Acessibilidade / Reportar erro

Bakhtin e as artes do espetáculo

Por Artes do Espetáculo compreende-se, hoje, um arsenal de investigações, experimentos e práticas, cujo espectro, já inominável, abriga os campos dos estudos em corpo, teatro, dança, performance, circo, dramaturgia e história, produção e tecnologias da cena (entre outros), por meio de diferentes correntes teórico-práticas e contextos de pesquisa. O pensamento artístico-conceitual, bem como os processos de criação, circulação e recepção vêm modificando a experiência artística de modo que já não é mais possível (nem preciso) restringir essa discussão a uma só perspectiva epistemológica ou a um campo do conhecimento.

Extrapolando seu próprio lugar construído historicamente, o universo das artes cênicas tende atualmente ao cruzamento entre inovação e dimensão estética, ou seja, com as modificações do interesse pelas formas de comunicação e expressão humanas, alteram-se, também, os modos de vivenciar e produzir a cena ao vivo - premissa ainda fundamental para a existência das Artes do Espetáculo na contemporaneidade.

A construção de um campo de conhecimento, no entanto, está relacionada a vozes que ressoam, ao longo do tempo e, de certa forma, delineiam a projeção discursiva de autores e intelectuais interessados em um determinado tema, o que, por sua vez, delimita e/ou expande possibilidades de sua compreensão em um processo responsável por, às vezes, visibilizar, e outras, por apagar reflexões que se encontram no “grande tempo” e em distintas “esferas” de comunicação. Poderia ser o caso, e não apenas como exemplificação, da relação entre os estudos das Artes do Espetáculo e a obra de Mikhail Bakhtin [1895-1975]BAKHTIN, M. Por uma metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Org., trad., posf. e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo Editora 34, 2017 [1975], p.57-80., Valentín Volóchinov [1895-1936] e Pável Nikolaievitch Medviédev [1982-1938], pensadores que integram o que tem sido denominado Círculo Bakhtiniano. Urge investigar, ao menos sob duas égides distintas, as malhas discursivas desta relação.

A primeira poderia estar vinculada à forma com que a convergência temática Artes do Espetáculo aparece nos escritos destes pensadores em variadas épocas, espaços e formas, resultando em diferentes possibilidades a partir das quais o teatro, a dança, o corpo e a performance constituem alvo de reflexão do grupo de intelectuais russos, mesmo quando as abordagens não se configuram de forma direta e pontual.

Uma segunda perspectiva de investigação, esta de caráter mais abrangente, consistiria na pesquisa da potencialidade da obra bakhtiniana para a análise dos espetáculos, incluindo aí os processos, contextos e tempos envolvidos.

Vale lembrar que, na obra do Círculo , é possível assinalar algumas questões relacionadas à análise da relação entre teatro, jogo, atuação e contemplação que, embora pouco conhecidas por estudiosos, tanto da perspectiva dialógica quanto dos estudos em Artes do Espetáculo, podem contribuir para uma melhor compreensão sobre o escopo de interesses abarcado pelo grupo bakhtiniano, o que certamente abriga as duas vertentes acima mencionadas.

No Brasil, temos estudado, especialmente no âmbito do Laboratório de estudos em Educação Performativa, Linguagem e Teatralidades (ELiTe/UFPR/CNPq), as relações entre Bakhtin e as Artes do Espetáculo por diferentes prismas, investigando discursos e práticas cênicas a partir da Análise Dialógica do Discurso e pesquisando, também, apontamentos sobre as artes encontrados na obra bakhtiniana (GONÇALVES, 2019GONÇALVES, J. Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo]. São Paulo: Hucitec, 2019.). As investigações por nós realizadas têm sido discutidas em congressos, grupos, projetos de pesquisa e adentrado eventos de importantes associações de pesquisa do país (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística [ANPOLL - GT Estudos Bakhtinianos], Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas [ABRACE - GT Pedagogia das Artes Cênicas] e Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação [ANPED - GT Educação e Arte]). Tal inserção resulta, hoje, em um amplo conjunto de publicações científicas ao redor do tema Bakhtin e as Artes do Espetáculo, na forma de artigos em periódicos, capítulos de livro, relatórios de Iniciação Científica, Dissertações de Mestrado, Teses de Doutorado e Relatórios de Estágio Pós-Doutoral .

Mais recentemente, na importante obra Bakhtin and Theatre: Dialogues with Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski (McCAW, 2016McCAW, D. Bakhtin and Theatre: Dialogues with Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski. Abingdon: Routledge, 2016.), Dick McCaw, professor da Royal Holloway - Universidade de Londres e um dos colaboradores estrangeiros do ELiTe/UFPR/CNPq, “examina as conexões entre o pensamento do autor russo Mikhail Bakhtin (1895-1975)BAKHTIN, M. Por uma metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Org., trad., posf. e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo Editora 34, 2017 [1975], p.57-80. e a produção teatral de diretores e pesquisadores teatrais contemporâneos de Bakhtin: Konstantin Stanislavsky (1863- 1938), Vsevelod Meyerhold (1879-1940) e Jerzy Grotowski (1933-1999)” (GONÇALVES & SANTOS, 2016GONÇALVES, J.; SANTOS, M. MCCAW, D. Bakhtin and Theatre: Dialogues with Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski/Bakhtin e o teatro: diálogos com Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski. Abingdon: Routledge, 2015. 264p. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, v. 11, n.3, pp.213-218, 2016. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/bakhtiniana/article/view/28069/20536. Acesso em: 14 jun. 2019.
https://revistas.pucsp.br/bakhtiniana/ar...
, p.214). A obra em muito contribui para a construção do conhecimento na área, já que não são muitos, ainda, os teatrólogos que têm se dedicado ao tema.

Ressaltamos, assim, a parceria entre dois pesquisadores em teatro, de países diferentes (Brasil e Inglaterra), e interessados na mesma lente teórica (os estudos bakhtinianos), no desafio de construir este número de Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, com o intuito de, ao mesmo tempo, retomar/relembrar possibilidades de pesquisa entre Bakhtin e as Artes do Espetáculo já estudadas e com resultados apresentados à comunidade científica e ainda vislumbrar, a partir daqui, outras poéticas de investigação, trazendo à luz a merecida visibilidade das relações dos estudos realizados por Bakhtin e o Círculo com a área das Artes (da cena, do corpo, da educação).

Destacamos também que Caryl Emerson, professora da Princeton University - Canadá, reconhecida por sua trajetória nos estudos bakhtinianos, escreveu, em 2015, o artigo Bakhtin and the Actor (with Constant Reference to Shakespeare) (EMERSON, 2015EMERSON, C. Bakhtin and the Actor (with constant reference to Shakespeare). Studies in East European Thought. v. 67, pp.183-207, 2015. Disponível em: https://philpapers.org/pub/1051/2015. Acesso em: 13 jun. 2019.
https://philpapers.org/pub/1051/2015...
), que aborda a compreensão de Bakhtin sobre o jogo do ator e a arte de atuar/interpretar um papel/personagem.

E é preciso rememorar, ainda, que Marvin Carlson, reconhecido teatrólogo norte-americano e intelectual das Artes do Espetáculo, em seu ensaio Teatro e Dialogismo, publicado em 1992, sinalizou a teoria bakhtiniana como importante estudo para as artes da cena, incentivando, especialmente, o uso dos conceitos de heteroglossia e dialogismo para a compreensão das vozes que constituem a experiência teatral (CARLSON, 1992CARLSON, M. Theater and Dialogism. In: REINELT, J.; ROACH, J. (ed.). Critical Theory and Performance. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1992.).

Sabemos hoje que os membros do Círculo eram frequentadores da cena espetacular russa. De acordo com Brait (2019)BRAIT, B. Entre a cena e a pedagogia, o dialogismo. In: GONÇALVES, J. Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo]. São Paulo: Hucitec, 2019, p.11-15., os membros do Círculo, mesmo tendo vivido um difícil período político e social na União Soviética, conviveram com a cultura russa, especialmente em sua formação e início de carreira, tendo sido frequentadores, apreciadores e conhecedores de arte “ainda que o conjunto da obra não apresente estudos diretamente ligados ao teatro, às teorias do teatro e da dança” (BRAIT, 2019BRAIT, B. Entre a cena e a pedagogia, o dialogismo. In: GONÇALVES, J. Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo]. São Paulo: Hucitec, 2019, p.11-15., p.13).

Podemos citar, por exemplo, Iván Ivanovich Sollertinski (1902-1944), que embora tenha sido reconhecido por suas contribuições ao campo da música, foi também um especialista nas artes da cena e chegou, inclusive, a lecionar na área de História do Teatro (BRAIT, 2009BRAIT, B.; CAMPOS, M. Da Rússia czarista à web. In: BRAIT, B. (org.) Bakhtin e o Círculo. São Paulo: Contexto, 2009, p.15-30.). Shatskikh (2007)SHATSKIKH, A. Vitebsk: The Life of Art. Translation by Katherine Foshko Tsan. New Haven: Yale University Press, 2007., em sua pesquisa sobre a vida intelectual e cultural de Vitebsk na primeira metade do século XX, descreve a importância de Iván Sollertinski para o crescimento cultural e teatral da cidade, apontando contribuições do intelectual russo a diversos campos do saber, incluídas aí as artes da cena.

Em Vitebsk temos, segundo Shatskikh (2007)SHATSKIKH, A. Vitebsk: The Life of Art. Translation by Katherine Foshko Tsan. New Haven: Yale University Press, 2007., a presença de um Bakhtin espectador e participante de teatro. A autora, ao relatar os resultados da pesquisa sobre a vida cultural de Vitebsk, nos lembra das práticas cênicas denominadas julgamentos de palco, modalidades populares de espetáculo nas quais as personagens históricas e fictícias eram levadas a julgamento com a participação do público. É nesses espetáculos de caráter didático que Mikhail Bakhtin explorava, a partir do papel de advogado de defesa, a dualidade espectador-intérprete.

Pável Medviédev, um dos intelectuais mais conhecidos do Círculo Bakhtiniano, no outono de 1922, “a convite do diretor, ator e poeta P. P. Gaidebúrov e da atriz N. F. Skárskaia (irmã de Vera Komissarjévskaia), entrou na “Irmandade” do Teatro Itinerante” (MEDVIÉDEV & MEDVIÉDEVA, 2014MEDVEDEV, I.; MEDVEDEVA, D. The M. M. Bakhtin Circle: on the Foundation of a Phenomenon / O Círculo de M. M. Bakhtin: sobre a fundamentação de um fenômeno. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, v. 9, n. spe, p.26-46, 2014. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/bakhtiniana/article/view/11535. Acesso em: 14 jun. 2019.
http://revistas.pucsp.br/bakhtiniana/art...
, p.40), tornando-se diretor de repertório e depois redator da revista Notas de um Teatro Itinerante (Zapísski peredvijnógo teatra).

Há ainda, como nos conta McCaw (2016)McCAW, D. Bakhtin and Theatre: Dialogues with Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski. Abingdon: Routledge, 2016., a partir da biografia de Bakhtin elaborada por Clark e Holquist, um Bakhtin professor que dirigiu um seminário sobre estética e história do teatro no Mordovia Theatre for Music and Drama enquanto esteve em Nevel e Vitebsk (McCAW, 2016McCAW, D. Bakhtin and Theatre: Dialogues with Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski. Abingdon: Routledge, 2016., p.28).

Rule (2015)RULE, P. Dialogue and Boundary Learning. Boston: Sense Publishers, 2015., em sua menção à passagem do Círculo Bakhtiniano por Vitebsk, aponta que, embora se saiba que os intelectuais hoje denominados bakhtinianos tenham mergulhado em várias áreas de estudo, incluindo a cultura e a arte como um centro convergente de interesses, existem apagamentos históricos e situacionais que impediram seu reconhecimento e vinculação direta a determinados campos de conhecimento. Nos estudos teatrais, por exemplo, há notada ausência da produção intelectual do Círculo. Nesse sentido, Medviédev & Medviédeva (2014)MEDVEDEV, I.; MEDVEDEVA, D. The M. M. Bakhtin Circle: on the Foundation of a Phenomenon / O Círculo de M. M. Bakhtin: sobre a fundamentação de um fenômeno. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, v. 9, n. spe, p.26-46, 2014. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/bakhtiniana/article/view/11535. Acesso em: 14 jun. 2019.
http://revistas.pucsp.br/bakhtiniana/art...
apontam para possíveis conexões entre o trabalho científico realizado por membros do Círculo Bakhtiniano e o teatro, defendendo, inclusive, que alguns nomes deveriam figurar, historicamente, ao lado de Constantin Stanislávky e Vsevolod Meyerhold .

Não podemos deixar de citar, ainda, o interesse de Bakhtin pela obra de Shakespeare, especialmente pelas tragédias: “Quando analisamos as tragédias de Shakespeare, também observamos a transformação sucessiva de toda a realidade - que age sobre suas personagens - em contexto semântico dos atos, pensamentos e vivências dessas personagens” (BAKHTIN, 2017BAKHTIN, M. Fragmentos dos anos 1970-71. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Org., trad., posf. e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo Editora 34, 2017[1970-71], p.21-56., p.71 [1975]). No texto Adições e alterações para Rabelais (BAKHTIN, 2014BAKHTIN, M. Bakhtin on Shakespeare (Excerpt from “Additions and Changes to Rabelais”). Translation and introduction by Sergeiy Sandler. PMLA - Publications of the Modern Language Association of America, v. 129, n. 3, pp.522-537, 2014. Disponível em: https://www.mlajournals.org/toc/pmla/129/3 Acesso em: 13 jun. 2019.
https://www.mlajournals.org/toc/pmla/129...
[1944/1992]), escrito em 1944 e publicado pela primeira vez em 1992, Bakhtin dedica uma boa parte de seus escritos ao estudo do teatro shakespeariano. Tal interesse pode ser observado também em diversas referências a Shakespeare que podem facilmente ser encontradas ao longo das obras bakhtinianas.

Já em O autor e a personagem na atividade estética (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, M. Conferências sobre história da literatura russa In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [1920], p.411-422. [1920-22]), encontramos um Bakhtin que discute aspectos relacionados à interpretação teatral e relaciona a arte do ator ao campo da análise literária. A estética expressiva na arte dramática também é um dos temas discutidos por Bakhtin, quando coloca em diálogo as particularidades da interpretação, da ilusão e da contemplação que se encontram no jogo da atuação (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, M. Conferências sobre história da literatura russa In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [1920], p.411-422., p.59).

No texto Fragmentos dos anos 70-71, Bakhtin faz uma referência explícita a Constantin Stanislávski, o mais conhecido pesquisador de teatro no mundo: “Stanislávski sobre a beleza da representação de uma imagem negativa pelo ator. É inaceitável a divisão mecânica: feiura - personagem negativa, beleza - ator que a representa” (BAKHTIN, 2017BAKHTIN, M. Fragmentos dos anos 1970-71. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Org., trad., posf. e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo Editora 34, 2017[1970-71], p.21-56., p.56 [1970-71]). Tal referência nos leva a imaginar que Bakhtin, para fazer esta afirmação, devesse conhecer, ao menos minimamente, os pilares da arte do ator postulados pelo diretor teatral russo.

Atestando ainda as relações entre a obra do Círculo e as Artes do Espetáculo, o texto O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica, de Medviédev (MEDVIÉDEV, 2012MEDVIÉDEV, P. O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Trad. Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2012[1928]. [1928]), traz menções ao enredo de Édipo Rei (p.61), e também fala da “‘sinceridade’ de um ator” (p.213), ao retomar as reflexões do formalista russo Bóris Eikhenbáum (1886-1959) sobre o poeta Nicolai Nekrássov (1921-1978).

Emerson (2015)EMERSON, C. Bakhtin and the Actor (with constant reference to Shakespeare). Studies in East European Thought. v. 67, pp.183-207, 2015. Disponível em: https://philpapers.org/pub/1051/2015. Acesso em: 13 jun. 2019.
https://philpapers.org/pub/1051/2015...
lamenta, no entanto, o fato de Bakhtin e os membros do Círculo não terem se dedicado de forma mais aprofundada aos estudos do espetáculo. Não há, no legado bakhtiniano conhecido até agora, vestígios de um mergulho nos discursos e práticas dos mestres do teatro de sua época como, por exemplo, Meyerhold, Brecht, Nicolai Evreinov, Edward Gordon Craig, Mei Lanfang, e nem mesmo notas mais detalhadas sobre o teatro russo do século XX.

É preciso considerar, porém, que a perspectiva bakhtiniana conversa com aspectos de teatro/dança/artes do corpo que, mesmo no campo dos estudos da cena, ficam por vezes subjugados ou tidos como desnecessários à formação do artista, como, por exemplo, a autoria e a relação entre tempo e espaço. Aqui entramos em outra possibilidade de relação dialógica entre as Artes do Espetáculo e a produção intelectual do Círculo: as contribuições do pensamento bakhtiniano para a compreensão do fenômeno cênico e seu funcionamento.

Como já discutido por McCaw (2016, p.238)McCAW, D. Bakhtin and Theatre: Dialogues with Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski. Abingdon: Routledge, 2016., importa que a pesquisa das relações entre Bakhtin e as Artes do Espetáculo se constituam enquanto exercício para explorar a inter-iluminação entre teoria e prática, já que de ao menos duas expectativas vive o universo da cena: uma própria do mundo prático (fazer teatro/experimentar processos) e outra do mundo dito acadêmico (escritas/teorizações).

E é nas entrelinhas desses horizontes de possibilidades que os textos que compõem este número de Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso pautam um tema ainda pouco explorado tanto pelos estudos da linguagem quanto dos estudos teatrais: Bakhtin e as Artes do Espetáculo.

Antes de elencar resumidamente o escopo de cada artigo, aproveitamos para agradecer a equipe editorial de Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, pareceristas, tradutores e revisores (de língua portuguesa e inglesa, sem os quais seria impossível reunir, nesta edição, tantas produções de qualidade e excelência. Destacamos também a participação de autores de diferentes instituições de ensino superior, nacionais e internacionais, muitos deles apoiados por agências de fomento que financiaram grande parte das pesquisas aqui representadas, a saber: FAPESP, CNPq e CAPES, às quais agradecemos imensamente. Não poderíamos deixar de mencionar, ainda, que este número só se tornou possível graças à participativa colaboração e apoio de grande parte dos membros do Laboratório de estudos em Educação Performativa, Linguagem e Teatralidades (ELiTe/UFPR/CNPq), grupo de pesquisa que agrega pesquisadores e estudantes do Brasil: Paraná, Santa Catarina, São Paulo, Acre, Amazonas, e do exterior: Inglaterra, Paris, Portugal e Colômbia, e que tem, como um de seus propósitos, investigar as relações entre Bakhtin e as Artes do Espetáculo.

Passamos, assim, à apresentação dos textos.

Abrem o número, os nossos artigos Laboratório, espetáculo, desmontagem: experimentos teatro[dia]lógicos do Carmen Group em A serpente, de Nelson Rodrigues (Jean Carlos Gonçalves) e Corpos em Bakhtin (Dick McCaw). O primeiro tem seu foco nos processos vivenciados desde a construção de um espetáculo teatral até os diferentes formatos de apresentação da obra diante do público. O segundo apresenta algumas concepções de corpo na obra bakhtiniana, defendendo, a partir de uma visita a seus primeiros e últimos textos, uma filosofia do corpo.

Na esteira da relação entre obra e público, Robson Rosseto e Patrícia Pluschkat contribuem com o texto A percepção sensorial do espectador na teatralidade contemporânea: diálogos com Bakhtin, no qual propõem reflexões sobre alteridade e interação nas artes cênicas.

Em Dialogismo, polifonia, cronotopo e grotesco em A última gravação de Krapp: uma leitura bakhtiniana, Felipe Augusto de Souza Santos apresenta uma análise da peça de Samuel Beckett, mobilizando conceitos bakhtinianos. O conceito de carnavalização é discutido por Carlos Gontijo Rosa, no texto Carnavalização no teatro ibérico barroco, cujo foco são os embates de classe e os artifícios discursivos da narrativa tragicômica do Século de Ouro espanhol.

A relação entre a Educação e as Artes do Espetáculo é encontrada nos seguintes textos: Corpos dançantes na escola: diálogos entre a educação performativa e a perspectiva bakhtiniana, de Michelle Bocchi Gonçalves, Thais Castilho e Jair Mário Gabardo Jr. e Protagonismo teatral e protagonismo educacional: quais deslocamentos fazem surgir um a(u)tor?, de Claudia Cavalcante e José Luiz de Souza Santos. Esses dois artigos destacam-se por sua abordagem dialógica de práticas, espaços e políticas educacionais.

Em A peça Mãe de Alencar e as vozes sociais sobre a questão afro-brasileira, de Angela Rubel Fanini e Maria Domingos Pereira Ventura, temos acesso a uma discussão sobre a cultura escravocrata a partir da análise da peça Mãe, de José de Alencar. O artigo Iuri Lótman e a semiótica do teatro, de Rodrigo Alves Nascimento, explora as contribuições do semioticista russo Iúri Lótman para a semiótica do teatro.

Carolina Fernandes Rodrigues Fomin finaliza este número com a resenha do livro Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo], lançado em 2019 pela Editora Hucitec. Na obra, que contém o excelente prefácio Entre a cena e a pedagogia, o dialogismo, escrito por Beth Brait e a apresentação de capa assinada por Dick McCaw, analisamos, a partir dos estudos bakhtinianos, processos de montagem teatral na universidade.

Os artigos publicados neste número de Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso apresentam, assim, um panorama de estudos desenvolvidos atualmente no que tange às diferentes frentes de investigação abarcadas pelo diálogo entre Bakhtin e as Artes do Espetáculo, atestando o recente interesse no tema, advindo de pesquisadores de diversos centros de investigação. Este número contribui, dessa forma, para a construção do conhecimento em Linguística, Letras e Artes, trazendo reflexões que, esperamos, possam se traduzir em outros anseios de pesquisa correlacionados, já que vivemos tempos nos quais falar de arte (ou assumir-se artista) parece requerer cuidado e puritanismo (o que não combina, em nada, com a essência dos questionamentos e reflexões que a articulação proposta neste número pretende provocar).

  • 1
    Ver Dialogismo e polifonia em Bakhtin e o Círculo (Dez obras fundamentais) (BRAIT, 2016BRAIT, B. Dialogismo e polifonia em Bakhtin e o Círculo (Dez obras fundamentais). In: FARIA, J. (org.). Guia bibliográfico da FFLCH/USP. São Paulo: Editora FFLCH/USP, 2016. Disponível em: http://fflch.usp.br/sites/fflch.usp.br/files/2017-11/Bakhtin.pdf. Acesso em: 14 jun. 2019.
    http://fflch.usp.br/sites/fflch.usp.br/f...
    )
  • 2
    Para maior compreensão das pesquisas desenvolvidas no grupo de pesquisa, ver os cadernos de resumo da II Jornada Nacional de estudos em Educação Performativa, Linguagem e Teatralidades, disponíveis em: http://proxy.furb.br/ojs/index.php/oteatrotranscende/issue/view/440
  • 3
    Constantin Stanislávsky (1863-1938) é um dos mais importantes intelectuais do teatro mundial, conhecido pelo desenvolvimento do seu método das ações físicas que influencia, desde a Rússia czarista até hoje, a pedagogia do ator em diferentes contextos de formação em interpretação teatral.
  • 4
    Vsevolod Meyerhold (1874-1940), diretor e teórico do teatro na primeira metade do século XX, é reconhecido por seus estudos de biomecânica na formação do ator e por se contrapor a algumas concepções estéticas de Stanislávsky.
  • 5
    O mundo de Édipo também é alvo de análise no texto O autor e a personagem na atividade estética, de Mikhail Bakhtin (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, M. Conferências sobre história da literatura russa In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [1920], p.411-422., p.62-65. [1920-22]), o que demonstra um interesse do Círculo com relação ao estudo do texto teatral.

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, M. Conferências sobre história da literatura russa In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [1920], p.411-422.
  • BAKHTIN, M. Por uma metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas Org., trad., posf. e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo Editora 34, 2017 [1975], p.57-80.
  • BAKHTIN, M. Fragmentos dos anos 1970-71. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas Org., trad., posf. e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo Editora 34, 2017[1970-71], p.21-56.
  • BAKHTIN, M. Bakhtin on Shakespeare (Excerpt from “Additions and Changes to Rabelais”). Translation and introduction by Sergeiy Sandler. PMLA - Publications of the Modern Language Association of America, v. 129, n. 3, pp.522-537, 2014. Disponível em: https://www.mlajournals.org/toc/pmla/129/3 Acesso em: 13 jun. 2019.
    » https://www.mlajournals.org/toc/pmla/129/3
  • BRAIT, B. Dialogismo e polifonia em Bakhtin e o Círculo (Dez obras fundamentais). In: FARIA, J. (org.). Guia bibliográfico da FFLCH/USP São Paulo: Editora FFLCH/USP, 2016. Disponível em: http://fflch.usp.br/sites/fflch.usp.br/files/2017-11/Bakhtin.pdf Acesso em: 14 jun. 2019.
    » http://fflch.usp.br/sites/fflch.usp.br/files/2017-11/Bakhtin.pdf
  • BRAIT, B.; CAMPOS, M. Da Rússia czarista à web. In: BRAIT, B. (org.) Bakhtin e o Círculo São Paulo: Contexto, 2009, p.15-30.
  • BRAIT, B. Entre a cena e a pedagogia, o dialogismo. In: GONÇALVES, J. Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo]. São Paulo: Hucitec, 2019, p.11-15.
  • CARLSON, M. Theater and Dialogism. In: REINELT, J.; ROACH, J. (ed.). Critical Theory and Performance Ann Arbor: University of Michigan Press, 1992.
  • EMERSON, C. Bakhtin and the Actor (with constant reference to Shakespeare). Studies in East European Thought v. 67, pp.183-207, 2015. Disponível em: https://philpapers.org/pub/1051/2015 Acesso em: 13 jun. 2019.
    » https://philpapers.org/pub/1051/2015
  • GONÇALVES, J. Teatro e universidade: Cena. Pedagogia. [Dialogismo]. São Paulo: Hucitec, 2019.
  • GONÇALVES, J.; SANTOS, M. MCCAW, D. Bakhtin and Theatre: Dialogues with Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski/Bakhtin e o teatro: diálogos com Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski. Abingdon: Routledge, 2015. 264p. Bakhtiniana Revista de Estudos do Discurso, v. 11, n.3, pp.213-218, 2016. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/bakhtiniana/article/view/28069/20536 Acesso em: 14 jun. 2019.
    » https://revistas.pucsp.br/bakhtiniana/article/view/28069/20536
  • McCAW, D. Bakhtin and Theatre: Dialogues with Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski. Abingdon: Routledge, 2016.
  • MEDVIÉDEV, P. O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Trad. Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2012[1928].
  • MEDVEDEV, I.; MEDVEDEVA, D. The M. M. Bakhtin Circle: on the Foundation of a Phenomenon / O Círculo de M. M. Bakhtin: sobre a fundamentação de um fenômeno. Bakhtiniana Revista de Estudos do Discurso, v. 9, n. spe, p.26-46, 2014. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/bakhtiniana/article/view/11535 Acesso em: 14 jun. 2019.
    » http://revistas.pucsp.br/bakhtiniana/article/view/11535
  • RULE, P. Dialogue and Boundary Learning Boston: Sense Publishers, 2015.
  • SHATSKIKH, A. Vitebsk: The Life of Art. Translation by Katherine Foshko Tsan. New Haven: Yale University Press, 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2019
LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bakhtinianarevista@gmail.com