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Presença da tradução e da interpretação das línguas de sinais no “grande tempo” da cultura

Na interpretação vivencio outra vida sem sair dos limites do autovivenciamento e da autoconsciência, sem lidar com outros como tais. Dá-se o mesmo quando se tem consciência da ilusão: continuando a ser eu mesmo, vivencio outra vida.

Mikhail Bakhtin

Nunca despreze o tradutor. Ele é o carteiro da civilização humana

Aleksandr Púshkin 1 1 No inglês: “Please, never despise the translator. He’s the post-horse of human civilization”. Referência: JOLY, J-F. Preface. In: DELISLE, J.; Woodsworth, J. (Eds.). Translators through History. Revised and expanded by Judith Woodsworth. Amsterdam; Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 2012, p. xx.

Mikhail Bakhtin e seu Círculo oferecem às Ciências Humanas contribuições significativas para a compreensão da cultura enquanto processo sócio-histórico. No ensaio A ciência da literatura hoje, publicado em 1970 na revista Novi Mir, Bakhtin (2017)BAKHTIN, M. A ciência na literatura hoje (Resposta a uma pergunta da revista Novi Mir). In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017. p.9-19. reflete sobre o caráter dialógico da cultura humana e da sua inscrição naquilo que ele designou como grande tempo, conceito cunhado primeiramente em sua tese de doutorado, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rebelais¸ defendida em 1946 e publicada em 1965. O grande tempo corresponde à historicidade universal do existir humano ou, nas palavras de Bubnova (2015, p.11)BUBNOVA, T. O que poderia significar o “Grande Tempo”? Bakhtiniana, São Paulo, v. 10, n.2, p.5-16, 2015. Disponível em: [http://dx.doi.org/10.1590/2176-457323260]. Acesso em: 30 jul. 2018.
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, ao “[...] espaço semiótico da cultura em que a simultaneidade histórica de sentidos e o diálogo entre eles é possibilitado”. Para Bakhtin (2017, p.14)BAKHTIN, M. A ciência na literatura hoje (Resposta a uma pergunta da revista Novi Mir). In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017. p.9-19. é a atividade criadora do humano, na e pela relação ética e responsável com o outro, que permite esse diálogo simultâneo entre a história pré-dada e o tempo presente. Como para ele a criação atravessa tanto a arte quanto a vida enquanto campos da cultura humana ao lado da ciência, unindo-as singularmente na reponsabilidade do sujeito (BAKHTIN, 2010BAKHTIN, M. Arte e responsabilidade. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.p.xxxiii-xxxiv.), “as obras dissolvem as fronteiras da sua época, vivem nos séculos, isto é, no grande tempo, e além disso levam frequentemente (as grandes obras, sempre) uma vida mais intensa e plena do que em sua atualidade” (BAKHTIN, 2017BAKHTIN, M. A ciência na literatura hoje (Resposta a uma pergunta da revista Novi Mir). In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017. p.9-19., p.14).

O autor que, no texto de 1970, dedica-se a observar a produção literária no âmbito de um “guarda-chuva” científico, destaca que uma obra nasce em uma época, em um período determinado, mas inscreve-se na História ampliando seu significado e instaurando novos sentidos porque, da mesma forma que faz parte de sua época, dialoga com o passado e pode ser lida, (re)visitada em tempos futuros, vindouros àquilo que foi produzido. A temporalidade da produção da obra, o pequeno tempo, permite o deslocamento e a aparição do grande tempo da cultura, promovendo, com isso, intercâmbios entre sujeitos, comunidades e povos. Permite a aparição do grande tempo porque “[...] uma obra não pode viver nos séculos futuros se de certo modo não reúne em si também os séculos passados” (BAKHTIN, 2017BAKHTIN, M. A ciência na literatura hoje (Resposta a uma pergunta da revista Novi Mir). In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017. p.9-19., p.14). Nessa direção, os pequenos tempos, ligados às comunidades e culturas locais em determinadas condições concretas e épocas, bombeiam para o grande tempo a produção do humano tornando-as parte da História. A relação é dialética. O grande tempo alimenta a vida do tempo de cada época e as pequenas temporalidades o constituem porque no “encontro dialógico de duas culturas, elas não se fundem nem se confundem; cada uma mantém a sua unidade e a sua integridade aberta, mas elas se enriquecem mutuamente” (BAKHTIN, 2017BAKHTIN, M. A ciência na literatura hoje (Resposta a uma pergunta da revista Novi Mir). In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017. p.9-19., p.19).

Há que se considerar, nesse sentido, que o trânsito cultural promovido pelo diálogo entre os tempos não acontece apenas pela familiaridade e pertencimento do sujeito criador à sua comunidade cultural e linguística. Há, de certo modo, pontes construídas entre os diversos povos na História para que, apesar das diferenças, o trânsito entre eles possa acontecer e o sujeito do tempo presente, agente ético também responsável pela construção da historicidade humana, acesse o que está sedimentado às “imensas possibilidades semânticas que ficaram à margem das descobertas” (BAKHTIN, 2017BAKHTIN, M. A ciência na literatura hoje (Resposta a uma pergunta da revista Novi Mir). In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017. p.9-19., p.17). Nesse trânsito, os sujeitos, em seus processos criativos, estabelecem “[...] interação com as obras (marcas) do passado [...]” levando em “consideração seu enriquecimento histórico” (BUBNOVA, 2015BUBNOVA, T. O que poderia significar o “Grande Tempo”? Bakhtiniana, São Paulo, v. 10, n.2, p.5-16, 2015. Disponível em: [http://dx.doi.org/10.1590/2176-457323260]. Acesso em: 30 jul. 2018.
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, p.10), isto é, buscam referências e dialogam com o grande tempo por meio de “produtos” culturais de sua época permitindo a visitação e retomada do passado. “É quase impossível para o cidadão comum ter uma imagem precisa do passado histórico sem tê-lo tematizado, no interior de uma ‘cultura herdada’, que inclui panoramas ou costumes de época” (HALL, 1997HALL, S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais de nosso tempo. Educação & Realidade, v. 2, n. 22, p.15-46, 1997. Disponível em: [http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71361/40514]. Acesso em: 01 ago. 2018
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, p.17).

Dentre as pontes que permitem esse trânsito dialógico e cultural, pode-se dizer que a tradução representa a prática discursiva que, por excelência, mais faz circular a pluralidade cultural do grande tempo. A tradução, enquanto atividade de mediação enunciativo-discursiva, pode ser encarada como uma prática social e histórica que permite o intercâmbio cultural entre povos e comunidades promovendo o diálogo de sentidos do grande tempo com diferentes épocas. Sem dúvidas “a circulação de textos através da história se deu pelas suas traduções” (PONTES JR; BATALHA 2004PONTES JR., G.; BATALHA, M. A tradução como prática da alteridade. Cadernos de Tradução, v. 1. n. 13, p.27-43, 2004. Disponível em: [https://periodicos.ufsc.br/ index.php/traducao/article/view/6230/5849]. Acesso em: 01 ago. 2018
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, p.28). Essa atividade está, conforme já discutia Jakobson (2010)JAKOBSON, R. Aspectos linguísticos da tradução. In: JAKOBSON, R. Linguística e comunicação. 22. ed. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2010., no centro do funcionamento da linguagem. Nesse sentido, “no universo da ‘comunicação’ que é o nosso, ela está presente em todos os lugares” (OUSTINOFF, 2011OUSTINOFF, M. Tradução: história, teoria e métodos. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Editora Parábola, 2011., p.73).

Seja em sua dimensão escrita - a tradução, propriamente dita, seja a em sua dimensão oral - a interpretação, a atividade tradutória (cada uma em suas condições de realização) concretiza a pluralidade de visões de mundo porque permite a quebra de fronteiras e o fluir de diferentes formas de existir do humano em suas culturas locais. Com esse movimento, a tradução faz surgir a diferença. É uma atividade que permite a aparição da alteridade porque faz aparecer o outro em sua heterodiscursividade e pluralidade cultural. Na história da humanidade, a tradução e a interpretação foram atividades que promoveram intercâmbios culturais e fizeram transitar, do sagrado ao profano, a diversidade religiosa, literária, científica, popular de diferentes épocas e lugares.

O que dizer, então, da tradução na contemporaneidade? Que culturas e formas de existir essa prática discursiva têm mobilizado na corrente da História? Na pós-modernidade, a era da consolidação dos direitos humanos, a tradução faz aparecer aquilo que Bakhtin (2017, p.12)BAKHTIN, M. A ciência na literatura hoje (Resposta a uma pergunta da revista Novi Mir). In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017. p.9-19. chamou de “[a]s correntes poderosas e profundas da cultura”, aquelas que “[...] continuam aguardando descobertas e às vezes permanecem totalmente desconhecidas dos pesquisadores”. As chamadas culturas populares, desprezadas e negligenciadas até meados do século passado, têm ganhado mais espaço, também, pela força que a tradução tem exercido no século XXI enquanto atividade promotora da diferença. Dentre as culturas populares, para usar a terminologia bakhtiniana, as chamadas culturas surdas têm emergido do grande tempo da cultura para o pequeno tempo atual.

As comunidades surdas sempre estiverem presentes na História. Durante algum tempo foram silenciadas e proibidas, a partir da educação institucionalizada, de se narrarem do lugar da sua diferença linguística e cultural. Nesse tempo de proibição formal, de 18802 2 O conhecido Congresso de Educação de Surdos realizado em Milão aprovou, em assembleia, com educadores de surdos de todo o mundo, a superioridade do sistema oral em relação ao sistema gestual utilizado nas escolas de surdos. O sistema gestual foi proposto e promovido pelo Abade Charles-Michel de l'Épée no Instituto de Educação de Surdos-Mudos de Paris e foi adotado por diversas instituições educacionais de surdos ao redor do mundo. Com o Congresso de Milão, o sistema gestual foi proibido e, a partir de então, as instituições educacionais de surdos passaram a utilizar a palavra falada nesses espaços relegando às línguas de sinais a proibição institucional de seu uso no espaço escolar. Para mais detalhes sobre a história da educação de surdos, conferir Moura (2000). até meados da década de 1980, não tiveram o direito de perceber e promover suas próprias características devido ao aculturamento pelo qual foram submetidas a fim de serem transformadas em comunidades ouvintes deficientes. A proibição das línguas de sinais e a tentativa de apagamento da sua cultura, entretanto, não impediram a autopercepção enquanto sujeitos diferentes e nem a resistência junto aos pares nos becos da História. O efeito disso foi, no âmbito da discursividade pós-moderna, a impactante ruptura com a medicalização de sua condição de não-ouvir para, então, se instaurarem enquanto comunidade linguística e culturalmente minoritária com produções, artefatos culturais e visões de mundo peculiares. Com os movimentos contemporâneos, promovidos pelo multiculturalismo, de ressignificação do conceito de identidade como elemento estável e estanque para o de identidade culturalmente plural marcada pelas diferenças étnicas, raciais, religiosas, culturais e linguísticas (HALL, 2011HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Rio de Janeiro: DP&A. 2011.), os surdos passaram a apresentar narrativas de si, desde meados da década de 1980, como comunidade com e em sua própria língua. Se o grande tempo, para retomar Bubnova (2015)BUBNOVA, T. O que poderia significar o “Grande Tempo”? Bakhtiniana, São Paulo, v. 10, n.2, p.5-16, 2015. Disponível em: [http://dx.doi.org/10.1590/2176-457323260]. Acesso em: 30 jul. 2018.
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, é o espaço semiótico da cultura que permite o diálogo de sentidos na História, faz sentido, então, que os povos surdos, na era pós-moderna, apareçam pela singularidade material de suas línguas que, na contramão do que se chamou de língua na Linguística Moderna (apenas para retomar a ideia saussureana de, por exemplo, significante como imagem acústica), se realizam pela semiose do gesto corporal e pela visualidade como canal de acesso ao mundo discursivo.

Essa aparição dos surdos enquanto sujeitos culturais e linguísticos fez emergir, também, práticas de mediação que permitem que aquilo que é produzido no pequeno tempo das culturas surdas ganhe reverberação no grande tempo da cultura humana, ou seja, as comunidades surdas, ao resistirem, da margem ao centro, com as línguas de sinais e suas diferentes expressões culturais, também permitiram que outras práticas discursivas surgissem em função de suas necessidades interativas. A tradução e a interpretação constituem algumas dessas práticas que nascem das demandas comunicacionais e entrelaçam-se com os modos surdos de existir na arte, na ciência e na vida. Apesar das proibições, aculturações e opressões históricas, a resistência surda mobilizou e inscreveu na História uma rede enunciativa constituída de diferentes discursos que, na contemporaneidade, ecoam dos porões do grande tempo para a visibilidade “autorizada” de nossa época.

Nesse prisma, apesar de existirem nas culturas populares, como disse Bakhtin, inúmeros fatores ocultos aos pesquisadores, as produções culturais surdas, bem como a tradução e a interpretação das línguas de sinais, que possuem caráter comunitário e garantem os direitos básicos da comunicação na ideologia do cotidiano aos surdos, já têm sido, pouco a pouco, observadas e descritas do ponto de vista científico. Em relação às atividades tradutórias e interpretativas, o emergente campo disciplinar denominado estudos da tradução e da interpretação da língua de sinais (RODRIGUES & BEER, 2015RODRIGUES, C.; BEER, H. Os estudos da tradução e da interpretação de língua de sinais: novo campo disciplinar emergente? Cadernos de Tradução, v. 35, n. esp. 2, p.17-45, 2015. Disponível em: [https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2015v35nesp2p17/30707]. Acesso em: 30 jun. 2018.
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), confluência acadêmica que faz dialogar abordagens metodológicas diversas advindas dos chamados Estudos da Tradução (ET) e Estudos da Interpretação (EI) que, por sua vez, apresentam interdisciplinaridade entre diversos campos das Ciências Humanas, vem possibilitando a descrição de processos e revelando realidades dessas práticas na corrente da história atual.

Todavia, é importante ressaltar que, apesar da importância do “nascimento” de um campo específico para o estudo de processos tradutórios e interpretativos dessas línguas em função, dentre outros aspectos, da modalidade linguística e esferas de atuação profissional, esse movimento pode ser lido como um sintoma da sistemática negação das línguas de sinais nos referidos campos disciplinares (PEREIRA, 2018PEREIRA, M. Estudos da interpretação: quem tem medo das línguas de sinais? Tradução em revista, v. 1, n. 24, p.1-21, 2018. Disponível em: [https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/34524/34524.PDFXXvmi]. Acesso em: 05 ago.2018.
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) e em outros das Ciências Humanas. A realização de importantes estudos (PEREIRA, 2010PEREIRA, M. Produções acadêmicas sobre interpretação de língua de sinais: dissertações e teses como vestígios históricos. Cadernos de Tradução, v. 2., n. 26, p.99-117,2010. Disponível em: [https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2010v2n26p99/14225]. Acesso em: 06 ago. 2018
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; SANTOS, 2013SANTOS, S. Tradução/interpretação de língua de sinais no Brasil: uma análise das teses e dissertações de 1990 a 2010. (Tese). Doutorado em Estudos da Tradução. Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução, Universidade Federal de Santa Catarina, 2013.; RODRIGUES; BEER, 2015RODRIGUES, C.; BEER, H. Os estudos da tradução e da interpretação de língua de sinais: novo campo disciplinar emergente? Cadernos de Tradução, v. 35, n. esp. 2, p.17-45, 2015. Disponível em: [https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2015v35nesp2p17/30707]. Acesso em: 30 jun. 2018.
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, dentre outros) para mostrar a emergência de um espaço singular, bem como mapear e afirmar a presença da tradução e da interpretação das línguas de sinais em produções acadêmicas como dissertações, teses e artigos científicos no contexto brasileiro só mostra que o “esforço empregado em apagar uma presença [...] só faz confirmar essa presença” (AMORIM, 2004AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas Ciências Humanas. São Paulo: Musa Editora, 2004., p.30). O silenciamento e a marginalização das línguas de sinais nas Ciências Humanas como um todo, sobretudo em campos que poderiam adotá-las, cada um em sua especificidade epistemológica, como objeto de estudo e descrição (em especial a Linguística, a Educação, os ET e os EI), promove, na margem, uma presença marcante, potente e afirmadora dos surdos enquanto minoria linguística e social no grande tempo. Se é na margem dos rios que a vida nasce pela irrigação da água corrente, é na margem que os estudos envolvendo as línguas de sinais, as comunidades surdas, a tradução e a interpretação das línguas de sinais nas Ciências Humanas tem nascido e resistido. Porém, a vida marginal tem invadido os leitos disciplinares e abalado o que tradicionalmente, do ponto de vista epistêmico, se denominou comunidade, povo, cultura e língua. É a presença surda como diferença deslocando-se do grande tempo para promover novos sentidos históricos na arte, na ciência e na vida ressignificando, também, os sentidos de traduzir e interpretar línguas e culturas no nosso pequeno tempo.

Nessa edição, Bakhtiniana mostra uma pequena realidade dos estudos da tradução e da interpretação da língua de sinais em nossa época, bem como as formas que essas atividades têm mobilizado do e para o grande tempo a presença surda enquanto diferença. São textos de pesquisadores de diferentes instituições nacionais e internacionais que descrevem e analisam a tradução e a interpretação, cada um em sua abordagem teórico-conceitual, como atividades que promovem diálogos do grande tempo com a nossa realidade. Os artigos aqui reunidos articulam, nessa tecelagem histórica, essas práticas como atividades humanas contemporâneas sustentadas pelo discurso pós-moderno da diferença. Revelam, ainda, que o movimento científico, legitimado e promovido no Brasil por diferentes políticas públicas, e a luta pela profissionalização da categoria promove um importante distanciamento de uma visão assistencialista, pela qual estiveram historicamente atravessadas, para o da percepção social dessas atividades como promotoras de direitos humanos, sociais e linguísticos.

No primeiro artigo, As funções do intérprete educacional: entre práticas sociais e políticas educacionais, Neiva de Aquino Albres e Carlos Henrique Rodrigues (ambos da Universidade Federal de Santa Catarina), orientados pela contribuição do conceito de texto elaborado por Bakhtin no âmbito das Ciências Humanas, analisam trechos de um documento publicado pela Secretaria Municipal de Educação de Florianópolis e apresentam reflexões sobre os diferentes papéis assumidos por intérpretes educacionais do par linguístico Libras-Português no contexto da educação inclusiva. A realidade da inclusão de surdos, aspecto latente no século XXI, é tensionado pelos autores levando o leitor a refletir o quanto o dito oficial, de uma forma ou de outra, determina a vida cotidiana.

Em Discurso, interpretação e tradução: a profissão TILS e seus sentidos na atualidade, Ângela Russo e Dória Maria Fiss, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, promovem um profícuo diálogo entre a Análise do Discurso francesa de Michel Pêcheux com os Estudos da Tradução para observar as novas condições de produção de discurso acerca dos tradutores e dos intérpretes de língua de sinais na atualidade. Haja vista os movimentos de profissionalização, a discussão realizada pelas autoras nos permite observar os sentidos atuais da tradução e da interpretação da língua de sinais como atividades profissionais.

Katia Andreia Souza dos Santos (Universidade do Estado do Pará) e Cristina Broglia Feitosa de Lacerda (Universidade Federal de São Carlos) apresentam em Intérprete de Libras-Português no contexto de conferência: reflexões sobre sua atuação resultados de uma pesquisa que analisa, com base no pensamento bakhtiniano, a atuação do intérprete de língua brasileira de sinais (Libras) em uma conferência acadêmica. A pesquisa utilizou a metodologia da autoconfrontação, originalmente proposta na Clínica da Atividade Francesa, para colocar os sujeitos da atividade interpretativa frente-a-frente com seu fazer. A reflexão das autoras problematiza, nessa direção, a tradição dos estudos da interpretação de conferências ligados à perspectiva cognitiva ao defenderem que existem inúmeros fatores para além do processamento cognitivo envolvidos na atividade interpretativa nesse contexto.

No artigo Educação como percurso: por uma mestria ativa, criativa e inventiva na educação de surdos, Vanessa Regina de Oliveira Martins (Universidade Federal de São Carlos) e Sílvio Gallo (Universidade Estadual de Campinas) refletem sobre o aprender de surdos por meio de processos de interpretação no contexto educacional. Com base na filosofia francesa da diferença, os autores observam cenas escolares para articularem a teoria a duas obras literárias, O mestre ignorante de Jacques Rancière e O mestre inventor de Walter Kohan. A discussão caminha para a afirmação que os processos de aprendizagem envolvem, de uma forma ou de outra, posições-mestre, o que significa dizer que, na educação de surdos, o intérprete de língua de sinais assume tal posição e é atravessado pelo discurso e práxis pedagógica.

Vinicius Nascimento (Universidade Federal de São Carlos) apresenta, em O eu-para-mim de intérpretes de língua de sinais experientes em formação, o recorte de sua pesquisa de doutorado que discutiu a formação de intérpretes de Libras e Língua Portuguesa (LP). Utilizando-se de uma adaptação da metodologia da autoconfrontação proposta pelo linguista francês Daniel Faïta, o autor mostra como a posição dos sujeitos frente aos “outros de si mesmos” remete à alteridade constitutiva da atividade de trabalho, bem como ao necessário e constante movimento de enfretamento de si como outro para o aperfeiçoamento profissional. Discute, ainda, a necessidade de um olhar direcionado aos profissionais que iniciaram sua atuação sem passar por uma formação específica inicial, mas que, após formarem-se em diferentes áreas, decidem buscar uma formação que considera o saber adquirido na prática e sua ressignificação desse saber adquirido em espaços formativos.

Com o objetivo de problematizar a prática dos intérpretes de línguas de sinais nos anos iniciais de escolarização, Ana Claudia Balieiro Lodi (Universidade de São Paulo) e Leonardo Peluso (Universidad de la República Uruguay), em Reflexões acerca da presença de intérpretes de língua de sinais nos anos iniciais de escolarização, discutem as implicações da presença desse profissional para os processos de assimiliação da língua de sinais pelos alunos surdos e para seus processos de aprendizagem escolar. Os autores defendem que é necessária uma ressignificação do conceito vigente de inclusão que reduz a inserção do sujeito aos espaços escolares para um que assegure o reconhecimento social, cultural e linguístico das pessoas surdas em todas as esferas sociais.

Em Verbo-visualidade e seus efeitos na interpretação de Libras no teatro, Carolina Fernandes Rodrigues Fomin (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) observa a atividade de interpretação simultânea do Português para a Libras na esfera teatral, por meio do diálogo teórico entre os estudos da interpretação, os estudos da teatralidade e o pensamento bakhtiniano. A autora investigou as relações verbo-visuais do discurso e seus efeitos de sentido para a interpretação em Libras, a partir de um estudo qualitativo analítico-descritivo em dois espetáculos teatrais que contaram com a atuação de tradutores e intérpretes de língua de sinais para garantir acessibilidade comunicacional para as pessoas surdas.

No último artigo, O tipping-point: usando o discurso diagnóstico de pacientes simulados para educar intérpretes médicos, Robyn Dean (Rochester Institute of Technology) apresenta o uso de vídeos de atendimentos médicos de hospitais escolas na formação de intérpretes de língua de sinais para atuarem na esfera da saúde. A autora utiliza a abordagem em um ambiente virtual de aprendizagem em um curso de pós-graduação em interpretação médica e aponta para a pluralidade do uso do instrumento na formação de intérpretes para atuarem na esfera da saúde em geral.

Esta edição de Bakhtiniana, então, oferece ao leitor a possibilidade de observar que a tradução e a interpretação da língua de sinais compõem (ainda que alguns pesquisadores filiados a diferentes disciplinas das Ciências Humanas, tanto as clássicas quanto as emergentes, neguem) o grande cenário da tradução, do ponto de vista social e acadêmico, enquanto atividade humana, permitindo, sim, o intercâmbio de culturas. Nesse caso, mobilizam, em nossa época, conforme explicitado, a presença histórica dos surdos enquanto comunidade sociolinguística no grande tempo. O resultado prático desse movimento são os desconfortos inevitáveis (e positivos) que a presença surda, a tradução e a interpretação das línguas de sinais têm causado nos tradicionais centros científicos de diferentes disciplinas das Ciências Humanas ao redor do mundo. É a vida que nasce à margem devolvendo aos rios da ciência, nos dias de hoje, a potência e a força que tentaram apagar em diferentes períodos do grande tempo.

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    No inglês: “Please, never despise the translator. He’s the post-horse of human civilization”. Referência: JOLY, J-F. Preface. In: DELISLE, J.; Woodsworth, J. (Eds.). Translators through History. Revised and expanded by Judith Woodsworth. Amsterdam; Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 2012, p. xx.
  • 2
    O conhecido Congresso de Educação de Surdos realizado em Milão aprovou, em assembleia, com educadores de surdos de todo o mundo, a superioridade do sistema oral em relação ao sistema gestual utilizado nas escolas de surdos. O sistema gestual foi proposto e promovido pelo Abade Charles-Michel de l'Épée no Instituto de Educação de Surdos-Mudos de Paris e foi adotado por diversas instituições educacionais de surdos ao redor do mundo. Com o Congresso de Milão, o sistema gestual foi proibido e, a partir de então, as instituições educacionais de surdos passaram a utilizar a palavra falada nesses espaços relegando às línguas de sinais a proibição institucional de seu uso no espaço escolar. Para mais detalhes sobre a história da educação de surdos, conferir Moura (2000).

REFERÊNCIAS

  • AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas Ciências Humanas. São Paulo: Musa Editora, 2004.
  • BAKHTIN, M. A ciência na literatura hoje (Resposta a uma pergunta da revista Novi Mir). In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017. p.9-19.
  • BAKHTIN, M. Arte e responsabilidade. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.p.xxxiii-xxxiv.
  • BUBNOVA, T. O que poderia significar o “Grande Tempo”? Bakhtiniana, São Paulo, v. 10, n.2, p.5-16, 2015. Disponível em: [http://dx.doi.org/10.1590/2176-457323260]. Acesso em: 30 jul. 2018.
    » http://dx.doi.org/10.1590/2176-457323260
  • HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Rio de Janeiro: DP&A. 2011.
  • HALL, S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais de nosso tempo. Educação & Realidade, v. 2, n. 22, p.15-46, 1997. Disponível em: [http://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71361/40514]. Acesso em: 01 ago. 2018
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  • JAKOBSON, R. Aspectos linguísticos da tradução. In: JAKOBSON, R. Linguística e comunicação 22. ed. Trad. Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2010.
  • MOURA, M. C. O surdo: caminhos para uma nova identidade. Rio de Janeiro: Revinter, 2000.
  • OUSTINOFF, M. Tradução: história, teoria e métodos. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Editora Parábola, 2011.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018
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