Welcome to the melting pot that never quite melts
Where the politicians prosper while we tighten our belts
And they talk an awful lot about brotherly love
But when the nitty meets the gritty it's brotherly shove
Jon Hendricks1
Dialogismo
Apesar da presença constante do termo dialogismo em trabalhos teóricos bakhtinianos nos últimos anos, seria equivocado atribuir sua formulação a Bakhtin. Efetivamente, Bakhtin aparentemente não fez uso desse termo em nenhuma de suas obras conhecidas. (HOLQUIST, 1990, p.15). Entretanto, ele escreveu extensivamente sobre o diálogo entre enunciações e discursos, e mesmo que focalizassem a literatura escrita, sua teoria do diálogo frequentemente sugere aplicabilidade a outros campos. De acordo com Robert Stam, a liberdade fundamental que Bakhtin atribui a essas operações sugere um uso flexível de suas teorias. É essa liberdade que nos permite enunciar, por exemplo, um termo como "dialogismo bakhtiniano" a fim de abordar o escopo das relações dialógicas descritas por Bakhtin. (1989, p.187-218)
Michael Holquist vai mais longe ao incluir o diálogo dentro do campo do dialogismo; ele afirma que "o que dá ao diálogo seu lugar central no dialogismo é precisamente o tipo de relação que as conversações manifestam," (1990, p.40)2 destacando, assim, a dimensão interfacial do dialogismo. Para Bakhtin, todos os discursos estão em permanente interação, uma interação que pode ser vista como uma rede contagiosa de diálogos. Referindo-se ao dialogismo no contexto de uma cultura, Robert Stam afirma que o mesmo
se relaciona, no sentido mais amplo, às possibilidades infinitas e abertas geradas por todas as práticas discursivas ... (É) a matrix das enunciações comunicativas que "atingem" o texto não apenas através de citações reconhecíveis, como também através de um processo sutil de disseminação (1989, p.190)3.
Stam nos lembra ainda que
diálogo e monólogo (não podem) ser vistos como se estivessem em oposição absoluta, já que um monólogo também pode ser dialógico, pois toda enunciação, mesmo a mais solitária, tem seus 'outros' e existe contra o pano de fundo de outras enunciações. (1989, p.189)4
Caberia portanto ao/à leitor/a (espectador, crítico potencial), equipado de seu repertório decodificador, detectar essa rede. Nesse sentido, um texto não é jamais um simples texto, mas antes um momento de um sistema de discursos em interação.
Holquist nota que as relações dialógicas são moldadas pelas "condições que devem ser enfrentadas toda vez que uma troca tem efeito" (1990, p.40)5. Essas relações não são, por isso, necessariamente igualitárias como o termo dialogismo poderia sugerir à primeira vista - elas são definidas por relações de poder. Essa questão - que se refere às relações políticas que ocorrem entre os discursos - será crucial para o entendimento de sincretismo como forma de dialogismo, que tentarei desenvolver em seguida.
Numa rede dialógica, as possibilidades de posicionamentos políticos dos elementos em interação dependerá das possibilidades de sua articulação. A articulação é uma prática que expõe e liga um conjunto de elementos (que podem ser enunciações ou discursos, por exemplo), cujas identidades historicamente mutáveis são transformadas no processo de sua articulação. Esses discursos não são, portanto, vistos como instâncias fechadas e delimitadas; sua abertura é essencial para o processo de articulação. As articulações podem ocorrer não apenas entre signos e discursos como também entre linhas de pensamento, posições políticas e tendências culturais. Esta visão da abertura de signos e discursos se aproxima das teorias de Bakhtin a respeito do poder transformador do diálogo. Ao tratar das práticas culturais, Dick Hebdige descreve articulação como
uma relação continuamente mutável e mediada entre grupos e classes, um campo e um conjunto estruturados de relações vividas nas quais formações ideológicas complexas compostas de elementos de origens diversas são ativamente combinadas, desmontadas, remontadas (bricolaged), para que novas alianças politicamente eficazes possam ser asseguradas entre diferentes grupos fracionados, que não podem mais voltar ao estado de classes homogêneas e estáticas (1988, p.205)6.
Desse modo, as articulações podem ser vistas como relações de possibilidades, que não são conformadas por regras a priori. A ocorrência de articulações dependerá, portanto, do contexto político que as torna possíveis. Stuart Hall destaca ainda que
(uma) articulação é [...] a forma de conexão que pode criar a unidade de dois elementos diferentes sob certas condições. É uma ligação (linkage) que não é necessária, determinada, absoluta e essencial todo o tempo. Você deve perguntar: sob quais circunstâncias uma conexão pode ser feita ou construída? Assim, a chamada "unidade" do discurso é na realidade a articulação de elementos diferentes e distintos, os quais podem ser articulados de modos diferentes pois não têm necessariamente um pertencimento (apudGROSSBERG, 1986, p.53)7.
Diálogos podem assim ser considerados relações (articulatórias) que ocorrem entre diferentes enunciações ou discursos. Aquilo que é atribuído às conversações, no texto de Michael Holquist citado acima, pode ser estendido a outros tipos de interação. Bakhtin demonstrou diversas vezes como os diálogos se organizam no romance - fossem verbalizados por personagens ou não. Não é difícil, entretanto, estendermos essas ideias a outras formas de expressão, como os meios audiovisuais8.
Mesmo que esse mundo dialógico seja à primeira vista tão profuso de possibilidades, estratégias contingentes de interpretação, como notei antes, pode determinar as direções de uma abordagem dialogística. Essas direções não estão implícitas na natureza essencial do diálogo - elas são um produto da leitura desse diálogo. Nesse sentido, a dialógica parece diferir radicalmente da dialética, apesar de suas aparentes similaridades.
A dialética hegeliana, que pressupõe um choque dos contrários para que uma terceira "unidade maior" venha a ser (re)produzida, implica a oposição das partes em confronto. Essas partes são ou fadadas a desaparecer, ou ser irrevogavelmente transformadas para que a operação seja concluída. Essa relação é distinta daquela que Ernesto Laclau e Chantal Mouffe descrevem como de antagonismo, uma relação que manteria as diferenças identitárias entre as partes confrontantes (1986, p.93-148). No diálogo, a relação que se produz não leva necessariamente ao desaparecimento das partes implicadas. A interação pode ser transformadora, mas não prevê o aniquilamento nem a (re)produção de uma síntese como resultado de um choque, digamos, conflituoso. Numa relação antagonística - conforme a descrição de Laclau e Mouffe - a mera manutenção de uma parte depende da continuação da outra. Em outras palavras, poderíamos dizer que as partes antagonísticas engajadas num diálogo não submergem, mas antes navegam na relação; as partes dialogantes não desaparecem a partir de sua interação mas, ao contrário, produzem os meios necessários para se autorreconhecerem durante a operação. É justamente esta a idéia de diálogo que estará informando minha definição de sincretismo neste trabalho.
Nessa perspectiva, o dialogismo bakhtiniano não é essencialmente informado pela "problemática do ou/ou da dialética", como Michael Holquist coloca (1990, p.41)9; o diálogo, de fato, requer a manutenção das "vozes" dialogantes para poder acontecer - o que aproxima o dialogismo do antagonismo, e não da oposição. Na luta pela hegemonia, que jaz latente em toda forma dialógica, isso não leva, necessariamente, ao silêncio de uma das vozes enunciadoras - o que significaria o fim da relação dialógica. Ao invés da supressão das partes, implicada no trajeto dialético, o dialogismo pode sugerir a formação de "blocos históricos" - tal como são concebidos na obra de Antonio Gramsci. Além disso, nas palavras de Bakhtin, "a dialética do objeto entrelaça-se com o diálogo social circunstante" (1993, p.88). Desse modo, Bakhtin não apenas faz uma distinção entre a dialética e o diálogo, como também situa a dialética como um evento dentro de um mundo mais amplo do diálogo. A descrição que Bakhtin faz do dialogismo, portanto, difere do pensamento marxista convencional, em que o materialismo histórico privilegia a dialética como explicação do mundo10. Portanto o dialogismo, diferentemente da dialética, enfatiza o ato de leitura das possibilidades dos fenômenos, ao invés de procurar sua natureza essencial ou sua função num projeto ideológico (como frequentemente ocorre nos trabalhos de crítica marxista).
Sincretismo
Na história do pensamento, poucos conceitos têm sido objeto de tantos equívocos como sincretismo. Confundido muitas vezes com uma forma de síntese ou entendido como a fusão das diferenças, um exame mais detalhado da etimologia de sincretismo pode sugerir outras definições. Pretendo argumentar, neste trabalho, que o sincretismo está mais próximo da dialógica bakhtiniana do que da dialética. E questionar, também, a associação de sincretismo com fenômenos religiosos.
Sincretismo pode ser definido como um tipo de articulação na qual os elementos se engajam numa relação dialógica dentro de um mesmo campo discursivo ou entre campos discursivos diferentes. Uma das características que distinguiriam as relações sincréticas de outras formas de relação é que os elementos envolvidos interagem, dialogam e estabelecem relações de poder específicas na forma de alinhamentos (frequentemente antagonísticos) e, mesmo assim, mantêm suas identidades distintas.
Entretanto, devido aos múltiplos significados e usos que têm sido atribuídos ao termo sincretismo, faz-se necessário formular e testar uma definição funcional do conceito. Para realizar essa tarefa, buscarei implementar uma definição provisória desse termo, rastreando sua possível etimologia e sua particularidade; avaliarei, também, alguns de seus usos e o impacto histórico de sua relevância para os objetivos deste trabalho. Ainda assim, longe de pretender recuperar um sentido "original" que a palavra possa ter tido, tentarei estabelecer algo do conteúdo político que o sincretismo ainda pode exprimir.
O primeiro registro conhecido do termo sugkretismos pode ser encontrado num texto de Plutarco - onde surge associado à ilha de Creta. Carsten Colpe descreve que a palavra
foi provavelmente baseada em sugkretos (forma jônica de sugkratos, "misturado junto") e foi explicada pela etimologia popular ou pelo próprio Plutarco como referência ao comportamento dos cretenses que, apesar de sua discórdia habitual, se tornavam unidos frente a um inimigo comum (1987, p.218)11.
Distanciando-se do uso "original" de Plutarco, historiadores da religião na Europa usaram sincretismo para descrever os primeiros séculos da cristandade, quando ocorreu o fenômeno conhecido como "a helenização do cristianismo". A maioria dos autores limitaram seus textos a questões de liturgia ou interpretação das Escrituras, focalizando o processo de helenização e sua incorporação pelo cânone oficial da Igreja Católica. Esse período da história europeia tem sido emblematicamente descrito como um processo que eventualmente levou a uma síntese. Ao referir-se a esse período, René Nouailhat amplia o escopo do termo:
O fenômeno da helenização está inserido num contexto global de sincretismo, que ocorre em todos os níveis de expressão (institucional, legal e político, religioso e moral, etc...) do consciente coletivo daquele período(1975, p.213)12.
Em outras palavras, o processo de sincretismo - mesmo que Nouailhat o confine àquele período específico da história - ocorre em muitos níveis ideológicos e não apenas no religioso, apesar da insistência de alguns historiadores. Além disso, o termo de Nouailhat, mental collectif (que também pode ser lido como mentalidade coletiva) no original, sugere um campo ainda mais amplo desse processo, que pode envolver uma variedade de práticas culturais.
Como a etimologia sugere, o sincretismo foi usado inicialmente para descrever uma situação política. Entretanto, o uso quase exclusivo de sincretismo no campo do pensamento religioso ganhou impulso no século XIX. A apropriação restrita do termo pela teologia pode ter se desenvolvido do fato de que, na Antiguidade, tanto para os cretenses quanto para outros povos mediterrâneos o discurso político era frequentemente inseparável do discurso religioso. E, apesar dessa tendência à especialização, os teólogos usaram o termo de modos diferentes, levando a um distanciamento cada vez maior do sentido supostamente original. Desde Plutarco foram tantas as modificações que certos autores, como Helmer Ringgren, sugerem a impossibilidade de uma busca etimológica/histórica por um conceito "sem ambiguidade":
O termo sincretismo é frequentemente usado sem uma definição clara e precisa. Uma definição, no entanto, é uma empresa difícil, especialmente na área da pesquisa religiosa. Nem a etimologia nem a análise histórica do uso do termo parecem muito iluminadoras (1969, p.24)13.
Esse tipo de afirmação pode tanto levar ao abandono total de um projeto de definição provisória como pode, por outro lado, tornar-se um desafio para o pesquisador. Ringgren afirma ao mesmo tempo tanto o "pertencimento" do sincretismo ao campo da religião quanto sua "precariedade", devida a seu sentido tão vago. O que parece desagradar os pesquisadores é que, de fato, como instrumento de interpretação o sincretismo perdeu sua adæquatio intellectus et rei, isto é, correspondência entre pensamento e objeto. Essa insatisfação acadêmica revela mais do que um simples desejo de definição; ela implica uma fé ou confiança na possibilidade de um discurso exato, assim como na possibilidade da coincidência entre signo e referente - em outras palavras, numa ideologia pré-saussureana, que se apoia num sistema de referências ao invés de um sistema de diferenças.
Numa perspectiva pós-saussureana, a própria história do sincretismo pode ilustrar algumas das ideias de Bakhtin sobre linguagem. Uma delas é que a linguagem está em permanente transformação; em outras palavras, a linguagem não pode ser congelada em nenhum estado, pois é recriada continuamente. Exatamente o que ocorreu com o termo sincretismo, que parece desafiar definições exatas e, a fim de se tornar útil a este trabalho, será objeto de uma definição provisória. No sentido bakhtiniano, o mero contato entre enunciados (assim como entre sujeitos) previne fechamentos semânticos. Nas palavras de Michael Holquist, "Um mundo dialógico é aquele em que nunca posso ir até o fim, e portanto me encontro mergulhado em constante interação com outros - e comigo mesmo. Em suma, o dialogismo é baseado na primazia do social [...]" (1990, p.39)14
Nessa perspectiva, o sincretismo não pode ser destacado desse contexto social (histórico/político/cultural, etc.), desde que o próprio termo descreve uma forma de contato entre signos e discursos. Além disso, se posicionarmos o termo fora do âmbito da dialética e o aproximarmos do contexto do dialogismo, pode se tornar mais claro como o sincretismo previne um resultado sintético. A formulação "sincretismo dialético" pode ser considerada, portanto, um oximoro. O sincretismo não pertenceria ao reino das certezas pré-determinadas obtidas nas operações dialéticas, em que a confrontação de elementos levaria a resultados sintéticos que, por sua vez, se engajarão em outras confrontações. Em sua convincente tentativa de definição de sincretismo, Carsten Colpe faz uma cuidadosa distinção entre sincretismo e síntese, afirmando que
a reconciliação de culturas ou integração de culturas numa unidade maior são representadas mais adequadamente pelo termo síntese, que [...] é melhor entendido como um complexo de fenômenos sintéticos (1987, p.218)15.
É nesse sentido que as relações sincréticas podem ser mais bem explicadas com o dialogismo bakhtiniano do que com a dialética hegeliana. Pois a provável etimologia de sincretismo destaca o paradigma político de articulação e identidade, um paradigma em que os facciosos habitantes da ilha de Creta, ao invés de formarem um todo homogêneo, compõem uma frente heterogênea de comunidades distintas com relações alteradas entre si. Como tal, o alinhamento discursivo implícito no sincretismo permanece contingente às relações de poder e sujeito a mudanças de acordo com a especificidade histórica; os elementos unidos aí não têm nenhum "pertencimento necessário" a priori, assim como não possuem sentido de fixidez original tanto em suas identidades como em suas relações. Desse modo, o sincretismo designa a articulação como um modo politizado e (des)contínuo de devir. Essa articulação implica a coexistência "formal" dos componentes, cujas identidades precárias (isto é, parciais e não imparciais) são mutuamente modificadas em seu encontro; entretanto, suas diferenças não se dissolvem ou se ocultam nessa modificação, elas se reconstituem estrategicamente numa contínua guerra de posições. É o caldeirão onde nada se funde completamente, "The melting pot that never melts", segundo o poema cantado de Jon Hendricks16. Como coloca Benitez-Rojo,
Um artefato sincrético não é uma síntese, mas um significante feito de diferenças. É que no cadinho de sociedades do mundo os processos sincréticos se realizam através de uma economia em cuja modalidade de troca o significante de lá - do Outro - é consumido ("lido") de acordo com códigos locais que já existem, isto é, códigos daqui (1992, p.21)17.
Na medida em que o sincretismo articula fronteiras permeáveis entre seus elementos, a eficácia política e metodológica das relações restritas de contradição/complementaridade entre identidades assumidas como fixas (como por exemplo nos modelos dominantes de luta de classes, heterossexualidade e/ou dialética objetivista - que muitas vezes funcionam como plataformas para subordinações no social) podem ser radicalmente questionadas. É esse desafio relacional implícito que distingue dramaticamente o sincretismo da síntese e do hibridismo - um termo que tem sido usado como sinônimo de sincretismo em alguns dos trabalhos mais brilhantes de crítica cultural dos últimos anos, especialmente no mundo anglófono. Alguns desses trabalhos, especialmente aqueles que lidam com políticas de identidade, têm acionado o conceito de hibridismo no esforço de ressaltar a não-essencialidade de articulações compostas de práticas culturais. Nesses trabalhos, a celebração e a radicalização do híbrido tem servido para contestar noções essencialistas de identidade étnica e cultural, mas a bagagem ideológica com que o hibridismo vem equipado permanece sem exame ou crítica.
Ligado etimologicamente ao acasalamento de animais e à agricultura, por exemplo, o conceito de hibridismo pode pressupor (e geralmente pressupõe) a origem "pura" dos elementos - quer dizer, suas identidades fixas e essenciais - anterior à hibridização. Como uma das definições encontradas no Dicionário Aurélio esclarece, o híbrido é "originário do cruzamento de espécies diferentes", sejam animais ou vegetais18. Arquetipicamente, os híbridos são caracterizados por sua esterilidade e desnatureza (como por exemplo a mula, que é o produto estéril do cruzamento do cavalo e do jumento). Daí o hibridismo não implicar a eliminação do essencialismo na "prole", no produto do cruzamento. O hibridismo pode também apenas deslocar esse essencialismo para os progenitores, que são assim classificados em categorias estáticas e homogêneas.
Além disso, essa referência a progenitores e prole acaba reforçando o essencialismo fundamental da diferença (de) sexual(idade), mesmo quando tenta chamar a atenção para a heterogeneidade de identidades étnicas e culturais19. Nesse sentido, a ideia de hibridismo pode contribuir para a hegemonia da metáfora heterossexista que tem informado inúmeras teorias do natural e das relações materiais. A lógica específica implícita aqui, de que duas entidades contrastantes "se juntam" para produzir uma terceira, se mascara de universal e trans-histórica. Aproxima-se daquilo que Foucault chamou "a empobrecida lógica da contradição"20, uma noção aristotélica que goza de proeminência especial desde o século XIX, e da qual ele encontra evidência nos "constrangimentos esterilizantes da dialética"21 (1980, p.143-144).
Efetivamente, tal lógica pode naturalizar não apenas conceituações dominantes e teleológicas de progresso e evolução (também pertinente a noções eugênicas de pureza étnica e cultural), como também naturaliza explicações totalizantes e redutivas de mecanismos de luta que privilegiam o conflito como condição de mudança. A predominância das teorias de desenvolvimento histórico e transformação social informadas por tal lógica sem dúvida participa na manutenção das atuais formas hierárquicas da subjetividade.22
Assim, mesmo sem rejeitar o conflito como forma de luta, quero questionar seu privilegiado status epistemológico no regime de verdade atualmente dominante. Sugiro que as relações de poder implícitas no sincretismo excedem lógicas autotélicas de contradição e síntese, e desafiam a hegemonia desfrutada por tais heterológicas. De fato, considerando as posicion(alidades) subjetivas ocupadas pelos praticantes (sub)culturais do sincretismo, e aquelas que eles abraçam (e criticam, mas não simplesmente contradizem) ao percorrer sexualidades, gêneros, raças e classes em articulação, sentimos a demanda por entendimentos mais sutis dos processos e estratégias de resistência. Daí a importância do sincretismo para o projeto de se pensar a luta.
Sincretismo e religião
Apesar de o sincretismo não se aplicar exclusivamente a fenômenos religiosos, como descrito acima, sua utilização nesse campo permanece muito viva. Assim, pode ser útil examinar essa aplicação, a fim de traçarmos uma trajetória do termo.
É o que ocorre, por exemplo, com o discurso oficial da Igreja Católica que, no Brasil, é hegemônica entre as muitas instituições religiosas. O catolicismo manteve seu status de religião oficial durante o Império; sua posicionalidade diante do supostamente estado laico estabelecido em 1889 tem sido decididamente ambígua. Entretanto, mesmo com a proliferação de seitas evangélicas neopentecostais nos últimos anos, é a Igreja Católica que ainda ocupa o espaço privilegiado no discurso oficial. É graças a essa hegemonia que os edifícios públicos no Brasil invariavelmente ostentam emblemas católicos - mas nenhum emblema de outras religiões.
A interpretação que a Igreja Católica faz dos fenômenos sincréticos é, efetivamente, um sinal da apropriação (claramente tendenciosa) que o termo sofreu nos últimos séculos. A Igreja Católica, hoje, dificilmente se reconheceria sincrética. De fato, o discurso eclesiástico tem enfatizado, nos últimos quinze séculos, o papel fundacional "original" da igreja. Esse processo de construção de imagem aplica à instituição a estatura de "todo original", muito longe de uma articulação ou montagem "composta" ou "híbrida", como sugerem as combinações sincréticas. A política católica para os sincretismos revela um ponto importante: o sincrético é visto como "impuro" (o que o aproxima do "híbrido"), uma característica que pertenceria ao outro demonizado, aquele que não é capaz de ostentar ou manter sua pureza essencial. Nesse sentido, não é suficiente estabelecer a hegemonia; a demonização é parte de uma operação ideológica que assegura estruturas de poder ameaçadas pela incerteza do outro. Como escreve a antropóloga Mary Douglas, essa é uma tendência que procura fazer
da existência uma forma lapidar imutável. A pureza é a inimiga da mudança, da ambiguidade e da negociação. A maioria de nós se sentiria mais segura se nossa experiência pudesse ser congelada e fixada na forma (1988, p.162)23.
A capacidade de decidir sobre a pureza e a autenticidade - algo que no mundo europeizado, pelo menos, seria por longo tempo uma prerrogativa da Igreja Católica e seria reafirmada pelas práticas científicas que equiparam o colonialismo com discursos sobre o Outro. Essa tendência, que seria reforçada pelo Iluminismo e pelo Positivismo, continua viva em nossos dias a despeito das intensas transformações teóricas e ideológicas em trabalhos antropológicos (e teológicos). A persistência dessa tendência é evidenciada na atual definição de sincretismo no Webster's Dictionary: "problema flagrante na religião e na filosofia; ecletismo que é ilógico ou leva à inconsistência; aceitação acrítica"24. Para a ciência eurocêntrica, as práticas articulatórias dos povos subalternos foram vistas como atos ilegítimos e contraditórios, enquanto sua história oral foi considerada suspeita quando comparada com a história escrita do colonizador. O dicionário mais popular no Brasil, o Novo Dicionário Aurélio, também segue essa tendência e define o sincretismo como "reunião artificial de ideias ou de teses de origens disparatadas"; "visão de conjunto, confusa, de uma totalidade complexa"25.
Entretanto, em aparente contradição com a política oficial da igreja, missionários católicos têm frequentemente recorrido a práticas sincréticas para enfrentar problemas de catequese. Foi o que aconteceu na própria Europa, em que o cristianismo popular - herdeiro de práticas pagãs - foi (e ainda é) mais ou menos tolerado pela igreja. As práticas sincréticas nas Américas, por exemplo (muitas vezes estimuladas pela igreja), tiveram início já no século XVI e ocorreriam no trabalho dos jesuítas junto aos povos guaranis, como o demonstrou Clovis Lugon, em A república comunista cristã dos guaranis. (1968)
O discurso oficial da Igreja Católica, entretanto, somente admitiria o sincretismo - e ainda assim relutantemente - no século XX, após o concílio Vaticano II liderado por João XXIII. Essa mudança permitiu que a igreja incorporasse oficialmente estratégias missionárias que demandavam a renegociação do catecismo canônico. Isso aconteceu nas comunidades periféricas (isto é, não-européias ou não-europeizadas) que haviam permanecido resistentes à conversão, apesar de quatro séculos de trabalho missionário. Assim mesmo, a igreja pratica uma seleção das práticas sincréticas; ela tem de assegurar sua hegemonia num processo complexo que combina evangelização forçada, aculturação, assimilação e provoca, em última instância, resistência inevitável.
Ao comentar as conclusões do concílio de Puebla (1984), o acadêmico católico Manuel Marzal tranquiliza seus leitores, pois apesar do sincretismo da práxis o que permanece é um "substrato católico real". Marzal afirma ainda que
Esta devoção católica do povo da América Latina não se enraizou o bastante nem conseguiu catequizar alguns grupos autóctones e negros. Por seu lado, estes grupos possuem uma riqueza de valores e guardam as "sementes do Verbo" à espera da Palavra viva (1985, p.450)26.
Em outras palavras, os povos que resistem à cristianização continuam sendo cristãos em potencial, pois possuem a (latente) "semente do Verbo", esperando ser fecundados pela "Palavra viva". O sincretismo é, portanto, uma transição temporária em direção à síntese que assegurará a hegemonia católica.
É por isso que certas práticas são monitoradas cuidadosamente por representantes da igreja, que desenvolveram o que o antropólogo Hugo Nutini denomina "sincretismo orientado", um termo que pode ser lido como um oximoro se levarmos em conta as motivações que tornam o sincretismo possível no contexto de uma guerra de posições gramsciana - isto é, a própria iniciativa das partes envolvidas em alinhamento. Em sua descrição do culto dos mortos em Tlaxcala, no México, Nutini lista os elementos que foram deliberadamente introduzidos na comunidade pela igreja desde o século XVI, assim como os elementos que sobreviveram dos tempos pré-hispânicos, alinhando cada grupo sob as categorias "sincretismo orientado" e "sincretismo espontâneo". O pesquisador reconhece as relações de poder entre os dois tipos de sincretismo, mas afirma que
O sincretismo orientado pode ser visto como condição necessária para a emergência de uma síntese final [...] enquanto o sincretismo espontâneo é um desenvolvimento subsidiário, que ocorre em instituições ou áreas que estão situadas na margem, tanto quanto ao que se refere a um dado conjunto sociorreligioso quanto à própria matriz sincrética, e cujas sínteses geralmente se fundem depois do impulso inicial, orientado (1988, p.408)27.
Esse comentário desenha um movimento vertical que tende a superestimar a ação de instituições como a Igreja Católica (um fator externo) na criação de sincretismos, deixando pouco espaço para a contribuição e a iniciativa dos grupos sociais (levados por fatores internos) que confrontam culturas invasoras. É como se a instituição europeia tivesse poder suficiente para permitir (ou não) a quantidade de sincretismo que será colocado em prática. Assim, uma omissão importante desse ponto de vista é a quantidade de sincretismo que o grupo local decide incorporar. Em outras palavras: qual é a identificação do grupo local ante às práticas cristãs que não eliminarão de uma vez sua identidade cultural?
Outro ponto importante no discurso de Nutini é o da "síntese final". Como já notei, muitos escritores (é o caso de Nutini) situam o sincretismo como um passo teleológico que levaria necessariamente a algum tipo de síntese. Essa concepção de sincretismo só pode ser entendida à luz da hegemonia mantida pela dialética no pensamento europeu (ou europeizado) dos últimos séculos.
Estamos muito longe, aqui, da ideia horizontal das relações sincréticas e dialógicas que o exemplo cretense parece sugerir.
O trabalho etnográfico desenvolvido no Brasil lidou muitas vezes com essa problemática. O uso do sincretismo em trabalhos etnográficos no Brasil seguiu basicamente os padrões ideológicos propostos pelo discurso do colonialismo europeu, mantendo o foco sobre as práticas religiosas como objeto privilegiado.
Até recentemente os fenômenos sincréticos eram vistos como sinais de subdesenvolvimento e primitivismo. Essa posição foi compartilhada pelo estado (que reprimiu com regularidade as práticas religiosas afro-brasileiras), por organizações políticas, sistema educacional e meios de comunicação. Ela foi expressa, também, nas obras de autores influentes como Nina Rodrigues, Edison Carneiro e Arthur Ramos, que trataram das práticas religiosas afro-brasileiras.
Mas as obras de Roger Bastide, Pierre Verger e de Gilberto Freyre trariam novas luzes a essa questão. Especialmente interessante nesta discussão é o livro de Bastide, Estudos afro-brasileiros, publicado pela primeira vez em 1946, em que o uso do termo sincretismo objetiva determinar um "grau de congelamento", que poderia ser identificado como a conclusão de uma linha de desenvolvimento. Ele faz confluir as duas ideias: ao escrever sobre rituais religiosos, Bastide não retrata as práticas sincréticas como um passo em direção à síntese, mas antes equipara o sincretismo à síntese. No entanto, seu trabalho tem de ser contextualizado numa linha de pensamento que tentava definir e delimitar as práticas culturais a fim de fazer da cultura brasileira um objeto apreensível e estável. Uma tarefa dificílima, se levarmos em consideração as formas extremamente variáveis que podem ser agrupadas sob a categoria das "práticas religiosas afro-brasileiras". Entretanto, é a própria variabilidade dessas práticas que pode nos revelar muito do caráter da "cultura brasileira" como um todo.
Nesse sentido, o discurso etnográfico produzido sobre o Brasil é especialmente importante para este trabalho, pois foi esse discurso que ajudou a definir o que é entendido hoje pelas formas dialógicas e sincréticas das práticas culturais brasileiras. Ele influenciou fortemente a literatura, o teatro e o cinema, que muitas vezes se depararam com a tarefa de definir a "cultura brasileira", já que essa problemática está no cerne de uma série de tensões paradigmáticas que informaram, historicamente, práticas políticas e artísticas no país.
Além disso, nas últimas três décadas tornou-se impossível, em qualquer discurso a respeito da cultura brasileira, ignorar a presença dessas práticas em todas as regiões, grupos sociais e etnicidades no país. Antes desprezadas ou diminuídas enquanto força social, elas são hoje especialmente valorizadas como expressões autênticas da cultura brasileira. Hoje essas práticas são levadas em conta nas pesquisas eleitorais, de mercado e de programação de rádio e televisão. E de maneira semelhante ao que vem acontecendo em outras partes do mundo europeizado, no Brasil de hoje os fenômenos sincréticos tendem a ser celebrados afirmativamente.
Subterrâneo epistemológico
Do ponto de vista da etnografia, o "encontro" sincrético das divindades africanas com os santos católicos foi muitas vezes interpretado como um subterfúgio para escapar da perseguição policial sofrida pelas comunidades, que ocorreu durante o período colonial e se estendeu com grande intensidade até as primeiras décadas do século XX. Em outras palavras, os negros teriam começado a adorar os santos católicos a fim de acobertar suas próprias divindades. Assoladas tanto por puristas religiosos cristãos como africanos, estas práticas sincréticas ainda são frequentemente consideradas como manifestações de confusão e ignorância.
Uma definição diferente de sincretismo, no entanto, pode jogar uma outra luz sobre os mesmos fenômenos. A própria etimologia de sincretismo sugere o realinhamento de forças que, da perspectiva do oprimido, aponta para a alteração do equilíbrio hegemônico. Ainda nessa perspectiva, a elaboração dos sincretismos pode ser revista de acordo com outro paradigma: ao invés de interpretar o alinhamento das entidades religiosas como resultado da perseguição, esse alinhamento pode ser entendido como a produção de conhecimentos específicos, que por sua vez resultam de um enfrentamento cultural num contexto de relações de poder. Efetivamente, o suposto "disfarce" das entidades religiosas parece seguir certas regras que sugerem mais do que simples coincidência. De outro modo, como seria possível entender as afinidades simbólicas que ocorrem entre entidades tão distantes como a Oxum da Nigéria iorubá, a deusa taino Atabey de Cuba e a Nossa Senhora trazida da Espanha pelos colonizadores e (re)conhecida pelos escravizados africanos e ameríndios? Essas afinidades podem ser rastreadas ao nível das narrativas que acompanham as três divindades; elas também podem ser reconhecidas ao nível de sua apresentação icônica. Essas afinidades, com efeito, se tornaram um laço tão forte que essa entidade complexa se tornou a p(m)adroeira de Cuba, La Virgen de la Caridad del Cobre, um símbolo fortemente enraizado em práticas culturais populares e jamais combatido pelo estado que se estabeleceu na ilha em 1959. Sua representação pode ser vista em imagens que a virgem paira, articuladora, sobre um barco à deriva, que contém três personagens: um branco, um indígena e um negro, sugerindo assim a formação de uma identidade cubana multirracial.28 Assim como no culto a Iemanjá no Brasil, em que se superpõem divindades de origens distintas (Ameríndia, Africana, Eurasiana), essas entidades entabulam um diálogo contínuo, em antagonismo (não em oposição), que permite o reconhecimento dessas origens.
O enfrentamento dialógico que produz tais sincretismos também pode ser entendido - de acordo com o modelo clássico sugerido pela etimologia - como um encontro de grupos sob a mesma opressão. Não seria possível igualar o sofrimento imposto sobre a população africana das Américas com o sofrimento dos camponeses europeus que foram forçados a imigrar da Europa em busca de uma vida melhor. Mas estes camponeses, por sua vez, também trouxeram um conjunto de crenças e práticas religiosas que sofreram a perseguição da Igreja Católica oficial. O catolicismo popular do campesinato europeu, de caráter francamente politeísta - e muitas vezes acompanhado por cultos de possessão29 -foi objeto da mais completa oposição por parte da igreja desde o início da Idade Média. A cassação de santos ocorrida nas últimas décadas (caso de São Jorge, que foi declarado historicamente improvável e não teria mais igrejas dedicadas em seu nome)30 é apenas um sinal de que essa oposição continua. Apesar disso, o culto a esses santos sobrevive. Foi exatamente esse campesinato devoto que formou a maioria esmagadora dos imigrantes europeus que vieram a países como o Brasil durante o período colonial e após a independência.
O processo de reconhecimento e alinhamento sincréticos que teve lugar nas Américas pode ser visto como parte do que Clyde Taylor apropriadamente denomina "subterrâneo epistemológico"31, isto é, uma corrente em que conhecimentos oposicionais, dispersados num campo em que o efeito de dominação os separa e subordina em modos historicamente específicos e contínuos, conseguem encontrar conexões estruturantes e desafiar a hegemonia. É justamente essa corrente que possibilita a comunicação de subjetividades subalternas, conectando mulheres, grupos étnicos e minorias que, caso contrário, seriam segregadas em vasos incomunicantes (1989, p.102).
O abjurado São Jorge pode fornecer um exemplo dessas conexões. Seria apenas um ícone cristão para encobrir uma divindade africana ilegalizada pelas autoridades coloniais? O que importa, aqui, não é a mera substituição da divindade "Ogum" (Oeste-africano? Iorubá? Fon?) por "São Jorge" (Europeu? Anatólio? Cirenaico? Palestino? Capadócio?). O que importa é que eles podem ser apreendidos como a articulação de uma entidade de duas faces reconhecidas sob opressão e que (re)estabelecem um elo numa corrente de significantes. Esta corrente de diálogos - é importante assinalar - não tem "início" precisamente na "África" ou no "Oriente Médio", nem tem um fim previsível. As transformações sincréticas por que essas entidades passam (enquanto são "consumidas" ou "lidas"), poderão variar, sempre de acordo com os contextos que as invocam. Além disso, os adeptos dos cultos religiosos sincréticos divergem radicalmente da etnografia tradicional quando se referem às várias fontes que informam suas próprias cosmogonias e práticas. Para muitos afro-brasileiros (por definição identitária étnica ou cultural), esse processo teria começado com a própria diáspora.
É, portanto, nesse subterrâneo epistemológico que o sincretismo pode ocorrer com a força que sua etimologia sugere. O sincretismo só pode ser entendido como um conceito que passou por transformações num processo histórico e, nesse sentido, em contextos de relações de mobilidade e poder. Para sabermos se ainda tem alguma utilidade (e quiçá alguma precisão) na crítica das práticas culturais, será necessário levar em conta sua etimologia e toda a carga semântica que traz em sua história. Entendido como um processo dialógico, esse conceito pode recuperar sua riqueza como instrumento de análise.