiplo, quer pelo seu próprio desenvolvimento, quer por empréstimos. Isso, mesmo se, como mencionado acima, se pode criticar em Bakhtin uma prática de não-citação, contrária à "moral usual do autor" que se impõe a nós (ela não se impõe, sem dúvida nenhuma, por exemplo, aos profissionais da literatura oral). Resta então a questão das circunstâncias da vida soviética assim como das influências recíprocas no grupo do qual ele participava. Parece-me que a conclusão de Sériot, apresentada acima, é plausível e que ela nos deixa o espaço para uma leitura na qual podemos encontrar alternativamente o parentesco e a distância entre esses três autores. Visto que pelo menos parte dos textos de Bakhtin dedicados ao romance (que serão abordados mais adiante) não correspondem nem aos seus primeiros textos nem exatamente à inspiração das obras "disputadas".

Por outro lado, mesmo nos casos de empréstimo sistemático não explicitado (circunlóquio para dizer "plágio"), esse empréstimo adquire um novo sentido na configuração em que ele ocorre. A leitura "ingênua" ou "favorável a priori" permanece a condição primeira da apreensão do sentido. Quer se trate de um texto, de uma ligação com o outro, ou da nossa relação com nós mesmos, encontrar algo em comum com alguém, ou a imitação ou o empréstimo não remove todo o "valor", não mais do que encontrar nele conflitos ou "contradições".

Além disso, tanto em nossa relação com o movimento de um texto, de um outro que não seja nós mesmos, não se pode separar o que seria "intelectual" ou "cognição" do que seria "experiência sentida" ou "afeto". Ou, por outras palavras, não há "pureza" na relação com a verdade. A partir dessas considerações, nossa relação com um texto (ou com um outro) é necessariamente melhor quando nos sentimos perto ou longe dele? Em todo caso, o prejulgamento que aproximaria compreensão e proximidade não tem nada garantido. E a dinâmica dessa relação com os textos, com os outros, consigo mesmo é mais algo que se manifesta para nós do que algo com respeito ao qual teríamos uma grande "clareza cognitiva".

Não se trata, portanto, nem de buscar "a verdade" do texto, nem a do outro ou de nós mesmos. Trata-se apenas de chegar a reformular, a esclarecer um pouco, para nós mesmos ou para os outros, os movimentos de nossa relação, as correções que serão sem dúvida, por sua vez, corrigidas, com tudo o que isso comporta de atribuível pouco ou não a um pano de fundo, sem visar nada de definitivo.

2 Qual(is) leitura(s)?

Como foi dito, gostaria de tentar, contrariamente à perspectiva que foi dominante, ler cada um desses autores por ele mesmo, sem também buscar necessariamente uma continuidade entre os textos de Bakhtin escritos em diferentes épocas.

Com o risco inerente à utilização de "palavrões", poder-se-ia talvez falar aqui de alguns ensaios de leitura "dialógica", o termo remetendo primeiro aqui à particularidade do leitor que selecionou algumas passagens que lhe parecem fazer sentido para ele e, eventualmente, para outros. Isso remete também à posição "interpretativa" que comporta toda leitura ou, mais geralmente, toda percepção: perceber enquanto, em determinado campo, tal horizonte. Com a possibilidade sempre parcial e relativa de esclarecer alguns aspectos dessa percepção-leitura. E, em particular, o tipo de questões, ligadas à distância inevitável do campo que "eu-nós todos-nós" percebemos como aquele que se desenha no texto apresentado pelo autor (ou que podemos supor de outro ponto de vista) e o campo de nossa própria recepção, por exemplo, sob forma de prolongamento ou de questão (na medida em que podemos levar em conta o que é "de nós mesmos" e "do autor" em nossa recepção).

2.1 Leituras de Voloshinov

Inicialmente aparece em Voloshinov uma espécie de entusiasmo, numa afirmação "marxista" ou "sociológica" como decorrente de si mesma. Ao mesmo tempo, não há, que eu saiba, em Marx e Engels uma verdadeira "filosofia (ou "ciência"?) da linguagem". Mas não se trata de responder aqui, sobretudo de maneira rápida e lateral, à questão de saber o que é ser "marxista" ou o que é o parentesco ou a distância daquilo que foi escrito por Marx em períodos diferentes ou se é necessário aproximar ou distinguir as obras de Marx das de Engels. E eu tenho ainda menos competência para responder à questão de saber o que significa ser "marxista" na nossa época, por exemplo, sobre o que pode ser uma sociologia, uma ciência marxista eventualmente separada de uma prática "revolucionária". Ou a pretensão a tal ciência não seria apenas uma deformação universitária?

Em todo caso, marxista ou não, em relação ao meu projeto inicial de retorno a Bakhtin, há mais citações aqui de Volpshinov do que o previsto. Isso significa apenas que esses textos são particularmente expressivos para mim e, eu espero, para meus ouvintes-interlocutores.

Os textos aqui apresentados são trechos de um artigo: O discurso na vida e o discurso na poesia, contribuição para uma poética sociológica, de Marxismo e filosofia da linguagem, e enfim do livro O freudismo.

2.1.1 O discurso na vida e o discurso na poesia4 4 Na versão em português: Voloshínov, V. (Bakhtin, M. M.). Apêndice. A palavra na vida e na poesia. Introdução aos problemas da poética sociológica. In: Bakhtin, M. M. Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. Org. V. Miotello. São Carlos: Pedro & João Editores, 2011.

Começo com esse texto (cuja inspiração não me parece diferente daquela de MFL) simplesmente porque sua publicação é anterior. Voloshinov utiliza aqui "sociológico" como equivalente a "marxismo", cujo método é caracterizado, sem que ele diga mais nada, pelo monismo e pelo historicismo. (O que, sob essa forma, é evidentemente bastante vago.) Trata-se de afirmar que não há estudo autônomo das formas semióticas. Seu estudo pode e deve considerá-las como "ideológicas", de modo que o método para estudá-las seja integralmente "sociológico" ou "marxista". Voloshinov se opõe às correntes dominantes que desejam estudar isoladamente seja a forma do texto em si, seja a psicologia do autor ou daquele que recebe o texto. A questão posta é, então, a da referência a uma abordagem total:

Mas, na realidade, o fato "artístico", considerado em sua totalidade não reside nem dentro da coisa, nem no psiquismo do criador, nem no do receptor, mas ele contém esses três aspectos. O fato artístico é uma forma particular e fixada na obra de arte de uma relação recíproca entre o criador e os receptores (p.187).

Seria infundado criticar esta declaração de princípio isolada daquilo que pode em particular servir para garantir o que é estético ou não.

Em seguida, Voloshinov postula que a análise da comunicação estética passa pela análise do discurso da vida cotidiana. Ao mesmo tempo (p. 188), porque "os fundamentos e as potencialidades da forma artística ulterior já estão postos nesse tipo de enunciado". E depois porque "A essência social da palavra aparece aqui mais claramente e mais nitidamente, e a ligação que une o enunciado ao meio social ambiente se presta mais facilmente à análise".

Por sinal, eu não creio que haja aí um pensamento especificamente "marxista": a procura de um fenômeno significante global que envolva aquele que fala, aquele que recebe, a forma linguística e o contexto se encontra em muitas formas variadas de "sociolinguística". Ao mesmo tempo em que a linguagem comporta necessariamente não o enunciado isolado de um fato, mas de uma avaliação:

Eis como caracterizamos e avaliamos habitualmente os enunciados da vida cotidiana: "É uma mentira", "É a verdade", "Veja que palavras fortes", "Não deveria dizer isso", etc.

Todas as avaliações desse tipo, independentemente do critério - ético, epistemológico, político ou outro - que as oriente, englobam muito mais do que aquilo que está contido no aspecto propriamente verbal, linguístico do enunciado: elas englobam ao mesmo tempo a palavra e a situação extraverbal do enunciado. Esses julgamentos e essas avaliações dizem respeito a certa totalidade na qual o discurso está em contato direto com o evento vivido e se funde com ele para formar uma unidade indissolúvel. O discurso em si, considerado isoladamente como um fenômeno puramente linguístico, não pode ser nem verdadeiro nem falso, nem audacioso, nem tímido (p.189).

Nesse texto, como em outros, Voloshinov parece remeter à situação atual, efetiva do enunciado. Obviamente, essa remissão apresenta alguns problemas de método. Em primeiro lugar porque esse contexto avaliativo pode ser (ou melhor, não pode não ser) múltiplo: o ausente é tão constitutivo do contexto quanto o que se encontra presente. Por outro lado, Voloshinov escreve:

Antes de tudo, é perfeitamente claro que o discurso não reflete aqui a situação extraverbal como o espelho reflete um objeto. Neste caso, é melhor dizer que o discurso realiza a situação, que ele estabelece de alguma forma o seu resultado avaliativo global. Mais frequentemente o enunciado da vida cotidiana prolonga ativamente a situação e a desenvolve, ele delineia o plano e a organização de uma ação futura. Mas o que importa para nós é o outro aspecto do enunciado cotidiano: seja qual for, ele conecta sempre entre si aqueles que participam de uma situação, como coparticipantes que conhecem, compreendem e avaliam essa situação do mesmo modo (p.190-191).

Parece-me que se pode retomar essa análise do enunciado em situação. Mas, ao mesmo tempo, ela coloca muitas questões. A primeira diz respeito ao método efetivo de análise. Voloshinov utiliza a metáfora do entimema, a situação comum sendo implícita, o não dito é constitutivo do sentido em questão. A metáfora é feliz, a situação é comparável a outro enunciado, tal como no caso da não-expressão da premissa maior do silogismo no caso do entimema quando se diz apenas: "Sócrates é um homem, logo ele é mortal"? Eu não penso assim. A situação não se deixa compreender com tanta facilidade. Ora, Voloshinov faz como se esse recurso à situação não apresentasse problema. Ele parece deduzir de uma unidade da realidade a unidade de mundo vivido:

Esse contexto extraverbal do enunciado se decompõe em três aspectos: 1) o horizonte espacial comum aos locutores (a unidade do lugar visível: o cômodo, a janela, etc.), 2) o conhecimento e a compreensão da situação, também comum a ambos os interlocutores, e, finalmente, 3) a avaliação - comum também aí que eles fazem dessa situação (p.190).

Essa asserção do sentido como sendo comum encontra-se explicada um pouco mais adiante (p. 191):

O que eu sei, o que vejo, o que eu gosto não podem ser subentendidos. Só pode tornar-se parte subentendida do enunciado o que nós, locutores, conhecemos, vemos, amamos e reconhecemos todos, o que nos é comum a todos e o que nos une. Além disso, o social está no seu princípio plenamente objetivo: nada mais é do que a unidade material do mundo que entra no horizonte visual dos locutores (em nosso exemplo, é o cômodo onde eles estão, a neve que cai por trás da janela) assim como a unidade das condições reais de vida - unidade que suscita uma comunidade de avaliação (pertença dos locutores a uma mesma família, a uma mesma profissão, à mesma classe social, e, finalmente, a uma mesma época, uma vez que os locutores são contemporâneos uns dos outros). As avaliações subentendidas não são, por conseguinte, o produto de emoções individuais, são atos socialmente determinados e necessários. As emoções individuais só podem ser os harmônicos que acompanham o tom principal da avaliação social: o "eu" só pode ser realizado no discurso apoiando-se no "nós".

Aqui também a sociedade parece funcionar como um todo, enquanto nós somos mais, parece-me, envolvidos, ao longo de nossas vidas, em relações sociais variadas ou contraditórias. E depois, se assim for, o que se torna a metáfora que representa as "emoções individuais", como harmônicos das emoções sociais? No mínimo, há aí um problema. Certamente, Voloshinov acrescenta:

Mas esse horizonte comum sobre o qual se apoia o enunciado pode se expandir no espaço e no tempo: o "subentendido" pode existir no nível da família, da nação, da classe social, dos dias, dos anos e de épocas inteiras. À medida que se expande o horizonte comum e o grupo social que lhe corresponde, os aspectos subentendidos do enunciado tornam-se cada vez mais constantes... (p. 192)

É exatamente sobre a unidade da comunidade e do mundo vivido que é colocada a ênfase. Isso faz com que a questão da possibilidade para cada um de nós de apreender o que faz a comunidade-diferença com os outros não seja levada em consideração. E então, como determinar a maneira como o terceiro representa para si a forma como um outro percebe a situação em questão? Sem esquecer o destino do "terceiro sábio" confrontado com a massa multiforme das "ciências humanas" presumidamente para ajudá-lo a reconstruir a situação dos outros. Voloshinov parece não se questionar sobre o estatuto do intérprete. Mas, sobretudo, Voloshinov apresenta a situação como comum. O que constitui problema: qual a relação entre o que é comum e o que não é em duas pessoas ao mesmo tempo em suas diferenças de pertencimento social e de tornar-se individual (sujeitos ou indivíduos como se queira dizer) que partilham a "mesma" situação? Em particular se levarmos em conta o fato de que, ditas explicitamente ou não, a situação comporta perspectivas diferentes. Por que não evocar as diferenças de percepção, de avaliação, de perspectiva temporal entre a criança e o adulto, o chefe e o subordinado. Será que o "social comum" não se torna aqui a máquina para explicar tudo? Sem dúvida. Mas isso não exclui tudo o que pode trazer a consideração da linguagem como avaliação, movimentação, se quiser, "pragmática", qualquer que seja o perigo que possa haver em projetar num autor uma noção surgida mais tarde. Além disso, o recurso à noção de "avaliação" permite uma perspectiva mais ampla do que o que implica uma concepção estrita da "pragmática" como uma maneira de agir sobre outrem. Nossa linguagem, nossa disposição corporal, até mesmo nossa percepção nunca são constatações puras. Ao mesmo tempo em que, no animal ou na criança, a avaliação é imediatamente força, atividade. E, além disso, as ligações entre avaliação e atividade podem se distender, inverter-se, elaborar-se, ao mesmo tempo em que a atividade corporal se torna signo. É evidentemente "um caso".

Em todo caso, o desenvolvimento seguinte de Voloshinov apresenta um novo problema. Trata-se (p. 194-195) da entonação no limite do verbal e do corporal da única palavra "Eis" pronunciada em uma situação particular, empréstimo de Jakubinskij já mencionado. O que se aplica, evidentemente, a qualquer signo. Mas Voloshinov acrescenta que a entonação de "Eis" pronunciado em situação comporta um traço "enigmático" (as aspas são de Voloshinov): a indignação que ele comporta não está direcionada ao interlocutor, mas a um terceiro. "À neve? À natureza? Ao destino talvez. Há uma tendência à personificação, à fórmula mágica como característica da primeira linguagem. O terceiro é o herói".

Pode-se lançar um olhar negativo para tudo.

Inversamente, podemos sorrir, por assim dizer, a tudo: ao sol, às árvores, aos nossos pensamentos [...] a entonação e o gesto são ativos e objetivos por sua tendência mesmo. Eles não exprimem apenas o estado de espírito passivo do locutor.

Diante de passagens como essas, pode-se dizer que Sériot tem razão, parece-me, ao constatar que Voloshinov faz mais apelo ao grupo em geral do que à especificidade do conflito de classes, menos ainda a determinado conflito de classe concreto. Assim como ele dá, sobretudo, exemplos fictícios. Voloshinov não analisa situações reais nas quais os propósitos se teriam encadeado, o que teria feito, sem dúvida, aparecer, pelo menos parcialmente, as diferenças de avaliação de acordo com os personagens e sua evolução. Sempre com a questão da interpretação dos não-ditos assim como do diálogo à distância entre os propósitos estudados e a percepção do "terceiro sábio", que os descreve. (Voloshinov não parece se perguntar muito sobre as condições de validação de seus próprios propósitos. Mas quem pode avaliar o sentido de suas palavras, sua forma de significar para o terceiro destinatário ou mais ainda para "receptor remoto?") Em seguida, Voloshinov aborda a questão da obra e da relação que poder haver entre o autor, o herói e o receptor (p. 204):

Lá onde a análise linguística vê apenas palavras e as relações recíprocas entre seus momentos abstratos (fonéticos, morfológicos, sintáticos, etc.), aí, para a percepção artística viva e para a análise sociológica concreta, se descobrem relações entre os homens, relações que são simplesmente refletidas e fixadas no material verbal. O discurso é um esqueleto que se cobre de carne viva somente no desenrolar da percepção criadora e, por consequência, no desenrolar da comunicação social viva.

Parece-me que podemos concordar sobre o papel criador da recepção no diálogo com a obra, como em todo diálogo. E mesmo que isso apresente algum problema, não é esclarecedor aproximar "percepção artística viva" e "análise sociológica concreta"? Ao mesmo tempo, essa consideração conduz, ela própria, a uma série de perguntas: O que diferencia aqui a percepção estética da percepção comum? Em que medida se pode dizer que não há distância entre percepção concreta e sociologia? É verdade que algumas dessas questões são abordadas de forma mais detalhada em Marxismo e filosofia da linguagem.

2.1.2 Marxismo e a filosofia da linguagem5 5 Na tradução brasileira: BAKHTIN, M. (V. N. VOLOSHÍNOV). Marxismo e a filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 1979.

Nota: Faço preceder minhas referências às traduções de I ou II, dependendo de se tratar da primeira ou da segunda tradução6 6 A primeira tradução francesa do russo foi realizada por Marina Yaguello, em 1977 (Les Éditions Minuit); a segunda, bilíngue, foi feita por Patrick Sériot e Inna Tylkowski, e apareceu em janeiro de 2010 (Éditions Lambert-Lucas). . Indico a numeração sucessivamente da edição I e II. A tradução I distribui os capítulos de forma contínua de 1 a 11, enquanto a tradução II os distribui em três partes (aqui anotadas I, II e III) a numeração dos capítulos retornando a 1 em cada parte.

Não volto aqui à apresentação de "duas correntes da filosofia da linguagem" (I, 4/II, II, 1), que me parece inoportunamente esquemática. (Para retomar uma observação de Sériot, se ser "dialógico" é deixar o pensamento do outro se desenvolver na sua especificidade, então se pode dizer que o texto de Voloshinov é muito pouco "dialógico".) Também não retorno ao primeiro capítulo (I, 1/II, I, 1), dedicado a "a ciência das ideologias e a filosofia da linguagem", muito geral, senão para lembrar que Voloshinov introduz nele uma equivalência entre "signo" e "ideologia", o que confere a "ideologia" um significado mais amplo do que o que geralmente lhe é atribuído. O capítulo 2, A relação entre a base e as superestruturas, também é, certamente, muito geral. Contudo, parece-me, em parte, desmentir a visão de Sériot segundo a qual haveria em Voloshinov apenas uma relação tradicional e vaga com "a sociedade".

2.1.2.1 Os "fatos ideológicos" e seu contexto

O fato de estabelecer uma relação entre a base e um fato isolado separado de seu contexto ideológico tomado em sua globalidade e sua integralidade não tem valor cognitivo algum. É preciso determinar antes de tudo o sentido de uma dada mudança ideológica no contexto da ideologia correspondente [...] É somente sob essa condição que, no fim da análise, constatar-se-á não uma correspondência superficial de dois fenômenos fortuitos situando-se em planos diferentes, mas um verdadeiro processo de evolução dialética da sociedade, que parte da base para terminar nas superestruturas (II, p.147-149).

Aqui o signo específico que são a Palavra e a ideologia remetem ao que há de indissolúvel na união do signo e do significado em um determinado contexto. Certamente, Voloshinov não nos diz como analisar concretamente as relações das ideologias e "da base" em particular levando em conta a forma como as diferentes ideologias se desenvolvem de acordo com as temporalidades que não são calcadas sobre a forma da evolução "da base". Mas o aspecto "declaração de princípios" do texto é condenável? Eu não tenho certeza de que estejam escritos em algum lugar os princípios do "método correto".

Voloshinov oferece, então, o exemplo de "homem supérfluo" no romance russo, e em particular no personagem Roudine no romance de Turguéniev (1856). Não se pode deduzir esse personagem:

Não se depreende de nenhuma maneira que a crise econômica tenha provocado, por uma relação de causa e efeito, a aparição de "homens supérfluos" nas páginas dos romances (o absurdo de tal proposta salta aos olhos) e, por outro lado, essa correlação não tem nenhum valor cognitivo, tanto que não se determinou nem o papel específico do "homem supérfluo" na estrutura literária do romance, nem o papel específico do romance no conjunto da vida social (II, p.149).

Parece-me que, polemicamente, Voloshinov está certo. Será que o programa em questão é efetivamente realizável? Eu não sei. Afinal, há muitos casos em que dispomos de "verdades negativas", dizendo respeito ao que é, por exemplo, falso ou inaceitável, sem poder manifestá-las como verdades positivas concluídas. Além disso, será que "a base" não fica aqui um conceito muito indeterminado, uma metáfora discutível? Especialmente considerando que as relações entre forças produtivas e relações de produções são, elas próprias, historicamente complexas, passam justamente pelos tipos de movimentação dos grupos e/ou dos indivíduos nos grupos que não são separados dos movimentos propriamente ideológicos. Além do mais, com respeito ao sentido usual de "marxista", Voloshinov parece praticar um deslocamento importante: "De fato, a raiz desse problema no plano que nos interessa consiste em saber como a existência (a base) determina o signo, como o signo reflete e refrata a existência em transformação" (p.151). Aqui o problema, legítimo ou não, não é mais o da base econômica, mas do lugar da linguagem na existência.

2.1.2.2 "Psicologia" ou "semiologia"?

Sempre no mesmo capítulo Infraestruturas e superestruturas, Voloshinov apresenta um princípio muito geral:

A psicologia do corpo social não se dilui em algum lugar no interior (nas "almas" dos indivíduos em situação de comunicação), ela é, ao contrário, totalmente exteriorizada: na palavra, no gesto, no ato. Não há nada nela de não-expresso, de interiorizado, tudo está na superfície, tudo está na troca, tudo está no material e, principalmente, no material verbal (I, p.38).

Mas ele acrescenta:

Em todo signo ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O signo se torna a arena onde se desenrola a luta de classes. Essa pluriacentuação social do signo ideológico é um traço da maior importância (I, p.44).

No capítulo 3, Filosofia da linguagem e psicologia objetiva, precisam-se as relações do psiquismo e do signo:

A realidade do psiquismo interior é a do signo [...] Por natureza, o psiquismo subjetivo fica encavalado no organismo/corpo e no mundo exterior, por assim dizer, na fronteira dessas duas esferas de realidade. É aí que acontece o encontro entre o organismo/corpo e o mundo exterior, mas esse encontro não é físico: o organismo e o mundo se encontram no signo. A atividade psíquica constitui a expressão semiótica do contato do organismo com o mundo exterior. É por isso que o psiquismo interno não deve ser analisado como uma coisa, ele só pode ser compreendido ou analisado como um signo.

O que constitui o material semiótico do psiquismo? Todo gesto ou processo do organismo: a respiração, a circulação sanguínea, os movimentos do corpo, a articulação, o discurso interior, a mímica, a resposta aos estímulos externos (a luz, por exemplo) em suma, tudo o que se realiza no organismo pode tornar-se o material para a expressão da atividade psíquica, uma vez que tudo pode adquirir um valor semiótico, tudo pode tornar-se expressivo. É verdade que cada um desses elementos não é de igual valor. Para um psiquismo, por menos desenvolvido, diferenciado que seja, um material semiótico fino flexível é essencial e necessário e, além disso, que esse material se preste a uma diferenciação no meio social, no processo de expressão exterior. É por isso que a palavra (o discurso interior) se mostra o material privilegiado do psiquismo. É verdade que o discurso interior se entrecruza com uma massa de outras reações gestuais com valor semiótico. Mas a palavra se apresenta como o fundamento, o alicerce da vida interior. A exclusão da palavra reduziria o psiquismo a quase nada, enquanto a exclusão de todos os outros movimentos expressivos o diminuiria muito pouco (I, p.50-51).

Nota-se, no fim da passagem, uma grande diferença na tradução II7 7 Em sua tradução, Sériot e Tylkovski decidiram escrever Palavra com maiúscula para lembrar que essa palavra traduz o russo slovo, muito polissêmico, que significa não apenas "palavra", mas também "fala", "discurso" e "linguagem", conforme o contexto. :

É por isso que o material semiótico por excelência do psiquismo é a Palavra: a fala interior. É verdade que a fala interior se mistura com um grande número de reações motoras com valor semiótico. Mas a base, o esqueleto da vida interior é a Palavra. Se o psiquismo fosse privado da Palavra, ele se reduziria a quase nada; privado de todos os outros movimentos expressivos, ele se apagaria completamente (p.175).

Além disso, Voloshinov retorna à relação de si para si na "auto-observação":

A atividade mental não é nem visível, nem diretamente perceptível, ela é, em revanche, compreensível. Isso quer dizer que, durante o processo de auto-observação, recolocamos a atividade mental no contexto de outros signos compreensíveis. O signo deve ser esclarecido por outros signos (I, p.61).

...

O signo ideológico é vivo por causa da sua realização no psiquismo e, reciprocamente, a realização psíquica vive da contribuição ideológica. A atividade psíquica é uma passagem do interior em direção ao exterior; para o signo ideológico, acontece o contrário. O psiquismo é extraterritorial ao organismo. É o social infiltrado no organismo do indivíduo. E tudo o que é ideológico é extraterritorial no campo socioeconômico, uma vez que o signo ideológico, situado fora do organismo, deve penetrar no mundo interior para realizar sua natureza semiótica. Dessa forma, há entre o psiquismo e a ideologia uma interação dialética indissolúvel: o psiquismo renuncia, destrói-se para tornar-se ideologia e vice-versa. O signo interior deve se liberar de sua absorção pelo contexto psíquico (biológico e biográfico), ele deve parar de ser experimentado subjetivamente para se tornar signo ideológico. O signo ideológico deve integrar-se ao campo de signos interiores subjetivos, deve ressonar tonalidades subjetivas para permanecer um signo vivo e evitar adquirir o estatuto honorífico de relíquia de museu incompreensível (I, p.65).

Em um primeiro momento, o "signo" substitui a consideração do psiquismo. Ou melhor, o psiquismo aparece apenas como um signo, com a articulação da semiótica do corpo e a das palavras (é preciso falar aqui de "diálogo"?). E, num segundo momento, ele apela, muito rapidamente, para o movimento recíproco da ideologia e do psiquismo. Assim como o psiquismo é caracterizado pela sua "extraterritorialidade" (o que sem dúvida significa que ele é um lugar fronteira, que não se pode localizá-lo em um ponto fixo). Como eu vejo o interesse que pode haver em explicitar as condições nas quais um signo ideológico pode não permanecer formulação vazia, dependendo de que façamos ou não o movimento de retomada dessa formulação por conta própria. E não descobrimos aqui o que toda situação pedagógica, política ou literária encontra com respeito ao que se torna ou não se torna uma formulação na sua circulação?

Esse texto abre muitas perspectivas ao mesmo tempo em que ele apresenta problemas (o que não constitui uma crítica). Pode-se, parece-me, localizar essas "aberturas-problemas" em torno de três pontos:

- a ideia propriamente de que todo movimento corporal possa tornar-se signo;

- a questão da relação entre esses signos corporais e os signos linguísticos, em particular na linguagem interior;

- a ideia de que o que importa não é dizer que a verdade do interior está no exterior, mas na circulação entre ideologia externa e signo interior subjetivo.

Mesmo que haja aí problemas infinitos, isso não impede (para mim) o efeito de choque produzido pela forma como são estabelecidas relações entre "ideologia" e "psiquismo".

Dito isso, pode-se questionar mais precisamente as relações entre "o interior" e "o exterior", ou, mais ainda, sem dúvida, as diversas formas como essas semiologias agem em nós, sobre nós (ou sobre o que pode agir em nós sem ser semiotizado). Assim como se pode perguntar se é adequado considerar a Palavra como "a base, o esqueleto" da vida interior. Em todo caso, mesmo que isso já requeira discussão, elaboração, pode-se constatar a importância do campo aberto para essa noção de circulação entre o interior e o exterior. Mesmo que a questão da relação dessas "semióticas corporais" com a(s) semiótica(s) verbal(s) possa ser o objeto de uma reflexão, de uma descrição, de uma análise, como se queira dizer, propriamente ditas, infinitas. E qual é o tipo de "saber" pertinente aqui? Há apenas um? A questão está, evidentemente, aberta.

Será que essa "semiologização" da vida psíquica, destinada polemicamente a "dar uma base objetiva" ao psiquismo, pode dar conta do conjunto do que cada um chama espontaneamente de vida psíquica? Será que podemos reconhecer nela em particular o que constitui ou não a nossa força em nós, o que nos coloca em movimento? Ou, ainda de forma mais geral, é necessário, é possível que nos reconheçamos naquilo que "a ciência" nos diz sobre o psiquismo? De modo preciso, será que o exemplo tomado a respeito do que é reação ao mundo exterior (a reação à luz) não é bem restritivo em relação ao modo como a nossa "linguagem interior" funciona de alguma forma sobre um fundo de mundo percebido, rememorado, projetado no futuro, mundo dotado, aliás, de modalidades múltiplas, familiar ou estranho, partilhado ou não, suportável ou não, em todo caso, sobre o qual nossa tomada de consciência está longe daquilo que nos dá a nossa capacidade de falar dele?

Ou, ainda, parece-me que Volochnov está aqui muito silencioso sobre a questão da infância e de sua envetual retomada-modificação posterior. Como sobre o recomeço característico do nascimento, com o que faz com que haja não leis mas, no melhor dos casos, possibilidades: o que se tornará uma criança não está prescrito no seu nascimento. Assim como apresentar o psiquismo em termos de signos corre o risco de negligenciar a questão do que nos coloca em movimento, evitando o molieresco: "se nos movimentamos é que há uma pulsão que nos faz movimentar".

2.1.2.3 A ideologia da vida cotidiana

A "ideologia da vida cotidiana" me parece constituir um terceiro tema específico do pensamento de Voloshinov (V.I, 6/II, II, 3, A interação verbal):

Pode-se dizer que não é tanto a expressão que se adapta a nosso mundo interior quanto nosso mundo interior é que se adapta às possibilidades de nossa expressão, às suas vias e orientações possíveis. Chamaremos a totalidade da atividade mental centrada na vida cotidiana assim como a expressão que a ela se liga: ideologia do cotidiano para distinguir sistemas ideológicos constituídos, tais como a arte, a moral, o direito, etc. A ideologia do cotidiano constitui o domínio da palavra interior e exterior desordenada e não fixada num sistema, que acompanha cada um dos nossos atos ou gestos e cada um dos nossos estados de consciência. Considerando a natureza sociológica da estrutura da expressão e da atividade mental, podemos dizer que a ideologia do cotidiano corresponde essencialmente ao que se designa, na literatura marxista, sob o nome de "psicologia social" (I, p.130)

[Os produtos ideológicos oficiais] conservam em permanência um laço orgânico vivo com a ideologia do cotidiano; eles se nutrem de sua seiva, pois fora dela estão mortos, assim como estão mortas, por exemplo, a obra literária acabada ou a ideia cognitiva se estas não são mais submetidas a uma avaliação crítica viva (I, p.131).

Certamente se coloca a questão do sentido muito amplo dado por Voloshinov à "ideologia" – de acordo, diga-se de passagem, com o sentido da palavra russa ideologija: há também aqui um problema de tradução.

Parece-me que o apelo à "ideologia do cotidiano" pode ser lido de múltiplas formas. Em primeiro lugar, como reação dos grupos efetivos de existência à "grande ideologia". Assim como a ideologia do cotidiano aparece como o que circula em nós, constitui o momento de nossa "interioridade". Pode-se utilizar, com os riscos de verbalismo que apresenta, no meu entender, o termo "dialética" para designar o circuito das significações sociais e a sua retomada-modificação em cada um.

Mas, ao mesmo tempo, Voloshinov, acentua outro aspecto:

2.1.2.4 O papel constitutivo da "língua estrangeira"

Voloshinov lembra que a filologia trabalhou, como afirma Nicolas Marr, sobre a língua morta. Mas ele acrescenta na parte II, capítulo 5/7 Língua, linguagem e enunciado (I, 5/II, II, 2, Língua, linguagem e enunciado8 8 Na tradução brasileira: Língua, fala e enunciação. ):

Mas o enunciado monológico já é uma abstração, mesmo que essa abstração seja, por assim dizer, natural. Todo enunciado, mesmo sob a forma escrita, acabada, responde a alguma coisa e espera, por sua vez, uma resposta. Ele constitui somente uma trama da cadeia contínua das intervenções verbais. Todo documento antigo continua aqueles que o precederam, polemiza com eles, espera uma compreensão ativa em troca, antecipa, etc. (II, p.267)

Aqui o pensamento é duplo: de uma parte a filologia perde o movimento dialógico:

O enunciado-monológico-acabado-isolado, separado de seu contexto verbal real, que não se oferece a uma resposta ativa potencial, mas à compreensão passiva do filólogo, é o último dado e o ponto de partida do pensamento linguístico (II, p.269).

Mas, ao mesmo tempo, Voloshinov desenvolve outra ideia:

Quaisquer que sejam as diferenças profundas de ordem cultural e histórica entre os linguistas, desde os sacerdotes hindus até os linguistas europeus contemporâneos, o filólogo permanece sempre e em todo lugar, um decifrador de caracteres e de palavras "secretos" estranhos, um mestre que transmite o que é decifrado, ou recebido por tradição. Os primeiros filólogos e os primeiros linguistas foram, sempre e em todo lugar, sacerdotes. A história não conhece um único povo histórico cujos textos sagrados ou a tradição histórica não tenham constituído, em certa medida, uma língua misteriosa e incompreensível para o profano. Decifrar o mistério dos textos sagrados, essa era precisamente a tarefa dos sacerdotes filólogos [...] (II, p.271)

...

A orientação da linguística e a filosofia da linguagem sobre a Palavra outra, a Palavra estrangeira, não deve nada ao acaso, ela não é uma escolha arbitrária da linguística e da filosofia. Não, essa orientação testemunha o imenso papel histórico que a Palavra estrangeira desempenhou na formação de todas as culturas ao longo da história. Esse papel foi atribuído à Palavra estrangeira em todos os campos da criação ideológica sem exceção, desde a organização sociopolítica até o código de boas maneiras na vida cotidiana. (II, p.273)

Voloshinov evoca na tradição de Marr os "Jaféticos" diante dos helenos, Roma e o cristianismo diante dos bárbaros.

Vê-se assim o papel organizador grandioso da Palavra estrangeira, impondo-se sempre pela força e uma organização estrangeira, ou então encontrada por um jovem povo invasor sobre o território de uma cultura antiga e poderosa que ele acaba de ocupar, essa cultura invadida subjugando de alguma forma até a morte a consciência ideológica do povo invasor. O resultado é que, nas profundezas da consciência histórica dos povos, a Palavra estrangeira se associou à ideia de poder, de força, de santidade, de verdade [...] (II, p.273).

Assim como o capítulo consagrado à "interação verbal" (II, 6/ II,II,3) lembra que o classicismo está ligado à ideia da primazia da língua estrangeira. E que há algo dessa ordem na transmissão cultural da palavra que conta. Como na forma como, para cada um de nós, segundo modalidades variadas, a palavra "sagrada" (da religião, da teoria...) permanece sagrada ou se torna cotidiana.

2.1.2.5 Uma teoria geral da relação do indivíduo e da sociedade?

Parece-me que o tema desenvolvido no capítulo A interação verbal (II, 6/ II, II, 3) constitui, ao contrário das observações "produtivas" que precedem, a expressão de uma sociologia geral um pouco geral demais. Eu a apresento muito rapidamente, uma vez que os desenvolvimentos paralelos se encontram no texto Freudismo, sobre o qual vamos voltar.

[...] o mundo interior e a reflexão de cada indivíduo são dotados de um auditório social próprio bem estabelecido [...] Quanto mais o indivíduo é aculturado, tanto mais o auditório em questão se aproxima do auditório médio da criação ideológica, mas, em todo caso, o interlocutor ideal não pode sair das fronteiras de uma classe e de uma época bem definida (I, p.123).

O que está pressuposto, mais do que mostrado. Com um desenvolvimento que sempre me impressionou:

A atividade mental do nós não é uma atividade de caráter primitivo, gregário: é uma atividade diferenciada. Melhor ainda, a diferenciação ideológica, o crescimento do grau de consciência, são diretamente proporcionais à firmeza e à estabilidade da orientação social. Quanto mais a coletividade no interior da qual o indivíduo se orienta é forte, bem organizada e diferenciada, mais o mundo interior deste é nítido e complexo (I, p.126).

O mínimo que se pode dizer é que a questão da relação entre tomada de consciência, modos de semiotização e tipos de pertença ao grupo permanece uma questão aberta. E ele acrescenta:

O individualismo é uma forma ideológica particular da atividade mental de nós da classe burguesa (encontra-se um tipo análogo na classe feudo-aristocrática). A atividade mental de tipo individualista se caracteriza por uma orientação social sólida e afirmada. Não é do interior, do mais profundo da personalidade que se extrai a confiança individualista em si, a consciência de seu próprio valor, mas bem no exterior (I, p.128).

Certamente Voloshinov anda muito rápido (demais). Poder-se-ia, por exemplo, perguntar-se sobre as formas variadas de "confiança em si" que manifestam ou não os bebês em seu estilo corporal precoce, o que nos afasta em todo caso de uma causalidade social simples. Assim como quando ele escreve:

Fora de sua objetivação, da sua realização num material determinado (o gesto, a palavra, o grito), a consciência é uma ficção. É apenas uma construção ideológica incorreta, criada sem levar em conta os dados concretos da expressão social (I, p.129).

Mas, antes de tudo, é preciso falar de "consciência" ou de "movimentos de tomada de consciência"? E depois, será que esses movimentos podem ser descritos unicamente pela aparição de tal ou tal "signo"? Será que não somos remetidos a alguma coisa que poderíamos chamar de "psicologia", "antropologia da tomada de consciência" ou "fenomenologia"? Por exemplo, caso se pergunte como o mesmo material semiótico não funciona da mesma forma como reação ao "presente" ou ao "ausente". No capítulo O tema e a significação na língua (I, 7/ II, II, 4), Voloshinov evoca o problema da articulação do "tema" (sentido correto) à "significação" como "aparelho técnico da realização do tema". Ele fala de acentuação, de diálogo. Mas as questões concretas de análise, por exemplo, da articulação da comunidade e das diferenças de acentuação de cada um ficam suspensas, como as da articulação efetiva do dito e do "resto".

2.1.2.6 A linguagem do outro e a literatura

O livro de Voloshinov não apresenta conclusão; termina em dois capítulos que, introduzindo desenvolvimentos "técnicos" sobre o discurso reportado, especificam a forma como, no romance em particular, se manifesta a presença do "discurso do outro". Parece-me que se manifesta aqui uma solução para o problema da articulação da presença do discurso do outro na especificidade do discurso do autor. Assim, em I, 9 / II, III, 2, Voloshinov remete a Jakubinskij:

a palavra do outro é concebida pelo locutor como o enunciado de um outro sujeito, completamente independente na origem, terminado, do ponto de vista de sua construção, e situando-se fora do contexto presente. É a partir dessa existência independente que a palavra do outro passa ao contexto de autor, conservando seu conteúdo objetal e, pelo menos, rudimentos de sua integridade linguística e de sua autonomia inicial de construção. O enunciado de autor, no momento de integrar em sua composição um outro enunciado, elabora normas sintáticas, estilísticas e composicionais para assimilá-lo parcialmente, para associá-lo à unidade de um enunciado de autor, conservando, ao menos de forma rudimentar, a autonomia original (sintática, composicional, estilística) do enunciado do outro, caso contrário este não poderia ser apreendido na sua plenitude (II, p.365).

Aqui o problema está posto. Um pouco mais adiante, aparece um apanhado histórico (muito) rápido de diversas figuras da história do pensamento nessa relação com o discurso do outro:

o dogmatismo autoritário, caracterizado pelo estilo linear e o estilo monumental da transmissão do discurso do outro na Idade Média; o dogmatismo racionalista com seu estilo linear ainda mais nítido (séculos XVII e XVIII); o individualismo realista e crítico como seu estilo pitoresco e sua tendência à infiltração dos comentários e das réplicas do autor na palavra do outro (fim do século XVIII e século XIX) e, enfim, o individualismo relativista com sua diluição no contexto de autor (época contemporânea) (II, p.379).

Deixo de lado a questão do tipo de significação que pode ter uma abordagem de tamanha generalidade. Permanece para nós que a abertura dessa problemática é chocante, mesmo que possamos, é claro, encontrar muitos outros casos de exemplos. Sempre acontece que Voloshinov (I, 9/ II, III, 4) traz os propósitos de diferentes autores que abordaram o problema técnico do discurso reportado. No último capítulo, ele compara as formas gramaticais do discurso indireto livre em alemão, francês e russo. E especifica:

A significação estilística dessa forma reside no fato de que é preciso adivinhar quem fala. De fato, do ponto de vista gramatical abstrato, é o autor que fala, do ponto de vista do sentido real de todo o contexto, é o herói que fala (II, p.429).

Nos múltiplos exemplos que ele fornece, vê-se bem se manifestar a eficácia desse modo de manifestação da pluralidade das vozes, sobre as quais Voloshinov observa que "só pode ser representada de forma adequada pela leitura em voz alta". Por exemplo, em O idiota, (II, p.457):

E por que então o príncipe não se aproximou dele? Por que ele, ao contrário, desviou-se como se não tivesse notado nada, enquanto seus olhos se tinham encontrado. (Sim, seus olhos tinham se encontrado e eles tinham se olhado!) Ele não queria há pouco pegá-lo pela mão para irem juntos ali?... Ou então, haveria efetivamente em Rogojine mesmo, assim como ele estava hoje com todas as suas palavras, seus movimentos, seus atos, seus olhares, alguma coisa que justificasse os terríveis pressentimentos do príncipe e os cochichos revoltantes do seu demônio?...

E essa interação da voz do autor e do herói faz sentido, parece-me, com intensidade, em particular, em todas as citações que se poderia dar de Dostoiévski. Daí a minha dificuldade para perceber o sentido das últimas palavras da obra (II, p.465):

[Na situação atual, a] expressão verbal, em literatura, retórica, filosofia e nas ciências humanas, torna-se o reinado das "opiniões", opiniões notórias e mesmo, nessas opiniões, o que ocupa o primeiro plano não é o seu conteúdo, mas a maneira, individual ou típica, como a opinião é expressa. Esse processo, que afeta a vida da Palavra na Europa burguesa contemporânea e também conosco (até quase esses últimos tempos), pode ser definido como uma coisificação da Palavra, como uma diminuição do valor temático da Palavra [...] É necessário dizer por quais premissas de classe esse processo se explica e repetir as palavras justificadas de Lorck sobre as únicas vias possíveis para a renovação da Palavra ideológica, forte em seu tema, penetrada por uma apreciação social assegurada e categórica, da Palavra séria e responsável em sua seriedade?

Sincera convicção ou sacrifício ao terrorismo ideológico então crescente? Eu não tenho os meios para decidir. Em todo caso, explicitamente, está-se longe do "dialogismo", quer se trate de "teoria" quer de "conceder a palavra" aos autores que se cita.

2.1.3 O freudismo

Levo em conta aqui apenas alguns aspectos da reflexão de Voloshinov. Admitindo de uma vez por todas que não se trata de uma teoria acabada, mas de abordagens que podem ter para nós a função de reveladoras. Especialmente levando em conta que o primeiro artigo foi publicado em 1925, o livro em 1927, o que faz com que Voloshinov não possa evidentemente referir-se ao conjunto da obra de Freud.

Não há nada de original na crítica segundo a qual (por exemplo, p.88-89) o freudismo dá destaque apenas para o sexo e a idade, o papel da sexualidade infantil, sem considerar o papel das classes sociais, "refrão das épocas de crise e de decadência" (p.89). Assim como (cap.7) apresentar Freud como um psicólogo "subjetivista" e não "objetivista" não me parece levar muito longe (e perder a "dialética" apresentada acima entre "interior" e "exterior"). Em contrapartida, parece-me legítimo (p.161) apresentar a questão do tipo de vocabulário que permite descrever o "inconsciente": Freud retoma "desejo", "afeto", "representação". Ora, esses termos têm um sentido mais ou menos precisos no que diz respeito aos fenômenos psíquicos conscientes. Mas pode-se perguntar sobre o que podem ser representações ou sentimentos inconscientes. Assim como se pode duvidar das dicotomias principiais como entre "princípio de prazer" e "princípio de realidade". Como Voloshinov se pergunta (p.163) sobre o que pode ser a "fineza" discriminatória da censura. Assim como ele se pergunta se houve um trabalho de construção mental inversa ao trabalho de descostura da análise, o que me parece uma pergunta legítima. Ou, para dizer de outra forma, pode-se perguntar, em Freud, sobre o que pode ser também um problema em toda teoria: o apoio em generalidades que são paradoxalmente o que há de mais problemático.

Acontece também que Voloshinov dá razão a Freud. Assim, no capítulo 8, Uma dinâmica psíquica em que, por conta de forças da natureza, se afrontam razões ideológicas, Voloshinov observa que, com respeito a uma visão irenista da vida psicológica (mas esta verdadeiramente existiu?), a grande novidade do freudismo é introduzir a guerra, o caos, a miséria psíquica, o caráter trágico contra o otimismo biológico. Mas, de outro lado, ele retoma sempre o argumento: isso permanece a psicologia individual e já que o "inconsciente" só aparece na tomada de consciência, tem-se a ver somente com "razões" e não com "causas verdadeiras". Deixo a questão suspensa: o que aparece às consciências não podem ser apenas razões? E, inversamente, um "saber científico" tem acesso às "verdadeiras forças" que nos colocam em movimento? Voloshinov propõe aqui que se trata de "projetar no psiquismo algumas relações objetivas do mundo exterior traduzindo, antes de tudo, a extrema complexidade das relações sociais que existem entre o doente e seu médico" (p.175).

Há refrações em cadeia entre o que aparece no discurso das relações com o analista.

Dito de outra forma, o que os "mecanismos" psíquicos nos revelam facilmente é sua origem social: um "insconsciente" estabelecido não contra a consciência individual do doente, mas antes de tudo contra o médico, suas exigências e suas opiniões; uma "resistência", ela também dirigida, antes de tudo, contra o médico, contra o ouvinte, em suma, contra o outro.

Há "algo assim", sem dúvida. Que as relações com o analista de alguma forma dão forma à relação do analisando com ele mesmo faz parte, parece-me, do que poderia ser chamado de vulgata analítica. E não se poderia perguntar em que medida nossa relação com os nossos outros atuais ou passados não constitui de alguma forma o quadro mesmo de nossa maneira de existir? O que deixa totalmente em aberto a questão de nossos modos de reação, de nossos estilos de existência e especificamente de nossas relações com nós mesmos.

Será que não há aqui, em particular, em Voloshinov (mas isso não se manifesta somente nele; nenhum de nós escapa sem dúvida, o tempo todo, ao estranho prazer da fórmula provisoriamente definitiva), um exemplo do que pode ser a violência teórica? Acrescentando que especificar a relação de nossa linguagem interior por um lado com a linguagem proferida e, por outro lado, com o íntimo de nossa forma de sentir, de "estar no mundo" é sempre arriscado. E aqui não se trata de "interior" ou "exterior". Porque a presença do mundo exterior comum não nos diz em nome do que o percebemos-sentimos como tal, em particular não nos diz qual é a parte comum e diferente nessa percepção, quais são os nossos acentos, nossas avaliações implícitas. Ora, tentar especificar esse modo de percepção, de existência, não diz respeito a uma relação "introspectiva". Não se trata de "introspeção", mas sim do exercício estranho que nos possibilita retornar mais ou menos bem, com a ajuda das "palavras dos outros" ou de "indeterminação" [on] que tentam fazer delas "palavras nossas", sobre o sentido do que percebemos-sentimos, como aquilo que o outro percebe-sente. Nossa percepção do "mundo exterior" é ao mesmo tempo aquela de um mundo sentido, orientando-nos para a fuga, a aceitação, o entusiasmo, ou... E, contra uma visão muito simples do contexto, lembre-se que essa percepção do presente é, com a mesma intensidade, percepção do ausente. Por que então nossas "reações verbais" não manifestariam, de alguma forma (a reserva é importante, com certeza), o todo de nossa vida sem ter que ser uma espécie de cópia de um proto-vivido fora das palavras, mas os elementos de um "diálogo entre as linguagens" heterogêneas, de um lado, a "linguagem" propriamente dita e, do outro, a maneira como a "não-linguagem" fala em nós, se manifesta de alguma forma. E certamente subsiste o problema de saber como podemos (cada um à sua maneira, sem dúvida) explicitar esse diálogo entre linguagens.

Voloshinov acrescenta que, na situação analítica, nossa apresentação verbal reinterpreta nossa infância em termos adultos; não é ela que fala. O que é inevitável. Além disso, ele acrescenta:

para distinguir o inconsciente freudiano da consciência comum "oficial" poder-se-ia chamá-la de uma "consciência não-oficial".

Motivar seu ato, tomar consciência de si (porque a consciência de si é sempre verbal e conduz sempre à invenção de um complexo verbal preciso), é assujeitar-se a uma norma social, a um juízo de valor social, é, ouso dizer, socializar-se a si mesmo e a seu ato. Tomar consciência de si é, de certa forma, tentar ver-se com os olhos de um outro, de um outro representante de seu grupo social, de sua classe, de modo que a consciência de si desemboca sempre, no fim das contas, numa consciência de classe, da qual ela é, em tudo o que tem de profundo e de essencial, apenas um reflexo e uma particularização.

Aí se encontram as raízes objetivas de nossa reações verbais, sejam elas as mais pessoais, as mais íntimas. E só teremos acesso a elas recorrendo aos métodos de sociologia objetiva dos quais o marxismo se dotou para analisar essas diversas construções ideológicas que são o direito, a moral, a ciência, a filosofia, a arte e a religião [...] quanto mais meu pensamento ganha clareza, mais ele se aproxima das formas tomadas pelos resultados da ciência. Mais ainda, meu pensamento saberia estar definitivamente claro antes que eu encontrasse para ele uma formulação verbal precisa e que eu o tivesse convertido em uma obra científica que me engajasse. Da mesma forma, nenhum sentimento saberia amadurecer nem afirmar-se definitivamente, se ele não chegasse a se traduzir exteriormente dando vida a palavras, a ritmos, a cores, etc., ou seja, se ele não desembocasse numa obra de arte (p.182-183).

Não sei muito bem que atitude tomar diante dessas declarações muito gerais que me parecem colocar, sem justificar, uma espécie de monismo da "consciência de classe". Por que o outro por cujos olhos eu tento me ver seria um representante da minha classe? E não de outra, ou um representante de outra geração ou ... ? Eu passo ao largo da "ciência" como uma forma de "consciência justa". Assim como um sentimento pode tomar forma numa prática e não necessariamente em uma obra de arte. Considerando que se pode continuar a se perguntar como se manifesta efetivamente essa "consciência não-oficial" (formulação que me parece chocante).

Voloshinov continua (eu chamo de notas):

Essa via que, a partir do conteúdo de um psiquismo individual, conduz a um conteúdo de cultura é longa e difícil, mas é a única, e, ao longo de todo seu curso, em cada uma das etapas, obedece às mesmas leis socioeconômicas (a). Ora, a cada uma das ditas etapas, a nossa consciência (b) também faz uso da palavra, porque é nela que a refração das leis socioeconômicas é ao mesmo tempo a mais sutil [...] as leis de refração da necessidade objetiva no seio da palavra sendo as mesmas em ambos os casos (c) [...] Quanto aos outros extratos [da ideologia do cotidiano] que correspondem ao inconsciente freudiano, eles estão bastante afastados do sistema da ideologia dominante, das quais elas, ao contrário, denunciam a unidade e a coerência como comprometidas e as motivações ideológicas correntes como incertas. Ora, ainda que a acumulação de razões interiores tendendo a minar a unidade da ideologia do cotidiano, possa, certamente, assumir um caráter fortuito e testemunhar apenas desclassificação social de alguns indivíduos, ela é geralmente o sinal de um início de decomposição, se não de uma classe, pelo menos de alguns dos seus grupos. Em um corpo social sadio, como em um indivíduo socialmente sadio, a ideologia do cotidiano estabelecida sobre a base socioeconômica é coerente e sólida, sem qualquer divergência entre consciência oficial e não-oficial. (d)

(a) Trata-se de leis? Em que sentido elas são socioeconômicas? A história efetiva não é mais opaca e múltipla do que esse recurso a leis? Não se trata antes da pressão que exerce a vida social sobre nossas formas de fazer, de sentir, de falar, o que se poderia chamar de nosso "conformismo prático", qualquer que seja a forma de consciência dita religiosa, anarquista, revolucionária etc.? Para retomar o termo de Bourdieu, não há aí algo que passa pelo habitus (sejam quais forem os problemas que esse outro "palavrão" apresente)? E depois, o que são essas leis que nunca são, ao que me parece, apresentadas sob uma forma concreta, explícita?

(b) Aqui não se trata de dizer que a consciência sem os signos não é nada, mas que ela usa das palavras. E, por outro lado, a natureza daquilo que passa através de palavras é apresentada de uma forma menos simplificada em outros textos já citados anteriormente.

(c) Seria necessário falar de "fantasma" para designar a crença em um marxismo ciência total que conheceria as leis gerais da articulação das palavras, logo da consciência e do mundo. Ou "fantasma" é apenas um termo vago que diz respeito à "ciência da injúria erudita"? Sempre acontece que Voloshinov vai rápido.

(d) Coloca-se o problema do porquê de uma tal generalidade, sobre a qual o mínimo que se pode dizer é que ela afronta nosso pré-pensamento implícito, nossas "evidências" como também nossas tentativas de explicação.

Poderia se observar também que há certo número de aspectos da vida ao mesmo tempo individual e comum que não são levados em conta aqui por Voloshinov: a infância, a velhice, a doença, a morte, a solidão. Esses aspectos, quais sejam, as mudanças históricas, por exemplo, no que concerne à saúde, fazem sentido por meio do intercâmbio entre homens pertencentes a sociedades muito diferentes. Tudo isso é substituído por uma consideração muito/demasiado geral sobre as "leis socioeconômicas". Também (o mais frequente) uma consideração da linguagem, isolada, sem suas relações com as outras semióticas (corporais, em particular). Poderia, no entanto, se perguntar o que é a "tomada de consciência" de uma situação por um animal, por um infans. Assim como sobre a articulação da linguagem e da não-linguagem nos nossos próprios movimentos de tomada de consciência (percebido, sentido, presença do campo do passado e do futuro). Fica também a questão da modificação do campo vivido que me parece caracterizar justamente a tomada de consciência como processo temporal, como incursão. Como aquela da variação perpétua (que não é incompatível com a permanência de certo estilo) de nossas próprias formas de perceber-sentir-reagir (dito de outra forma, de "pensar") independentemente daquilo que passa pelas palavras.

2.1.4 Retorno rápido à leitura crítica de Marxismo e filosofia da linguagem por P. Sériot

P. Sériot se esforça, na medida do possível, para reconstituir uma leitura "filológico-histórica" de Voloshinov (uma vez que é sobre ele que trata o Prefácio de MFL) e, incidentalmente, de Bakhtin, no tempo deles. E esse trabalho me parece muito esclarecedor. Mas Sériot traz também um julgamento retrospectivo, que, em nome da ciência, restringe, me parece indevidamente, o que pode nos trazer a leitura de Voloshinov assim como o que ela pode ter de "marxista".

Mesmo que o "marxismo" de Voloshinov continue sem dúvida problemático, contrariamente à apresentação que dele faz Bronckart, o qual remete, como se fosse um princípio simples, a um "monismo materialista herdado de Spinoza" (p.471) (não retomo aqui o que essa leitura de Spinoza tem de problemática), como eu duvido igualmente da clareza trazida pela afirmação do paralelismo psicofísico. Ou ainda eu me pergunto sobre a utilização que faz Voloshinov do termo "ideologia", como se fosse o suficiente substituir "consciência" por "signos" para eliminar os riscos de "idealismo". Não será necessário preferencialmente reconhecer que "materialismo" ou não, cada um é confrontado com a distância da experiência cotidiana, com suas diferentes maneiras de apresentá-la (contá-la?) em comparação com modelos teóricos quaisquer que sejam eles?

Sériot lembra, a justo título, que em vez de luta de classes, no texto de Voloshinov trata-se mais de pertença a um grupo e do vivido comum que torna possível a troca, a circulação discursiva no seio desse grupo. Especialmente a imagem que dá Voloshinov da integração ao grupo permanece, no mínimo surpreendente. (Ele observa que Voloshinov dá como exemplos de grupos a família e na melhor hipótese – se posso ousar dizer – os operários de uma mesma oficina.) Sobretudo a imagem que Voloshinov oferece da integração ao grupo continua no mínimo surpreendente. A crítica de Sériot me parece aqui fundamentada. Sem, no entanto, que essas críticas levem, como ele parece propor no final do seu prefácio, à recusa de qualquer valor científico à conduta de Voloshinov. Poderia se opor a Sériot que uma teoria social da comunicação pode ou deve ser (parcialmente) desenvolvida antes que se trate das relações entre os grupos complexos. Além disso, Sériot insiste sobre o que pode conter de esquemático o capítulo dedicado ao conflito das teorias da linguagem e à oposição do "objetivismo abstrato" e do "subjetivismo individualista". Também sobre esse ponto, parece-me que Sériot tem razão. Dito isso, pode-se opor a Voloshinov:

Ele triunfou ao dizer que o enunciado tomado com sua ligação com a "situação" é sempre único, sempre particular. Mas é por sua epistemologia que ele não nos satisfaz: Qual seria a ciência do objeto ao mesmo tempo único e ligado a tudo? Como construir uma teoria do conhecimento do que não é reiterável? Privado de qualquer procedimento de controle de suas afirmações, MFL é mais um manifesto do que um tratado analítico: não se vê como se pode "aplicá-lo" a qualquer coisa que seja (Sériot, 2010, p.92).

Não me parece que haja um acordo sobre o que possa ou deva ser "o método em ciências humanas", as relações, por exemplo, entre abordagens estatísticas e clínicas, descrição sincrônica e história etc. E então, depois de tudo, será que os historiadores, quer se trate de macro-história ou de micro-história, não são confrontados constantemente ao fracamente reiterável e à multiplicidade dos esclarecimentos? Sem dúvida, heterogeneidade dos dados e multiplicidade das perspectivas proíbem a possibilidade mesmo de construir uma "epistemologia" geral. Felizmente MFL não é um "tratado de epistemologia das ciências humanas", tipo de livro que, sem dúvida, nunca serviu para nada. Trata-se mais da reunião de um conjunto de perspectivas cuja aproximação (a meus olhos) choca. É mais um ensaio do que um manifesto. E não se trata de aplicar um método que teria sido primeiro fixado (sonho bizarro do chefes de Escola). Em vez de assistir (participar) à circulação ao mesmo tempo dos fatos, do esclarecimentos e das teorias. (E, a propósito, as práticas e os discursos dominantes presumíveis de se fundar sobre o método admissível pelos comitês de leitura das revistas reconhecidas não são, sem dúvida, aptos a desenvolver o entusiasmo criativo.)

Além disso, pelo que conheço, não há em Marx nem mesmo uma teoria unívoca da relação entre as "ideologias" e a prática social efetiva. Há sobretudo violência ideológica dos conflitos em A Ideologia alemã. Em seguida, as reflexões históricas contidas nos textos relativos a 1848 e a Comuna. Menciono aqui apenas a massa de escritos de Engels. Como o imenso conjunto (cite-se no mínimo Gramsci e Lukács) do que pode ter sido escrito sobre "linguagem e consciência de classe". Sériot tem, me parece, razão de dizer que Voloshinov não era marxista no sentido em que, por exemplo, Gramsci era. Dito isso, podemos, devemos decidir sobre o que merece a designação de "marxista"? (Outro adjetivo elogioso para alguns, sinônimo de vergonha para outros, poderia ser substituído aqui.) Eu duvido disso.

E, além disso, seria abusivo (cômico até) considerar que nossa distância histórica fosse a condição necessária e suficiente para uma tomada de consciência adequada do sentido das posições de Voloshinov. Primeiro, porque cada um de nós (por exemplo, em relação às teorias ou práticas marxista e freudiana) não participa de forma inequívoca de "o espírito do tempo". Mas também porque a historicidade do movimento cultural não é o resultado simples de uma relação entre "infraestruturas" e "superestruturas". Assim como cada um de nós pode sempre se perguntar sobre a articulação nele de sua "base patêmica" (deve-se dizer "caráter", "inconsciente", "modos de repercussão"?) e daquilo que que se transmite culturalmente, especialmente em um determinado gênero do discurso ou outro.

2.2 MEDVEDEV

2.2.1 O método formal em literatura9 9 Em português: O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Trad. E. V. Américo e S. C. Grillo. São Paulo: Contexto, 2012.

O texto de Medvedev é mais técnico do que o de Voloshinov. Ao mesmo tempo, é difícil extrair dele citações, na medida em que o livro em si é composto de uma análise minuciosa dos textos dos "formalistas" de quem ele toma distância. Assim sendo, apenas alguns pontos. Encontra-se nesse texto a mesma utilização muito geral, como em Voloshinov, de "sociológico", como idêntico a "marxista". Medvedev insiste em primeiro lugar no fato de que uma explicação "sociológica" de uma arte não é uma forma de explicá-la "do exterior". Só podemos querer explicar a arte pela sociedade

em vez de colocar em evidência a natureza sociológica dos fatos literários do interior, tentando a todo custo provar a influência determinante que exerceriam sobre os fatos literários, de uma maneira única e exclusiva, os fatores externos (mesmo que estes digam respeito a ideologias diferentes). É como se apenas quando se interpreta a arte como não-arte que ela se tornaria fator social enquanto ela o é por sua própria natureza! ... (p.126).

Mas pode-se perguntar se Medvedev pratica ele mesmo, efetivamente, uma tal "poética sociológica interna". (Ela existe agora? Eu não sei.) Ela se encontra confrontada com a elaboração efetiva do "formalismo", com "o sentimento" somente de que de alguma forma essa única análise formal é insuficiente. Assim Medvedev se pergunta sobre o que poderia ser uma crítica que exprimisse as necessidade sociais do público:

Uma crítica competente e saudável deve entregar ao artista uma "encomenda social" em sua própria linguagem, à maneira de uma encomenda poética. Quando ela é dotada de um alto grau de cultura artística, é a própria sociedade, a massa de leitores em si, que transpõe naturalmente e sem dificuldade suas exigências e necessidades de natureza social na linguagem imanente peculiar à arte poética. Deve-se reconhecer que isso só é possível nas condições relativamente raras de uma homogeneidade e de uma harmonia de classe entre o poeta e seu público. Mas, em todos os casos, a crítica deve servir de tradutor, de medium entre eles... É verdade que encontramos épocas nas quais o artista e a classe dominante cessam de se compreender... Mas isso só acontece nas épocas marcadas por um grau agudo e profundo de decomposição da sociedade (p. 132).

Assim, Medvedev leva em conta a diversidade das situações, mas continua a pensar (ideia que se encontra novamente em Voloshinov) que o ideal seria a comunidade, o acordo entre o autor e a sociedade. Deve-se chamar isso de "preconceito sociológico" ou "sociologia simples demais"?

Em suma, Medvedev assim como Voloshinov militam por uma abordagem social da literatura, que ainda não existe. Parece-me que seus textos devem ser lidos como esforços de autores confrontados com um problema que eles não dominam. Mas, que eu conheça, nós não dominamos também. Como pensar a especificidade dos "signos" (?) particulares que são as obras literárias, em seu "laço dialético" com a sociedade global? O que Medvedev tenta fazer retomando e criticando os formalistas como pensadores da especificidade da criação discursiva. Portanto, num plano mais limitado, mais técnico do que tentam fazer Bakhtin e Voloshinov.

O formalismo ocidental luta contra o "idealismo" e o "positivismo" (encontra-se aqui de novo a mesma apresentação binária encontrada no capítulo de Voloshinov dedicado à linguística). Os formalistas ocidentais não opõem obra e conteúdo, os russos sim. E Medvedev remete a Fiedler que vai ao encontro parcialmente de Bakhtin:

Não devemos procurar para a arte uma missão que vá ao encontro dessa, de outra forma mais séria, da cognição; devemos sobretudo examinar com um olhar imparcial o que faz exatamente o artista para ser capaz de compreender que ele apreende a vida de uma maneira que pertence apenas a ele próprio e, dessa forma, tem acesso a uma compreensão da vida inacessível a qualquer reflexão (p.151).

Pode-se considerar de fato que a crítica do estudo formal isolado subjaz ao conjunto da obra bakhtiniana. Só que Bakhtin, o que me parece importante, não teria avaliado a relação entre a arte e a ciência, constatando em vez disso a impossibilidade de colocá-las numa "escala de valores" unívoca.

Medvedev apresenta uma série de princípios concernentes ao que poderia ser uma sociologia interna da arte. Em primeiro lugar, a análise deve (princípio "formalista") levar em conta a especificidade da via sensorial, por exemplo, a vista no caso da pintura ou da escultura. Em seguida, é possível escrever uma "história da arte sem nomes", como quando Wölfflin reencontra em diferentes tempos e lugares a oposição do clássico e do barroco, ou Worringer, aquela do naturalismo e da abstração (o que permite (p.154), por exemplo, opor a obra grega, na qual a materialidade da pedra e do corpo representado se unem e, de outro lado, a arte gótica, na qual a pedra se encontra sujeita à abstração de verticalidade).

Em seguida, Medvedev defende que o formalismo russo estuda a palavra por oposição à idealidade simbolista.

Confirmar-se-á que, com as palavras igualmente, encaradas como unidades gramaticais e imagens sonoras transmentais, seria possível envolver-se em um jogo estético abstrato com vistas a construir novas combinações artísticas (p.169).

Quer dizer que o formalismo é acompanhado de uma nova prática, a dos futuristas, na qual as palavras não estão relacionados com as suas condições normais referenciais.

E aqui Medvedev insiste na significação que tem na novela de Tolstoi, O medidor de tecidos, o "estranhamento" produzido pelo fato de que o narrador seja o cavalo, como um modo de manifestação de uma outra perspectiva "moral". O que me parece um bom exemplo de acesso "interno" ao "sentido social" da obra, que mantém, no entanto, sua especificidade de obra quando nos obriga a "olhar para as coisas de forma diferente". Um pouco mais adiante, Medvedev retorna para a articulação da linguagem comum e da linguagem poética: não há uma linguagem poética específica, mas eventualmente uma transgressão da linguagem usual (p.203). Há utilizações, funções poéticas da linguagem. Mas não se saberia opor "uma" linguagem usual e "uma" linguagem poética:

Em regra geral, pode-se adiantar que onde a comunicação verbal já está construída e aparece como fixada, congelada, e onde o conteúdo a ser transmitido está igualmente já determinado e se propõe apenas a transmiti-lo aos outros no quadro de uma troca já paralisada, nesse caso, os enunciados apresentam as características dos formalistas. Mas esse tipo de situação não é nada típico da comunicação verbal prática e diária.

Na realidade, a comunicação cotidiana não para de evoluir, mesmo que seja lentamente e em um domínio limitado. As relações recíprocas entre os locutores mudam permanentemente, mesmo que seja num grau sutilmente perceptível. Ao longo dessa transformação, é também o conteúdo do que é transmitido que se modifica. Comunicação prática e cotidiana tem um caráter de descrição de eventos e a troca verbal mais insignificante se inscreve nesse devir perpétuo. No curso dessa evolução, a palavra vive uma vida extremamente intensa, mesmo que seja uma vida diferente da que se encontra na criação artística (p.224).

Ou ainda, a partir da página 237 Medvedev volta à "'palavra transmental' como limite ideal da transmissão poética". Se eu estou certo, trata-se, para os formalistas, de colocar em evidência a ação direta da forma. A partir do exemplo do romance de Sterne Tristram Shandy, no qual a forma se autonomiza, age por si só. Ao mesmo tempo em que se reencontra no jogo e na comunicação usual essa tendência da forma para se tornar autônoma. Em suma, a linguística concreta que Medvedev pesquisa (que nós pesquisamos?) deve ser a análise de um objeto em movimento, mesmo que esse movimento seja lento. Esse objeto em movimento sendo primeiro localizado nas "formas da comunicação oral dialógica imediata" (esquecidas pelos formalistas).

Acidentalmente, encontramos aqui a plurifuncionalidade da linguagem tal como foi apresentada por Jakobson (1896-1982). Mesmo que se possa acreditar que a poética, tal como Jakobson a caracteriza, é exatamente "formal" demais, definida por seu retorno sobre si mesmo e não por sua forma própria de se manifestar.

2.2.2 "Forma" e "conteúdo", "fábula" e "sujeito"

Medvedev (como outros autores aqui considerados, e especialmente Vygotski mais adiante) retoma a distinção dos formalistas entre a fábula (fabula), no sentido geral, em oposição ao sentido específico do que é uma fábula (Basnja), o conteúdo mesmo e o assunto o devir da fábula em tal texto, tal forma efetiva. E, como Voloshinov, apresenta uma série de princípios (com, novamente, a questão da significação de princípios acompanhados de uma aplicação limitada).

Questionando-se sobre o que faz a ligação entre a realidade material da palavra e seu sentido, ele responde (p.259): "Defendemos por princípio que é a valorização social que constitui esse elemento", a questão da linguagem comum que precede a questão da "linguagem poética". O que importa é o evento histórico que constitui determinado enunciado em determinado momento. E essa enunciação, por sua vez, remete a valores sociais mais ou menos estáveis ou contingentes. Esses valores estão no centro da comunicação. Assim, na p.263 (e aí está o centro da crítica ao formalismo): "O poeta escolhe não formas linguísticas, mas os valores que nelas estão depositados". Ele acrescenta que dois grupos opostos podem usar as mesmas palavras com valores opostos. Mas que isso é uma ficção:

Na verdade, a língua se cria, se forma e está submissa a uma evolução constante no contexto de uma visão definida do mundo de valores. É por isso que dois grupos sociais fundamentalmente diferentes não podem dispor de um arsenal linguístico idêntico (p.265).

A teoria dos formalistas na sua articulação com a prática dos futuristas se explica pelo fato de que

As palavras foram feitas leves para eles. Daí a sua "orientação em direção ao absurdo", em direção a uma palavra "tão simples como um mugido". As palavras tinham perdido seu peso valorizante, a distância que as separava tinha-se reduzido, sua hierarquia tinha se desagregado. É como se as palavras fossem emprestadas no contexto das conversas fúteis de pessoas que não influenciam o curso da vida.

Esse aspecto deve ser posto em relação com o fato de que os futuristas tinham aparecido como representando um grupo social jogado na periferia da vida social, sem influência nem enraizamento social e político (p. 266).

Qualquer que seja a dúvida que possamos ter em relação a uma sociologia que oponha assim "integração" e "periferia", resta que a questão é exatamente aquela da diversidade dos valores subjacentes às palavras (idênticos ou diferentes). Com a questão de nossa capacidade para tomar, de algum modo, consciência do sistema de valores subjacente ao manejo da linguagem, tanto o nosso como o dos outros, podendo as palavras ser sempre retomadas, valorizadas de outra forma. Sem que Medvedev explicite aqui as condutas dessa tomada de consciência. (Mas, a propósito, temos nós mesmos uma "boa teoria" dessa "extração natural de valores?").

Em seguida, p.273 a 290, Medvedev examina os "elementos da construção artística". Ele insiste, por um lado, sobre o fato de que a obra de arte só pode funcionar como representante de um "gênero". Por outro lado, sobre o fato de que, contrariamente às outras atividades humanas, a obra se caracteriza por sua finalização:

Na literatura, ao contrário10 10 Nos outros domínios pode haver uma finalização composicional, não temática [F.F.] , tudo se reduz precisamente a essa finalização essencial, objetiva e temática e não à finalização superficial, discursiva do enunciado.

O acabamento composicional, que reside na periferia da língua, pode justamente, na literatura, faltar às vezes. É possível utilizar a incompletude como procedimento. Mas esse caráter inacabado exterior apenas coloca cada vez mais em relevo a completude temática profunda (p.274).

Ver-se-á que esse tema também é desenvolvido por Bakhtin. Em todo caso, esse enunciado muito geral se atualiza:

O artista deve aprender a ver a realidade através do gênero. Só é possível compreender certos aspectos da realidade reportando-os a determinados procedimentos que permitem exprimi-la. Além disso, esses procedimentos de expressão somente são aplicáveis a determinados aspectos da realidade [...] A capacidade para encontrar e apreender a unidade de um pequeno acontecimento cotidiano anedótico supõe, até certo ponto, a capacidade de construir e de contar uma anedota e, em todos os casos, subentende que nos orientamos em direção a procedimentos de tratamento anedótico do material. Por outro lado, esses métodos mesmo não podem se explicar se não houver alguma coisa de verdadeiramente cômica na vida (p.281 segs.).

E, inversamente:

Entre a faculdade de apreender a unidade isolada de uma situação aleatória da vida e a faculdade de compreender a unidade e a lógica interna de toda uma época há um abismo. É por isso que esse abismo existe também entre a anedota e o romance.

Deixo de lado a questão daquilo que, na realidade, é apropriado para se manifestar sob forma de novela ou romance. Em todo caso, pode-se dizer que o gênero transforma a realidade em tema no laço social que ele cria com o leitor. Laço social e laço com o real que o formalismo negligencia.

Mas me parece que a articulação da forma e do tema está apresentada de forma mais concreta (mas também bastante diferente) em Psicologia da Arte de Vygotski. Daí essa digressão.

2.3 Uma digressão: "conteúdo" e "forma" na Psicologia da arte de Vygotski

É na Psicologia da arte de Vygostski que aparece a ideia - pode ela ser estendida a toda obra de arte como diz Vygostski? não sei - de que o que faz existir a obra é a contradição entre a fábula (como conteúdo da obra considerado em si mesmo) e a maneira como ela se manifesta na obra concreta. Por oposição à ideia de que o que caracteriza a obra é a unidade da forma e do fundo (que me parece subjacente ao texto de Medvedev e que é, aliás, banal). Em primeiro lugar na análise (p.218) da novela de Ivan Bounine Um sopro leve, Vygotski contrasta a ordem dos acontecimentos da fábula com aquele efetivo do texto. Seguindo a ordem de desenvolvimento do drama dessa jovem estudante:

Nós teríamos aprendido as coisas mais ou menos nesta ordem: como Olga Mechtchersdaïa seduziu o oficial, como ela começou a ter uma ligação com ele, como as peripécias dessa relação se sucederam, como ela jurou que o amava e falou de casamento, como ela começou, em seguida, a debochar dele; nós teríamos vivido com os heróis toda a cena na estação de trem, e sua resolução ulterior, e, bem entendido, tensos e angustiados, teríamos ficado observando durante os breves minutos em que o oficial, seu diário íntimo nas mãos, depois de ter lido a nota sobre Malioutine, saiu para a plataforma e, de forma inesperada, a matou com um tiro (p.220).

De forma oposta, o que faz funcionar o texto é que a morte da heroína é contada sob a forma da evocação de um sopro leve, seu modo de presença para a professora que se lembra dela no cemitério. E poderá se acrescentar também a leveza, a futilidade de suas trocas com a colega ou o tom jovial e provocante de sua entrevista com a diretora para quem ela informa que foi seu próprio irmão que "fez dela uma mulher". É quando tudo isso foi dito que aparece o episódio propriamente do tiro citado por Vygotski:

"E um mês após essa conversa, um oficial cossaco, feio e de aspecto comum, não tendo absolutamente nada a ver com o mundo a que pertencia Olga Mechtchersdaïa, a matou com um tiro na plataforma da estação de trem no meio da multidão de pessoas que acabavam de chegar com o trem". Basta estudar a estrutura dessa única frase para descobrir na sua integralidade a teleologia do estilo dessa narrativa. Preste atenção à forma como a palavra mais importante se perde na acumulação das descrições que a circunscrevem de todos os lados, aparentemente estranhas à narrativa, de segunda ordem, pouco importantes [... ]

Seria necessário citar aqui o texto todo de Bounine e o comentário inteiro de Vygotski, como manifestando a maneira como o movimento do texto nos faz pensar-sentir. Dito isso, Vygotski fala de "lei de esgotamento do conteúdo pela forma" o que permanece duvidoso, sistemático demais (devastação teórica de uma linguagem dialética?): o conteúdo, a morte da heroína, não é anulado: ele muda de significação, submetido de alguma forma ao tema do "sopro leve".

Quando Vygotski passa à análise de Hamlet reencontra-se, de forma mais complexa, o mesmo tipo de "contradições": os intérpretes se perguntam como explicar o movimento da peça. Trata-se, por exemplo, do caráter hesitante de Hamlet ou das dificuldades que ele encontra? Mas se esquece então a relação da forma com o conteúdo. E o que faz funcionar a peça, nos diz Vygotski, é justamente o véu que nos impede de ver uma "verdadeira natureza de Hamlet". Há uma contradição entre a fábula recebida e o caráter do herói tal como ela aparece na peça. Vygotski debocha daqueles que procuram saber "o que pensa verdadeiramente Hamlet" ou se perguntam sobre o "tempo objetivo" durante o qual Hamlet teria recuado o momento da vingança. Contra tais pesquisas psicológicas, Vygotski procura (p.257) seguir a linha da obra, que deve, para existir, não ser o simples lugar da manifestação da fábula, reduzida ao esquema "assassinato do pai-vingança". De um lado há a fábula (aqui a lenda transmitida): Hamlet mata o rei para vingar seu pai. Do outro, há o assunto: Hamlet adia matar o rei e quando ele o mata é por uma outra razão (a morte de sua mãe, a espada envenenada que mata a si mesmo) mais do que para vingar seu pai (p.261).

Ao que se acrescenta o conjunto dos discursos "irracionais" desenvolvidos por Hamlet. É isso, que resiste à unidade simples da fábula, que faz funcionar a obra.

Nesse sentido, me parece que as duas análises de Vygotski realizam o que permanece em estado latente no texto de Medvedev: uma análise da forma do texto enquanto ela é a matéria mesmo do conteúdo da obra e não a expressão de um acontecimento que se poderia contar de outra forma. É o contraste da fábula e da forma que produz o assunto mesmo da obra e, por meio dele, seu efeito. Além disso, Vygotski começou sua obra com uma fórmula chocante: "Aos nossos olhos, a ideia central da psicologia da arte consiste em reconhecer que a forma artística a faz prevalecer sobre o material, ou, o que dá no mesmo, que a arte é uma técnica social do sentimento" (p.18).

Permanecem numerosas questões (como também, sem dúvida, para todo enunciado geral). Em primeiro lugar, trata-se apenas de sentimento? Evidentemente não. E depois, uma técnica se caracteriza por sua relação explícita com os seus objetivos. O autor sabe o que vai se produzir nos espectadores ou leitores? E, inversamente, o espectador ou o leitor tem acesso à intenção do autor? Parece-me que nos dois casos a resposta pode ser negativa. O que conduz a considerar que há certamente efeitos produzidos por essa técnica, mas que eles são "dialógicos", não dependendo apenas do saber-fazer do autor. Em todo caso, seguindo Vygotski, só se pode constatar o aspecto inesperado das diversas leituras de Hamlet, traços elaborados dos diferentes modos de "perceber enquanto tal".

Aqui ainda a leitura de Vygotski manifesta que não há contradição entre a exotopia do autor e a autonomia do herói, sua relação produzindo ao contrário um efeito específico.

Basta percorrer qualquer tragédia, e Hamlet em particular, para ver que todos os personagens são descritos pelo discurso tal como os vê o herói, aqui Hamlet. Todos os acontecimentos são refratados através do prisma de sua alma e, desse fato, o autor considera a tragédia sobre dois planos: de um lado ele vê tudo pelos olhos de Hamlet e, de outro lado, ele vê Hamlet com seus próprios olhos, tão bem que todo espectador da tragédia é ao mesmo tempo Hamlet e aquele que o contempla (p.265).

Eu me pergunto se as coisas não são um pouco mais complicadas. Aqui Vygotski fala da peça escrita. É bem verdade que a peça vista do ponto de vista do pai, do usurpador ou da mãe seria totalmente outra. Mas o que é feito da peça atuada? Será que os corpos animados de cada um dos atores-personagens não constituem também centros de perspectivas talvez secundárias, mas centros de perspectivas que resistem a ser apenas os "objetos" do herói ou do autor?

E também, parece, ao ler Vygotski, que a dualidade que caracteriza as relações de Hamlet vendo-se a si mesmo e visto pelo autor vai se projetar tal qual "no" espectador ou leitor. O que não é evidente. Em todo caso, a complexidade da situação está descrita um pouco mais adiante:

Assim como no retrato a não coincidência fisionômica dos diferentes fatores de expressão do rosto é a base do nosso vivido, na tragédia, a não-coincidência psicológica dos diferentes fatores de expressão do caráter é a base do sentimento trágico. A tragédia pode produzir efeitos incríveis sobre nossos sentimentos, precisamente porque ela faz com que eles se transformem constantemente nos seus contrários, se enganem em suas expectativas, se choquem com suas contradições, se desdobrem; e quando vemos Hamlet, ele nos parece viver em uma noite mil vidas humanas, e de fato pudemos experimentar mais coisas do que durante anos inteiros de nossa vida comum (p.267).

Voltando aos formalistas, são eles que estão na origem de todas as reflexões sobre a relação da fábula e do assunto. Eles criticam toda explicação psicológica para estudar apenas o lado sério da arte, sua forma. Sem se dedicar então nem ao curso do mundo nem à forma de agir sobre nós. Sem dúvida, colocando entre parênteses sua própria maneira de perceber, a partir da qual, somente, pode lhes ser oferecida a obra como totalidade significante. Resta que todos aqueles que vêm depois deles se afrontaram com o fato da especificidade da forma do texto. Dito isso, eu me pergunto se não seria possível estender a análise de Vygotski à maneira específica por meio da qual as palavras de cada um dão uma forma que age pelo seu próprio estilo sobre a maneira como o texto faz sentido para nós. Qualquer que seja a dificuldade que haja para explicitar essa ação do estilo sobre nós.

2.4 Alguns textos de Bakhtin

A leitura de Bakhtin aqui apresentada está centrada no problema da literatura e especificamente do romance na sua relação com a "filosofia", tal como ela se manifesta em um texto da juventude de Bakhtin Por uma filosofia do ato. E em excertos ainda mais parciais de Estética e teoria do romance e Estética da criação verbal, sem recorrer aos outros textos disponíveis em francês e sem poder justificar com um princípio simples as razões da seleção.

2.4.1 Por uma filosofia do ato 11 11 Em português: BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. Trad aos cuidados de V. Miotello e C. A. Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.

Brevemente, pode-se dizer que essa filosofia de inspiração kantiana se funda sobre a irredutibilidade das três abordagens teórica, moral, estética. O aspecto irredutível dessa distinção se opõe às visões hegelianas de totalização teórica no discurso final e, pelo menos, a certa imagem marxista da unidade da prática sustentada por um saber dialético e histórico.

Do início ao fim de sua vida, parece-me que Bakhtin é um teórico do inacabado e da heterogeneidade, da não totalização. O que o opõe ao entusiasmo revolucionário-totalizante de Voloshinov e à limitação à crítica do formalismo que se encontra na obra de Medvedev. Sem querer dizer que "a história demonstra que", me parece que é a uma tal teoria do inacabado que estamos confrontados, uma vez que não cremos, eu penso, nem que a ciência resolverá todos os nossos problemas nem que um processo revolucionário suprimirá ipso facto as raízes de toda "alienação".

Falta o início desse texto composto sem dúvida entre 1920 e 1924 (Bakhtin nasceu em 1895). Um princípio muito geral está afirmado no "início relativo". Eu o apresento, apesar da sua relativa extensão, na medida em que ele me parece colocar bem a questão de uma diferença de perspectiva com a de Voloshinov:

O elemento comum ao pensamento teórico discursivo (científico e filosófico), à representação-descrição histórica e à intuição estética, e que tem sua importância para sua análise, é constituído pelo que segue. Todas as atividades mencionadas instauram uma cisão de princípio entre o conteúdo de sentido de um determinado ato de tal atividade e a realidade histórica de seu ser, seu vivido singular, em seguida do qual esse ato perde sua dimensão de valor e a unidade de um devir vivo e de uma autodeterminação. Somente esse ato em seu todo é autenticamente real, participa do ser-acontecimento... (p.17)

É verdade que, ao menos com base na tradução, a formulação pode ser considerada como pesada. Mas o seu sentido é claro. É por mediações teóricas, narrativas, estéticas que um ato toma sentido. Mas essas mediações perdem forçosamente a realidade em si do ato em questão. O que cada um de nós, me parece, pode reconhecer se pensar no que realmente contou na sua vida. Esse ponto de partida não será provado. Podê-lo-ia? Prova-se um fato? Mas ele será em seguida esclarecido de diferentes formas.

E resulta disso que dois mundos aparecem um diante do outro, que não se comunicam de forma alguma nem se interpretam: o mundo da cultura e o mundo da vida, único mundo no qual criamos, descobrimos, contemplamos, vivemos e morremos.

O ato de nossa atividade, de nosso vivido, tal qual um Janus de duas faces, olha para diferentes direções: para o lado da unidade objetiva do domínio cultural, e para o lado da singularidade não reproduzível da vida vivida, mas não há plano uno e único, no qual as faces se determinariam mutuamente em relação a uma só e única unidade (p.18).

Em particular: "O julgamento teórico válido permanece impenetrável em todos os seus componentes para minha atividade individualmente responsável" (p.20).

Em outras palavras, eu não posso demonstrar que a maneira como eu agi era a única boa.

Certamente, a ciência se desenvolve, em particular, na sua ligação com a técnica. Mas não seria o caso de querer resolver os problemas concretos da existência a partir de enunciados teóricos. "Mas o mundo como objeto do conhecimento teórico tende a se fazer passar pelo mundo em seu todo, não apenas pelo ser um abstrato, mas também pelo ser concretamente único em seu todo possível ..." (p.24-25).

E correlativamente se apresenta a questão do que se torna o mundo vivido quando o teorizamos. E da maneira como a teoria pode sustentar a ação na medida em que a "singularidade única não poderia ser pensada, mas apenas vivida de maneira participante [...]" (p.32).

Permanecendo a situação complexa. De um lado a apreensão estética e a apreensão moral não podem se confundir. Entretanto, "há obras que se situam na fronteira do estético e da confissão (orientação moral no ser singular)" (p.34).

Acidentalmente, será que a noção de fronteira ou melhor, de "poder estar na fronteira", não é para nós importante, na medida em que ela significa que quaisquer que sejam as divisões conceituais que se apresentem, elas podem também ser transgredidas?

Bakhtin toma então exemplos de diferentes formas possíveis da relação com Cristo :

Esse mundo, o mundo onde se raliza o evento da vida e da morte do Cristo em seu fato e em seu sentido, esse mundo no seu princípio, não é determinável nem nas categorias teóricas, nem nas categorias do conhecimento histórico, nem por intuição estética. No primeiro caso, apreendemos o sentido abstrato, mas perdemos o fato singular da realização histórica real do evento; no segundo caso, há o fato histórico, mas perdemos o sentido; no terceiro caso, temos o ser do fato e o sentido que ele detém enquanto componente de sua individuação, mas perdemos nossa própria posição em relação ao outro, nossa participação imperativa nele (p.37).

Quer dizer que nenhuma dessas perspectivas é completa, autossuficiente.

O mundo estético está mais perto da vida do que o mundo teórico, mas falta nele o meu engajamento. É assim. São tais passagens que me parecem importantes. Dois pontos. Em primeiro lugar, eu não tenho a competência para tratar da natureza do cristianismo de Bakhtin em geral. Aqui a figura do Cristo aparece, me parece, como o exemplo mesmo do "fato existencial" que escapa a determinado modo de pensar ou a outro. Além disso, eu não conheço suficientemente o neokantismo para saber o que o pensamento de Kant aí se tornou. Mas o que me parece importante é que, por oposição ao pensamento platônico, em seguida à teologia da unidade do Belo, do Bem e do Verdadeiro, o pensamento kantiano é uma teoria da separação entre saber, moral e estética. Separação que corresponde bem, me parece, à situação na qual vivemos. É possível que haja pontes, mas não deduzimos nossa prática na vida cotidiana de uma "ciência do homem" (e eu me permito dizer que isso diz respeito também à "psicologia clínica" ou "prática"). Acrescento que todo o pensamento de Hegel visa a reencontrar a unidade pelo viés do sistema filosófico. E que o perigo pelo menos de uma das formas de se querer "marxista" é de ter querido reconstruir uma "teoria total" na qual o conhecimento do devir histórico estava em continuidade com uma prática emancipadora. Pode-se determinar a parte que essa garantia de possuir o discurso verdadeiro teve nos acontecimentos dramáticos que se conhecem? Não, de jeito nenhum, em minha opinião12 12 Marx é então muito menos lido e discutido na Rússia que os marxistas russos, Lenin, Plékhanov e Boukahrin, apenas para citar os principais. (v. Inna Tylkoski, Voloshinov em contexto). .

Sempre acontece haver uma crise que o texto de Bakhtin manifesta:

O homem contemporâneo se sente seguro de si, à vontade e lúcido, aí onde, no princípio, ele está ausente, no mundo autônomo de um domínio cultural de sua lei de criação imanente; mas ele se sente incerto, sem recursos e confuso, lá onde ele tem a ver consigo mesmo, lá onde ele é o centro da emergência do ato na vida real singular. Quer dizer que agimos com segurança quando agimos não por nós mesmos mas como obcecados pela necessidade imanente do sentido de tal ou tal domínio cultural; o caminho que vai da premissa até a conclusão é percorrido de maneira perfeita e irrepreensível, pois, nesse caminho, eu mesmo estou ausente. Mas como e onde integrar esse processo do meu pensamento, puro e irrepreensível no interior e inteiramente justificado? Na psicologia da consciência? Ou na história da ciência correspondente? Ou no meu orçamento material, remunerado de acordo com o número de linhas que foram realizadas nele? Talvez na ordem cronológica do meu dia, como minha ocupação entre 5 e 6 horas? Nas minhas obrigações científicas? Mas todas essas interpretações e contextos possíveis vagam eles próprios num espaço vazio particular, e não estão enraizados em nada, nem numa coisa una nem em qualquer coisa de única. E a filosofia contemporânea não fornece princípio para essa integração , é nisso que consiste sua crise (p.42-43).

Parece-me que esse discurso diz respeito a todos nós. Imagino, por exemplo, que todos aqueles que exerceram a profissão de professor puderam se perguntar, enquanto o fluxo do saber corria pela sua boca: "Mas o que estou fazendo aqui? Não é possível". Bronckrat aplica frequentemente esse termo, para ele pejorativo, de "individualismo" ao pensamento de Bakhtin. Mas dever assumir uma perspectiva individual é, me parece, bastante conforme o que escreve Bakhtin, o que caracteriza para cada um dentre nós uma perspectiva "moral": eu não posso decidir pelos outros e os outros não podem decidir por mim.

O que Bakhtin precisa, de um lado, lembrando a ausência de uma totalização filosófica unívoca:

Não se pode recusar à nossa época o grande mérito de ter se aproximado do ideal de uma filosofia científica. Mas essa filosofia só pode ser uma filosofia de especialidade, quer dizer, uma filosofia das diversas ramificações da cultura e de sua unidade sob a forma de uma transcrição teórica a partir do interior dos objetos da obra cultural e da lei imanente de seu desenvolvimento. E é por isso que essa filosofia teórica não pode pretender ser uma filosofia primeira, quer dizer, uma doutrina, não da obra cultural una, mas do ser-acontecimento uno e singular. Uma tal filosofia não existe, se as vias da sua criação parecem esquecidas (p.41).

Além disso, será que o a ausência de uma "filosofia científica" unificada não se impõe tanto quanto ou bem mais para nós? Será que o babelismo científico não impede que possa haver uma totalização da cultura científica, sem falar da impossibilidade para essa totalização científica impossível de nos ajudar de verdade a nos orientar na vida?

Um parêntese consagrado ao marxismo segue diretamente o desenvolvimento precedente:

Daí precisamente a insatisfação profunda em face da filosofia contemporânea daqueles que pensam de forma participante – insatisfação que conduz alguns dentre eles a uma concepção como a do materialismo histórico, que, a despeito de todas as suas insuficiências e de todas as suas fraquezas, é atraente para a consciência participante, em virtude de seus esforços para construir um mundo que dê lugar a um ato determinado, real no plano histórico concreto; no mundo do materialismo histórico, uma consciência que se desenha e age pode se orientar.

Esse texto me parece dizer respeito tanto a nós quanto o precedente: é-nos sem dúvida impossível tomar o "materialismo histórico" como fonte de verdades definitivas. Certa evidência, por exemplo, da luta das classes pode nos ajudar a nos orientar numa prática histórica no mínimo obscura, pelo menos na medida em que sabemos que a maneira de ser de cada um não é jamais redutível a seu "ser de classe" e que ignoramos qual determinação será predominante em determinado momento da história.

Em todo caso, Bakhtin não é estritamente kantiano. Assim, na p.49, ele retoma a crítica de Hegel: uma moral fundada somente na universalidade da regra não pode trazer nenhuma determinação concreta sobre a natureza do dever, que toma forma então em "determinações puramente teóricas: sociológicas, econômicas, estéticas, científicas. O ato é proscrito no mundo teórico com a exigência vazia da legalidade".

Por outro lado, a partir desse texto, Bakhtin religa essa heterogeneidade do sujeito à heterogeneidade da palavra e dos seus três aspectos: "aspecto de conteúdo de sentido: (a palavra-conceito), seu aspecto palpável-expressivo (a palavra imagem) e seu aspecto emotivo-volitivo (a entonação da palavra) em sua unidade" (p.56).

Há aí, mas sob uma forma concreta, qualquer coisa como a remissão aos três aspectos do homem separados nas três Críticas kantianas. Bakhtin acrescenta que a palavra (slovo, a linguagem usual) é mais adaptada para manifestar essa heterogeneidade das figuras do sentido do que para figurar a verdade teórica abstrata (que, efetivamente, é sem dúvida melhor dita nos algoritmos ad hoc).

Há ainda esse aspecto de "constatação de crise" que importa aqui. Esse texto é curto em sua vontade "juvenil"(?) de ir ao essencial. Acrescento outra passagem que me parece iluminadora:

É preciso reconhecer a dúvida como um valor de um tipo particular? Sim, reconhecemos [com a questão de saber quem é "nós", F.F.] a dúvida como um tal valor. É justamente ela que está na base de nossa vida ativa e operante; além disso, ela não se opõe de forma alguma ao nosso conhecimento teórico. Esse valor da dúvida não se opõe de jeito nenhum à verdade (pravda) una e única, é precisamente ela, essa verdade (pravda) una e única do mundo que o exige (p.41).

Certamente, a articulação entre "dúvida" e " verdade" é mais posta do que explicitada. Mas depois de tudo, se fossemos apenas máquinas de transmitir informação, a noção mesmo de verdade perderia seu sentido. É nesse sentido que se pode aceitar o enunciado de Bakhtin. Poder-se-ia, em termos husserlianos fazer dele uma verdade de essência contingente: se não fôssemos capazes de dúvida, nossa relação com a verdade não seria relação com a verdade. O que aparece sem dúvida melhor mais adiante

É a partir do lugar único que eu ocupo que eu tenho uma abertura sobre o mundo único inteiro, e para mim apenas a partir daí. Enquanto espírito desencarnado, perco minha relação necessitante, imperativa ao mundo, perco a realidade do mundo. Não há homem em geral; há eu, há o outro, concreto, particular: aquele que me é próximo, meu contemporâneo (humanidade social), o passado e o futuro dos homens reais (da humanidade histórica real). [...] E é o conjunto de um conhecimento geral que define o homem em geral (enquanto homo sapiens) - por exemplo o fato de que ele é mortal – que só encontra seu sentido axiológico a partir do meu lugar único enquanto eu, aquele que me é próximo, toda a humanidade histórica morrem13 13 ( sic) São sujeitos de "morrem" os dois sintagmas "aquele que me é próximo" e "toda a humanidade histórica". ; e, evidentemente, o sentido emotivo-volitivo da minha morte, da morte de um outro, de um próximo, o fato da morte de todo homem real, são profundamente diferentes em cada caso, pois há neles componentes diferentes do acontecimento-ser singular... O conhecimento teórico de um objeto tal qual ele é, independentemente de sua situação real no mundo singular a partir do lugar único de um participante é totalmente justificado; no entanto, não é o conhecimento último, mas apenas um aspecto técnico auxiliar deste. A abstração que eu faço do lugar único no ser, meu simulacro de desencarnação, é ela própria um ato responsável que eu opero a partir do meu lugar único... (p.77)

Essa heterogeneidade comum como a referência à posição concreta de cada um me parece constituir uma noção mais envelopante e ao mesmo tempo mais imediata do que "dialogismo". Nosso parentesco-distância com os outros e com nós mesmos é irredutível. E é essa heterogeneidade que constitui a condição do diálogo (incerto). Uma vez que:

É essa arquitetônica do mundo real do ato que deve descrever a filosofia moral, isto é, não o esquema abstrato, mas o plano concreto do mundo do ato uno e singular, os componentes concretos fundamentais da sua construção e sua disposição um em relação ao outro. Esses componentes são eu para-mim, o outro-para mim, eu–para o outro [...] (p.84-85)

componentes em torno dos quais giram todas as possibilidades de avaliação. Eu lembro que Bakhtin já tinha posto que:

Bem entendido, quando falamos dos valores da humanidade histórica, damos uma entonação a essas palavras, não podemos nos abstrair de uma relação emotivo-volitiva particular a elas; elas não coincidem para nós com o seu conteúdo de sentido, elas se correlacionam com um participante único e se inflamam à luz do valor real (p.76).

Isso quer dizer que as relações entre essas instâncias não poderiam ser apenas pensadas conceitualmente.

Mas a relação entre os sujeitos pode também aparecer na obra literária. Assim, na p.105, Bakhtin apresenta o poema de Pushkin "Separação", que ele analisa como feito de alguma forma de envelopamentos sucessivos. O valor universal da beleza da Itália é apresentado por meio do discurso da heroína que só está presente, por sua vez, no discurso do herói, que, por sua vez, está envelopado no movimento discursivo do autor. E, na medida em que há um valor, este se manifesta naquilo que tem de irredutível a diferença entre valor para mim e valor para o outro, nesse caso, a Itália pátria e a Itália país estrangeiro. Como se manifesta de maneira concreta a centralidade do tema do "discurso reportado". Ou melhor, da maneira como o discurso de um passa através do discurso do outro. Assim, me parece que, contrariamente ao que afirma Bronckart, não há contradição entre a exotopia do autor e as relações de encaixamento dialógico entre os diferentes universos de significação. De forma mais geral, no meu entendimento, as considerações que se exporão sobre a exotopia do autor estão de acordo com a constatação da heterogeneidade dialógica. O autor, mais ou menos, pode totalizar a vida completa do herói, em particular dizendo seu nascimento e sua morte, o que nenhum personagem real pode fazer. Mas essa totalização não se opõe à possibilidade de manifestar numa obra a irredutibilidade individual - dialógica se quiser - de determinado herói, de todos os heróis uns em relação aos outros e em relação ao pensamento explícito do autor. Não há aí contradição, apenas pontos de vista diferentes sobre uma realidade complexa.

Pode-se discutir a ideia mesmo de um filosofia primeira e de uma filosofia primeira fundada sobre o ato. Mas pode-se ou deve-se reconhecer que, mesmo que essa pesquisa não possa ter finalmente um resultado, ela pode funcionar como lugar possível de orientação do pensamento. E, depois de tudo, mesmo que praticamente os humanos sejam largamente intercambiáveis, eu não posso me dizer, por outro lado, que "eu devo fazer isso, mas se é um outro que o faz, estará tudo bem também". Ou então, eu não tenho mais um ponto de vista moral, cuja racionalidade específica seria a responsabilidade.

Sempre acontece que as considerações sobre o romance e sobre as relações respectivas do autor e do herói constituíram manifestamente (em todo caso em relação à massa do que está publicado, ou melhor, traduzido em francês) a principal preocupação de Bakhtin, em continuidade com suas primeiras preocupações "filosóficas". Mesmo que o esclarecimento trazido nesses diferentes textos seja forçosamente mais diverso, não seria em função da diversidade das obras levadas em conta. Considerando a massa dos textos consagrados ao romance, a seleção apresentada aqui é particularmente aleatória.

2.4.2 Estética e teoria do romance [14] 14 Na versão em português: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética. A teoria do romance, traduzida por Aurora F. Bernadini et al., UNESP/HUCITEC, 1975.

No início da Estética e teoria do romance, Bakhtin anuncia que não vai apresentar uma história da poética, inútil numa obra sistemática. Não mais do que

as citações e as referências supérfluas. Elas não têm, em geral, nenhum significado metodológico fora das pesquisas históricas, e numa obra concisa de caráter sistemático, elas são absolutamente inúteis: o leitor erudito não precisa delas, e para aquele que não o é, elas são vãs.

O que é, no mínimo, violentamente dicotômico. Em todo caso, não "dialógico" no sentido banal do termo (mas efetivamente há algumas referências bibliográficas...).

Sempre acontece que nessa obra eu encontro um grande número de posições que me parecem historicamente específicas de Bakhtin, mas sobretudo "movimentos de palavra-pensamento" dignos de serem seguidos. No artigo "O problema do conteúdo", ele insiste, em primeiro lugar, sobre o fato de que o ato cultural (conhecimento, ética ou arte) está sempre numa fronteira. E, em particular, no fato de que o ato cognitivo ou teórico remete ao que já está posto sobre o modo ético ou estético.

Não se pode, no entanto, imaginar o domínio cultural como uma entidade espacial tendo fronteiras, mas também um território interior [...] Todo ato cultural vive, em substância, sobre fronteiras; daí sua seriedade e sua importância; atraído para fora de suas fronteiras, ele perde o pé, torna-se vazio, arrogante, degenera e morre [...] É apenas no seu caráter sistemático concreto, quer dizer, no estabelecimento de uma relação imediata e na sua orientação em relação à unidade da cultura, que esse fenômeno cessa de ser um fato existente e bruto, que ele adquire uma significação, um sentido, que ele se torna como uma mônada tudo refletindo nela e se refletindo em tudo [...] Assim o ato cognitivo encontra uma realidade já elaborada nos conceitos do pensamento pré-científico, mas sobretudo já apreciada e regulamentada pelo ato ético, cotidiano, social, político; ele a encontra afirmada com fervor. Enfim, o ato cognitivo provém da representação do objeto esteticamente ordenado, da visão do objeto [...] A realidade oposta à arte só pode ser a realidade da realidade do conhecimento e do ato ético, sob todos os seus aspectos: realidade da vida corrente, realidade econômica, social, política, realidade moral propriamente dita (p.40–41).

Pode-se certamente formular as coisas de outra forma. Mas quem dentre nós poderia dizer que determina cientificamente o que é sua apreensão estética do mundo e dos homens ou que calcula cientificamente suas escolhas políticas e morais? Há aí, claramente explicitada, uma situação de não-recorte que se impõe a nós. Sem nenhuma das referências "individualista" ou "religiosa" sobre as quais insiste Bronckart. No que diz respeito ao romance, coloca-se mais aqui a questão da possibilidade de uma abordagem "científica" ou "reflexiva". A partir do fato de que o romance ou alguns romances contribuem melhor (ou em todo caso de forma diferente do que a "ciência") para esclarecer nossa situação de seres humanos. Assim, na maneira de apresentar sob formas concretas como nossa relação com os outros e com o tempo nos constitui. É o que desenvolve Bakhtin um pouco mais adiante:

A atividade estética não cria uma realidade inteiramente nova. Diferentemente do conhecimento e do ato, [na nossa linguagem, falaríamos mais da ação, F.F.] que criam a natureza e a humanidade social, a arte celebra, orna, evoca essa realidade preexistente do conhecimento e do ato – a natureza e a humanidade social – enriquece-as e as completa e, antes de tudo, cria a unidade completa, intuitiva desses dois mundos, situa o homem na natureza, compreendida como seu entorno estético, humaniza a natureza e "naturaliza" o homem(p.44).

Dito isso, a análise do material verbal, no romance, vai sempre estar na fronteira entre o propriamente estético, o conhecimento e a preocupação ética. As "ideias teóricas" de Ivan Karamsov sobre o sofrimento das crianças se ligam à sua posição ética, mas manifestam também seu caráter, suas relações com Aliocha, isso na forma "estética" do desdobramento da narrativa, evidentemente, diferente do curso normal da existência.

Sempre acontece que essa especificidade das relações entre os campos cognitivo, ético e estético conduz Bakhtin a caracterizar a linguística dos linguistas em termos muito próximos aos de Voloshinov. Mas não se trata para ele de propor uma outra linguística, mas de constatar que a linguística-ciência não se ocupa nem do conteúdo ético nem da obra:

A linguística só é uma ciência na medida em que ela domina seu objeto, a linguagem, que, para ela, se define por um pensamento puramente linguístico. Um enunciado insolado e concreto é sempre dado num contexto cultural semântico e axiológico: contexto científico, artístico, político e outro, ou contexto de uma situação isolada da vida privada. É unicamente em tais contextos que tal enunciado é vivo e inteligível: ele é verdadeiro ou falso, belo ou feio, sincero ou hipócrita, franco, autoritário, e assim por diante. Não existe absolutamente, não pode existir enunciado neutro. Ora a linguística só vê neles um fenômeno de linguagem, e somente os relata na unidade dessa linguagem, e, em absoluto, na de um conceito, de uma prática da História, do caráter de um indivíduo, etc. (diríamos mais aqui língua do que linguagem, F.F.) (p.58).

E ele exalta essa posição como posição parcial-parcial:

É apenas liberando-se sistematicamente de sua tendência metafísica (a substancialização e a reificação da palavra), de todo psicologismo e estetismo, de toda verbosidade, que a linguística traça seu caminho em direção ao seu objeto, o constitui metodicamente, e se torna, pela primeira vez, uma ciência.

Mas, inversamente:

Para a poesia, como para o conhecimento e para o ato ético e sua objetivação no direito, no Estado, etc., a linguagem representa apenas um elemento técnico [...] Entretanto, a poesia utiliza tecnicamente a linguagem de maneira totalmente diferente: a poesia precisa da linguagem inteira, por todos os seus lados, com todos os seus elementos, e não fica indiferente a nenhuma das nuances da palavra na sua determinação linguística (p.60).

Certamente, pode-se duvidar da possibilidade de falar da "poesia" em geral. Permanece a ideia de que se vê bem o que significa esse levar em conta poético da "palavra total".

Certamente ainda:

É evidente que a análise linguística descobrirá palavras, orações, etc.; uma análise física descobrirá o papel, a tinta de impressão com tal composição química, ou ondas sonoras na sua determinação física; o fisiologista encontrará processos correspondentes nos órgãos da percepção e nos centros nervosos [...] Mas para o esteta, como para todo contemplador de uma obra de arte, está claro que todos esses elementos não entram no objeto estético ao qual se aplica nossa apreciação estética espontânea ("admirável", "profundo", etc.). Todos esses elementos só são notados e definidos por um julgamento de segundo grau, interpretativo e estético, do homem estético(p.61).

Pode-se acrescentar que a questão de saber em que medida as diferentes determinações "científicas" podem ou devem fazer parte da reflexão estética não tem uma resposta automática por si só. No entanto, Bakhtin acrescenta:

Não temos do que nos alarmar se o objeto estético não pode ser descoberto nem no psiquismo nem na obra material; ele não se torna por isso uma substância mística ou metafísica. O mundo multiforme do ato, a existência ética encontra-se nesse mesmo ponto. Onde se encontra o Estado? No nosso espírito? No pergaminho dos atos constitucionais? No espaço físico-matemático? E onde se encontra o Direito? Ora, consideramos seriamente nossa relação com o Estado e com o Direito! Além disso, esses valores interpretam e ordenam tanto o material empírico quanto nosso psiquismo, e lhes conferem um sentido, nos permitindo transcender sua pura subjetividade (p.66).

E pode-se acrescentar que toda determinação que se quisesse unívoca, careceria da heterogeneidade desses objetos institucionais-concretos? Certamente, pode-se dizer que o Estado tem ou pretende ter o monopólio da violência legítima. Mas essa legitimidade será celebrada, aceita silenciosamente, transgredida discretamente ou violentamente posta em causa: a diversidade das representações, das formas de sentir, dos modos de reação caracteriza bem mais aquilo que é "verdadeiramente" o Estado do que o que nos diria uma consideração sobre sua "natureza" apenas. Um pouco como as relações de mestres com discípulos, a oposição entre o amador, o crítico, o marchand e o pintor fazem parte do estatuto da obra de arte. Eu não tenho certeza de que essa consideração caminhe no mesmo sentido do texto de Bakhtin. Há mesmo uma evidência contrária. Se remontamos um pouco mais acima, Bakhtin escreveu:

Se tentamos definir a composição do objeto estético do poema de Pushkin, Lembrança:

Quando para o mortal se cala o dia barulhento,

E sobre as praças mudas da cidade

Escutam-se meio-transparentes as sombras da noite...

E, assim por diante, diríamos que o que o constitui é a cidade, a noite, as lembranças, os remorsos, etc. São esses valores que concernem diretamente a nossa atividade artística, é sobre eles que nosso espírito orienta sua intenção estética (p.62).

E Bakhtin acrescenta que os elementos formais do texto

São colocados fora do conteúdo da percepção estética, quer dizer, fora do objeto artístico; eles só podem servir a um julgamento científico em segundo grau da estética, por mais que se pergunte como e com quais elementos da estrutura extra-estética da obra exterior se determina o conteúdo da percepção artística.

Essa posição me parece discutível: nossa percepção estética apoia-se nos valores enquanto tais e nos valores tal como eles se manifestam em determinada forma ou outra? Um pouco como não apreendemos a expressão da fisionomia sem a ligar de alguma forma àquilo que, no rosto, traz essa expressão. Dito isso, confesso que não sei se há um "método científico" para analisar o modo de manifestação desses valores "incorporados". No mínimo, o diálogo com os outros e com nós mesmos é que nos faz modificar ou, em todo caso, modular nossa primeira percepção. E, para voltar ao tema, não é também sob essas formas concretas e não como puro valor que temos uma relação, por exemplo, com o Estado?

Uma outra determinação aparece no capítulo intitulado O problema da forma:

É aí que mora a diferença essencial entre a forma artística e a forma cognitiva. Esta última não tem autor-criador: eu encontro a forma cognitiva no objeto, eu não me encontro nela, não encontro nela minha atividade de criador. Daí certa necessidade constrangedora do pensamento-cognitivo: ele é ativo, mas não sente sua atividade, pois o sentimento só pode ser individual, consignado a uma pessoa, ou, para melhor dizer, o sentimento da minha atividade não entra no conteúdo objetal do pensamento, ele fica à margem, como uma acessório fisiológico subjetivo, não mais: a ciência como unidade objetiva de objetos não tem autor-criador.

O autor-criador é um elemento constitutivo da forma artística.

A forma, é preciso que eu a experimente como sendo minha relação ativa e axiológica com o conteúdo, para poder experimentá-lo esteticamente: na forma e pela forma eu canto, eu narro, eu represento, por meio da forma, eu exprimo meu amor, minha certeza, minha adesão (p.70).

Aqui um conjunto de questões:

- Não há uma estética da criação científica, ou a de tal criação científica? E a questão que é ainda mais incisiva no difícil domínio de determinar o que se vai chamar de "filosofia", no qual parece difícil resumir conteúdos independentemente da velocidade de um movimento.

- Não se pode considerar uma percepção estética sem relação com o autor? (Eu passo sobre a questão da percepção estética da natureza.)

- Qual a relação entre o que está exposto aqui e o que foi apresentado anteriormente no texto, o destaque para os valores - e apenas secundariamente para a forma?

- Enfim, qual articulação entre a relação ética e a percepção estética, assim quando o movimento, o ritmo do corpo, da palavra ou da escrita do outro nos manifesta sua maneira de ser, ou melhor, uma maneira de ser.

Talvez seja uma necessidade, em todo caso um risco, do "discurso teórico", ir muito rapidamente em direção ao geral, não circunscrever tal objeto particular, ético ou estético? Em todo caso, Bakhtin reconhece que a mesma obra pode ser percebida de acordo com modalidades diferentes: "[...] Assim, na percepção não literária de um romance, pode-se abafar a forma e tornar ativo o conteúdo na sua orientação problemática, ou ético-prática" (p.70).

A ideia geral (geral demais?) é que, enquanto a atividade prática religa o objeto às necessidades humanas, e que a atividade científica recoloca tal objeto particular no conjunto, digamos, da "natureza", a obra de arte, isolando a forma como tal, permite que o conteúdo seja considerado em si próprio. Ou, para dizer de outra forma:

O que em arte nomeia-se invenção é apenas a expressão positiva do isolamento: o objeto isolado é por aí mesmo inventado, isto é, nem real na unidade da natureza, nem presente no acontecimento da existência. De seu lado negativo, a invenção e o isolamento coincidem; na invenção, vista do lado positivo, se encontra sublinhada a atividade própria à forma, a presença do autor; a invenção me dá uma consciência mais aguçada de mim mesmo, como inventor ativo de um objeto; eu me sinto livre, por conta de minha exterioridade, para formar ou para concluir o objeto o acontecimento sem encontrar obstáculo (p.72).

Essa reflexão me impressiona. Ao mesmo tempo esse enunciado (como todo enunciado?) só pode desenvolver um ponto de vista. Aqui justamente o isolamento do ponto de vista do criador. Daí em primeiro lugar a questão do ou dos modos de leitura. Em qual relação - à obra ou ao autor? Ao mesmo tempo, a obra de arte, o objeto de contemplação estética poderá ter um papel de celebração, de culto, e até de centro de uma manifestação de massa ou de tesaurização. De novo, desemboca-se no fato de que os objetos levados em conta não são verdadeiramente isolados, estão sempre em fronteiras.

Esse isolamento relativo é o que os formalistas (p.73) nomeiam "singularização". Não voltarei a eles: eu não domino, é uma litote, os textos dos formalistas que me são extremamente desconhecidos. Dito isso, pode-se representar o diálogo com um texto escrito, isolado pela sua forma e, em particular, separado das condições primeiras de enunciação, da corporeidade da enunciação. Nesse ponto, a relação não se estabelece com o indivíduo que escreveu, mas, pode-se dizer, com a abstração do autor enquanto autor.

O capítulo se conclui levando em consideração o ritmo:

Desse foco de uma atividade geradora experimentada surge em primeiro lugar o ritmo (no sentido mais largo, o dos versos assim como o da prosa) e, de uma maneira geral, toda ordem de enunciado de caráter não objetal, remetendo o enunciador a si próprio, à sua unidade dinâmica e geradora (p.75).

Aqui ainda se coloca a questão da generalidade da caracterização. Em todo caso, é bem pela unidade formal que a obra estética existe como tal:

A unidade da forma estética, o "estilo" é, certamente, tanto modo de retomada (por exemplo pomposo, humorístico) das palavras mesmas do outro ou de si, mas ele é antes de tudo ritmo, velocidade, movimento, nos quais essas retomadas tomam sentido (p.76).

E Bakhtin acrescenta que, no caso da obra, é a sua conclusão que faz sentido. Enquanto na ciência "é o sábio quem começa e finaliza, e não a ciência".

O segundo estudo se intitula: Do discurso romanesco15 15 Na versão em português, O discurso no romance. . Na introdução, Bakhtin lembra que combate em duas frentes: contra o "formalismo", mas também contra a tendência que desejava analisar a "ideologia" enquanto tal.

Depois de ter observado que a análise estilística do romance é recente, Bakhtin acrescenta:

o romance é um fenômeno pluriestilístico, plurilingual, plurivocal [...] Eis os principais tipos dessas unidades composicionais e estilísticas, que formam habitualmente as diversas partes do conjunto romanesco:

(1) A narração direta, literária, nas suas variações multiformes.

(2) A estilização das diversas formas da narração oral tradicional, ou relato direto.

(3) A estilização das diversas formas da narração escrita, semiliterária e corrente: cartas, diários íntimos, etc.

(4) Diversas formas literárias, mas não concernentes à arte literária, do discurso de autor, escritos morais, filosóficos, digressões sábias, declamações retóricas, descrições etnográficas, relatórios, resenhas e assim por diante.

(5) O discurso dos personagens, estilisticamente individualizados (p.87-88).

E ele acrescenta:

originalidade estilística do gênero romanesco reside no conjunto dessas unidades dependentes, mas relativamente autônomas (algumas vezes até plurilíngues) na unidade suprema do "todo": o estilo do romance é um conjunto de estilos; a linguagem do romance é um sistema de línguas.

Assim, o objetivo não é analisar um pretenso "estilo" de um autor, mas a multiplicidade das vozes que se encontram no romance. E para evitar críticas mal fundadas, é preciso acrescentar que esses propósitos a respeito "do romance" só tomam sentido pela análise da diversidade dos romances.

Bakhtin lembra então que de um lado, "do alto", tanto a filosofia como a teologia e a "grande poesia" visaram a praticar uma linguagem (a "língua estrangeira" que evoca Voloshinov?) que seja "a única linguagem da verdade". Mas,

Enquanto a poesia resolvia, do alto dos cumes socioideológicos oficiais, o problema da centralização cultural, nacional, política do mundo verbal ideológico, - em baixo, em cima dos cavaletes das cabanas e das feiras, ressoava o plurilinguismo do bufão ridicularizando todas as "línguas" e dialetos, e se desenrolava a literatura das fábulas e das farsas, das canções de rua, dos ditados e das anedotas. Não havia nenhum centro de linguística, mas jogava-se o jogo vivo dos poetas, dos sábios, dos monges, dos cavaleiros, todas as "linguagens" eram aí máscaras, e nenhum de seus aspectos era verdadeiro nem indiscutível (p.96).

Não volto sobre esse tema longamente desenvolvido em particular no Rabelais e no Dostoiévski. Mas é preciso observar que não apenas essa "linguagem de baixo" é dialógica em si, mas que ela é também diálogo destruidor, com o nobre discurso monológico de cima. Além disso, independentemente da questão das origens do romance (também não volto a esse assunto aqui), desenvolveu-se uma forma romanceada cada vez mais importante fundada sobre a plurivocalidade:

No lugar da plenitude inesgotável do objeto em si, o prosador descobre uma multiplicidade de caminhos, estradas, picadas traçados nele pela sua consciência social. Ao mesmo tempo em que as contradições internas ao próprio objeto, o prosador descobre em torno dele linguagens sociais diversas, essa confusão de Babel que se manifesta em torno de cada objeto; a dialética do objeto se entrelaça ao diálogo social em torno dele. Para o prosador, o objeto é o ponto de convergência de vozes diversas, no meio das quais sua voz também deve ressoar: é para ela que as outras vozes criam um fundo indispensável, fora do qual as nuances da sua prosa literária não são nem apreensíveis, nem "ressonantes" [...] Somente o Adão mítico abordando com sua primeira palavra um mundo ainda não questionado, virgem, somente Adão-o-solitário podia evitar totalmente essa orientação dialógica sobre o objeto com a palavra de outrem (p. 201).

Bakhtin acrescenta que o romance só funciona com a mistura mais ou menos importante das diversas vozes. Mas que o diálogo cotidiano se voltou em direção à heterogeneidade do outro:

Na linguagem falada cotidiana, o discurso vivo está direta e brutalmente voltado em direção ao discurso-resposta futuro: ele provoca essa resposta, apresenta-a e vai ao seu encontro. Constituindo-se na atmosfera do "já dito", o discurso é determinado ao mesmo tempo pela réplica ainda não dita, mas solicitada e já prevista (p.103).

Dito de outra forma, o dialogismo é "interior" ao enunciado, não apenas presente na sucessão das réplicas.

Há, portanto, um parentesco íntimo entre o romance e a vida mesmo do diálogo cotidiano. Bakhtin observa aqui que uma, ou melhor, várias forma(s) específica(s) de dialogismo se encontram em Tolstoï (lembro isso para evitar a fórmula vazia do mau Tolstoï monológico e do bom Dostoiévski dialógico):

A relação dialógica com a palavra do outro no objeto, e com a palavra do outro na resposta antecipada do interlocutor, sendo, por essência, diferentes e engendrando efeitos estilísticos distintos no discurso, podem, no entanto, entrelaçar-se de maneira estreita, tornando-se difícil de distinguir uma da outra pela análise estilística. Assim o discurso em Tostoï se distingue por uma nítida dialogização interior, tanto no objeto quanto na perspectiva do leitor de quem Tostoï percebe de maneira aguda as particularidade semânticas e expressivas (p.105).

Ao contrário: "Nos gêneros poéticos (no sentido estrito) a dialogização natural do discurso não é utilizada literariamente, o discurso se basta nele mesmo e não presume, além de seus limites, os enunciados de outrem" (p.107).

E ele acrescenta (p.118) que a unidade do ritmo não é favorável à manifestação dessa heterogeneidade. E, efetivamente, ao menos nas formas tradicionais de poesia, mal se imagina o poeta introduzindo parêntese reflexivo do tipo "Mas o que eu estou dizendo?"

A continuação do texto de Bakhtin diz respeito à questão da gênese histórica da forma romanesca. Não retomarei essa questão. Bakhtin observa que quaisquer que sejam as diferenças entre os romances, encontramos neles "provações", enquanto o herói épico se coloca desde o início para além de qualquer provação. Haverá a prova dos novos ricos em Balzac e Stendhal. Em Zola, "a provação se torna a aptidão de viver, a saúde física, a faculdade de adaptação do homem"

O romance de aventura se funda na ideia de provação. E o romance de provações torna-se romance de formação. Essa centralidade do papel da provação como característica do herói se religa aos desenvolvimentos sobre o cronotopo que se evocará mais adiante.

2.4.3 Estética da criação verbal

Não tenho uma "teoria" da relação entre essas duas obras Estética e Teoria do Romance e Estética da Cração Verbal. Esta última é muito mais longa. Depois de ter tratado (I) das relações do autor e do herói, ele aborda (II) o todo espacial do herói, (III) o todo temporal do herói, (IV) o todo significante do herói e volta em (V) para o autor e o herói. Vão se apresentar aqui apenas alguns elementos.

2.4.3.1 O autor e o herói

O ponto de partida é que, na vida prática, temos a ver com tal ou tal maneira de ser dos nossos outros. Da mesma forma que não podemos jamais totalizar o que somos. É, ao contrário, na obra de arte, e mais partcularmente no romance, que se manifesta enquanto estética a totalidade própria de um personagem. Há, portanto duas totalizações (relativas) diferentes:

Um autor, não apenas vê e conhece tudo o que vê e conhece um herói em particular e todos os heróis no seu conjunto, mas ainda ele vê e sabe mais sobre eles, vendo e sabendo aquilo que em princípio é inacessível aos heróis, e é precisamente esse mais, sempre determinado e constante de que se beneficia a visão e o saber do autor, em relação a cada um dos heróis, que fornece o princípio de acabamento de um todo – aquele dos heróis e o do acontecimento, dito de outra forma, o todo da obra [...] O depositário vivo dessa unidade que funda o acabamento é o autor, por oposição ao herói, depositário, ele, da unidade que funda o acontecimento aberto, e não conclusivo pelo interior, que constitui a vida [...] É a exotopia do autor, seu próprio apagamento amoroso fora do campo existencial do herói e o distanciamento de toda coisa com a finalidade de deixar esse campo livre para o herói e para a sua vida, é a compreensão de que participa da conclusão do acontecimento que é a vida do herói, exercendo a partir do ponto de vista real-cognitivo e ético de um espectador que não participa do evento [...] A consciência do herói, seu sentimento e seu desejo do mundo – sua visada emotivo-volitiva material – está investida de todos os lados, tomada como um círculo, pela consciência que o autor tem do herói e do seu mundo do qual ela assegura o acabamento; o discurso do herói sobre ele mesmo é impregnado do discurso do autor sobre o herói; o interesse (ético-cognitivo) que apresenta o acontecimento para a vida do herói está englobado pelo interesse que ele apresenta para a atividade artística do autor. É nesse sentido que a objetividade estética opera numa perspectiva que a distingue da objetividade cognitiva e ética: esta diz respeito a um julgamento neutro, indiferente à pessoa e ao acontecimento, e que se exerce do ponto de vista de um valor ético e cognitivo, de uma significação geral, ou considerada como tal, ou que tende em direção a essa significação geral... (p.34)

O texto é problemático, pois não se vê muito bem o que pode dizer respeito à articulação do ponto de vista cognitivo ou ético senão nas retificações de sua relação com a generalidade. Mas quem poderia caracterizar "cognição" e "ética" em uma linha? Permanece o ponto que me parece central: a irredutibilidade das três perspectivas e a articulação dialogal no romance da perspectiva do herói e do autor. A partir daí, são apresentadas de maneira esquemática três grandes figuras da relação do autor e do herói. A primeira possibilidade é, portanto, o caso em que autor só pode "ver o mundo e as coisas pelos olhos do herói, de nenhuma outra forma..." (p.39). Nesse caso, "O plano de fundo não é trabalhado, não é distintamente visto pelo autor-observador e ele nos é dado de maneira hipotética, incerta, de dentro do herói, à maneira como nos é dado o plano de fundo de nossa própria vida".

Mas mesmo nessa perspectiva, é necessário que o autor traga um princípio de acabamento externo. Caso contrário, a obra se torna "um tratado de filosofia ou uma introspecção-confissão". Ou ainda, o que importa, é não o acordo ou o desacordo entre as perspectivas do autor e do herói, mas que as perspectivas do herói sejam dadas (p.40) na "possibilidade de vê-lo (o herói) por inteiro, em toda a plenitude de sua atualidade presente, e admirá-lo..." (o que não implica acordo ou discordância) E Bakhtin acrescenta:

É a esse tipo que pertencem quase todos os heróis de Dostoiévski, alguns heróis de Tolstoï (Pedro, Levino), de Kierkegaard, de Stendhal e de outros escritores cujos personagens tendem, particularmente, a extremos desse tipo de personagem.

Uma segunda possibilidade se realiza quando é o herói que toma para si as capacidades externas de objetivação. Novamente há duas possibilidades nesse caso. Seja o herói no "falso classicismo" que é apresentado do exterior, seja o herói autobiográfico:

tendo feito sua a autoprojeção do autor que lhe assegura um acabamento, a reação global que lhe assegura uma forma, o herói a incorpora ao seu vivido próprio e a ultrapassa; esse tipo de herói é refratário a todo acabamento por dentro, ele ultrapassa interiormente tudo o que poderia determinar a maneira total e que ele considera como lhe sendo inadequada, ele vive toda integridade acabada como uma limitação e lhe opõe um mistério interior indizível [...] É o herói do romantismo: o romântico teme trair-se através de seu herói e lhe deixa sempre, em algum lugar, dentro dele mesmo, uma espécie de abertura de suspiro por onde o herói poderá subir acima de sua própria forma de acabamento (p.41).

Em todo caso, aqui, a problemática da totalização não aparece mais como a única possível para pensar a obra. Uma vez que "a organização dominante do texto" é aqui, ao contrário, a impossibilidade assumida da totalização.

Enfim, última possibilidade evocada muito rapidamente: aquela na qual o herói

é o seu próprio autor, ele pensa sua vida esteticamente, dir-se-ia que ele desempenha um papel [...]; diferente do herói romântico infinito e do herói impenitente de um Dostoiévski, esse herói é autossatisfeito e seu acabamento cheio de confiança (p.42).

Mas Bakhtin não dá exemplos...

Dito isso, o capítulo termina com uma síntese muito explícita:

O acontecimento estético, para se realizar, precisa de dois participantes, pressupõe duas consciências que não coincidem. Aí onde o herói e o autor coincidem ou melhor se situam lado a lado, dividem um valor comum, ou ainda se opõem enquanto adversários, o acontecimento estético acaba e é o acontecimento ético que toma lugar (panfleto, manifesto, requerimento, apologia e cumprimento, injúria, confissão, etc.); onde não há herói, seja potencial, ter-se-á o acontecimento cognitivo (tratado, aula), onde a outra consciência é a de um deus onipotente, ter-se-á o acontecimento religioso (oração, culto, ritual) (p.43).

Ao mesmo tempo é uma bela síntese, mas ao mesmo tempo não subsiste, no conjunto da vida, e não apenas no romance, a questão da distânca daquele que fala ou escreve e daquele que está em outro lugar? E, além disso, esse texto mesmo é "científico" ou o que...? Ou ainda, o que é feito – imagino que vou voltar a essa questão – da articulação dessa perspectiva " estética" e do que pode ser nossa capacidade para nos narrar a nós mesmos e nos representar num mundo narrativo nossa relação com os outros e conosco mesmos. Qual a relação entre o que se passa no romance e a maneira como evocamos o que fomos, o que fizemos, o que sentimos? Ou com a maneira de nos reportarmos aos outros, em alguma coisa que se pareça mais ou menos com um relato, e de nos reportarmos em particular ao que percebemos da maneira como eles nos percebem. Que relação aqui entre o que seria cognitivo, ético ou estético? Será que nossa heterogeneidade não passa necessariamente por essa distinção? Se pensamos que sim, permanece a questão de saber sob qual forma. Além disso, nossa tomada de consciência narrativa se faz de acordo com uma modalidade que se pareça de alguma forma a uma dessas que pode haver entre o autor e o herói? Em todo caso, evidentemente, seja a narração romanesca, seja aquela que se produz na nossa vida cotidiana, elas não dizem respeito à "ciência", mesmo que elas possam incorporar seus fragmentos.

Além de tudo, parece que a questão da posição do leitor e em particular da natureza e da distância e da especificidade interesse (do prazer?) que ele pode ter com a leitura não aparece aqui. Em todo caso, a problemática da totalização, efetiva ou não, permite abordar duas questões, aquela do todo espacial do herói, em seguida aquela do todo temporal do herói.

2.4.3.2 O todo espacial do herói

Ressalto apenas alguns pontos. O capítulo começa com considerações sobre a vida cotidiana e não diretamente sobre a obra literária:

Quando eu contemplo um homem situado fora de mim e diante de mim, nossos horizontes concretos, tal como eles são efetivamente vividos por ele e por mim, não coincidem. Por mais perto de mim que possa estar esse outro, eu verei e saberei sempre alguma coisa que ele, da posição que ele ocupa, e que o situa fora de mim e diante de mim, não pode ver: as partes do seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar - sua cabeça, seu rosto, a expressão desse rosto -, o mundo para o qual ele tem as costas viradas [...] quando nos olhamos um ao outro, dois mundos diferentes se refletem na pupila de nossos olhos. Graças a posições apropriadas, é possível minimizar essa diferença dos horizontes, mas, para aboli-la completamente, seria necessário fundir-se em um, tornar-se um só homem(p.44).

Bakhtin volta a essa relação específica com o outro no caso da infância, consideração, pelo que eu saiba, rara em sua obra:

Esparsos na minha vida, todos os atos de atenção, de amor, que me vêm dos outros e me reconhecem no meu valor, terão modelado, dir-se-ia, para mim, um valor plástico de meu corpo externo. De fato, assim que um homem começa a viver interiormente, ele encontra os atos – os de seus próximos, os de sua mãe – que vão à frente dele: tudo o que o determina em primeiro lugar, ele e seu próprio corpo, a criança recebe da boca de sua mãe e de seus próximos (p.67).

Um pouco mais adiante:

Do ponto de vista da produtividade efetiva do acontecimento, quando somos dois, o que importa não é que, além de mim mesmo, haja ainda um outro homem parecido comigo (dois homens), mas que, para mim, ele seja um outro, e é no que sua simpatia por minha vida não é nossa fusão em um ser somente, não é uma duplicação numérica da minha vida, mas um enriquecimento do acontecimento que é a minha vida, pois ele a vive de uma nova maneira, numa categoria de valores nova – como vida de um outro que é percebida diferentemente e que recebe uma razão de ser diferente da sua própria (p.100).

Encontramos aqui a ideia de Scheler expressa em Natureza de formas da simpatia, segundo a qual a simpatia não é fusão, empatia, supõe, ao contrário, a manutenção da distância do outro e de mim. Mas, evidentemente, essa ideia está expressa aqui num outro contexto e de uma forma diferente. Em todo caso, poderia se propor considerações do mesmo tipo sobre o tema da minha morte e da morte do outro que não podem coincidir. Assim como sobre a distância que há necessariamente entre o autor e o herói no caso da autobiografia.

Incidentemente, eu me pergunto se não faz parte de nossa experiência mesmo comportar uma circulação de sentido entre nossa própria experiência no sentido estrito, o comentário mais ou menos explícito que a acompanha e nosso modo de percepção da literatura. Pois, ao fim das contas, a vida e a ficção não são separadas por um barreira intransponível. Tanto que passamos nossa vida a esperar, a temer, a nos lembrar, a comparar o que está acontecendo com o que vai provavelmente acontecer, ao que poderia ser. Quer dizer, a estar num mundo tecido de irreal, um pouco como o da ficção, mas no qual não desaparece nunca essa distância do outro.

No que diz respeito ao "todo temporal do herói", pareceu-me que eu podia apresentá-lo de maneira mais sintética a partir das observações finais do capítulo consagrado aos cronotopos em Estética e teoria do romance.

2.4.3.3 O todo temporal do herói

Em primeiro lugar:

Em arte e em literatura todas as definições espaço-temporais são inseparáveis umas das outras, e comportam sempre um valor emocional. Uma reflexão abstrata pode, evidentemente, considerar o tempo e o espaço separadamente, e manter-se distante dos valores emocionais. Mas a contemplação viva (igualmente refletida, mas não abstrata) de uma obra de arte não separa nada, não se distancia de nada. Ela apreende o cronotopo na sua integralidade e sua plenitude. A arte e a literatura estão impregnadas de valores cronotópicos, em diversos graus e dimensões. Todo motivo, todo elemento privilegiado de uma obra de arte, se apresenta como um desses valores (p.384).

Essa passagem nos lembra que, em primeiro lugar, é preciso evitar considerar os cronotopos como espécies de puras realidades cognitivas ou "representativas", os cronotopos são sentidos. Eles estão no centro da existência no romance como na vida. Separar aqui o "conhecido" do "sentido" não tem sentido. Permanece a questão da diversidade desses cronotopos. Além disso, ao mesmo tempo, a questão da diferença entre os cronotopos manifestados no romance e aqueles que caracterizam nossa existência. Sem dúvida, eles são apresentados de longe no romance de maneira menos constrangedora. Nós os contemplamos mais livremente. De alguma forma, pode-se falar aqui de uma "exotopia" do leitor. Mas isso remete, vamos voltar a isso ainda, a uma tipologia (ausente me parece) dos estilos de leitura, correlata ou não aos nossos estilos de existência?

Sempre Bakhtin lembra que, desde as origens do romance, impôs-se o cronotopo do encontro. Que continua a ser tão frequente. E que se impõe também como "existencial" na vida que levamos. Ou na narração que fazemos dela, por exemplo, quando reportamos o que pode modificar o curso de nossa vida. Ele acrescenta:

No romance, os encontros se dão, habitualmente, "na estrada", lugar de escolhas de contatos fortuitos. Na "grande estrada" cruzam-se, no mesmo ponto de intersecção espaço-temporal, as vias de uma quantidade de pessoas pertencentes a todas as classes, situações, religiões, nacionalidades e idades. Podem se encontrar aí por acaso pessoas normalmente separadas por uma hierarquia social ou pelo espaço, e podem nascer todas as espécies de contrastes, chocarem-se e se misturarem diversos destinos. As séries de destinos e da vida do homem sob seu aspecto espaço-temporal podem conhecer neles combinações variadas, complicadas e concretizadas por distâncias sociais, aqui ultrapassadas. Nesse ponto, se ligam e se realizam os acontecimentos [...].

Depois de ter evocado o cronotopo do castelo, Bakhtin continua:

Nos romances de Standhal e de Balzac aparece uma nova e notável localização das peripécias: a sala de visitas (no sentido largo). Naturalmente, eles não são os primeiros a falar dela, mas é neles que ela adquire sua significação plena e inteira, como lugar de intersecção das séries espaciais e temporais do romance. Do ponto de vista do sujeito e da composição, é aí que acontecem os encontros que não têm mais o antigo caráter específico do encontro fortuito, realizado "na estrada", ou em "um mundo desconhecido". Aí se ligam as intrigas e acontecem frequentemente as rupturas; enfim (e é muito importante), aí se trocam diálogos carregados de uma sentido todo particular, aí se revelam os caracteres, as "ideias" e as "paixões" dos personagens [...] as escalas da nova hierarquia social são representadas nela (e reunidas no mesmo lugar, no mesmo momento). Enfim, em suas formas concretas e visíveis aparece o omnipresente poder do novo mestre da vida: o dinheiro (p.387)!

Ele evoca em seguida a cidadezinha de interior onde se desenrola Madame Bovary, mas que vai ser encontrada em muitos romancistas russos, Gogol, Turgueniev ou Tchekhov:

Uma cidade como esta é o lugar do tempo cíclico da vida cotidiana. Nela não se passa nenhum acontecimento, apenas a repetição do "comum". O tempo nela está privado de seu curso histórico progressivo. Ele avança em ciclos estreitos: o ciclo do dia, da semana, do mês, de uma vida toda...Nesse tempo, as pessoa comem, bebem, dormem, têm mulheres, amantes (sem romanesco), dedicam-se a intrigas mesquinhas, ficam também na suas lojas ou em seus escritórios, jogam cartas, reclamam. É isso o tempo cíclico da vida comum, corrente, cotidiana...

Bakhtin acrescenta então o cronotopo do limite

Ele pode se associar ao tema do encontro, mas ele é notavelmente mais completo: é o cronotopo da crise, da virada de uma vida. O termo mesmo de "limite" já adquiriu, na vida da linguagem (ao mesmo tempo que seu sentido real) um sentido metafórico; ele foi associado ao momento de mudança brusca, de crise, de decisão modificando o sentido da existência (ou de indecisão, de medo de "passar o limite") ... Por exemplo, em Dostoiévski, o limite e os cronotopos da escada, da antecâmara, do corredor, que lhe são contíguos, assim como os da rua e da grande praça que se prolongam, aparecem como os principais lugares de ação de sua obra, lugar onde se realiza o acontecimento da crise, da queda, da ressurreição, da renovação da vida, da clarividência, das decisões que desviam o curso de uma vida inteira (p.389).

Em seguida falando da significação figurativa do cronotopo:

Assim, o cronotopo, principal materialização do tempo no espaço, aparece como o centro da concretização figurativa, como a encarnação do romance inteiro. Todos os elementos abstratos do romance – generalizações filosóficas e sociais, ideias, análises das causas e dos efeitos, e assim por diante, gravitam em torno do cronotopo e, por intermédio dele, tomam corpo e participam do caráter imagético da arte literária. Essa é a significação figurativa do cronotopo... (p.391)

Ele acrescenta de maneira um pouco elíptica (?):

A forma interna da palavra, isto é, o signo mediador que contribui para transportar as significações espaciais iniciais nas relações temporais (no sentido mais largo) é igualmente cronotópica. Não é o lugar aqui de abordar esse problema bastante particular. Deve-se referir ao capítulo correspondente da Filosofia das formas simbólicas de Cassirer: a partir de um material rico, ele analisa o reflexo do tempo na linguagem (sua assimilaçãoo pela linguagem).

Em seguida:

Nos limites de uma obra apenas e da arte de um só autor, observamos quantidade de cronotopos, e suas interferências, complexas, específicas da obra e do autor; acontece, além disso, que um desses cronotopos recobre tudo ou predomina. (São aqueles que analisamos prioritariamente). Eles podem se imbricar um ao outro, coexistir, se entrelaçar, se suceder, se justapor, se opor ou se encontrar em relações recíprocas mais complicadas. O caráter geral dessas inter-relações aparece como dialógico (no sentido amplo do termo). Ora, esse diálogo não pode penetrar na imagem representada, nem em nenhum desses cronotopos: ele fica de fora, embora ele não seja excluído da obra inteira. Esse diálogo entra no mundo do autor, do executante, e no do auditório e dos leitores, mundos cronotópicos, eles também.

Bakhtin volta então às relações entre o "mundo real" e o "mundo da obra"

Evidentemente, autores, auditório, leitores podem se situar (e se situam frequentemente) em tempos e espaços diferentes, separados às vezes por séculos e distância enormes, mas pouco importa: eles estão todos reunidos num mundo único, real, inacabado, histórico, separado por uma fronteira brutal do mundo representado no texto. Podemos, portanto, falar desse mundo como criador do texto: todos os seus elementos – tanto o reflexo da realidade, quanto os autores, os executantes, se eles existem, enfim os ovintes-leitores reconstituem e, fazendo isso, renovam o texto, todos participam em igual parte, da criação de um mundo representado (p.393).

Pode-se então reconhecer em primeiro lugar que o dialogismo do autor e do leitor é o quadro no qual se situa o "dialogismo" do mundo comum e do mundo representado, caracterizados tanto um como outro pelo seus cronotopos avaliativos. Sendo a questão saber em que medida Bakhtin (e nós mesmos) estamos em estado, não apenas de evocar, mas de representar cessa dupla relação.

Limito aqui minhas citações. A noção de cronotopos ilustra, em primeiro lugar, a impossibilidade de separar o espaço do tempo. Mas sobretudo esses cronotopos são inseparáveis do mundo global no qual os heróis, assim como nós mesmos num outro plano, agem, sentem e pensam. É em função desses cronotopos que os diferentes tipos de palavras, de diálogos, podem se manifestar. E essas palavras não serão as mesmas, nem poderão ter o mesmo tipo de significação no cruzamento das estradas, numa sala de visitas, ou no "limiar". Parece-me que os romances condensam aqui aquilo que faz o curso ordinário de nossas formas de vida de uma maneira muito mais "viva" do que poderia ser feito por uma conceptualização abstrata, como aquela no discurso genérico sobre os conflitos de classes, de idade ou de sexo-gênero. Não é essa característica dos romances que faz com que sejam mais lidos do que os tratados, porque eles colocam perto de nós maneiras alternatvamente próximas e distantes de existir, o que duplica sem dúvida de alguma forma a "psicologia concreta" que praticamos cotidianamente?

2.4.4 Problemas da poética de Dostoiévski

Hesitei em apresentar textos do Dostoiévski de 1963 em função das dúvidas expressas por B.&B. Mas, afinal, esses textos existem, quer queiram quer não. Eles manifestam um pensamento que combina com aquele que se encontra em muitos outros textos de Bakhtin. Apenas uma citação, então, tirada do início do livro. Lembra-se muitas vezes que Dostoiévski é um dos promotores do romance polifônico no qual a voz das personagens se impõe (algumas vezes a referência aos outros autores desaparece):

Dostoiévski, semelhante ao Prometeu de Goethe, não cria escravos mudos (como Zeus), mas homens livres capazes de tomar lugar ao lado de seu criador, de lhe recusar sua concordância e mesmo de se colocar contra ele.

A multiplicidade de vozes e de consciências independentes e nao confundidas, a autêntica polifonia de vozes plenamente válidas é efetivamente a particularidade profunda dos romances de Dostoiévski (p.10).

Alguns exemplos retirados dos Irmãos Karamazov. Em primeiro lugar, a exotopia do autor se manifesta na maneira – que se pode achar um pouco pesada – como a palavra é em primeiro lugar dada ao narrador fictício, "bom cidadão" da cidadezinha.

Sobretudo, é mesmo essa exotopia do autor que lhe permite apresentar, ao mesmo tempo, a admiração coletiva pelo stáretz[16] 16 Monge, mentor espiritual e chefe de religiosos ou de outros monges. Significa ainda ancião (N. do T.). , através da admiração específica que lhe promete Aliocha e o fato opaco do cadáver que se põe a cheirar mal, sem que o debate seja jamais concluído: esse mau cheiro põe em questão a santidade da personagem? Assim como há na narrativa do apólogo do Grande Inquisidor tal qual o descreve Ivan Karamazov, se eu posso dizer, uma preferência pela personagem do Cristo mais do que pelo do Grande Inquisidor, mas Dostoiévski deixa aberta a possibilidade de que o Grande Inquisidor talvez tenha razão, ou que o Cristo tenha talvez exigido demais dos homens.

Aí está certamente um dos sentidos centrais de "dialogismo". Não é necessário que uma perspectiva unívoca venha fechar os debates, nos romances assim como na vida...

Volto um instante ao texto de Todorov. Ele encerra sua introdução com algumas observações sobre a antropologia filosófica de Bakhtin. Pode-se notar com ele que não se trata de atribuir apenas a Bakhtin a ideia segundo a qual "o outro" é constitutivo de "eu". Na sua nota da p.151, Todorov lembra que esse tema já foi desenvolvido, pelo menos por Fichte, Humbolt, Feuerbac. E que Bakhtin tinha lido e admirado Eu e Tu de Buber. Sobre um tema como esse, não há muito sentido em procurar a "originalidade" de fulano ou sicrano. A questão reside sobretudo, me parece, em ver como o tema em questão permanece generalidade vaga ou, ao contrário, toma corpo. Ora, manifestamente, ele toma corpo em Bakhtin sobretudo em sua análise do romance na articulação entre a voz do autor, do narrador, e as dos heróis, isso nos estilos e nos cronotopos variados dos diferentes romances.

Acidentalmente, eu me pergunto se a ligação entre a multiplicidade de vozes e a voz do autor não está também manifestada em outras obras além do romance. Se se escuta o Don Juan de Mozart, certamente, ouve-se em primeiro lugar "o Mozart". Mas, será que justamente as diferenças das vozes cantadas não realçam a independência dos diferentes heróis? Não há que se escolher entre eles. Eles se impõem em sua originalidade. O que não seria o caso se participássemos de uma ação real. Na obra, essa necessidade de "tomar partido" fica suspensa. E é, sem dúvida, isso que constitui a característica da "representação estética" assim como de sua especifidade ética.

E, além disso, a partir do exemplo de Dostoiévski e de seus personagens, não somos confrontados à noção de estilo, estilos dos personagens como estilos de recepção? Assim como na vida em que se confrontam estilos de "nós" e nossas formas de os apreender. Além dessa noção que nos faz sair de dicotomias como voluntário vs involuntário ou exterior vs interior, ela nos proíbe de nos considerarmos como os supostos sábios que diriam a verdade dos livros ou dos outros. Não estamos em posição de sobrevoo para afirmar a relação de nosso estilo de recepção com os estilos dos quais falamos. Podemos só tomar um pouco de consciência de nossa especificidade quando somos confrontados com a evidência que justamente o terceiro não divide nossa evidência. Nesse sentido a relação entre nosso estilo de leitura e o estilo do autor seria uma forma intransponível de "dialogismo".

2.5 Conclusões ou "observações que se abrem"

Queria em primeiro lugar apresentar algumas observações gerais sobre os autores evocados, depois voltar mais precisamente para as relações que pode haver entre a leitura de seus textos e a questão da "psicologia concreta", na medida em que tenho alguma legitimidade para evocá-la.

2.5.1 Retorno rápido à leitura dos autores evocados

Em primeiro lugar, a crítica histórica e filológica é evidentemente legitima. Com a mudança de perspectiva que ela traz pra reconstituir um "espírito do tempo" ou para recolocar no seu lugar autores esquecidos. Por exemplo, Jakubinskij atualmente não é reconhecido na França, assim como bem recentemente ainda não o era Medvedev. Mas não é um saber histórico ou sociológico que pode nos dizer como podemos ou devemos ler tal obra.

Apenas algumas palavras sobre o confronto de Voloshinov e Bakhtin, (incidentemente de Vygotski). O texto de Medvedev não me parece apresentar problema. Ele contribui para precisar a relação comum dos três autores com o "formalismo". Eu não estou, torno a dizer, em posição de precisar as fontes desses autores, nem o que foram suas interações. Apenas me esforço para apreender movimentos de pensamento que os reaproximam ou os distanciam. Assim como o que eles significam para "mim", "eventual representante de uma outra época".

Em todo caso, os três autores se opõem à vontade de isolar "a língua" supostamente comum que poderia ser estudada em si mesma. Para evocar de um lado a relação dos interlocutores. Eventualmente, a presença das "outras vozes" naquela "do autor", portanto, globalmente, o dialogismo (o texto de Bakhtin sendo evidentemente mais explícito). De outro lado, encontra-se em todos a passagem da análise da língua para a dos gêneros do discurso. Há pelo menos aí, me parece, dois pontos de ligação.

Inversamente, o conflito entre o discurso sociológico-marxista de Voloshinov e o discurso da finitude e da heterogeneidade em Bakhtin é evidente. Mesmo que se possa pensar que não há necessariamente oposição entre esses dois tipos de discursos. Tentar pensar sua contingênca, sua finitude comporta também, me parece, a necessidade de "se pensar na sua época". Enfim, evidentemente, é apenas em Bakhtin que a história do romance é analisada, a variedade antes de tudo dos cronotopos.

Acidentalmente, voltando ao problema da autoria, eu me pergunto qual pode ser o valor do argumento: "Tudo isso não muda nossa relação com o 'dialogismo' ou com a significação do texto global de 'BMV'". Um argumento desse tipo pode ser fundado, então, quando se trata de afirmar que se pode ler Homero ou Shakespeare sem saber se se trata de um homem apenas ou de vários. Permanece a questão de saber se se pode ou se deve totalizar uma doutrina global que poderia se chamar "dialogismo" ou se é mais necessário reconhecer uma diversidade de inspiração. Parece-me que é preciso reconhecer ao mesmo tempo o "ar de família" dos três autores e suas diferenças.

No fim das contas, encontra-se o mesmo problema em um só autor: É preciso insistir sobre a continuidade entre A Ideologia Alemã e o Capital e as reflexões de Marx sobre 1848 e a Comuna? Ou ainda, qual a relação entre o pensamento de Marx e as grandes sínteses de Engels como Dialética da natureza? Aqui também se pode encontrar entre as obras as "diferenças normais" que se encontram na evolução de todo pensamento, sobretudo quando ela não se aplica aos mesmos objetos. Ou fazer um "corte epistemológico" ou alguma outra forma de diferença absoluta.

Volto aqui rapidamente à diferença, à oposição ou à "contradição" entre as posições que se podem atribuir a Voloshinov e a Bakhtin.

Mas, em primeiríssimo lugar, outro parênteses, eu duvido que haja um saber objetivo que nos diga o que é compreender uma obra. Por exemplo, o que significa encontrar as "contradições" num autor? Não são os defeitos de pensamento lógico no sentido da asserção simultânea sobre um mesmo objeto e de um mesmo ponto de vista de enunciados do tipo a e não a. Trata-se mais de perspectivas divergentes. Mas aproximar perspectivas divergentes pode ser uma pressão que se impõe ao autor, ele reconhece uma dificuldade que o ultrapassa. Além disso, a contradição pode vir de uma fraqueza interpretativa do leitor que não sabe pesquisar a perspectiva que permitiria harmonizar o que parece "contraditório". Mas será que sabemos o que seria a "leitura correta"? A questão não tem fim. Aquela que tornaria possível o acordo de todos os leitores corre o risco de nos dar apenas um denominador comum medíocre. Mas mesmo que selecionemos, ao inverso, o que nos toca, isso não exclui que se interrogue sobre a heterogeneidade dos pontos de vista, sem esquecer que "nosso" ponto de vista não é necessariamente unívoco.

Tal como é apresentado por Bronckart, a contradição diria respeito à abordagem "marxista" e "sociológica" (aliás, "a boa") de Voloshinov e à abordagem "individualista" (aliás, "a má") de Bakhtin. Eu não vejo as coisas assim. Em primeiro lugar, porque eu não penso que a explicação "sociológica" de Voloshinov seja necessária e suficiente. Não volto às criticas, amplamente justificadas, me parece, de Sériot em relação ao "sociologismo" de Voloshinov. Mas, seja qual for a sociologia de que se trate, ela permacerá um diálogo com aquilo que estuda, a posição do pesquisador devendo, por sua vez, ser objeto de elucidação. Por outro lado, a posição de Bakhtin não me parece "individualista". Sobretudo, levar em conta o que os indivíduos têm de específico não é a propósito um pecado epistemológico mas reflete, na minha opinião, uma necessidade que se impõe a nós. Parece-me, repito isso ainda, que a posição de Bakhtin exprime que ele não tem um "saber" que resolveria os problemas humanos. Trata-se, portanto, o que é absolutamente outra coisa, de insistir na irredutibilidade das perspectivas que se impõem a cada um. Volto a esses dois pontos.

2.5.2 Sociologia, determinismo social ou...?

Qualquer que seja o poder da "ciência, subsiste um grau elevado de contingência. Ninguém pode compreender (ou explicar) perfeitamente por que determinado texto é assim e não de outra forma, ainda menos o que levou o autor a escrever aquilo e daquela maneira. Da mesma forma, o leitor não tem um saber sobre si mesmo que explicasse porque ele percebe um texto de determinada forma e não de outra. Certamente, múltiplos esclarecimentos são possíveis. E não tenho nem o tempo nem a competência para sobrevoar o que pode ser a sociologia da literatura. Mas, como a sociologia aplicada à "vida cotidiana", pode-se dizer que tal como a ave de Minerva evocada por Hegel, ela vem após o evento, descobre suas ligações entre a obra e o meio no qual ela foi produzida, não pode prever qual obra deveria ser produzida em tal sociedade. Assim como também não prevê as crises ou os acontecimentos.

Eu me permito ainda aqui um parêntese sobre o que pode ser dito do marxismo. Não coloco em questão o que pode significar ser "marxista" em geral, nem marxista atualmente. Ainda que me pareça que pelo menos as "pessoas da minha idade" (ou algumas delas) tenham sido fortemente marcadas, não apenas pelas revelações concernentes à violência policial na União Soviética, mas também pelo fracasso ressonante da pretensão de possuir a "boa teoria" total, que permitiria explicar especialmente os fenômenos humanos, o fascismo, a religião por exemplo e poder organizar racionalmente a ação conduzindo à liberação da humanidade. Mas deixo de lado esse ponto: pode existir sem dúvida um "marxismo modesto".

Eu me pergunto, de forma mais limitada, mas ainda certamente bem vasta, o que pode significar ser "marxista" em relação a determinado texto, por exemplo, filosófico ou literário. Assim, justamente, como manejar corretamente a palavra "ideologia"? Não se pode contentar em supor que há uma base, os "modos de produção" e as "relações de produção" e - em seguida - um resto que de alguma forma refletiria ou refrataria essa base. Certamente, dizer "são os homens que fazem a história, mas eles não sabem a história que eles fazem" diz respeito a uma evidência que podemos todos dividir. Sem dúvida, justamente porque não há laço simples entre diferentes níveis institucionais ou individuais nos quais se desenvolve nossa vida. E que não sabemos a priori de qual lado procurar o que vai contribuir para a inteligibilidade (de qualquer forma, não há "explicação completa") de qualquer acontecimento que seja. Não seria porque os diferentes tipos de fenômenos têm sua própria temporalidade?

Para voltar às obras, em primeiro lugar se perguntará o que pode significar a possibilidade de compreender uma obra lançada numa sociedade distante. Mas sobretudo o que faz com que essa obra possa ser mais "importante" para nós do que uma obra que trata atualmente das urgências que nos são comuns. Se não se resolve esse problema, a sociologia se torna "sociologismo".

Além disso, eu não tenho nem a competência nem o lugar para evocar aqui os diferentes autores que trataram mais ou menos da articulação entre produção literária, condições de recepção e pertencimento social.

2.5.3 Sociologia e psicologia

Não encaro aqui o problema no seu conjunto (eu seria incapaz para tanto) mas a partir de críticas que Bronckart dirige a Bakhtin de

tentar mascarar ou atenuar a abordagem fundamentalmente sociológica de Voloshinov, e de compensá-la com a introdução de considerações psicologizantes, segundo as quais, por exemplo, a variedade de gêneros constituiria (também?) um reflexo das diferenças existentes entre as pessoas singulares (p.565).

Não vejo bem o sentido dessa crítica. Há diferenças individuais em toda sociedade, pertencimentos variados de acordo com a sociedade e em particular diferenças não apenas de linguagem, mas sobretudo nas maneiras de estabelecer relações entre linguagem e não-linguagem. Não há uma boa abordagem social e uma incorreta abordagem individualista.

Em primeiro lugar porque não se pode anular a maneira como o pertencimento de classe, a macrossociologia se manifesta através da microssociologia familiar ou do microgrupo. Além disso, como tudo isso passa forçosamente por corpos, histórias individuais, modos específicos de reação nas formas de agir, de sentir, de dizer.

Não se trata de "reorientação individualista". Penso sobretudo que devemos levar em conta o fato de que toda história é sempre coletiva e individual. Se se considera uma guerra, ela pode ser vista de longe, por exemplo, nas destruições que ela causou. Mas é igualmente legítimo considerar como ela se manifestou na vida de um ser determinado ou na de outro. E sobretudo, não há uma história que seria a dos vencedores, qualquer sentido da história. Há a contingência dos homens que tentam mais ou menos obscuramente dar sentido de maneiras diferentes ao que lhes acontece.

2.5.4 Retorno à heterogeneidade como pano de fundo do dialogismo

Para voltar às "contradições", só haveria contradição entre os pontos de vista, ou melhor, as doutrinas se uma pretendesse explicar completamente tal conduta e se a outra pretendesse explicar o mesmo fenômeno de outra forma. Mas temos "boas razões" (sempre as evidências negativas antes das evidências positivas) para pensar que não é assim que acontece. Ao que é preciso acrescentar que há sem dúvida contradição entre duas escolhas práticas, em todo caso, diante do mesmo problema. Não há contradição, mas apenas diferenças entre as perspectivas que se abrem a dois humanos em suas vidas. Assim como não há contradição entre dois romances ou dois retratos da mesma pessoa. Nesse sentido, as visões estéticas do mundo são particularmente aquelas em que a heterogeneidade pode se manifestar, uma vez que nela estamos forçados às escolhas práticas. (Mesmo que as visões estéticas possam conduzir a agir desta ou daquela maneira.)

Como a diferença de nossas condutas na solidão, na vida privada e em público é patente e, de alguma forma, inevitável. Assim como só se pode supor que nossas palavras, nossos atos, nossas formas de sentir, nossas reflexões numa sequência são tais que deveriam coincidir. A distância é aqui inevitável. A questão será mais de saber qual é a dose de diferença que se considerará como "normal". E o que pode haver de contraditório, no sentido de repreensível no fato de mudar de posição depressa demais ou frequentemente em demasia, ou na maneira de não sustentar seus engajamentos exceto em caso de "força maior".

2.5.4.1 Heterogeneidade, mas qual heterogeneidade?

Vimos que Bakhtin tinha distinguido, sem dúvida, na tradição kantiana, os três domínios da ciência, da política e da estética. Pode-se certamente pensar a irredutibilidade desses três domínios. O que não exclui suas correspondências, seu "diálogo". Mas pode-se já notar que cada um desses domínios é ele próprio heterogêneo.

Não há grande relação entre o estabelecimento de "leis" em física e a capacidade para escrever a história de um grupo ou de um indivíduo. Não há muita relação entre as práticas morais coletivamente instituídas e a maneira como um indivíduo procura orientar-se na vida. Também não há entre a moral da vida cotidiana e a das escolhas dramáticas. Assim como o menos que se pode dizer é que falar do romance ou da pintura carece de seriedade. O que poderia multiplicar-se pela reflexão sobre os modos de leitura.

Sob múltiplas formas, a questão do não-recorte se impõe. Nenhum de nós pode razoavelmente pensar que a gestão de sua vida seria ou poderia ser "científica". Nem que um relatório "objetivo" da sua vida, seja atualmente, seja depois de sua morte, daria conta de sua "verdadeira natureza". Assim como "sabemos bem" que nossa percepção de nós mesmos por nós mesmos não é mais a expressão de nossa verdade. Mesmo que possamos dizer que tal expressão é preferível a outra.

Nesse sentido, parece-me que, de fato, somos bakhtinianos. Ou que, em todo caso, podemos (ou não podemos não) nos inspirar em sua abordagem, reconhecer em particular o romance como um dos lugares em que a heterogeneidade humana se manifesta.

Por exemplo, no que diz respeito à "contradição" (ou ao "diálogo"?) não apenas no romance mas na vida de cada um entre o estatuto daquele que diz "eu" e a manifestação nele de diferentes vozes, não necessariamente identificáveis, mas também de maneiras contraditórias de ser, de sentir que não tomam necessariamente a forma de "voz".

Além disso, as questões podem se multiplicar: como a heterogeneidade, a não coincidência de si em si podem se exprimir fora da tríade: ciência, ética, estética? Não se poderia separar vida privada e vida pública? Ou...

- Tanto no que diz respeito à obra de arte quanto à moral e à ciência (maneiras diferentes) será que Bakhtin se dá conta suficientemente dos diversos tipos de coletivos que falam, se manifestam em nós?

- Pelo menos na sua apresentação introdutória, a obra de arte é caracterizada como aquilo que permite a totalização pela presença de uma forma assinável. Mas é razoável dizer "a arte é..."?

- Além disso, pode-se retornar a esse papel específico "do" romance. Em primeiro lugar, pode-se determinar de acordo com qual modalidade nossa própria realidade pode ser esclarecida por tal ou tal romance?

- No fim das contas, a passagem para a língua escrita permite reencontrar os modos de corporeidade, de mistura, as temporalidades próprias do oral ou das condutas múltiplas do que se chama de "linguagem interior", visto que elas não são tecidas apenas com linguagem, o que as opõe justamente ao monólogo explícito, oral e ainda mais escrito?

Há uma totalização (certamente fictícia) da experiência pela narrativa oral e ainda mais escrita, mas que não exclui, ao contrário, a questão daquilo que é mal dito, difícil ou impossível de dizer. O que não é contraditóro com a potência da linguagem: todo mundo pode estar numa situação horrível e se dizer "mais tarde...". Permanece que não se pode estabelecer uma lista definitiva dos gêneros do discurso ou, se se preferir, das relações da linguagem com o que ela não é.

Uma outra característica da linguagem apontada tanto por Bakhtin como por Voloshinov circula entre a vida cotidiana e o romance: a palavra reportada como constitutiva da linguagem, seja tratando-se de palavra reportada como tal, seja da mistura discursiva. Apenas uma observação. Pode-se levar em conta a maneira como precocemente a criança brinca de tomar o lugar dos outros ou a possibilidade também de um quadro, uma imagem, comportar uma imitação, ou ainda uma alusão. Em todo caso, a retomada do que vem do outro e, de alguma maneira, a citação não são uma especificidade da linguagem.

2.5.4.2 Pensamento, signo, linguagem

Sem dúvida, na vontade de ser materialista, Voloshinov se esforça para substituir a palavra "pensamento", certamente obscura e difícil de manipular, por "signos". Mas isso não resolve o problema da fonte de nossa capacidade de distinguir enunciados verdadeiros ou falsos, sensatos ou absurdos. Ou ainda da possibilidade de responder acrescentando, reformulando, distinguindo, em suma, tendo uma compreensão responsiva, num campo aberto, no qual não se trata necessariamente de concluir, fechar (salvo urgência prática). Em suma, o que se chama usualmente "pensar" é outra coisa e não a capacidade de emitir enunciados (que podem sempre mais ou menos derivar do automatismo). E o problema não se resolve quando se diz que o sentido dos enunciados depende do "contexto", pois o estatuto deste não está igualmente esclarecido.

Eu me pergunto se em Voloshiinov assim como em Medvedev não há uma dupla superestimação correlativa e da linguagem e do ser social global. Sem dúvida, por razões polêmicas: tratava-se de se distinguir por um lado do formalismo como isolamento da matéria linguística, pretensamente única fonte da estética mas sem remeter a um "pensamento" introspectivo considerado como relativo ao "individualismo subjetivismo". Mas há sentido e pensamento no/para o corpo do animal, sem linguagem no sentido humano (mesmo que ele se comunique por outros canais) e sem introspecção: ele é capaz de tentativas, de erros, de inteligência, de surpresa, de jogo. Em suma, ele produz sentido na sua relação com os outros e com o mundo. Assim como, antes de entrar na linguagem a criancinha constrói sentido, age sobre os outros, sobre as coisas e sobre ela própria de múltiplas maneiras. Assim como ela é confrontada com modos familiares ou estranhos e não a estímulos. Ou ainda, que, de alguma forma, ela tenha relação com um passado, com um futuro, com a sua comunidade-distância em relação aos outros antes da linguagem. E é sobre a base dessas primeiras formas de sentido que ela se tornará capaz de sentidos linguísticos, que estarão sempre em colaboração-conflito com as fontes de sentido, os sentidos-forças não linguageiros. Em Vygotski, a linguagem se torna multiplicadora das capacidades psíquicas, não criadora. E, por outro lado, levar em conta o ser social não implica que os sujeitos sociais (já se observou isso anteriormente) sejam sociais da mesma forma, participem do mesmo mundo da mesma maneira. E se poderia sem dúvida constatar que cada grupo de indivíduos, em seguida cada indivíduo tem, mais ou menos, seu estilo próprio de estabelecer relações entre as significações extralinguísticas e significações mais especificamente linguísticas. Sem que se saiba jamais como as formulações de um vão fazer sentido no campo que constitui a vida corporal-psíquica do outro, numa relação de "sentido contingente múltiplo", parcialmente opaco, algumas vezes esclarecido, outras vezes tornado obscuro por formulações discursivas.

2.5.4.3 Algumas observações parcialmente conclusivas

Eu me permito, em primeiro lugar, observar dois aspectos que poderiam completar o que eu pude apreender na leitura de Voloshinov assim como na de Bakhtin.

2.5.4.3.1 Pensamento e campo

Pode-se apresentar aqui, no mínimo, uma exigência negativa: reconhecer que apreender o sentido de um enunciado (como de um ato) consiste em recolocá-lo num campo ou sobretudo no cruzamento entre vários campos. Tanto o campo presente como o ausente, do passado e do futuro. E que se encontra aí uma construção frágil, a ser retomada sem parar (retomo o "campo" um pouco mais adiante). Em todo caso, não mais do que um ato, o texto não nos diz ele próprio como se deve lê-lo, o que aí é importante ou secundário, a que "gênero de ausentes" ele remete. Assim como um texto é feito de movimentos não diretamente delimitáveis e não de frases. Talvez um outro aspecto da "moral do leitor" seja levar em conta o que, no texto, está longe dele e não o que parece imediatamente próximo. Como ler autores cujas crenças fundamentais são diferentes das nossas? Não há resposta teórica, justa ou prática. Com o alerta que constitui a lembrança dos antigos e variadas distribuições dos nossos próximos ou de nossas alteridades, como da fragilidade das construções ideológicas separando definitivamente os "bons" (nós) e os "maus"(outros).

Falar de campo(s) traz a questão de seu aspecto espaço-temporal-afetivo (como para os cronotopos, mas os cronotopos têm uma figura delimitável, enquanto os campos não têm bordas, nem são delimitados nas suas transições). Pode-se contar os cronotopos, não os campos. Mesmo que se possa opô-los com campo do presente ou do ausente, campos partilhados ou não... (Talvez as obras de ficção sejam, pelo menos às vezes, aquelas nas quais se pode mais facilmente partilhar os campos que não são os nossos "dentro da realidade"?).

Em todo caso, esse estatuto indeterminado dos campos está em afinidade com a reflexão sobre nossa própria heterogeneidade. E sobre a impureza natural de nossa situação de intérprete, que, mais uma vez, não pode jamais tornar-se um saber que dominaria o campo do pensamento do outro nem que dissesse por que eu percebo ou leio assim.

2.5.4.3.2 Pensamento, sentido e "força"

Parece-me que, por outro lado, em nenhum dos autores aos quais se fez referência aqui, não há, desenvolvida, uma problemática do que, na falta de uma palavra melhor, se poderia chamar de "sentido-força", que se pode, em primeira aproximação associar à inseparabilidade do que diz respeito à ("re)presentação" e ao "sentir". Assim, pode-se imaginar o acordo de dois interlocutores sobre um "anúncio de valor" "Oh! A sopa está boa", com uma forma de acordo referencial, acrescido de uma diferença absoluta entre aquele que põe isso em movimento e aquele que vê tudo isso "de longe".

Assim como se poderá concordar que "a tortura é abominável" sem que isso tenha um efeito sobre nós com a mesma força. Mas essa diferença de "sentido-força" concerne ao mesmo tempo ao campo das reações possíveis (agir ou ficar na sua poltrona), à maneira corporal de sentir, assim como ao campo do que é evocado, representado, que faz parte integrante da força em questão. Em todo caso, de um lado não se pode localizar a força em um ponto de nossas reações. Menos ainda medi-la. Além disso, a sequência da interlocução ou uma única passagem do tempo poderá fazer variar ainda essa reação. O que faz, incidentemente, que eu me interrogue sobre a fórmula de Vygotski que assimila a obra de arte a uma "técnica social do sentimento". Não se trata apenas de sentir, mas de reagir num campo específico. Em primeiro lugar, numa das numerosas formas de espaço de suspensão que caracteriza a obra de arte. Negligencio aqui, ou melhor, deixo entre parênteses o fato de que a obra de arte pode ser ostentação de riqueza, posta em movimento político, convite à meditação ou provocação erótica. E que todos esses modos de ressonância podem também variar em/para cada um de nós.

Em todo caso, trata-se de sair da imagem dos signos que valeriam por um objeto, "representá-lo-iam" no duplo sentido do quadro que representa ou daquele que representa a personalidade ausente.

Será razoável falar da "força" como daquilo que nos coloca em movimento? Sim se se pensa na injúria que nos faz pular. Além disso, não se trata da mesma forma de "desencadeamento" se, ao contrário, pensa-se naquilo que nos coloca em situação de nos interrogar. Mas há também a força de resistir. E há também muitas formas de "força". Deveria ser entendido que não é porque uma palavra nos é oferecida pela "língua" que deve haver uma noção correspondente a ela. Então se poderia, negativamente, chamar de "força" tudo o que nos faz sair de um valor representativo no sentido estreito, muda o campo, o modo de percepção, a atitude em relação a tudo o que está por sua vez fracamente dizível, representável. Mas, certamente, não temos uma teoria já pronta que nos diga como nos representar, explicitar a força com a qual age sobre nós um fato, uma imagem, uma situação, um discurso. E isso agora ou mais tarde.

Em si só "força" é tão insuficiente quanto quando se fala de "emotivo-volitivo". Especialmente, essas palavras só funcionam quando colocam em movimento justamente a capacidade de imaginar casos particulares, conflito, restrições, modulações. Em suma, o que se vai chamar "compreensão responsiva".

Pode-se talvez estabelecer relação entre "força" e "ideologia do cotidiano", termo que justamente nos conduz a colocar a questão da maneira como os grandes discursos se transformam em nós em função de nossa prática cotidiana. Talvez até se pudesse encontrar aí uma forma central de "dialogismo". Aquela entre o hic e o nunc de nosso corpo, de nosso entorno familiar e aquela dos distantes. Quer sejam as distâncias culturais, aquelas dos sonhos ou imaginações. Ou ainda aquelas da "grande ideologia" do discurso público. Assim, os discurso eleitorais que escutamos atualmente agem em nós nas suas relações com as situações vividas que nos são próximas, por exemplo, no que diz respeito à insegurança do emprego. Só há "força" num campo. Além disso, esse campo do presente se recoloca, por sua vez, no campo do passado, das promessas vãs, por exemplo. Sobre esse ponto há algo comum entre nós. E basta que estejamos em situação de diálogo explícito para que apareça alternativamente algo comum e algo diferente entre nós (algo comum e algo diferente e o comum e o diferente que não podem ser nunca esgotados). Isso na medida, sempre aleatória, em que o dizer reflete-modifica-cria de alguma forma nosso ponto de vista e sua "força conjunta". Sem que tenhamos um metadiscurso que nos permita dizer a relação entre nosso discurso e esse pano de fundo. Ou, preferencialmente, temos apenas uma "tomada de consciência relativa" ou "negativa" que nos faz dizer ou guardar para nós mesmos qualquer coisa como "estou exagerando". O que põe a questão da relação entre esse julgamento que eu tenho de mim e aquele, este também explícito ou implícito, que tem meu interlocutor ou um terceiro ausente que, por exemplo, lê a gravação da conversa. Excluindo-se aqui a possibilidade de um saber definitivo que explicasse "quem fala em mim" (a voz de "nós todos? / se" ou de qual "eu"?) e ainda mais sobre as razões-causas que fazem com que eu pense-fale-reaja também. Há sempre apenas tentativas de esclarecimento e um momento, felizmente, no qual se pensa que "assim basta".

Em todo caso, voltar à "ideologia do cotidiano" como "modo de reação" supõe que não se procure isolar de um lado "a sociologia" objetiva, de outro, "a psicologia" que teria a ver com a dimensão subjetiva, de um terceiro, uma linguística ou uma semiótica que se interrogaria sobre a maneira como um discurso modifica seu objeto ou como o corpo falante reforça-modifica-contradiz o sentido trazido pelos enunciados.

Pode-se supor que a "reflexão" parte de nossa posição atual e tenta retornar à contingência de nosso próprio ponto de vista. Mas não se corre o risco de perceber as coerções sociais ou fáticas que se impõem ao outro mais do que aquelas que nos são próprias? Mas tanto quanto no caso de nosso perspectiva sobre o outro, o recurso ao termo "ideologia" corre sempre o risco de significar uma espécie de posição de superioridade daquele que descobre o que condiciona a evidênca do ponto de vista. De qualquer forma, não há um fim da história que diga a verdade sobre isso. Não mais do que os vencedores dizem a verdade sobre os vencidos. Sobretudo, quer se trate de nós ou dos outros, não temos um critério geral para determinar o "bom discurso". Não há escolha simples entre o ausente e o presente, o comum e o específico, o habitual e inesperado, o facilmente formulável e o que não o é. Um modo de percepção é uma realidade tão objetiva quanto o admitido como real comum no qual nos banharíamos. Assim como um mesmo discurso pode ser para um banalidade e para outro "revelação".

2.5.4.3.3 Pensamentos, práticas e gêneros

Por outro lado, quaisquer que sejam as questões de atribuição entre os dois autores, faz parte, me parece, de sua herança comum ter substituído o problema da língua pelo dos gêneros do discurso, como ligados a práticas sociais diferentes. Mas assim como para "forças", a questão dos "gêneros" permanece uma questão aberta. Em primeiro lugar porque se pode duvidar de nossa capacidade para estabelecer uma classificação definitiva dos gêneros. Em seguida, porque há gêneros de recepção tão diferentes quanto os gêneros de textos. Enfim, porque estabelecer gêneros não nos informa quais tipos de acentuação, de relação entre o dito e o não dito isso supõe. Nesse sentido, os "gêneros efetivos" são uma coisa diferente dos gêneros instituídos.

Não se poderia distinguir os gêneros do discurso de acordo com seus tipos de relação com o que é não-linguístico no pensamento? Ou, o que dá no mesmo, chamar de "pensamento" justamente essa totalização parcial do presente e do ausente, do dito, do sentido, e do fato que se faz incessantemente por meio de nosso corpo?

2.5.4.3.4 Observações sobre nós, nossos "ancestrais" e, um pouco, sobre minha/nossa situação

Para concluir, momentaneamente, a reflexão sobre nossas relações com os autores aqui evocados, poder-se-ia, em primeiro lugar, lembrar a ambivalência do estatuto de "filho" (mesmo que se admita que a vantagem do mundo cultural é poder ter vários pais). E depois, a questão será saber o que podem nos dizer autores que não falam diretamente para nós: quaisquer que sejam as diferenças de panos de fundo e de pressupostos, fabrica-se sentido entre eles e nós. E isso esclarece sem dúvida a ilusão que queria que a comunicação entre nós exigisse coincidência de perspectivas ou de implícitos. Mas não temos uma medida ideal que nos permita julgar a qualidade dessa conversação com nossos ancestrais (com nossos contemporâneos e com nós mesmos também não, aliás). Além do mais, o que é feito da possibilidade de "pensar em seguida"? As considerações sobre o diálogo (é preciso dizer "dialogismo"? ) tornaram-se uma banalidade. Estamos condenados a repetir ou podemos voltar para o diálogo, por exemplo, a partir de uma abordagem do "dialogismo corporal"? Naturalmente, não se pode responder sem tentar justamente representar efetivamente ao menos um pouco esse "diálogo corporal".

É verdade que somos de alguma forma "anões montados nos ombros de gigantes". Mas será que são eles ou nós que decidimos em que direção é oportuno virar? Sempre se pode interrogar rapidamente aqui (vamos voltar a isso) sobre o que essa leitura tem de necessariamente específica, em função de nossa posição. O mínimo que se pode dizer é que não temos diante de nós o futuro radioso que imaginava sem dúvida Voloshinov. Somos surpreendidos, por outro lado, por um desenvolvimento mundial dos discursos "científicos" que não podemos dominar. Assim como por um cientificismo conquistador, ilustrado de forma violenta pela problemática da medida e da avaliação. E, no entanto, mesmo que se desconfie do "dialogismo para todos os gostos", parece-me que a questão dos diálogos, em particular entre o que se passa pela palavra e o que se "diz" de alguma forma sem palavras continua a nos intrigar. Progredimos? Podemos progredir? É uma outra questão.

3 Retorno à "psicologia concreta"

Retornamos aqui, a partir da leitura dos autores aqui apresentados, à questão posta neste seminário por Katia Kostulski sobre o que pode ser o estatuto de uma "psicologia concreta", ou melhor, "os estatutos de psicologias concretas", pois a unidade não saberia ser pressuposta ao mesmo tempo em sua dimensão "dialógica" e narrativa.

Não há nem mesmo certeza de que esse objeto possa ser determinado. Pode, no entanto, haver evidências negativas do que a "psicologia concreta" não pode ser. Recebi o anúncio de uma conferência na qual o autor explica que vai apresentar um algoritmo de David Liberman, "método de análise sistemática do discurso em psicanálise que permite estudar as pulsões libidinais e as defesas nos três níveis da linguagem: a palavra, a frase e a narrativa"... Isso me deixa impedido.

Além disso, o que dizer sobre a utilização mesmo da palavra "psicologia"? Não é preciso dizer preferencialmente "abordagens tão concretas quanto possível das 'coisas humanas'" sem que isso diga mais respeito à psicologia, à sociologia, à semiótica, ou a qualquer outra ciência real ou possível? E sem pressupor que se deva tratar de uma "ciência"?

3.1 Para começar: uma (longa demais? breve demais?) introdução à minha/nossa situação

Sustentar esse discurso sobre "minha ou nossa situação" me incomoda. Em primeiro lugar, pela hesitação entre "eu" e "nós". (Mas todo discurso sustentado por um indivíduo em nome de um coletivo não seria apenas de duas pessoas, não tem ele algo de inquietante?) Além disso, supor esse destino comum em algumas páginas é com certeza pretensioso. E, no entanto, existe, com efeito, um "destino comum" que não se deixa esquecer e que é necessário tentar esclarecer, mesmo que as maneiras de percebê-lo, de acentuá-lo variem. Assim, há com certeza algo como "vir depois dos autores de quem se acaba de falar", com toda a dificuldade de ser "filhos (filhas) dele". Como é patente, lembrou-se que não partilhamos o clima intelectual-afetivo, o entusiasmo revolucionário da URSS nascente (nem ao menos aquele mais fugaz de 1968). Mas temos, no entanto, "certa relação" com os pensamentos que se exprimiram nessas épocas. Assim como não podemos dizer que nossa participação no espírito de nosso tempo nos desvela ou nos esconde. Podemos apenas refletir um pouco sobre nossa situação histórica (sem esquecer a articulação entre a história global e a temporalidade não negligenciável do envelhecimento individual).

Assim, somos tomados na realidade de uma "mundialização", aquela da economia liberal, a das tecnologias da informação, aquela de uma vida intelectual cada vez menos localizada, o que não exclui que "corporalmente", "afetivamente", "em nossas práticas" vivamos aí onde estamos com nossos próximos e nosso entorno familiar.

Essa mundialização se fez acompanhar de um progresso técnico que modificou profundamente nossas vidas. Mesmo que ao mesmo tempo as catástrofes históricas e as ameaças ligadas à técnica em si mesma façam com que o progresso técnico não seja mais ligado para nós à imagem de um progresso garantido para a humanidade.

O desenvolvimento das ciências, a prática de medidas cada vez mais precisas não nos dá de forma alguma um meio de prever qualquer coisa que seja, tanto no plano da história global quanto no da história local. Cada um sabe que as leis estabelecidas pelos economistas são imposturas e que o curso da história só pode ser explicado por leis que exprimam a relação das forças produtivas e relações de produção. No passado ainda próximo, pode-se evocar a violência militar na URSS em face das outras "democracias populares", a importância das resistências nacionais assim como o papel da religião na Russia e noutros lugares. Ou ainda os conflitos nacionais entre a URSS e a China. Temos a ver não com causas, leis ou estruturas, mas com alguma coisa como pacotes, "complexos" nos quais não se sabe jamais o que vai ser determinante.

*

O que é feito de minha posição? O senhor exerce a profissão de psicólogo. E sua interrogação sobre o sentido dessa profissão está motivada por certa urgência desse lado. Fora do fato de que eu não exerço mais nenhuma profissão, eu nunca fui profissionalmente "psicólogo" salvo (feliz) acidente ligado a uma "sinecura" durante o serviço militar. De onde viria uma eventual legitimidade? Mas, no fim das contas, alguém de fora de uma profissão tem o direito de se perguntar "para que serve" um analista, um professor, um médico, um deputado. Pode-se notar que a questão se coloca sobretudo para as profissões que passam em grande parte pela linguagem. Parece que no caso do bombeiro ou do dentista, certa evidência seja suficiente. Esse tipo de interrogação não é com certeza "científica" . Ela não tem pretensão "filosófica. Pode-se dizer que se trata do exercício da "reflexão" como "retorno a".

3.2 Algumas questões, em primeiro lugar, sobre "comunidade" e "diferença"

Fora da questão da existência problemática da dita "reflexão" e de seus limites, um primeiro ponto de partida, muito geral com certeza, poderia ser interrogar-se sobre a a relação de "comunidade" vs "diferença" entre cada um de nós e os outros, assim como entre si mesmo e o si mesmo na dita reflexão. Que haja algo de comum e entre nós e no mundo ao qual nos reportamos, está de alguma forma assegurado. Que esse comum possa ser percebido diferentemente (só possa ser percebido diferentemente), seja objeto de "valorizações", de "acentuações" diferentes é também evidente.

A partir daí, sabemos como temos acesso à diferença dos outros? Quer se trate de nosso interlocutores usuais, daqueles com quem temos diferenças de estatuto ou daqueles cujo modo de reação nos parece completamente estranho. Acrescentando em primeiro lugar que nossa relativa familiaridade com nós mesmos não significa evidentemente que seríamos claros para nós mesmos.

Por outro lado, não se deve pressupor que o objetivo é atingir uma "clareza cognitiva" absoluta. No fim das contas, sem representações explícitas, as criancinhas sabem se virar bem com os adultos muito diferentes delas. O objetivo não é eliminar todo elemento de inquietude, de surpresa ou de estranhamento. É especialmente reencontrar o duplo movimento no qual o estrangeiro assume lugar para nós e onde nós nos inquietamos sobre o que nos parecia "muito natural". É, portanto, em torno dos regimes da comunidade-alteridade que gostaríamos de nos interrogar aqui (sem, evidentemente, que isso deva desembocar numa "solução definitiva").

Sem que se possa, também não, eliminar, antes de começar, a contingência da posição do indivíduo que fala. Não podemos esclarecer "completamente" o que faz com que isso ou aquilo nos pareça evidente, digno de interesse, a ser descartado ou que nem pensemos em considerar. Sem que estejamos de posse de uma boa teoria, uma teoria "definitiva" da "heterogeneidade constitutiva do sujeito". Assim a figura que fornece Bakhtin (ou Freud, outro exemplo) não é certamente definitiva. Também não que estejamos seguros da oportunidade que haveria para utilizar a palavra "sujeito", que, como toda palavra, representante potencial de "noção(s)", remete, para além das definições que se poderia dar, a acentuações, conotações que não podem ser idênticas em qualquer comunidade que seja.

Assim como eu não disponho ("não dispomos"?) de um "bom método" de análise, de uma forma garantida de eliminar os oblíquos introduzidos por determinada "maneira de pensar" ou outra. Em todo caso, mesmo que não saibamos o que é "pensar", nem como é preciso "pensar", parece evidente que todo "pensamento" passa, ao menos em parte, por certo número de noções. Daí a questão seguinte, certamente, bem vasta.

3.2.1 Percurso em torno de algumas noções

E em primeiro lugar, uma palavra sobre as noções em si. Como distinguir as "boas" das "más"?

Fazer essa pergunta introduz cetamente ao menos uma dúvida. Não há boas noções por elas mesmas. Assim, não temos de pesquisar noções absolutamente simples. Ou princípios últimos que seriam o cerne de toda explicação: inventário das "pulsões" ou "sobrevida do mais adaptado" por exemplo. Estamos preferencialmente na situação de nos orientarmos na massa heterogênea do já-aí, o já-aí da vida na qual somos jogados como o já-aí dos discursos que circulam em torno de nós.

Por outro lado, há problemas que podem receber determinado esclarecimento ou outro, mas sobre os quais "não é razoável" pensar que se pode esclarecê-los definitivamente, menos ainda que se deva resolvê-los antes de levantar outras questões. O interlocutor potencial inquieto poderia me/se perguntar como eu sei tudo isso. Parece-me que, em primeiro lugar, para mim, como para os outros, as ideias "vêm" e que a sequência do curso do pensamento ou mais amplamente dos "fatos" contra os quais nos chocamos, as mantêm no lugar, as modifica ou nos conduzem a abandoná-las. Não há princípio primeiro, mas não há também demonstração, preferencialmente esclarecimentos recíprocos entre noções, entre noções e formas de sentir, entre noções e constatações ou narrativas.

Assim Descartes se esforça para "pensar sozinho" e negligencia, quer negligenciar, finge negligenciar (?) que pensa com palavras ou em todo caso que seu pensamento só se torna nosso pelas suas palavras. Mas inversamente, aquele que quisesse dizer "tudo é linguagem" ou "só há pensamento por meio dos signos" (o que diz ou tende a dizer Voloshinov, se eu compreendi bem) negligencia o que me parece um obstáculo importante. Evocou-se esse obstáculo um pouco acima. Não é pelo único recurso a outras formulações que podemos resolver tal questão: por que determinado discurso faz sentido, nos diz alguma coisa, interroga ou mostra alguma coisa e por que outro determinado discurso não nos diz nada (admitindo-se que não é a boa formulação, a fidelidade da norma gramatical que está aqui em causa, também não mais a única pertença a um mesmo "campo semântico"). Em todo caso, por oposição ao discurso que não nos diz nada, há também o discurso que "faz sentido" porque ele nos obriga a levar em conta aquilo a que não prestamos atenção espontaneamente, porque, em suma, ele nos ilumina ou, em todo caso, nos faz mudar de perspectiva.

A partir daí, apenas se dirá que algumas palavras que parecem bons representantes de noções não parecerão assim para meus interlocutores e reciprocamente. Alguns exemplos. Depois de Vigotsky, "fala-se" de psicologia funcional. Mas será que função é uma metáfora utilitária, significando mais ou menos "em vista do que existe"? ou apenas "como isso funciona"? Assim, se dirá que a função do pensamento consiste, por exemplo, entre outros, em articular o presente ou o ausente ou minha experiência e o discurso dos outros (é claro, pode-se tornar isso mais preciso), sem que, necessariamente, essa função se desenvolva para alguma coisa, com um objetivo. Então manter a palavra, ou substituí-la por esta, menos perigosa, talvez, funcionamento?

Da mesma forma, fala-se, sempre com inspiração vygotskiana, de desenvolvimento. Mas será que desenvolvimento significa, mais ou menos, "progresso regular ou por etapas", como, para dizer brevemente, na psicologia piagetiana? Ou se trata de um processo que comporta catástrofes, regressões, mudanças inexplicáveis? Mas então por que não falar preferencialmente de história?

Trata-se aí sobretudo da escolha de palavras. As coisas podem ser mais complicadas. Assim, a história da psicologia foi marcada por conflitos que visavam ao estabelecimento respectivo do exterior e do interior. Mas as palavras interior ou interioridade assim como seus correlativos são "boas palavras"? O sentido de um objeto, de uma ação, de uma palavra não é uma realidade física delimitada. É necessário então colocá-lo "no interior de nós"? Isso me pareceria não nos ajudar a "pensar bem". Que alguma coisa como uma "intenção" possa ser subjacente à unidade de uma ação ou de um discurso, certamente. Mas além do fato de que essa unidade pode ser rotineira ou cheia de modificações, quais as relações da "intenção" com a totalidade do ato, do organismo e do campo, totalidade que não é nem "interior" nem "exterior"? E, certamente, temos reações manifestas e por outro lado um discurso, maneiras de perceber, sentimentos que não manifestamos. Mas são interiores como o cérebro está dentro da caixa craniana. E será que isso tem consequências teóricas graves ou será que nós "sabemos bem" o que "interior" quer dizer e não mais "nos manifestamos"?

Um último exemplo. A gramática nos dá "pessoas". Mas me parece difícil isolar, mesmo que muitos o tenham feito, uma psicologia em 1a, 2a, ou 3a pessoa, tanto quanto em "nós". Assim, no caso da primeira pessoa, trata-se tanto do "meu" corpo quanto do "meu" passado ou dos "meus" amigos, que não são "meus" da mesma maneira. Quando eu me faço uma repreensão, será que eu me dirijo a um "tu"? Quando eu tento fazer um balanço do meu passado, trata-se de um "ele"? O recurso à primeira pessoa tem então um sentido unívoco? Além disso, as relações entre as pessoas são móveis: dizemos e compreendemos sem dificuldade: "eu estou passando mal, mas você está passando pior ainda", mesmo que a dor do outro não esteja presente como a nossa. As relações das "pessoas reais" são certamente menos simples do que as das "pessoas gramaticais". Mesmos que o fato de que possamos ser alternativamente "eu", "tu", "ele", "nós", "vocês", etc. "não seja sem consequências" e que em particular haja sempre tensão entre o que nos é dito como "tu"e o que fazemos como "eu" explícito ou no nosso "foro íntimo". Como não há sobreposição entre as pessoas gramaticais e o que se passa quando interpelamos alguém ou dizemos a nós mesmos: "cretino, você não faça mais isso". Se há "três pessoas', não se pode consderá-las independentemente das metáforas que condicionam seu uso em determinada situação ou em outra.

Poderia se dizer sobre as "instâncias" a mesma coisa que sobre as "pessoas". Essa pode ser uma maneira de apresentar a existência evidente de tensões em nós. Mas o que se faz quando se opõe o vilão demônio tentador e o bom anjo da guarda ou o mau isso ou o ainda mais malvado (mas de uma outra maneira) super-ego? As noções têm um valor explicativo ou é necessário contentar-se em descrever por exemplo o "jogo duplo" da criança que estica a mão em direção ao objeto e desvia seu olhar na direção do adulto esperando um olhar ou um discurso de aprovação ou desaprovação?

Mas essa única descrição sem palavras para designar as instâncias não elimina a questão das "forças" que procuramos determinar. Que haja mais ou menos boas palavras não significa que seria necessário tentar não mais ter noções em absoluto. Não tem de ser a favor ou contra a generalidade das noções. Eu escrevo "passividade", mas entre aquela do homem vencido que não reage e a da constatação de que nossas ideias surgem mais do que as fabricamos qual a relação? Há "trabalho da linguagem", mas seria necessário preferencialmente dizer "trabalho por ocasião da linguagem". Com o risco daquilo que se passa em toda invenção ou transmissão de noções. Assim, quando Freud propôs sucessivamente: "libido", "pulsões do eu", "instinto de morte". Um pouco como quando se diz que quando alguém resiste ao que deveria oprimi-lo há "resiliência" ou que quando se compreende o outro, há "empatia", o que parece bastante molieresco. Mesmo que em torno dessas palavras possa, eventualmente, se estabelecer uma elaboração. Nesse sentido, um pouco banalmente, uma noção não é nem boa nem má nela mesma. Mas porque ela permite ou não o trabalho. Mas, ao mesmo tempo, ela assegura também o prestígio do "sujeito que assumidamente sabe", o pertencimento ao grupo daqueles que sabem, têm o direito de manipular a nobre "língua estrangeira" evocada por Voloshinov. E cujos malefícios Marx e Lenine analisaram pouco. Porque, incidentemente, lhes parecia "normal" que o proletariado tivesse uma comissão de frente que falasse em seu nome, com todos os riscos desse monopólio da palavra que conta. Aqui não se trata de marxismo ou de psicanálise, mas de interrogação sobre o que nos ameaça a todos nós: conduzir-nos como detentores do saber assumido (psicológico entre outros).

Talvez seja necessário distinguir casos nos quais o sentido das palavras não "trabalha".

Vai-se ao dentista. Diz-se "estou com dor aqui". Porque não vale a pena precisar a intensidade da dor ou o medo subjacente de uma infecção súbita. O "sentido contextual" no sentido estreito em que o "contexto" é o equivalente a "situação atual" basta. Mas como fazemos sentido ou não quando dizemos "eu amo acima de tudo a liberdade" ou "ele desejava inconscientemente..."? Será apenas uma questão de contexto? Sem dúvida frequentemente. Mas é preciso especificar "contexto". Este que comporta também "atitude perante aquele que diz isso", maneira de querer compreendê-lo. Assim como o conjunto de nosso passado cultural ou de nossas "experiências". Nesse sentido, "contexto" se torna mais um problema do que uma solução: Sabemos como nos orientamos nesse "contexto"? Com palavras ou de outra forma?

O que me conduz a dizer ainda algumas palavras, talvez repetitivas, sobre Linguagem.

3.2.1.1 Linguagem?

Somos obrigados a passar do objeto admitido como simples língua ao objeto heterogêneo linguagem. As palavras e os modelos de frases nos são transmitidos. Não da mesma maneira, os discursos que fazem sentido e aqueles que não fazem. Felizmente, não há regras preexistentes da "boa fabricação das palavras" que se possa pronunciar, escrever, ou dizer numa dada situação por oposição às regras garantidas que regem a "boa formação dos enunciados corretos". Pode-se sem dúvida lembrar que, entre os dois, os caracteres dos "enunciados" semanticamente bem formados são pelo menos instáveis. A retomada por Jakobson do exemplo chomskyano "colorless green ideas sleep furiously" está aí para lembrar esse fato. Não é uma característica interna do enunciado que fará ou não com que ele tenha sentido, mas o trabalho de estabelecimento de diferentes campos que faz ou não o ouvinte. O que depende da sua disponibilidade e da articulação variável entre esse trabalho de sentido e a massa do "sentido disponível". O que se manifesta por exemplo na surpresa das crianças em relação ao que para nós é evidente. Como quando eles ouvem, dito pelos pais: "eu também, eu tive pais" ou "você também vai ter filhos", até "você também vai morrer". Não se resolverá aqui a questão das relações entre as condições de sentido que teriam a ver com o dicionário e aquelas que teriam a ver com a enciclopédia. É possível que a distinção só ocorra para aqueles que querem absolutamente isolar da totalidade da linguagem e do seu modo de funcionamento o que seria "propriamente linguístico".

Mas, ao mesmo tempo, estamos na impossibilidade de tratar o "problema da linguagem" em toda sua generalidade, respondendo globalmente à pergunta: "O que o homem faz com a linguagem?", o que implica "O que ele é capaz de fazer sem ela?", mas não saberia se formular: "O que é que o homem faz com a língua e apenas com a língua?" Há manejos diferentes da linguagem, maneiras diferentes de recorrer à linguagem, para mostrar, insinuar, sugerir. Mas pode-se, deve-se classificar esses "gêneros"? Certamente não apenas de acordo com as condições sociais de utilização. Em todo caso, a "linguagem" só adquire sentido em relação à não-linguagem "fora" dela. E a descrição completa dessa "parte mais secreta" seria uma tarefa infinita. Nisso, a linguagem é ao mesmo tempo o lugar do esclarecimento eventual e também o que causa problema.

No fim das contas, se se dá como Politzer a palavra de ordem de uma "psicologia concreta" ou, pior, de uma "ciência do homem concreto", salta à mente do leitor hostil ou apenas um pouco crítico que pronunciar a palavra "concreto" não nos dá nenhuma "realidade concreta", que ela é o cúmulo de uma abstração. Nossas palavras são fonte de risco:

- e no seu pesado passado,

- e nas nossas dificuldades para saber o que constituirá o bom uso,

- e na nossa incapacidade de determinar as maneiras como nossas palavras serão compreendidas, negligenciadas, consideradas absurdas ou incompreensíveis.

Tanto é que subsiste sempre o obstáculo da irredutibilidade da prática à teoria, mas também do concreto de tal objeto particular que escapa à generalidade de nossas palavras. Mas nem sempre da mesma maneira, em particular em função dos implícitos partilhados ou não pelos interlocutores. Mesmo que as palavras sejam menos difíceis de modelar do que as coisas.

Volto às duas noções de campo (ou de plano de fundo) e de estilo, já evocadas anteriormente, como lugares de encontro da linguagem e do exterior da linguagem.

3.2.1.2 "Pano de fundo", "contexto", "campo" e "valores"

O problema, logo de início: pode-se admitir que compreender o sentido de um ato ou de um discurso é, antes de tudo, recolocá-lo no seu campo, na nossa maneira de perceber o campo do outro ou, em todo caso, em "um campo". Mas é preciso acrescentar que, uma vez que se disse "campo", não se disse quase nada. Se "campo" há, não é um fundo homogêneo, preferencialmente, mas antes um mundo heterogêneo habitado de atual e de não-atual, de comum e de específico, com linhas de forças, o discurso, a ação ou o acontecimento reorganizando o campo em questão. A questão permanecendo para além de seu modo de presença, nem consciente no sentido da consciência explícita (aquela justamente do que se destaca no fundo) nem "inconsciente" no sentido de inibido: alguma coisa como "pré-consciente" ou relativa a uma forma de consciência latente? E depois, o campo em questão é plural, por exemplo o percebido comportando um horizonte de realizável ou de imutável, de reconhecido ou de estranho, de dizível sem ser efetivamente dito. Como quando o olhar da criança marca que o ato que ela está ameaçando fazer é proibido (ou momentaneamente tolerado) pelo adulto. Dito de outra forma, esse fundo é habitado de valores que ligam o ser vivo (não apenas o humano) ao mundo exterior: o que será tomado, comido, trazido à boca, aquilo do que se afasta, o que é esperado ou temido... o campo, o mundo ou o entorno (me parece que os termos são substituíveis) nos é em primeiro lugar dado com nossos próprios sistemas de avaliação. Mesmo que a ação comum ou o discurso nos conduzam a levar em conta os "valores" do outro (o que significa o passeio para mim e para meu cachorro? É ora próximo, ora disjunto). Assim como podemos estabelecer um "mesmo" Mundo comum à formiga, a nós "homens modernos" e ao "homem das cavernas". Mas isso é apenas um ponto de fuga ideal: de fato, é com o "nosso" mundo que temos a ver. Ou melhor, com nossos mundos. E, assim como o astrônomo vive num mundo no qual o sol gira em torno da terra, mesmo que ele pense num outro, o físico e o químico vivem da mesma maneira num mundo no qual o que se vê na vitrine de uma loja de comidas é tentador ou nojento ou... e não em um mundo de eletrodos ou de substâncias químicas. Mesmo que algumas vezes o discurso higienista à base de vitaminas, de colesterol, de lipídios, etc. possa retroagir sobre nossa forma "vivida" de perceber o alimentos. (Pela vulgarização e pela publicidade, "a ciência" se transformou em "ideologia do cotidiano")

Assim, esse pano de fundo é ao mesmo tempo relativamente partilhado por nós todos e mais ou menos específico de tal ou tal comunidade ou de cada um. Ele se manifesta diferentemente no espaço prático da tarefa a ser cumprida, naquele da conversação ou do discurso sobre o ausente. Assim como varia o que distingue o campo do possível, do impossível ou do improvável: isso diferentemente diante do peso, da morte, da obrigação de escolher, do fato de que cada um é substituível por um outro para realizar determinado trabalho mas não exatamente. E essa possibilidade ou impossibilidade de substituição se manifesta de forma diferente na vida sexual ou no apego terno.

Em todo caso, não há discurso que explicite perfeitamente e de uma vez por todas o campo subjacente a nossa ação ou a nossa sensação. Daí a possibilidade permanente do retorno comentado, da reinterpretação. Quer se trate de nosso retorno sobre nós mesmos (e/ou sobre nossa maneira de perceber os outros ou o mundo), quer se trate do comentário (eventualmente) surpreso dos outros sobre nós. E isso também no que diz respeito ao domínio da prática cotidiana de nossa relação com o distante da cultura ou de nossas lembranças. Não podemos dizer então que essa possibilidade permanente de retificação importa mais do que uma referência à possibilidade de uma eventual "verdade"? Temos ao mesmo tempo a experiência do que é a retificação de uma primeira percepção e da impossibilidade de dizer: "desta vez atingimos uma forma de verdade definitiva". Permanece, no meu entendimento, que é o aspecto necessariamente aberto do pano de fundo que dá conta, antes de tudo, da impossibilidade de fechar o domínio da interpretação. (Será uma verdade definitiva?) Mesmo que essa relação com o pano de fundo se combine com a relação sempre incerta entre o que fazemos ou sentimos e a maneira de dizer, como com a variação forçada do sentido de nossas palavras para um outro. Esse estatuto instável não impede que num dado momento uma interpretação limitada possa ser plenamente suficiente, mais especificamente, que uma interpretação reconhecida em seguida como errônea ou, pelo menos, parcial tenha podido permitir uma ação salvadora.

3.2.1.3 Retorno a "estilo" como maneira de manifestar de alguma forma nossa relação com o mundo e com nós mesmos

Além do conteúdo de um discurso, o resultado de uma ação, há maneiras de dizer ou de fazer que manifestam sem dúvida especificamente a maneira como aquele que fala ou age se posiciona no seu mundo. Assim, com respeito ao conteúdo traduzível de uma pensamento teórico, àquilo que o autor disse assim como ao resumo sempre possível de uma "história", é, me parece, o estilo, o jeito do texto que nos dá, ao menos em parte, ao mesmo tempo, o que constitui o interesse do texto, sua ligação conosco, mas também sua relação com o mundo. Não é isso que significa a passagem de Vygostski, evocada acima, sobre o contraste da forma e do referente? Só que Vygotski não se demora nas questões do estilo de leitura, no diálogo com o texto.

E, certamente, há um estilo do pensamento teórico, garantido, dedutivo, provocador, interrogativo... Mas não é sobretudo na sua maneira de contar o próprio vir a ser do seu pensamento que aparece o estilo próprio do autor? Pode-se pensar na narrativa que faz Descartes de sua história. Ou ainda, o que seria da Traumdeutung[17] 17 Referência a A Interpretação dos Sonhos, de S. Freud. sem a narrativa da "A injeção de Irma" e esclarecimentos por meio dos campos associativos que aparecem pouco ao pouco? Ou preferivelmente não poderíamos falar tanto em Descartes quanto em Freud de um diálogo entre a elaboração teórica e a narração, diálogo que nutre o diálogo com o leitor?

Um pouco da mesma maneira, a vida concreta efetiva daquele que tem de tomar partido, decidir-se, agir na vida corrente não se faz relativamente a "relações de classe" como tais, mas de determinada hierarquia na qual o subchefe pode ser pior que o chefe, na qual as relações de idade, de sexo, de nação, de cor de pele, de língua podem ser mais importantes que as relações de classe. Ou preferencialmente, na qual todas as relações se misturarão num complexo que pode ser – com mais ou menos sucesso – contado, evocado, mas não reduzido a uma teoria, o que se manifestará melhor em um romance do que num tratado de sociologia. Da mesma forma, eu não posso dizer absolutamente "eu penso", como se "eu" fosse causa simples de seus pensamentos nem tampouco como se se tratasse de uma máquina totalmente estrangeira "isso pensa em mim", mesmo que a surpresa diante do que surge possa justificar a expressão. Da mesma forma, não é uma liberdade abstrata que fez agir fulano ou beltrano, mas uma forma de ser quer seja ordinária, seu "estilo habitual", quer seja, ao contrário, irrupção de uma nova maneira de ser. Isso quer dizer que quanto a campo e estilo, é preciso acrescentar a especificidade do acontecimento.

3.2.1.4 "Concreto" e "acontecimento"

O que se encontra igualmente, claro, nas narrativas históricas. Eu me repito, mas em 1924 os dois proletariados alemães e franceses poderosos, organizados e hostis à "guerra capitalista" se lançaram massivamente na guerra fresca e alegre (mesmo que tenha havido alguns opositores). É preciso, portanto, que tenha havido outra coisa diferente da consciência de classe admitida como passível de unir os proletariados de todos os países. Assim como, inversamente, outra coisa, que não o nacionalismo ou a violência da disciplina, fez com que se multiplicassem rebeliões e fraternidades. Nos dois casos, pode haver uma compreensão geral da possibilidade do que aconteceu. O que não impede a necessidade da compreensão histórica concreta. Qual conjunto de condições corresponde, ao menos parcialmente, à questão: Por que tal fraternidade em tal lugar e não em outro? Sempre acontece que no nosso esforço para compreender o outro ou nós mesmos, não se trata de encontrar a boa teoria, mas de dialogar com a história de cada um ou de cada coletividade, os "complexos" de elementos distantes ou mais próximos que contribuem para esclarecer o estilo global do desenvolvimento.

3.2.1.5 Retorno ao "diálogo"

E, uma vez reconhecida a diversidade de estilos de pensamento, de ação ou de maneira de ser, será que a psicologia concreta de cada um, não apenas dos psicólogos, não consiste em dialogar com o estilo dos outros ou de si mesmo, num "trabalho do sentido" implícito ou explícito? O que reapresenta, incidentemente, a questão da clareza totalmente relativa que podemos ter do movimento de nosso próprio pensamento, nosso estilo ou a irrupção de modos de pensamento ou de agir que nos impressionam. Mas essa relação entre acontecimentos, estilos e campos não é justamente o que faz funcionar a literatura e mais especificamente o romance?

3.2.1.6 Literatura e "psicologia"

Pode-se voltar à especificidade do campo da literatura como diferente daquele da teoria ou da prática. Assim, lembre-se, Vygotski insistia na bizarrice dos comentadores que se interrogam sobre o que pensa verdadeiramente Hamlet ou sobre a duração efetiva durante a qual ele adia para o dia seguinte a obrigação de vingar seu pai. Há um espaço-tempo próprio à peça, assim como à novela que ele analisa. E é a distância entre a realidade da fábula e a força do movimento do texto que produz no espectador ou no leitor sentimentos ou prefencialmente a repercussão de uma maneira de perceber, diferente daquela que nos teria dado a "realidade em si mesma". Um pouco como, numa outra ordem de ideias, nós "sabemos bem" que a festa rabelaisiana não era na vida e no pensamento de Rabelais uma "destruição de valores reconhecidos". Estamos aí numa relação inversa àquela na qual se está quando se queixa – legitimamente – do quanto nossa linguagem é impotente para tornar a realidade vivida ela mesma. Mas a exotopia-criatividade do autor não é apenas poder na ficção. Essas "ficções" têm (ou "podem ter") para o leitor uma relação com a sua forma de perceber sua própria realidade e aquela dos seus outros. A irrealidade dos heróis, Olga, Hamlet e Gargantua irriga ou pode irrigar de alguma forma (toda a questão sendo certamente especificar o "de alguma forma") nossa relação com a "realidade" dos outros e de nós mesmos. De outra forma e sem dúvida melhor do que poderia fazê-lo um tratado de caracterologia ou um modelo da estrutura psíquica.

Vimos que, para Bakhtin, a obra de arte nos apresentava uma totalização que nem a ciência nem a moral enquanto tarefa infinita podem nos fornecer. Mas não há "natureza" determinada das obras de arte, literárias em particular. Justamente, é-se tomado na sua multiplicidade, na sua imprevisibilidade. E, em particular, Bakhtin lembra tudo o que não é totalização no romance. Mas também me parece que Bakhtin não parece levar muito em conta a diversidade das formas de receber, de sentir os textos. Em particular com a questão da não-simetria entre a relativa exotopia do autor e a do leitor, e também com a das modalidades específicas segundo as quais percebemos os horizontes de sentido dos outros.

Mas será que o romance (qualquer que seja a bizarrice desse genérico), quer se trate de Em busca do tempo perdido ou d'O Idiota, não manifesta o que haveria de absurdo na oposição entre uma sociologia que teria relação com o exterior e com o coletivo, uma psicologia que trataria do particular e do íntimo? "O" romance constitui justamente um dos lugares em que as relações entre o coletivo e o particular, o interior e o exterior, o dito e o não-dito se posicionam de acordo com estilos diferentes. Acrescentando que esses estilos desenham, indicam na diversidade dos subgêneros que constituem "o" estilo do romance, como Bakhtin precisou, a atmosfera, o campo que constituem o irredutível de determinado "mundo vivido".

O que não é dado "no" romance, mas no diálogo entre o romance e nossa leitura. Eu me pergunto se o duplo diálogo - diálogo no romance da heterogeneidade de seus componentes e diálogo entre o romance e nós - não pode esclarecer, um pouco, o problema do que é a compreensão do outro ou de si mesmo na "vida real". Quer se trate da "psicologia" de cada um ou daquela dos "psicólogos". Sem responder aqui à pergunta: por qual estranho mistério a "psicologia concreta" seria a propriedade privada dos "psicólogos profissionais"?

Mas como toda associação esta tem seus limites. No romance, pode-se dizer que o autor nos mastigou o trabalho. É sua exotopia soberana que decidiu o que poderia ou deveria ser levado em consideração. Mesmo que fique para o leitor a possibilidade de acentuar de determinada maneira ou de outra, de aproximar determinado elemento de outro, seja no romance mesmo, seja naquilo que ele nos faz pensar.

Parece-me que só se pode girar em torno dos aspectos desse diálogo, que não poderia ser efetivamente conceptualizado. Deixo de lado a questão de saber se se pode chamar "dialética" a consideração da heterogeneidade dos componentes desse diálogo. Cito aqui o que não é uma brincadeira, me parece, de Bakhtin, na Estética da criação verbal18 18 Apontamentos de 1970-1971. :

Diálogo e dialética: no diálogo, tiram-se suas vozes (separação das vozes), sua entonação (emotiva-personalizada), a palavra viva e a réplica, se extraem dele noções abstratas e raciocínios. Comprime-se o todo numa consciência abstrata e se obtém a dialética (p.368).

A crítica de Bakhtin me convém bastante, na medida em que me parece que a opacidade proveniente da heterogeneidade, tanto das significações corporais e das significações ditas, de nossas diferenças de perspectivas quanto da contingência do desenvolvimento temporal resiste e que não temos "truques" de pensamento, dialético ou não, para reduzi-la. Com uma dúvida: será que toda teoria não corre sempre o risco dessa triste abstração? Não seria necessário dizer então que a teoria só é "viva" para aquele que, justamente, a vive na sua relação com um conteúdo concreto? Seria então em virtude de um estilo próprio que tal psicologia estabeleceria ou não relação entre "o teórico" e "o atual", num "diálogo interno".

3.2.2 Um duplo retorno à "narratividade" e "retorno reflexivo"

No fim das contas, diante das coerções "pesadas" da vida real, o momento do retorno sobre si mesmo, da reflexão solitária, no qual se está ao mesmo tempo próximo e longe de si mesmo não seria análogo (não idêntico) ao espaço de ficção? Por outro lado, nesse momento da reflexão não nos tornamos por ela mesmo não diferentes de nós mesmos, mas um pouco diferentes de nós mesmos? Isso pode acontecer na solidão absoluta, a solidão relativa da leitura, mas também no espaço de suspensão no qual diferentes interlocutores se voltam juntos para uma narrativa, para um fato que resiste. Deixando aberta a questão da semelhança-diferença entre essas três situações de diálogo. Como entre diferentes estilos de diálogo.

3.2.3 Um parêntese: em que medida o "saber erudito" ajuda (ou não) a compreensão?

Uma última palavra sobre a leitura literária

Diante da existência de uma obra ou sobretudo de sua leitura, fica a questão do que trazem ou não para sua leitura os "saberes eruditos". Certamente, o trabalho histórico conduz sempre a encontrar as fontes, as origens, os parentescos. Além disso, para as obras, assim como na vida, é uma mediocridade constatar que cada um, pequeno ou grande, é tomado no espírito do tempo, ou encontra, mais ou menos, suas ideias nos outros, em todo caso, tem, retrospectivamente, predecessores. É sempre legítimo recolocar um autor na circulação dos discursos, ou as condições materiais da elaboração do texto. No fim das contas, cada um de nós sabe bem que o "pensamento" não sai armado do seu cérebro. Mas não é necessário partir dessa constatação: anacronismo ou não as narrativas mais distantes podem fazer sentido para nós, agir em nós numa primeira leitura, não "esclarecida pela ciência"? E, é claro, uma leitura (mais) erudita permite precisar as condições de vida dos "heróis" (reais ou fictícios, essa não é a questão) Édipo, Aquiles, Cristo, Don Juan, Marx ou Staline. Será que essa leitura erudita os tornará "mais vivos" ? Não há saber erudito que permita dizer em qual caso o saber erudito ajuda a leitura – ou a apreensão de um caso concreto (quer se trate de literatura ou da "vida real") e em qual caso ele a impede. Em todo caso, a questão da relação entre "o" narrativo e "a" teoria amplia ainda mais a questão do "dialogismo".

Poder-se-ia parar por aqui o texto para abrir o debate sobre o que pode ser uma "psicologia concreta". Eu acrescento, na desordem, algumas notas disjuntas, que me parecem, mas cabe ao leitor dizê-lo, esclarecer a questão.

4 Notas disjuntas

4.1 Tempo e temporalidades

A reflexão sobre as cronotopias introduz uma primeira consideração sobre a diversidade das "temporalidades" em relação à unidade irreversível do tempo que se escoa.

Poderiam se opor talvez dois aspectos da temporalidade, ambos distintos do tempo contínuo e irreversível. De um lado, a maneira como um indivíduo é temporal no seu estilo, sua aparência, o que o caracteriza, que faz com que o reconheçamos. De outro lado, a heterogeneidade temporal de cada um. Não se sabe por meio do que se deve começar nessa heterogeneidade. Há a heterogeneidade temporal de acordo com os momentos sociais da vida, os tipos de atividade (acordado ou dormindo, para começar).

Mas poder-se-ia perguntar sobre o misto do presente e do ausente, com o contraste da memória não explícita no reconhecimento dos objetos, do mundo, dos parceiros ou da memória sob forma de lembranças; assim como as modalidades diversas de presença do futuro, do possível, do impossível. Ou ainda o contraste entre a duração da espera e o choque da irrupção do real diferente. Ou ainda o entusiasmo durante a ação e o retorno reflexivo: "eu fui uma besta". Ou ainda as relações opostas do mundo "interior" e da prática. Quando o mundo interior continua subjacente à prática ("Você está sempre no mundo da lua" como se diz à criança distraída). Seja ao contrário, o acontecimento que é a irrupção: "Mas o que você está fazendo aqui?".

Incidentemente, é claro, quer se fale de acontecimento ou de drama, não se trata de privilegiar como mais importante (mais digno de ser contado, é outra coisa) o que surge do que o que fica. (Com o perigo de certo tipo de sociologia ou de história séria que decide polemicamente, desdenhando o "anedótico" de privilegiar a grande duração em relação ao que surge.)

Tudo isso considerado na grande temporalidade da história individual tomada ela própria na maior temporalidade da histórica coletiva. E as diferentes perspectivas se recortam sem poder verdadeiramente se religar. Assim como se encontrarão analogias que permitem, em certa medida (qual exatamente?), reencontrar o "(um pouco) parecido" no curso de histórias diferentes.

4.2.Uma anedota

Tive muitos estudantes tunisianos e recebo pela internet um jornal tunisiano que se chama, parece que sem gozação, Leaders. No dia 15 de janeiro de 2012, eu vejo este título: "Os antigos diplomatas tunisianos: A Tunísia deve se exprimir numa só voz e sua diplomacia ser implementada por profissionais". Há o aspecto inegavelmente cômico ou de chorar, é sem dúvida a mesma coisa, o retorno daqueles que se calaram momentaneamente. Há também incidentemente, a questão do genérico jornalístico: pode se tratar da classe exaustiva de todos os antigos diplomatas tunisianos. É um pouco como quando se diz depois de um voto: "Os franceses decidiram que ..." ou "A França decidiu que..." sabemos bem que não é um verdadeiro conjunto. Deve-se contentar aqui com o mecanismo linguístico usual de adaptação do sentido das palavras umas às outras? Ou retomar o fato de que esse "coletivo" tem, no entanto, uma realidade através da instituição. Ou ainda lembrar que o discurso genérico é apenas um momento de um discurso (ou de uma prática)? E o discurso pode estabelecer, em seguida, por exemplo: "Mas o nível das abstenções está cada vez mais elevado". E não se trata tanto de verdade ou de erro do que do nível de aproximação que parece suficiente ou não a tal receptor.

Em todo caso, ler esse título foi para mim um acontecimento, um choque. E, ao mesmo tempo, eu o ressituo num plano teórico, aquele que me parece no centro da Crítica da razão dialética de Sartre: uma vez que houve o desencadeador, em seguida, a efervescência coletiva da "multidão em fusão" ou do movimento coletivo, há o retorno da "serialidade" ou da antiga ordem das coisas: aquelas dos funcionários czaristas que não tinham imigrado se tornaram a coluna dorsal do poder soviético ou, em todo caso, contribuíram para sua instalação, como os revolucionários se tornaram burocratas. Aqui de novo com a necessidade do trabalho dos historiadores: Como se constituiu a nova classe dominante? O que, incidentemente, supõe também a modificação do conceito de "classe", uma vez que a nova classe dirigente soviética não era classe no sentido em que os detentores dos meios de produção formavam "classe". Não há aí um destino comum das noções: dever se modificar cada vez que elas se aplicam? Parece-me aqui que se poderia introduzir um paralelo entre a história individual e a história global. Com o contraste entre a irrupção do novo e o retorno à ordem, mesmo que não seja de maneira totalmente idêntica. Haveria aí uma espécie de esquema histórico, reatualizado a cada vez de maneiras diferentes. Assim como cada um de nós tem, sem dúvida, uma espécie de caráter estável, de "estilo recorrente" que pode passar para segundo plano no momento do acontecimento, encontro ou catástrofe e reaparecer (um pouco modificado?) em seguida. O perigo do "diagnóstico" residindo evidentemente em se contentar com essa generalidade recorrente negligenciando a especificidade e, em particular, as evoluções insensíveis. Sem falar da violência que pode constituir o julgamento trazido pelo especialista.

4.3 "Dialogismo", heterogeneidade do "sujeito" e "duplo envelopamento"

Nossa heterogeneidade, cruzando-se com a heterogeneidade dos pontos de vista, traz uma multitude de projetos, de perspectivas, que, no meu entendimento, só podem remeter a um cruzamento de disciplinas já constituídas. Será que as modalidades da solidão fazem parte da psicologia, da sociologia ou de...? Em todo caso, não podemos nunca decidir sobre o que é preferencialmente específico e o que é preferencialmente mais ou menos partilhado. Está-se sobretudo do lado das semelhanças, dos ares de família.

Não seria possível partir aqui das observações de Voloshinov sobre a psicanálise? Mas mais do que supor com ele um determinismo unilateral segundo o qual nossas relações atuais com o outro (analista ou também igualmente "interlocutor usual") seriam a verdade do presumido "aparelho psíquico", não seria necessário falar de "duplo envelopamento"? Seria a relação com o analista, ou em geral com os outros, que dá forma envelopante às relações subjacentes entre nossos sentidos-forças íntimos e nossas tentativas para nos dizê-los, sentidos-forças dos quais não se sabe qual representação vamos nos dar. O que não impede que, em nossas trocas, analíticas ou outras, possa se desenvolver uma forma de "outra consciência", eventualmente terapêutica (é uma outra questão, que nos conduz em direção a um segundo polo, o da historicidade). Mas não há "duplo envelopamento" na medida em que é em função de nosso modo de percepção, da relação que temos com esse quadro objetivo, que ele pode agir sobre nós?

Mas essa maneira de viver a situação é, em si, difícil de circunscrever. Poderia se falar de diálogo em nós entre o que surge espontaneamente e o que pode ser reflexão. Ou ainda do diálogo nunca interrompido entre corpo e dizer ou entre o que vivemos, nossas "ficções favoritas" e a teoria pessoal que nos fazemos, mais ou menos elaborada, de tudo isso.

Parece-me, em todo caso, que é em função do entrecruzamento desses diálogos que se pode dizer que se está em situação de interpretação.

Se "dialogismo" tem um sentido, é sobretudo porque o que me parece evidente pode ser posto em dúvida, que "a razão" é processo de correção, não poderia ser possuída. Assim como não podemos fixar absolutamente aquilo em que a ciência é "ideológica", ou se se quiser "impura", por exemplo, na escolha daquilo pelo que ela se interessa e o que ela negligencia.

É assim que cada noção pode sempre ser reinterrogada. E em primeiro lugar dialogismo, palavra grande demais. Certamente, o sentido da palavra está claro na recusa de um pensamento de que a língua existe sozinha, ou de que a palavra exista no falante ou autor isolado. Além disso, há massivamente o diálogo entre o que é dito e o não-dito, e o diálogo externo entre dois ou vários interlocutores, com todas as suas variedades, o diálogo com autores ausentes, com os mortos que nós conhecemos também, as modalidades de diálogo com nós mesmos, a relação entre as formas como nossas palavras, nossos atos e nossas maneiras de ser são recebidas e como nós imaginamos essa recepção, tudo isso comporta sem dúvida analogias, correspondências, mas não é pura e simplesmente "dialogismo". Ou ainda, como seria irracional supor que os homens são razoáveis por natureza, pode-se evocar um "dialogismo da razão": aquilo que faz com que, algumas vezes, quando tudo vai bem, a razão surja entre nós...Mas não há um super-sujeito para dizer que está bem aí a racionalidade.

Quando eu tiver chegado a um número ímpar e primeiro de "figuras do diálogo"(7 ou 11?), eu ficarei contente. Mas outros pensam com certeza que é mais racional pesquisar a unidade de um conceito...

Permanece, me parece - isso foi evocado mais acima, que, se alguma coisa que se pode chamar de "dialogismo" pode fazer sentido, é porque há sempre um equilíbrio instável entre comunidade (sem nenhuma comunidade, não haveria diálogo possível) e heterogeneidade (não se pode dialogar se todos repetem a mesma coisa). Assim como é necessário que, de alguma forma, o outro seja constitutivo de nós, mas sem que se possa dar disso um modelo abstrato antes das figuras concretas que isso pode assumir. Certamente, de fato, existem "diálogos de surdos" e diálogos de consenso excessivo, autocelebração do grupo, mas "todos" têm razões para não chamar isso de "diálogo"... O que ilustraria por sinal que há um curioso diálogo ente "a ideia que fazemos de um 'verdadeiro diálogo'" e a realidade empírica dos diálogos encontrados...

4.4 Retorno a "narrações" e "noções"

4.4.1 Acontecimento e modo de repercussão, uma lembrança

Mesmo que a narração "reorganize" sem dúvida mais ou menos o que foi vivido, ela pode permanecer manifestação do acontecimento como o que se impõe, mesmo que não saibamos bem como pensá-lo. Assim eu me lembro – é possível que a memória arranje as coisas – de ter ido comungar (eu estava numa escola religiosa) sem ter feito minha primeira comunhão, para seguir uma colega de longos cabelos loiros que eu admirava muito e fiquei muito surpreso com o fato de que a hóstia não me tenha feito nenhum efeito. É essa surpresa que me toca. Certamente, a espera de um efeito "real" era ingênua. Mas eu imagino que cada um pode trazer lembranças, por exemplo, de surpresa diante da experiência de nada sentir por ocasião de um luto ou ser atravessado por ideias parasitas que "não têm nada a ver" durante uma cerimônia. Ou, ao contrário, cada um se lembra, sem dúvida, de ter sido submergido pela irrupção de uma imagem ou de uma "ideia". No lugar de hipostasiar o "afetivo", poder-se-ia se perguntar "quais são as condições nas quais comungar 'faz alguma coisa'?" Mas sobretudo, me parece que há nessas lembranças contadas um aspecto irredutível ao único desenvolvimento de noções como aquela de "revelação". Não se poderia então falar de "diálogo" entre experiências (ou "lembranças de experiências") e noções?

4.4.2 Contar o mito e modificá-lo

Tomo aqui o exemplo de um filme que eu vi recentemente na televisão: o filme grego Strella (Panos, H Koutras, 2009) que manifesta, me parece, o que pode ser a "retomada-modificação narrativa" do que é, por outro lado, um mito-conceito: o proibido do incesto. Vemos o mundo do ponto de vista de um homem de uns cinquenta anos que sai da prisão, anda mais ou menos ao acaso, se instala num hotel medíocre, e começa a procura por um filho de quem ele não tem mais notícias. No corredor desse hotel, ele é interpelado da porta de um quarto vizinho por uma mulher cujo aspecto manifesta se tratar mais de uma transsexual. Se verá em seguida que ela é uma cantora que aumenta um pouco sua renda com a prostituição. Eles fazem amor (a transsexual revelando que está em curso de transformação, aliando seios artificiais abundantes e um sexo de homem, pode-se dizer, residual). O filme se torna então expressamente diálogo ente os pontos de vista alternados de um e do outro. Pouco a pouco apaixonados um pelo outro, até que se descobre que o filho que ele procura não é outro senão "ela". Eu pulo os acontecimentos. Em todo caso, não apenas há atos sexuais contrários à "lei". Mas também ele/ela confessa que, justamente para reencontrar seu pai, ela o seguiu na sua saída da prisão. Ela só queria entrar em contato com ele. Mas a sexualidade fez seu trabalho. Além disso, a exotopia do autor, se podemos dizer, conduz a uma conclusão inesperada: uma festa de família com a presença de algumas amigas e amigos felizes de estar juntos em torno do casal reconciliado do pai e de seu filho ou sua filha.

Fora a "performance" notável dos dois atores principais, tudo isso poderia ser o puro objeto de uma teoria da possibilidade da felicidade apesar do erro. Ou, ainda, como no mito original, a "fábula" de Édipo ilustrar o erro como cometido na ignirância, em seguida, a revelação. Mas há aí três formas diferentes de diálogo (quer se reúna sob o nome de "dialogismo" ou não, pouco importa): a relação do autor com a tradição do mito trágico grego que ele retoma-modifica, a verdade dos pontos de vista do "drama" pelas perspectivas tomadas alternativamente pelos dois heróis e também as diferentes maneiras como uma determinada narrativa (ou determinada imagem ou determinado acontecimento ou palavra) ressoam em nós. Com, justamente, para voltar ao primeiro Bakhtin, a irretudibilidade dos tipos de existência. Na vida moral efetiva, se trataria de um problema sem dúvida dramático. Do ponto de vista da "ciência sociológica", poderia se falar da evocação de um subconjunto de sociedade: a comunidade dos transsexuais que fazem "as loucas" no maior bom humor. Aqui, há, contrariamente à tradição dramática, a transformação inesperada em final feliz, no "bom humor" envelopante da obra, que pode mostrar, dar a pensar dentro da ficção sem se preocupar com o verossímil. Ao mesmo tempo em que se joga com a imagem da fatalidade para transgredi-la alegremente.

Mas sobretudo, essa obra "marginal" manifesta para mim o quanto o mundo cultural, e em particular o da ficção, é constitucionalmente tecido de uma heterogeneidade, de alguma forma multiplicada em relação àquela da realidade no sentido estrito.

4.5 Considerações múltiplas sobre a narração e a heterogeneidade

Assim, pode-se perguntar se a elaboraçãoo cultural, aquela das obras, mas também aquela de nossa vida desperta não obedecem a uma lógica homóloga àquela que Freud propôs para os sonhos. Não a dicotomia violenta conteúdo manifesto de que fala o sonhador, conteúdo latente que elabora o analista. Mas assim como há do sonho restos diurnos, há na vida desperta acontecimentos, encontros dos homens, das mulheres, etc. E cada uma dessas realidades encontradas é imediatamente reelaborada por nossas maneiras de perceber, nossas expectativas, nossas recusas, tudo o que vem de uma coisa que não seja a realidade mesmo encontrada. Em suma, um complexo heterogêneo de preocupação, hábitos, razões de se aproximar ou de se distanciar, assim como se pode ver uma mesma paisagem diferentemente conforme o ponto no qual se encontra. Não estamos em sobrovoo em relação a nossas variações de "ponto de vista". Nós somos tomados nele. Ou ainda, não há "ponto de vista" sem "movimento", rápido ou lento, do qual podemos mais ou menos tomar consciência. Acrescentando que tanto para o "ponto de vista" como para o "movimento" nós os percebemos melhor pelos objetos, as pessoas, as situações às quais nos reportamos do que por um exame de nossa maneira propriamente de ver.

Poder-se-ia lembrar a esse respeito que nossa maneira de pensar, de reagir, se caracteriza sem dúvida pelo fato de que as diferentes dimensões, aquela do fazer, aquela do sentir, aquela do dizer podem ou não estar em acordo ou em conflito, mas jamais serem idênticas. Parece-me que se reencontra aqui alguma coisa que parece com o que apresentava Bakhtin, só que a ênfase se encontra mais sobre o jogo perpétuo entre essas maneiras de ser. Isso na relação com outras heterogeneidades fundamentais, e em primeiro lugar, aquela do presente e dos diferentes tipos de ausência. Assim como a heterogeneidade própria a um sujeito se multiplica de alguma forma com outras fontes de heterogeneidade: aquela dos grupos constrastados aos quais pertencemos ou nos opomos, aquela dos momentos da vida, aquela das sociedades distintas no espaço e no tempo. E se poderia de alguma forma multiplicar essa heterogeneidade por aquela que se manifesta sem cessar nas modalidades de nossas formas de apreender essa complexidade de outrem (ou de um grupo de outros).

Ao mesmo tempo "a vida não é necessariamente complicada" qualquer que seja a heterogeneidade, não é necessário que compreendamos perfeitamente o sentido de um gesto, de uma palavra ou de uma ação do outro para saber reagir (relativamente) adequadamente. E nos acontece de nos "comportarmos simplesmente"(!). No fim das contas (eu já evoquei), a criança pequena não conhece o que faz com que seus pais se comportem de determinada maneira ou de outra. No entanto, ela é precocemente capaz de, e mais frequentemente, distinguir quando uma ameaça é feita de verdade ou para fazer rir ou até onde ela pode ir longe demais na provocação. Há aí um saber-ser que tem pouca relação com um saber explícito. Assim como não sabemos o que é "compreender perfeitamente" e que não temos necessidade disso, não sabemos o que é explicar completamente (e não temos necessidade também). Certamente, um saber mais ou menos erudito pode integrar-se a nosso "mundo vivido". Em determinado momento nós nos perguntamos se um tremor conduz ao cansaço, à emoção, um excesso de café, uma perturbação psicológica nascente. Podemos eventualmente ir consultar um neurologista. E essas explicações banais ou eruditas não são suficientes para dar conta da maneira como vivemos esse tremor na ansiedade, negligenciando-o ou... Não podemos, em todo caso, separar absolutamente um nível homogêneo da experiência vivida distinto daquele da ciência-técnica (como o ilustra o papel da investigação médica ou das mudanças das mídias na nossa vida mais corrente). Assim como o "mundo interior" do sentido não está necessariamente separado de nossas maneiras de ser ou de agir no "mundo comum". Ou como determinado discurso religioso, político ou científico, assim como as palavras de amor, de prescrição, ou de desprezo que recebemos ou recebemos misturadas, o objeto heterogêneo que se vai talvez chamar, na esteira de Voloshinov, "ideologia do cotidiano".

Além disso, tudo isso acontece no tempo e na variação/permanência. Desse ponto de vista, o discurso do indivíduo e sobre o indivíduo só pode ser narrativo. Mesmo que seja evidente que o esforço de Politzer tenha ficado programático, sua tentativa de distinguir a narrativa do drama individual do recurso à ciência legal intemporal continua legítima a meus olhos. Mas ao mesmo tempo as situações se repetem parcialmente. Daí o conflito: quer isolemos generalidades e façamos delas forças agentes, quer corramos o perigo de só considerar a especificidade de determinada vida ou de determinada história. A questão seria talvez de se perguntar em que medida as noções ajudam ou não a apreender o sentido de uma história ou conduzem a lhe fazer violência. Mas isso depende sem dúvida de nosso modo de compreensão. Alguns "gostam bastante" de apoiar-se em noções, outros preferem contar...

4.6 O que dizer então sobre psicologia(s)?

Parece-me que não seria razoável querer encontrar uma resposta unificada. Há forçosamente tensão-distância-conflito (mais uma vez prefiro evitar o termo lógico demais e também com um passado pesado demais de "contradição") entre o que se esforça para ser ciência, o que é prática da relação com o outro, esclarecimento narrativo da vida de alguém que se conta ele próprio. Parece-me que se pode evitar o fantasma do Admirável Mundo Novo, aquele do momento em que tudo poderia ser resolvido por uma ciência prática da boa gestão. Com, ao contrário, tudo o que só se pode esclarecer de um modo que poderíamos chamar "literário" ou quase literário: a entrevista com o outro ou consigo mesmo a partir da narrativa de si mesmo (a confissão) ou a narração de um outro.

Em todo caso, um aspecto das "ciências humanas" parece ser que aquele que escreve (pensa?) está sempre implicado naquilo que ele escreve, quaisquer que sejam seus esforços meritórios em direção à objetividade, se se quer a descentração.

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

Apresento aqui algumas indicações bibliográficas "diretas" e "indiretas". As indicações de leitura diretamente ligadas aos temas abordados não me parecem apresentar problema (salvo pelas suas lacunas, em particular a sua limitação quase absoluta à "francografia"). A outra parte é totalmente parcial, diz respeito apenas a encontros de pude fazer, fatos aleatórios de minha cultura.

Indicações diretas

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INDICAÇÕES INDIRETAS.

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Elias, N. Au­delà de Freud, sociologie, psychologie, psychanalyse. Postface de Bernard Lahire. Paris: La découverte, 2010.

Guilhaumou, J. et Schepens P. (Dir.). Matériaux philosophiques pour l'analyse du discours. Besançon: PUFC/Presses Universitaires de Franche-Comté, 2011.

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Scheler M. Le formalisme en éthique et l'éthique matériale des valeurs. Paris: Gallimard, 1955. [1916]

Simmel G. Le conflit. Paris: Circé, 1992.

Recebido em 12/09/2012

Aprovado em 06/05/2014

Traduzido por Ana Lúcia Tinoco Cabral – altinococabral@gmail.com

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  • Vygotski, L. S. Psychologie de l'art Trad. Françoise Sève. Paris: La dispute, 2005.
  • _______ Leçons de psychologie. Trad.Olga Anokhina et al. Paris: La dispute, 2011. [1932]
  • Bazin, J. Des clous dans la Joconde, l'anthropologie autrement Toulouse: Anacharsis, 2008.
  • Blumenberg, H. Description de l'homme Paris: Cerf, 2011. [2006]
  • Elias, N. Audelà de Freud, sociologie, psychologie, psychanalyse. Postface de Bernard Lahire. Paris: La découverte, 2010.
  • Guilhaumou, J. et Schepens P. (Dir.). Matériaux philosophiques pour l'analyse du discours. Besançon: PUFC/Presses Universitaires de Franche-Comté, 2011.
  • Jauss, H. R. Pour une esthétique de la réception Paris: Gallimard 1978.
  • _______ Pour une herméneutique littéraire. Paris: Gallimard, 1988,
  • Lefebvre, H. La vie quotidienne dans le monde moderne. Paris: Gallimard, 1968.
  • Politzer G. Critique des fondements de la Psychologie Paris: P.U.F. 1968. [1928]
  • _______ Ecrits 2 Les fondements de la psychologie. Paris: Editions sociales, 1969.
  • Sartre J. P. Critique de la raison dialectique. Paris: Gallimard, 1960.
  • Scheler M. Le formalisme en éthique et l'éthique matériale des valeurs. Paris: Gallimard, 1955. [1916]
  • Simmel G. Le conflit Paris: Circé, 1992.
  • 1
    No Brasil: BRONCKART, J-P.; BOTA, C.
    Bakhtin desmascarado: história de um mentiroso, de uma fraude, de um delírio coletivo. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Parábola, 2012.
  • 2
    Também presente neste número especial de Bakhtiniana.
  • 3
    N.T.: Traduzimos o pronome pessoal indefinido
    on por "nós todos", incluindo o pronome indefinido em português nas diversas ocorrências da expressão
    je-on-nous ou
    je-nous-on. O
    on corresponderia também, talvez até de forma mais exata, à expressão "a gente", indeterminada e mais coloquial; ou ao pronome pessoal oblíquo "se" utilizado como índice de indeterminação do sujeito. Este último, porém, não ocupa a função gramatical sujeito no português; no francês,
    on sempre ocupa a função sujeito, assim como pode ocorrer com "nós todos" ou "a gente".
  • 4
    Na versão em português: Voloshínov, V. (Bakhtin, M. M.). Apêndice. A palavra na vida e na poesia. Introdução aos problemas da poética sociológica. In: Bakhtin, M. M.
    Palavra própria e palavra outra na sintaxe da enunciação. Org. V. Miotello. São Carlos: Pedro & João Editores, 2011.
  • 5
    Na tradução brasileira: BAKHTIN, M. (V. N. VOLOSHÍNOV).
    Marxismo e a filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 1979.
  • 6
    A primeira tradução francesa do russo foi realizada por Marina Yaguello, em 1977 (Les Éditions Minuit); a segunda, bilíngue, foi feita por Patrick Sériot e Inna Tylkowski, e apareceu em janeiro de 2010 (Éditions Lambert-Lucas).
  • 7
    Em sua tradução, Sériot e Tylkovski decidiram escrever
    Palavra com maiúscula para lembrar que essa palavra traduz o russo
    slovo, muito polissêmico, que significa não apenas "palavra", mas também "fala", "discurso" e "linguagem", conforme o contexto.
  • 8
    Na tradução brasileira: Língua, fala e enunciação.
  • 9
    Em português:
    O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Trad. E. V. Américo e S. C. Grillo. São Paulo: Contexto, 2012.
  • 10
    Nos outros domínios pode haver uma finalização composicional, não temática [F.F.]
  • 11
    Em português: BAKHTIN, M. M.
    Para uma filosofia do ato responsável. Trad aos cuidados de V. Miotello e C. A. Faraco. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.
  • 12
    Marx é então muito menos lido e discutido na Rússia que os marxistas russos, Lenin, Plékhanov e Boukahrin, apenas para citar os principais. (v. Inna Tylkoski,
    Voloshinov em contexto).
  • 13
    (
    sic) São sujeitos de "morrem" os dois sintagmas "aquele que me é próximo" e "toda a humanidade histórica".
  • 14
    Na versão em português: BAKHTIN, M.
    Questões de literatura e de estética. A teoria do romance, traduzida por Aurora F. Bernadini et al., UNESP/HUCITEC, 1975.
  • 15
    Na versão em português, O discurso no romance.
  • 16
    Monge, mentor espiritual e chefe de religiosos ou de outros monges. Significa ainda ancião (N. do T.).
  • 17
    Referência a
    A Interpretação dos Sonhos, de S. Freud.
  • 18
    Apontamentos de 1970-1971.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Jul 2014
    • Data do Fascículo
      Jul 2014
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