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Gregório(s) de Matos: padrões de representá-lo(s) e ordens do discurso

RESUMO

O presente artigo, a partir de certos expedientes de base foucaultiana para a análise do discurso, examinará um corpus de textos em língua portuguesa, feito de livros didáticos, histórias da literatura brasileira e ensaios recentes, em que figura a personagem literária Gregório de Matos, de modo a refletir acerca dos padrões de representá-la nestas instâncias textuais, com vistas a explicitar as ordens do discurso que supõem. Pela análise das táticas de coerção estrutural e dos efeitos materiais implicados - ambos, táticas e efeitos, formando determinada imagem de Gregório de Matos estruturante de certa ordem de discurso que, por sua vez, estrutura-a -, pretende-se explicitar os jogos de verdade que configuram determinadas experiências relativas, em particular, à noção de autor, criação artística e história da literatura, e, em geral, à noção de subjetividade e agência.

PALAVRAS-CHAVE:
Ordem do discurso; Padrões de representar; Gregório de Matos

ABSTRACT

Stemming from expedients from a Foucauldian underpinning for discourse analysis, this article deals with a textual corpus in Portuguese, consisting of textbooks, histories of Brazilian literature and recent essays, in which the literary figure of Gregorio de Matos is found. It aims to reflect upon the patterns of representing such a figure in those textual instances, with regards to bringing forth the implied orders of discourse. By the analysis of the tactics of structural coercion and the implicated material effects - both tactics and effects create a certain image of Gregorio de Matos that structures an order of discourse that, in turn, structures that very same image -, we aim at bringing forth the plays of truth that configure experiences that are related, in particular, to the notion of author, artistic creation and literature history, and, in general, to the notion of subjectivity and agency.

KEYWORDS:
Order of Discourse; Patterns of Representation; Gregorio de Matos

Introdução

Tendo em vista que este artigo se alça aos estudos de texto-discurso-enunciação, há um conjunto de estudos afins que deve ser explicitado, feito de premissas, operações metodológicas e horizontes de expectativas.

O objeto de análise material, acionado pela atitude epistemológica no campo dos estudos discursivos, é, para este trabalho, o enunciado como unidade de sentido, mediadora da realização concreta de um dado significado com a potência esquemática das condições de produção de um dado significado. Essa mediação assume a existência de um plano discursivo e de um plano textual, o primeiro a constranger o processo de construção do segundo, o segundo a estruturar a ordem do primeiro. Tal atitude teórico-procedimental configura ao percurso de pensamento deste artigo uma disposição estruturalista, possibilitando balizas epistêmicas e estilos de pensar organizados em eixos de virtualidade, realização e materialidade.

Neste quadro, o presente trabalho tem por objetivo específico tratar da noção de ordem do discurso como maquinaria de geração de sentido, como condições estruturais sobre a produção, recepção, circulação e manutenção de sentido. Priorizar-se-á refletir acerca das coerções estruturais de representações; a reflexão acerca dos efeitos textuais daí implicados derivará de um percurso que analise a virtualidade da ordem do discurso frente às configurações materiais.

Para tal, avaliar-se-á um corpus de textos em que figure a pessoa de Gregório de Matos, celebrado poeta da cena histórico-literária brasileira. Pensar-se-á nos padrões de representar, em livros didáticos de educação básica, histórias da literatura de ensino superior e ensaios recentes, como sendo história, vida social, forma de conhecimento e manifestação de certa ordem de discurso. Com isto, pretende-se explicitar os jogos de verdadeiro que, a uma só vez, constrangem porque possibilitam, possibilitam porque constrangem certas configurações da experiência para dadas coordenadas vivenciais, no âmbito particular da noção de autoria da história da literatura e da criação artística e no âmbito geral da noção de subjetividade e agência.

1 Abordagem teórica

Operar, como aqui se pretende, a partir das proposições metodológicas de análise do discurso em A ordem do discurso de Foucault implica quatro princípios: o da inversão, o da descontinuidade, o da especificidade e o da exterioridade.

O primeiro princípio, o da inversão, tem a ver com reconhecer o jogo "negativo de um recorte e de uma rarefação do discurso" (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Trad. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1999., p.52) "lá onde, segundo a tradição, cremos reconhecer a fonte dos discursos, o princípio de sua expansão e continuidade" (1999, p.51); ou seja, compreender o discurso "na direção paradoxal, à primeira vista, de um materialismo incorporal" (1999, p.58). Quanto ao segundo princípio, o da descontinuidade, ele tem a ver com, em perfazendo a inversão que transforma a fonte discursiva em efeito e parte da maquinaria discursiva, não compreender o discurso como "um grande discurso, ilimitado, contínuo e silencioso [...] reprimido e recalcado e que nós tivéssemos por missão descobrir restituindo-lhe, enfim, a palavra" (1999, p.52); diferentemente, "[os] discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam, por vezes, mas também se ignoram ou se excluem" (1999, p.52). O terceiro princípio da especificidade, por sua vez, tem a ver com "não transformar o discurso em jogo de significações prévias [...] que o mundo nos apresenta numa face legível que teríamos de decifrar apenas" (1999, p.53); o que implica dizer, junto de Foucault (1999, p.53)FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Trad. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1999., que "deve-se conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas [...] e é nesta prática que os acontecimentos do discurso encontram o princípio de sua regularidade". Por último, o quarto princípio, o da exterioridade, tem a ver com

não passar do discurso para o seu núcleo interior e escondido, para o âmago de um pensamento ou de uma significação que se manifestariam nele; mas, a partir do próprio discurso, de sua aparição e de sua regularidade, passar às suas condições externas de possibilidade, àquilo que dá lugar à série aleatória desses acontecimentos e fixa suas fronteiras (1999, p.53).

A metodologia proposta em A ordem do discurso, porque preocupada com a análise das coerções estruturais do discurso, flerta com as noções do enunciado como instância da mediação discurso/virtualidade-texto/materialidade e com as noções resumptivas de discurso qua história, qua sociedade, qua conhecimento e qua diálogo propostas por Bolívar (2003)BOLÍVAR, A. Análisis del Discurso y compromiso social. Akademos, vol 5., n. 1, 2003, p.3-71.. Flerta, e não corresponde, pois não há uma preocupação naquela obra e muito menos nos variados gestos analíticos do discurso foucaultiano, posteriores ou anteriores à analítica do discurso de A ordem do discurso, em atingir uma estabilidade metodológica científica, reaplicável e reproduzível e precisa. Introduzir o rarefeito, o descontínuo, o anônimo, o marginal, entre outros traços, como operadores de pensamento destoa largamente dos projetos dos estudos de discurso como ciência, na acepção positivista triste que "ciência" assuma.

A análise do discurso em Foucault tem a ver com o método genealógico, o qual, por sua vez, supõe uma arqueologia instável dos acontecimentos do discurso, porque trabalha os dados "a partir da diversidade e da dispersão, do acaso dos começos e dos acidentes" (REVEL, 2005REVEL, J. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005., p.52). Uma arqueogenealogia, na análise do discurso,

não busca somente no passado a marca de acontecimentos singulares, mas ela se coloca hoje a questão da possibilidade dos acontecimentos: 'ela deduzirá da contingência que nos fez ser o que somos, a possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos' (FOUCAULT In: REVEL, 2005REVEL, J. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005., p.15) (2005, p.53),

Portanto, ao lançar mão dos expedientes teóricos em A ordem do discurso, este trabalho afasta-se da análise do discurso quanto à valorização da capacidade de agência de atores sociais e da possibilidade de resistência, empoderamento, mobilização etc. (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. London/New York: Routledge, 2003.; VAN DIJK, 2005VAN DIJK, T. Análise crítica do discurso. In: _______. Discurso e poder. Organizado por Karina Falcone e Judith Hoffnagel. São Paulo: Contexto, 2015, p.113-132.), aproximando-se da análise do discurso como uma ontologia do presente e seus regimes de verdade (AQUINO, 2016AQUINO, J. R. G. Diálogos em delay. Educação e Pesquisa, São Paulo, ago. 2016. Ahead of print. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022016005005103 Acesso em: 4 nov. 2016.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
).

Este trabalho tem por sentido figurar regimes de verdade em torno do corpus de textos a ser analisado, direcionando-se "não às proposições verdadeiras, mas ao conjunto de regras que torna possível proferir e acatar as convenções tidas como verdadeiras em determinado momento" (AQUINO, 2016AQUINO, J. R. G. Diálogos em delay. Educação e Pesquisa, São Paulo, ago. 2016. Ahead of print. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022016005005103 Acesso em: 4 nov. 2016.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
), sem partilhar da estética humanista-reflexiva das teorias críticas (HARAWAY, 1994HARAWAY, D. A Game of Cat's Cradle. Configurations. v. 2, n.1, p.59-71, 1994.; SILVA, 1994SILVA, T. T. da. O adeus às metarranativas educacionais. In: _______. (org.). O sujeito na educação: estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes, p.247-258, 1994.), em particular nas suas versões da análise crítica do discurso (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. London/New York: Routledge, 2003.; VAN DIJK, 2005VAN DIJK, T. Análise crítica do discurso. In: _______. Discurso e poder. Organizado por Karina Falcone e Judith Hoffnagel. São Paulo: Contexto, 2015, p.113-132.). Enfrentar o corpus aqui analisado e a história que dele se desenrola é partilhar uma outra estética, talvez, por falta de nome, pós-subjetiva (ROSE, 2001ROSE, N. Inventando nossos eus. In: SILVA, T. T da. (Org.). Nunca fomos humanos. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p.137-204.; SILVA, 1994SILVA, T. T. da. O adeus às metarranativas educacionais. In: _______. (org.). O sujeito na educação: estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes, p.247-258, 1994.), bem como pós-filológica, por assim dizer.

2 Listagem e descrição do corpus

Para a análise do corpus, faz-se necessário, primeiramente, listá-lo e descrevê-lo. As tabelas 1, 2 e 3 a seguir contêm os trechos dos quais partirá o gesto analítico deste trabalho:

Tabela 1
Representação de Gregório de Matos em livro didático de Ensino Médio
Tabela 2
Representação de Gregório de Matos em livro preparatório para vestibulares
Tabela 3
Representação de Gregório de Matos em antologia da obra do autor

Tais trechos referem-se a três representações da figura da personagem histórico-literária Gregório de Matos, extraídas de três fontes diferentes: duas escolares e uma acadêmica, esta que, por sua vez, condiciona as fontes escolares - do que se falará em breve. Isto porque há uma íntima dependência entre a escolarização de Gregório de Matos e as práticas acadêmicas que o configuraram como livro, obra, autor, poeta, Literatura Brasileira etc., das quais emana a presença subjetivo-autoral estabilizada pelas práticas escolares.

Na tabela a seguir, estão organizados trechos do corpus segundo três constantes representacionais a serem comentadas na sequência:

Os trechos extraídos das Tabelas 1, 2 e 3, significativos para a constituição de um certo Gregório de Matos, foram agrupados, na tabela 4, em três constantes representacionais: "Individualidade biográfica", "Agentividade" e "Interioridade".

Tabela 4
Constantes representacionais do corpus [grifos nossos, para destaque]

A constante "Individualidade biográfica" implica escolhas linguísticas que estabeleçam uma forma humana com um corpo que acaba na pele (HARAWAY, 2000_______ "Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX". In: SILVA, T. T. da (org.). Antropologia do ciborgue. As vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.), de "juste un individu" (GODARD, 2014GODARD, J. Adieu au langage. França/Suíça, 2014 [Directed by Jean-Luc Godard. Film by Canal+ and Centre national de la cinématographie. France, Switzerland: 2014. Berlin: Wild Bunch, 2014. (69 minutes), color].): uma vida corporo-socialmente atravessada de experiências formativas e afetivas próprias de um indivíduo moderno, burguês e romântico. Para este efeito, operam as datas e descrições de eventos cotidianos, como nascimento, mudanças, graduação, emprego, exílio, morte etc.

A segunda constante "Agentividade" organiza-se pelo destaque particular aos verbos e à figura de Gregório de Matos em relação às estruturas verbais: Gregório de Matos segue ensinamentos, torna-se famoso, denuncia males, encontra meios de expressão de si, ridiculariza, estuda, termina os estudos, vai à Coimbra, compila versos, envolve-se com a Inquisição, incomoda poderosos, retorna do exílio, protege-se e é protegido etc. Desta forma, condicionadas por recursos linguísticos verbais acarretando implicações textuais e discursivas, compõe-se por dados "concretos" a autoralidade de Gregório de Matos por uma configuração de pessoa dotada de capacidade de ação-no-mundo. Gregório de Matos é ou sujeito gramatical das frases ou núcleo de semantemas repletos de agentividade, heroicidade, responsabilização.

A terceira constante "Interioridade", de caráter psicologizante, traz evidências da anatomia psi de Gregório de Matos - temperamento, visão de mundo, sentimentos; ou seja, uma técnica de si "compreendida no sentido de que a relação consigo adquire independência. É como se as relações do lado de fora se dobrassem, se curvassem para formar um forro e deixar surgir uma relação consigo, constituir um lado de dentro que se escava e desenvolve segundo uma dimensão própria" (DELEUZE, 1991DELEUZE, G. Foucault. Trad. Cláudia S. Martins. São Paulo: Brasiliense, 1991., p.107).

Portanto, as três constantes, combinadas entre si, não são meramente uma maneira de situar o leitor frente à biografia do indivíduo Gregório de Matos, mas elas são a elaboração de uma figura uniforme e coerente de Gregório de Matos como personalidade literária antropomórfica, dotada de desejo e de poder de agir no mundo. Ainda que se possa afirmar que os textos da tabela 1 e da tabela 2 busquem traçar um panorama da obra pela narração da figura literária autoral, as três constantes representacionais redundam na construção de Gregório de Matos como indivíduo justamente pelo nexo necessário entre Compreensão-da-História-da-Literatura e Descrição-de-Autores-de-Literatura.

As Tabelas 1 e 2 aproximam-se na construção de uma biografia de Gregório de Matos que se sobrepõe a qualquer dificuldade do "estudo crítico da obra e vida do Poeta", provocando ambas um efeito de infalibilidade descritiva. O que se destaca na leitura de 1 e 2 é reconhecer a obra como necessária e inevitavelmente fruto de uma pessoa, com personalidade, trajetória profissional, família, amigos etc; pessoa da qual emana a obra e que faz tal raciocínio ser adequado para o gesto de escolarização de Gregório de Matos. Isto é, o entendimento da constituição de uma obra qua obra leva a uma atribuição empolada de características individualizantes, a fim de justificar uma relação compreensível e lógica entre obra-autor e autor-obra, desconsiderando, pois, os processos constitutivos da poesia barroca seiscentista.

Em uma análise mais detida da tabela 3, percebe-se que, ainda que Spina busque trazer à luz um certo Gregório de Matos que seja problemático em relação à autoria, há ainda indistinção entre autoria, literatura e individualidade como critérios de cognoscibilidade dos saberes literários. É importante ressaltar que Spina, mesmo com a ressalva quanto à unidade da obra e à dificuldade em definir elementos essenciais para a crítica filológica, não descarta, em sua prosa editorial-epistêmica, a imagem de Gregório de Matos constante também nos outros textos, em que haja um autor, um indivíduo, um agente, um humano.

A importância coletiva e anônima que teria sido própria da poética barroca (HANSEN, 1989HANSEN, J. A. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.) dá lugar à importância do indivíduo por ser indivíduo, ou seja, configurado segundo seus limites pessoais, seus atos pessoais, suas falas pessoais, seu legado pessoal etc., que partem da e retornam à sua vida pessoal. A maneira como se compreende vida pessoal é um estruturante da autoralidade de Gregorio de Matos como "o" conhecemos. A autoralidade de sua fala, atos e presença no mundo brota da figura de ser poeta como padrão representacional dos tipos de agência e falas que possam fazer desta "fonte" ou "princípio" de ação certos tipos de táticas de recepção, do âmbito da agência e da narrativa, que reposicionem estes padrões sempre segundo individualidade, agentividade e interioridade.

Partindo destas considerações, o artigo passa à análise das condições de possibilidade destes padrões de representação da figura de Gregório de Matos; mutatis mutandis, trataremos das táticas desta ordem de discurso que encontra, ou melhor, funda Gregório de Matos.

3 Implicações discursivas do corpus

É digno de nota o fato de que a tabela 3 antologiza a individualidade de Gregório de Matos, porque as fontes para a obra de Gregório de Matos afunilam-se em Spina (1995)SPINA, S. A poesia de Gregório de Matos. São Paulo: Edusp, 1995. e os trabalhos da Academia Brasileira de Letras de meados dos anos 1930 e 1940: as referências bibliográficas da obra de Wisnik (2010)WISNIK, J. M. (org.) Poemas escolhidos de Gregório de Matos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p.70-71., citada como fonte bibliográfica para o livro de Abaurre e Pontara (2010) no que tange aos poemas de Gregório de Matos, retoma, autorizando, esta tradição de representação de Gregório de Matos pesadamente partilhada pela antologia de Segismundo Spina.

Neste sentido, tal resumo (Tabela 3) proposto por Spina na sessão bibliografia de sua antologia da poesia de Gregório de Matos é um nó importante para encaminhar implicações discursivas do corpus. Primeiro porque este resumo trabalha a discursividade da história (de um indivíduo, bem como da literatura, e até mesmo da própria História) como sequência de eventos, sendo estes eventos os processos de reapropriação da obra gregoriana, o que implica uma história linear e de descobertas do saber. Segundo porque este resumo trabalha a visualização de Gregório de Matos como uma figura autoral-pessoal, narrada segundo uma autoralidade-subjetividade, mas nem este resumo nem o próprio Spina chamam atenção à historicidade do olhar que recolhe Gregório de Matos. Tudo isto corrobora para uma veridicção do resumo de Spina, que soa muito familiar, portanto verdadeira, com o efeito histórico de assim-foi e o efeito normalizante de assim-é.

Esta dupla forjação da figura gregoriana em torno do efeito histórico e da normalização da figura autoral subjetivada do poeta povoa livros de história da literatura brasileira acadêmicos, sendo eles, por exemplo, de Brayner (org.) (1981)BRAYNER, S. (org.) A poesia no Brasil. Volume 1: das origens até 1920. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981., Bosi (1976)BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1976., Veríssimo (1998)VERÍSSIMO, J. História da Literatura Brasileira. São Paulo: Letras & Letras, 1998., Roméro (1902)ROMÉRO, S. Historia da Litteratura Brasileira. Rio de Janeiro: Garnier, 1902., Roncari (1999)RONCARI, L. Literatura Brasileira: Dos Primeiros Cronistas aos Últimos Românticos. São Paulo: Edusp, 1999., Sodré (2004)SODRÉ, N. W. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Graphia, 2004., Merquior (1996)MERQUIOR, J. G. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira I. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. e Carvalho (1943)_______. Pequeña Historia de la Literatura Brasileña. Buenos Aires: Ministerio de Justicia, 1943.. Esta povoação, cuja potência de circulação é dada pela relação de (in)formação articulada com estas histórias, está fundamentada na autorização bibliográfica que cada livro opera e entre todos eles há uma estemática comum de livros todos lavrados no século XX, que por sua vez autorizam-se por outros livros lavrados nos meados do século XIX. Estas redes de autorização da obra gregoriana dão-se por livros mais frequentemente citados sobre Gregório de Matos, ainda do século XX. Como Hansen (1989)HANSEN, J. A. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. comenta dos editores do século XIX, eles apoiam-se unicamente na reedição novecentista de Cunha Barbosa do livro do século XVIII Vida do excelente poeta lírico, o doutor Gregório de Matos e Guerra, escrito pelo licenciado Manuel Pereira Rabelo, o qual também editou poemas circulantes no século XVIII sob a etiqueta "Gregório de Matos".

Para tal constelação de livros do século XIX e XX, a forma livresca é óbvia como critério de possibilidade de existência de algo como Gregório de Matos. À forma livresca está associada a função da assinatura autoral e pessoal. À função da assinatura autoral e pessoal está acoplada uma série de causos em que Gregório de Matos é lido como sujeito, na forma humana que é cara ao olhar de recolha fundando o objeto recolhido. Nestas operações, há uma espécie de gênese histórica do literário, do autor e da obra.

Há algumas condições para a constituição desta verdade histórica, autoral, literária de Gregório de Matos, a qual se apoia nas seguintes operações. Primeira operação:

A Vida do excelente poeta lírico, o doutor Gregório de Matos e Guerra passou a ser tomada, com sua publicação pelo cônego Januário da Cunha Barbosa em 1841, como um discurso fora do ato que o produziu. Os tempos eram românticos e a ficção não foi lida como ficção. As tópicas retóricas do gênero encomiástico "vida" petrificaram-se como vida e o peso da vida expeliu, como vivido, o verossímil como sentido. O texto de Rabelo não foi lido, pois, segundo a especificidade da interpretação barroca (HANSEN, 1989HANSEN, J. A. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1989., p.17).

A segunda operação, implicada pela primeira, tem a ver com a indisponibilidade dos discursos românticos operarem com a compreensão de que "[a] poesia barroca do século XVII é um estilo, no sentido forte do termo, linguagem estereotipada de lugares-comuns retórico-poéticos anônimos e repartidos em gêneros e subestilos" (HANSEN, 1989HANSEN, J. A. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1989., p.16).

Terceira operação, resumptiva das duas primeiras do ponto de vista do olhar que (re)colhe e (re)cria Gregório de Matos:

A autoria, no caso, é produzida pela unificação que se torna produtiva a posteriori: "Gregório de Matos" é uma etiqueta, unidade imaginária e cambiante nos discursos que o compõem contraditoriamente numa hierarquia estética, determinada pela "cadeia de recepções" na expressão de Jauss. Não-substancial, é efeito da leitura dos poemas atribuídos, não sua causa (HANSEN, 1989HANSEN, J. A. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1989., p.15).

Estas condições de recepção, pragmáticas por parte dos leitores e editores do século XIX e XX, constituindo-se em causa e efeito de um curto-circuito do olhar epistêmico, têm a ver intimamente com a atitude filológica destes séculos. Ora, por que editar a obra gregoriana sem sequer hesitar em identificá-la com biografia, com literatura, com política, de tal forma que Gregório de Matos se torne Gregório de Matos 1) individuo; 2) autor, e 3) anti-escravista, crítico mordaz, libertário, quasi-militante, quasi-ativista como sói ser narrado em livros didáticos, histórias de literatura acadêmicas, imaginários literários, cenas de ensino etc.? Isto porque esta atitude filológica - condição quase que causal, não obstante historicamente contingente, das atividades literárias - dava-se em práticas nas quais

[os] filólogos do século XIX [...] buscavam reunir o maior número possível de documentos concernentes à vida do poeta, além de coligir sua obra. [...] Esse aparato erudito de notas e referências era condição para que se pudesse afirmar [...] que a narrativa histórica recontava, ao mesmo tempo que provava, pela exaustão do levantamento documental e seu tratamento e interpretação (HANSEN e MOREIRA, 2013_______ ; MOREIRA, M. Gregório de Matos e Guerra - Letrados, manuscritura, retórica, autoria e público na Bahia dos séculos XVII e XVIII. Belo Horizonte: Autêntica, 2013., p.16).

Para que, feito isto, finalmente "[o] texto estabelecido pela crítica filológica [visasse] abolir qualquer dúvida quanto ao fato de as palavras do poema serem as que foram efetivamente desejadas e expressas pelo autor" (HANSEN e MOREIRA, 2013_______ ; MOREIRA, M. Gregório de Matos e Guerra - Letrados, manuscritura, retórica, autoria e público na Bahia dos séculos XVII e XVIII. Belo Horizonte: Autêntica, 2013., p.17).

À guisa de arremate, seria cabível crivar o que foi dito sobre o corpus aos operadores teórico-metodológicos escolhidos. Em relação ao princípio de inversão, Gregório de Matos não seria um ponto luminoso e emanatório ou uma fonte de nexos literários com aspectos políticos e críticos; "ele" é, conquanto autor, projétil de um tal projeto de uma tal vontade de estudar, de saber, de querer-saber. Figurá-lo de tal forma implica descontinuá-lo, rarefazendo-o, uma vez que só existe em tal regime epistêmico com suas capacidades ontológicas, ou seja, com suas capacidades de fundar mundos e impressões. Isto leva à especificidade e externalidade do caso Gregório de Matos: esta figura literária é só localmente possível, embora suas condições discursivas internas se pretendam infalíveis da sua não só possibilidade, mas realidade ipso facto. Paradoxalmente, seria possível dizer que Gregório de Matos existe em absoluto se tomado de um ponto exterior de sua existencialidade, ou seja, se relativizada sua existencialidade como existente-desde-um-ponto: sendo assim, Gregório de Matos, externamente aos discursos que o fundam, não existe; mas, do interior de suas condições de existência discursiva, ele existe.

Gregório de Matos é figurado, para este trabalho, a uma só vez, como verossímil e inverossímil.

Conclusão

Foram narrados, neste artigo, movimentos representacionais a respeito das supostas e, então, realizadas vida e obra de Gregório de Matos. Tais movimentos descarregavam-se de processos de (res)significação editorial, frente aos quais foram postas em oposição narrativas de (res)significação editorial, as de Hansen (1989)HANSEN, J. A. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. e de Hansen e Moreira (2013)_______ ; MOREIRA, M. Gregório de Matos e Guerra - Letrados, manuscritura, retórica, autoria e público na Bahia dos séculos XVII e XVIII. Belo Horizonte: Autêntica, 2013., pelas quais foi figurada uma dupla verdade autoral para o poeta barroco. Há, portanto, uma oposição de dois gestos epistêmicos: um gesto que eclipsasse as políticas de verdade dos artifícios discursivos conhecidos por história, tempo, literatura, etc; e um outro gesto que imantizasse quaisquer processos de constituição textual para junto das condições constituidoras do texto, suas circunstâncias culturais e históricas, suas poéticas (criação) e políticas (circulação) de verdade.

Uma análise de discurso de um fenômeno como Gregório de Matos, pelas operações aqui realizadas, acarreta uma conclusão que não é somente relativa aos objetos analisados, mantidos sempre exteriores à análise: acarreta, sobretudo, métodos, em caminhos para uma análise de representações. Em um certo sentido, uma análise das representações discursivas de Gregório de Matos tem como conclusão uma espécie de pathos de pesquisa que figure a relação entre o conhecimento e os objetos de conhecer, as representações, como constante invenção (FOUCAULT, 2002_______ A verdade e as formas jurídicas. Trad. Roberto C. M. Machado e Eduardo J. Morais. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002.) e refração (HARAWAY, 1994HARAWAY, D. A Game of Cat's Cradle. Configurations. v. 2, n.1, p.59-71, 1994.): fundações, e não achados. Isto confere ao artigo um ethos-de-pesquisa - ou seja, um methodos - para o qual

não serão usados quaisquer procedimentos de leitura e de escrita integrantes da história da filosofia greco-ocidental, sejam monográficos ou doxográficos, sejam os que estabelecem uma dualidade entre causa repressora e desejo reprimido, ou que prevêem uma relação entre representante deformador e representado deformado (CORAZZA, 2008CORAZZA, S. M. Os cantos de Fouror: escrileitura em filosofia da educação. Porto Alegre: Sulina, Editora da UFRG, 2008., p.69).

Isto posto, pode-se apontar para uma análise de representações em que "representação" não performe a distância objetual para possibilitar o saber representacional, nem implique convocar autores, textos, histórias, temas ou livros, mas "matéria informada e forças anônimas, partículas e diagramas, hecceidades e phylum, com os quais os estratos de conteúdo e expressão são formados" (2008, p.69).

REFERÊNCIAS

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  • _______. Literatura: tempos, leitores e literaturas. São Paulo: Moderna, 2010b [suplemento de revisão]
  • AQUINO, J. R. G. Diálogos em delay. Educação e Pesquisa, São Paulo, ago. 2016. Ahead of print. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022016005005103 Acesso em: 4 nov. 2016.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    07 Ago 2016
  • Aceito
    01 Mar 2017
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