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Entre tempos e espaços: poliglotismo e policronismo em Iúri Lotman

RESUMO

Não obstante a teoria de Lotman tenha sido frequentemente apresentada como uma teoria semiótica baseada em categorias de espaço, as categorias temporais também se destacam em sua relevância. Se se pode pensar o poliglotismo como um dos principais mecanismos da cultura, também deveríamos considerar igualmente o policronismo. Na verdade, em cada momento da cultura encontramos muitos códigos temporais cujo diálogo interno não se baseia apenas em códigos provenientes de diferentes espaços (no sentido comum de poliglotismo), mas também em códigos de tempos distintos (no sentido de uma espécie de policronia). As reflexões de Lotman sobre tal mecanismo da cultura poderiam contribuir para entender alguns aspectos de nossa sociedade em que encontramos uma forma de presentismo, a dimensão temporal correspondente ao localismo dentro da dimensão especial, produzido pela globalização.

PALAVRAS-CHAVE:
Lotman; Semiosfera; Auto-comunicação; Tradução; Perspectivismo

ABSTRACT

Even if Lotman’s theory has often been presented as a semiotic theory based on categories of space, temporal categories are crucial as well. And as we can speak of polyglotism as one of the main features of culture, we should speak of polychronism as well. In each state of culture, in fact, we find many temporal codes, and the internal dialogue is not only based on codes coming from different spaces (in the normal sense of polyglotism), but also as coming from different times (in the sense of a sort of polychronism). Lotman’s reflections about this aspect of culture could be very useful in order to understand some aspects of our society, where we find a form of presentism, the temporal dimension corresponding to localism within the spatial dimension, which globalization has produced.

KEYWORDS:
Lotman; Semiosphere; Auto-communication; Translation; Perspectivism

Em uma sociedade em que a imigração e a mobilidade crescem, a experiência do poliglotismo está se tornando cada vez mais difundida. Vivemos em cidades onde as pessoas têm origens muito diferentes, onde estamos cercados por lojas que vendem produtos pertencentes a culturas distantes das nossas, tornando cotidianos termos outrora exóticos: sáris indianos, keffiyeh pseudopalestinos, uoques chineses, kebabs árabes. Ouvimos música que nos expõe às línguas de outras culturas: uma Babel onde o poliglotismo é a regra e onde os repertórios semânticos mudam rapidamente.

No entanto, o poliglotismo étnico e geográfico não é único e nem se relaciona com as diferentes origens dos membros da nossa sociedade. Outra maneira de pensar o poliglotismo cultural se manifesta nos diferentes códigos temporais que coexistem em um estado de cultura, seja no diálogo entre línguas provenientes de diferentes espaços (no sentido comum de poliglotismo), seja nos diferentes tempos (no sentido de uma espécie de policronismo).

Meu objetivo neste ensaio é construir uma breve reflexão teórica sobre esta dimensão da teoria de Iúri Lotman, que confere particular atenção semiótica à dimensão do tempo1 1 Para uma visão geral da teoria de Lotman e sua relevância para uma abordagem semiótico-cultural, ver Lorusso, 2015, capítulo 2. . Ao final desta contribuição, veremos, também, que esse policronismo traz alguns riscos, mas, primeiro, é necessário fazer uma contextualização do passado que ameaça reduzi-lo a um repertório de citações sem especificidade.

1 Lotman e sua abordagem do tempo

Para tratar do tipo especial de poliglotismo formulado aqui na noção de policronismo, a teoria da cultura de Lotman revela sua pertinência ao abordar, em vários trabalhos, as diferentes temporalidades que organizam um mesmo estado de cultura. Referimo-nos particularmente aos ensaios do autor em que o semioticista apresenta concepções teóricas atualizadas sobre o tempo no espaço cultural, tais como: Universe of the Mind: A Semiotic theory of Culture [Universo da mente: uma teoria semiótica da cultura] (LOTMAN, 1900): Parte II: The Semiosphere [Semiosfera] e Parte III: Cultural Memory, History and Semiotics [Memória cultura, história e semiótica]; Culture and Explosion[Cultura e explosão] (LOTMAN, 2009Lotman Y. M. Culture and Explosion. Berlin-New York: Mouton de Gruyter, 2009.): Capítulos: 3: Gradual Progress [O progresso gradual]; 4: Continuity and discontinuity [Continuidade e descontinuidade]; 11: The logic of Explosion [A lógica da explosão]; 12: The moment of unpredictability [O momento da imprevisibilidade]; 19: Perspectives [Perspectivas]; e 20: On Place of Conclusions [Encaminhando conclusões].

Conforme afirmações de Remm (2010)Remm, T. Time in Spatial Metalanguage: the Ambiguous Position of Time in Concepts of Sociocultural, Social and Cultural Space. In: Trames, 14 (64/59) , 4, pp.394-410, 2010. e de Gherlone (2014)GHERLONE; L. Dopo la semiosfera. Milano: Mimesis. 2014., a teoria de Lotman é definida muito mais em termos de espaço do que de tempo. A semiosfera é concebida como um espaço sincrônico, no qual a questão das fronteiras (por isso, uma dimensão espacial) e aquela da organização funcional dos ecossistemas orgânicos são centrais. No entanto, em seus últimos escritos (após 1990), apreende-se tal entendimento espacial da cultura vinculado à sua dimensão temporal. Como afirma Remm,

[A] a espacialidade do espaço cultural não se separa de sua temporalidade, mas se mantém análoga e intercambiável a ela. A oposição de categorias de espaço e tempo é introduzida de acordo com as necessidades dos processos de (auto) descrição cultural. Assim, o começo e o fim podem ser vistos como categorias espaciais ou temporais (ou espaço-temporais) (REMM, 2010Remm, T. Time in Spatial Metalanguage: the Ambiguous Position of Time in Concepts of Sociocultural, Social and Cultural Space. In: Trames, 14 (64/59) , 4, pp.394-410, 2010., p.11; grifo do autor)2 2 Texto original: “The spatiality of cultural space is not separate from its temporality, but rather analogous and interchangeable to it. The opposition of categories of space and time is introduced according to the needs of the processes of cultural (self-)description. Accordingly, the beginning and end can be seen as spatial or temporal (or spatio-temporal) categories”. .

Segundo Lotman, a cultura é constituída por camadas - entendidas como uma metáfora especial - que se desenvolvem em diferentes velocidades, podendo variar desde a lentidão de um progresso gasto até a explosão de uma mudança súbita e imprevista. Nesse sentido último, Lotman formula o conceito de explosão. Seus últimos escritos - reunidos no livro Culture and Explosion - são dedicados precisamente a essa heterogeneidade temporal. Como ele afirma:

A cultura, embora se organize como um todo complexo, é criada a partir de elementos que se desenvolvem em ritmos diferentes, de modo que qualquer uma de suas seções sincrônicas revele a presença simultânea desses diferentes estágios. Explosões em algumas camadas podem ser combinadas com o desenvolvimento gradual em outras. Isso, no entanto, não impede a interdependência dessas camadas. Assim, por exemplo, processos dinâmicos na esfera da linguagem e da política ou da moral e da moda demonstram as diferentes escalas em que esses processos se movem. Embora processos mais rápidos possam exercer uma influência acelerada sobre aqueles que se movem mais devagar e, ainda que esses últimos possam se apropriar da autodescrição daqueles que se movem mais rapidamente, acelerando seu próprio desenvolvimento, suas dinâmicas não são sincrônicas (LOTMAN, 2009Lotman Y. M. Culture and Explosion. Berlin-New York: Mouton de Gruyter, 2009., p.12)3 3 Texto no inglês: “Culture, whilst it is a complex whole, is created from elements which develop at different rates, so that any one of its synchronic sections reveals the simultaneous presence of these different stages. Explosions in some layers may be combined with gradual development in others. This, however, does not preclude the interdependence of these layers. Thus, for example, dynamic processes in the sphere of language and politics or of morals and fashion demonstrate the different rates at which these processes move. And although more rapid processes may exert an accelerating influence on those that move more slowly, and whilst the latter may appropriate for themselves the self-description of those that move more quickly and thus accelerate their own development their dynamics are not synchronic”. .

O fato de haver velocidades diferentes entre os vários órgãos de uma cultura não é uma doença do sistema, segundo Lotman, porque, na verdade, é o atrito entre processos lentos e movimentos acelerados que geram o novo. “A agressão de um não subjuga, mas sim estimula o desenvolvimento da tendência oposta” (LOTMAN, 2009Lotman Y. M. Culture and Explosion. Berlin-New York: Mouton de Gruyter, 2009., p.12)4 4 Texto no inglês: “The aggression of one does not subdue but, rather, stimulates the development of the opposite tendency”. . Evoluir de acordo com um ritmo único e inteiramente próprio pode significar amadurecer, mas não mudando profundamente, porque a mudança verdadeiramente inovadora ocorre por meio do contato com a alteridade, o estrangeirismo e, assim, pelo contato com um processo diferente. Por conseguinte, a coexistência de períodos de tempo e velocidades diferentes é algo necessário para a vida cultural. Do mesmo modo como a cultura depende do poliglotismo, ela precisa também do policronismo.

A metáfora do museu de Lotman (que precede Culture and Explosion e que está claramente alinhada com esse livro)5 5 A metáfora foi formulada em Universe of the Mind [Universo da mente] (LOTMAN, 1990). é bem conhecida: trata-se de uma noção que explica o significado de estado sincrônico de uma cultura e quantos códigos temporais e tempos passados ele congrega:

Imagine a sala de um museu onde exibições de períodos diferentes estão expostas juntamente com inscrições em idiomas conhecidos e desconhecidos com instruções para decodificá-las. Há também o roteiro composto pela equipe do museu, com planos para a visitação e regras para o comportamento dos visitantes. Imagine também os guias de turismo e outros visitantes no mesmo espaço. Imagine tudo isso como um mecanismo único (que, em certo sentido, é). Essa é uma imagem da semiosfera (LOTMAN, 1990Lotman Y. M. M. Universe of the Mind. A Semiotic Theory of Culture. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1990., p.127)6 6 Texto no inglês: “Imagine a museum hall where exhibits from different periods are on displays, along with inscriptions in known and unknown languages, and instructions for decoding them; there are also the explanations composed by the museum staff, plans for tours and rules for the behaviour of the visitors. Imagine also tour-leaders and visitors in this hall, and imagine all this as a single mechanism (which in a certain sense it is). This is an image of the semiosphere”. .

A semiosfera, sendo sinônimo de cultura, torna-se um espaço multicrônico, onde qualquer tema manifesta diferentes tipos de relações: relações horizontais (com os outros textos e outras linguagens que circulam no contexto histórico em que ele ou ela está, dentro e fora de sua ou seu próprio ambiente); e relações verticais (a maneira como os textos e códigos do passado repercutem na atualidade e modelam, de certa forma, o futuro). Tal conjunto geral de relações “horizontais” e “verticais” constitui a especificidade de cada estado de cultura; é essa rede de relacionamentos que define essa entidade fugaz, em constante mudança, reticular, móvel e difundida que é cultura. Conforme Lotman escreve apenas no final da Culture and Explosion é necessário ter em mente o fato de que o sistema tem uma memória de seus estados passados e uma antecipação de potenciais “estados futuros”, o que faz do espaço semiótico uma multidimensionalidade simultânea tanto no sentido sincrônico quanto no diacrônico.

Se, na metáfora do museu, Lotman sublinha a multiplicidade temporal de um universo de cultura, em outro ensaio (O contexto artístico como um espaço cotidiano, 1974, em Lotman, 1998Lotman Y. M. Il girotondo delle muse. Saggi sulla semiotica delle arti e della rappresentazione. Bergamo Moretti&Vitali, 1998., p.26-28), ele formula outra metáfora espacial, próxima à do museu, mas diferente em seu foco para explicar a caracterização inclusiva e exclusiva da categoria de cultura: trata-se da metáfora do interior (l'intérieur). Como qualquer casa ou habitação, como qualquer espaço “interior” - diz Lotman -, o espaço artístico e cultural nunca é preenchido apenas com obras e objetos que são sincrônicos com o momento de sua criação. Cada quarto inclui elementos de diferentes idades e datas, sem incluir (ou querer incluir) tudo. A pessoa que mora naquela casa recorreu a um critério de seleção, tornando alguns elementos compatíveis e outros totalmente inadequados. Como elemento interior, a cultura demanda critérios de seleção que definam compatibilidades e incompatibilidades, uma vez que, “[A] a característica de cada época e cultura é a existência de relações bastante fixas e típicas, juntamente com incompatibilidades muito específicas” (LOTMAN, 1998Lotman Y. M. Il girotondo delle muse. Saggi sulla semiotica delle arti e della rappresentazione. Bergamo Moretti&Vitali, 1998., p.28)7 7 Texto no inglês: “The characteristic of each age and culture is the existence of quite fixed and typical relationships together with very specific incompatibilities”. . Na verdade, os universos culturais tendem à organização interna e, ao mesmo tempo em que permitem algumas possibilidades, também exclui outras.

À medida que os mecanismos de cultura se tornam cada vez mais complicados, a simples justaposição do espaço 'cultural' (organizado) e 'não cultural' (não organizado) é substituída por uma hierarquia: dentro de um espaço fechado crescem setores hierárquicos cada vez mais altos (LOTMAN, 1998Lotman Y. M. Il girotondo delle muse. Saggi sulla semiotica delle arti e della rappresentazione. Bergamo Moretti&Vitali, 1998., p.28)8 8 Texto no inglês: “As the culture mechanisms grow increasingly complicated, the simple juxtaposition of the 'cultural' space (organised) and the 'non cultural' (not organised) is replaced by a hierarchy: inside a closed space stand increasingly higher hierarchical sectors”. .

Este é um ponto importante para o nosso argumento. Segundo Lotman, a pluralidade é tão necessária quanto o poliglotismo e o policronismo, todavia, todos devem ser unificados, governados, regulados por um critério de ordem. Como muitos estudiosos reiteram (cf. em particular Torop, 1994; Zylko, 2001Zylko, B. Culture and Semiotics: Notes on Lotman's Conception of Culture. New Literary History, vol. 32, n. 2, pp.391-408, 2001.; Andrews, 2009Andrews, E. Introduction to Yuri Lotman. In: LOTMAN, Y. M. Culture and Explosion. Berlin-New York: Mouton de Gruyter, 2009.), mesmo que a assimetria e o dinamismo sejam características essenciais de qualquer semiosfera, eles são submetidos a um trabalho constante de regularização que transforma o que não é sistêmico em algo sistêmico, transformando o ambivalente em algo que não é ambíguo, o periférico em algo central, o caótico em algo com uma ordem.

O critério de ordem regula, dessa forma, a ação de filtragem e adaptação na qual cada cultura se baseia. A filtragem não envolve apenas o que é externo e diferente, mas também o que está dentro do espaço interno, porém, lhe é estrangeiro. Reconhecer a pluralidade significa aceitar as formas de exterioridade que podem se manifestar como exterioridade do espaço (que vem de fora de nossas fronteiras) ou exterioridade do tempo. Talvez esta manifestação ligada ao tempo não tenha sido suficientemente considerada. Em cada estado sincrônico há um duplo “risco de corrupção”, uma exterioridade duplamente potencial: aquela das camadas de tempo diferentes da atualidade e a exterioridade das camadas culturais vindas de espaços externos ao próprio espaço.

O passado, de fato - embora seja nosso passado, o passado de nosso país, de nossa família - pode ser tão desconhecido e distante de nós quanto o presente de outra “tribo”. Lotman mostra muita clareza sobre esta noção. O conflito interno da cultura é também uma questão de tempo. Nem todas as “células” de uma cultura evoluem na mesma velocidade (por exemplo, sistemas estáveis como linguagem versus sistemas móveis como moda) e, às vezes, a evolução do sistema não é compatível com a necessidade de homogeneidade do sistema. Apesar da aceitação da pluralidade, quando a pluralidade se torna muito heterogênea, desenvolvemos a necessidade de persistência e homogeneidade, que o sistema necessita para continuar a se reconhecer como tal, como único. A integração da pluralidade e a especialização das identidades únicas são as duas facetas de um único organismo cultural. Uma vez que a integração chega a incluir muitos assuntos, a especialização simplifica a realidade reduzindo sua heterogeneidade.

A simultaneidade dos dois processos na cultura se destaca em seu dinamismo. Por um lado, em diferentes campos da cultura, a especialização de linguagens culturais ocorre como resultado de buscas de autocomunicação e identidade. Por outro, no nível da cultura como um todo, a integração das linguagens culturais surge como possibilidade de autocomunicação e autocompreensão. No entanto, o dinamismo da integração é revelado na simultaneidade dos dois processos: autodescrições e, ao lado deles, meta-descrições ou descrições da posição da cultura como um todo (TOROP 2009Torop, P. Foreward: Lotmanian Explosion. In LOTMAN, Y. Culture and Explosion. Berlin-New York: Mouton de Gruyter, 2009., p.xxviii)9 9 Texto no original: “In dynamism the simultaneity of the two processes in culture is important. On the one hand, in different fields of culture, specialisation of cultural languages takes place as a result of autocommunication and identity searches. On the other hand, on the level of culture as a whole, the integration of cultural languages emerges as a possibility of self-communication and self-understanding. Yet the dynamism of integration is revealed in the simultaneity of the two processes: self-descriptions and alongside them, meta-descriptions or descriptions from the position of culture as a whole”. .

2 O papel da autocomunicação

Como se pode perceber no trecho citado acima, a dimensão da autocomunicação ocupa um lugar central no pensamento de Lotman e também no modo de tratar a heterogeneidade (mesmo temporal) da cultura. Creio que este ponto é uma das contribuições mais relevantes de Lotman para a compreensão da dinâmica cultural: uma série de manifestações (textos, símbolos, ritos, mitos...) nada mais são do que representações de si próprio como unidade coerente, discursos dirigidos a si mesmo para reforçar a percepção coerente da própria identidade: uma chave de leitura dada por nós a nós mesmos.

Como afirma Torop (2009)Torop, P. Foreward: Lotmanian Explosion. In LOTMAN, Y. Culture and Explosion. Berlin-New York: Mouton de Gruyter, 2009., a tendência a reduzir a heterogeneidade da cultura se manifesta por meio da autodescrição (elaborada individualmente por sujeitos sobre si próprios) e da metadescrição (elaborada por artistas, acadêmicos, analistas da cultura como um todo). De fato, os metamecanismos reenquadram tudo dentro de uma identidade coerente. Assim, diversificação/homologação, pluralismo/unidade, mudança e continuidade sempre estão assegurados e conectados. Poliglotismo e heterogeneidade garantem mudança, metamecanismos através dos quais a cultura se define como garantia de continuidade e unificação. Metamecanismos ocorrem também em eventos temporais.

O metamecanismo não apenas fornece um certo padrão para o estado sincrônico da cultura como também sua versão para o processo diacrônico. Seleciona não apenas os textos do presente como também os da cultura passada (in: Cultura como intelecto coletivo e problemas da inteligência artificial, 1977) (LOTMAN, 1980Lotman Y. M. Testo e contest: Semiotica dell’arte e della cultura. Ed. by S. Salvestroni. Roma-Bari: Laterza, 1980., p.40)10 10 Texto no inglês: “The meta-mechanism not only provides a certain standard for the synchronic state of culture, but also his version of the diachronic process. It selects not only the texts of the present but also those of the past culture”. .

Ao reordenar a dimensão temporal, a cultura como consciência coletiva se interpreta através de um forte processo de filtragem, assumindo alguns textos e expulsando outros. Como Lotman claramente demonstra com seu exemplo de Pedro, o Grande, em sua conversa de 1986 sobre pessoas, destino, vida cotidiana, em que o czar russo provocou uma profunda renovação da Rússia abraçando a Europa e excluindo tudo o que era tradicionalmente russo: “o que era novo era bom, tudo que era velho era ruim”. O trabalho de redefinir a identidade russa foi um trabalho de recuperação de sua herança, suas raízes. Olhar para a Europa como modelo significava reconstruir a história da Rússia ad hoc conferindo-lhe uma dimensão temporal renovada. E assim ele construiu um novo presente, com formas de vida russa muito especiais, inventando uma nova tradição11 11 A referência chave para o conceito de “invenção da tradição” continua sendo Hobsbawm e Ranger (1983). e desenhando novos futuros possíveis.

Em outros períodos e em outros lugares, a automodelação implicava o oposto. Se Pedro, o Grande, baseou a valorização da Rússia no Novo, na Idade Média Europeia, a novidade parecia pecaminosa e a repetição do antigo, do já dito, era o ideal do trabalho intelectual, colocando estudiosos como “anões sobre os ombros de gigantes”.

Claramente se evidencia que a categoria fundamental para a compreensão da história cultural, entendida como narrativas temporais culturais, seja a tradução. Lotman já se servira da tradução em sentido espacial, como noção incisiva nas fronteiras das identidades: mesmo quando se considera o passado, a cultura realiza um ato de tradução. Na elaboração de sua própria identidade histórica, cada cultura traduz e adapta elementos do passado no quadro do presente, construindo sua própria versão da história. O que é tão interessante neste trabalho diz respeito ao que é “salvo” como significativo e ao que é rejeitado. Lotman afirma muito claramente: “os ‘não-fatos’ de diferentes períodos resultariam em conjuntos interessantes” (LOTMAN, 1990Lotman Y. M. M. Universe of the Mind. A Semiotic Theory of Culture. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1990., p.218)12 12 Texto no inglês: “the ‘non-facts’ of different periods would make interesting lists”. . A história de uma cultura, o processo temporal de uma forma de vida, é feita por elementos “positivos” e por elementos ausentes, os quais devemos situar como os primeiros. Elementos positivos e ausentes fazem parte de uma metadescrição, o resultado do nosso trabalho de autocomunicação.

Alcançamos um ponto de suma importância derivado do perspectivismo de Lotman. Se no dinamismo cultural generalizado o que muda não é apenas o presente mas também o passado, nossa ideia e definição do passado, então, os acontecimentos e eventos passados nunca são dados e definidos de uma vez por todas. São textos, arquiteturas discursivas, produtos humanos. Nos ensaios de Universe of the Mind: A Semiotic theory of Culture [Universo da mente: uma teoria semiótica da cultura] (LOTMAN, 1990Lotman Y. M. M. Universe of the Mind. A Semiotic Theory of Culture. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1990.), Lotman reflete extensivamente sobre a categoria de evento, ressaltando a especificidade do pensamento histórico que se move de elaborações humanas (porque eventos são textos) sendo impossível derivarem de dados, evidências (como no discurso científico). Nunca podemos pensar no passado como algo fixo e rígido, porque o dinamismo pertence a toda a semiosfera. O passado inclui:

A inter-relação entre a memória cultural e sua autorreflexão se manifesta como um diálogo contínuo: textos de períodos cronologicamente remotos emergem na cultura e interagem com mecanismos contemporâneos, gerando uma imagem do passado histórico que a cultura transfere para o passado e que, como um parceiro igual em um diálogo, afeta o presente. Contudo, à medida que transforma o presente, o passado também muda de forma. Este processo não ocorre no vácuo: ambos os parceiros no diálogo também são parceiros em outro confronto, ambos estão abertos à intrusão de novos textos de fora, e os textos, como já tivemos oportunidade de ressaltar, dispõem de potencialidades para novas interpretações. Assim como diferentes prognósticos do futuro constituem uma parte inevitável do universo da cultura, a cultura não pode prescindir de ‘prognósticos’ do passado (in: Pode haver uma ciência da história) (LOTMAN, 1990Lotman Y. M. M. Universe of the Mind. A Semiotic Theory of Culture. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1990., p.272; grifo meu)13 13 Texto no inglês: “The interrelationship between cultural memory and its self-reflection is like a constant dialogue: texts from chronologically earlier periods are brought into culture and interacting with contemporary mechanisms, generate an image of the historical past, which culture transfers into the past and which, like an equal partner in a dialogue, affects the present. But as it transforms the present, the past too changes its shape. This process does not take place in a vacuum: both partners in the dialogue are partners too in other confrontation, both are open to the intrusion of new texts from outside, and the texts, as we have already had cause to stress, always contain in themselves the potentiality for new interpretations. Just as different prognoses of the future make up an inevitable part of the universum of culture, so culture cannot do without 'prognoses' of the past”. .

Com as mesmas necessidades, as mesmas perguntas e as mesmas paixões nós nos projetamos no futuro e no passado. É por isso que tentamos prever o futuro, todavia é evidente que também fazemos prognósticos sobre o passado como se ele fosse ainda indeterminado. Nós olhamos para o passado a partir de uma posição particular no presente, e isto não é apenas uma questão de ponto de vista (de algo que está “lá”, diante de nós), mas também uma questão de definição (atribuímos nomes ao passado - e assim o constituímos a partir de nossa própria posição): conferimos identidade e ordem ao passado de acordo com nossa posição no presente.

O historiador olha um acontecimento de um ponto de vista que é orientado do presente para o passado. Tal visão, devido a sua própria natureza, transforma o objeto da descrição. A imagem dos acontecimentos, que parece caótica para o observador casual, sai das mãos do historiador sob a forma de uma organização secundária. É natural que o historiador proceda da inevitabilidade do que ocorreu. No entanto, sua atividade criativa se manifesta de outras maneiras: a partir da abundância de fatos armazenados na memória, ele constrói uma linha sequencial, conduzindo com a máxima confiabilidade para esse ponto conclusivo (LOTMAN 2009Lotman Y. M. Culture and Explosion. Berlin-New York: Mouton de Gruyter, 2009., p.17)14 14 Texto no inglês: “The historian regards an event from a point of view which is oriented from present to past. This view, by its very nature, transforms the object of description. The picture of events, which appears chaotic to the casual observer, leaves the hands of the historian in the form of a secondary organization. It is natural for the historian to proceed from the inevitability of what has occurred. However, his creative activity is manifested in other ways: from the abundance of facts stored in memory, he constructs a sequential line, leading with the utmost reliability towards this conclusive point”. .

Entre o historiador e os eventos há sempre uma mediação - um texto - porque cada historiador faz parte de uma cultura, ele está imerso na cultura que lhes dará padrões, modelos, valores, signos.

É por isso que não devemos pensar a memória em termos de um depósito, mas como um caleidoscópio, onde cada um só atribui relevância a certas facetas, e só se reconhece em certas partes (GHERLONE, 2014GHERLONE; L. Dopo la semiosfera. Milano: Mimesis. 2014., p.118). Afinal, a dinâmica do reflexo é crucial em toda a teoria de Lotman; as relações entre os sujeitos e seus opostos são regidas pelo enantiomorfismo, isto é, um modo de reflexo em que as duas partes, os dois lados de um todo, são as mesmas, mas opostas, como seria o caso da sobreposição de luvas.

Segundo Lotman (1990, p.272)Lotman Y. M. M. Universe of the Mind. A Semiotic Theory of Culture. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1990., na memória,

[…] a imagem menos apropriada é aquela da biblioteca com livros nas prateleiras, ou um computador com dados de qualquer quantidade armazenada em sua memória. A memória se parece mais com um gerador reproduzindo o passado novamente. Trata-se da capacidade de ligar o processo de gerar uma realidade conceituada que a mente transfere para o passado segundo certos impulsos15 15 Texto no inglês: “[…] the least appropriate one is the image of the library with books on its shelves, or a computer with data of whatever quantity stored in its memory. Memory is more like a generator, reproducing the past again; it is the ability, given certain impulses, to switch on the process of generating a conceptualized reality which the mind transfers into the past”. .

Graças ao mecanismo gerador, cada cultura organiza sua própria história por meio de uma estrutura caleidoscópica onde interagem seu passado, seu presente e seu futuro esperado. Quando traçamos a linha sequencial de nossa própria história e olhamos para o passado, reduzimos sua heterogeneidade, não obstante, duplicamos nossa experiência temporal de alguma forma. Sentimo-nos em nosso presente e no presente do passado. É claro que estamos vivendo um paradoxo, uma ilusão, porque ao atribuir um significado ao passado usamos um olhar retrospectivo (do presente para o passado), e ao revivê-lo, projetando-nos nele, fingimos adquirir o olhar do passado (que se move do passado para o presente, passo a passo).

A visão retrospectiva permite ao historiador examinar o passado a partir de dois pontos de vista: estando localizado no futuro em relação ao evento descrito, ele vê diante de si toda uma cadeia de ações completadas; transportando-se mentalmente para o passado e olhando do passado para o futuro, ele já conhece os resultados do processo. [...] O historiador pode ser comparado com o espectador teatral que assiste a uma peça pela segunda vez: por um lado, ele sabe como terminará e não há nada de imprevisível para ele. A peça, para ele, acontece, por assim dizer, no passado, da qual ele extrai seu conhecimento do assunto. Porém, simultaneamente, como um espectador que olha para a cena, ele se encontra mais uma vez no presente e experimenta um sentimento de incerteza, uma suposta “ignorância” de como a peça terminará. Essas experiências mútuas, mas também mutuamente opostas, fundem-se, paradoxalmente, num certo sentimento de simultaneidade. Assim, o evento ocorrido se apresenta de forma multifacetada: por um lado, alinha-se à memória da explosão que experimentou recentemente e, por outro, adquire as características de um destino inevitável. Este último está psicologicamente conectado à tendência de voltar ao que ocorreu e submetê-lo a uma “correção” na memória ou em sua recontagem. É por isso que devemos examinar em detalhes a base psicológica das memórias escritas e, além disso, a substanciação psicológica dos textos históricos (LOTMAN 2009Lotman Y. M. Culture and Explosion. Berlin-New York: Mouton de Gruyter, 2009., p.126)16 16 Texto no inglês: “The retrospective view allows the historian to examine the past from two points of view: being located in the future in relation to the event described, he sees before himself a whole chain of completed actions; transporting himself mentally into the past and looking from the past into the future, he already knows the results of the process. [...] The historian may be compared with the theatrical spectator who watches a play for the second time: on the one hand, he knows how it will end and there is nothing unpredictable about it for him. The play, for him, takes place, as it were, in the past from which he extracts his knowledge of the matter. But, simultaneously, as a spectator who looks upon the scene, he finds himself once again in the present and experiences a feeling of uncertainty, an alleged “ignorance” of how play will end. These mutual but also mutually opposing experiences merge, paradoxically, into a certain feeling of simultaneity. Thus, the event that has occurred presents itself in a multi-layered fashion: on the one hand, it is aligned to the memory of the explosion it has recently experienced and on the other - it acquires the features of an inevitable destination. The latter is psychologically connected with the tendency to turn back to that which has occurred and to subject it to a “correction” in the memory or in its retelling. This is why we should examine in detail the psychological basis of written memoirs and what is more, the psychological substantiation of historical texts”. .

Em última análise, o que se manifesta além do problema da “regularização do imprevisível”, o que Lotman discute em seus últimos ensaios de Culture and Explosion por meio do rastreamento ex post de uma linha temporal clara (e causal), é que:

  • o policronismo é essencial para a cultura;

  • na esfera da policronia, tudo depende do olhar e da posição de quem está olhando, para que a imagem do passado, presente e futuro esteja sempre mudando;

  • necessidade de um critério para lidar com essa heterogeneidade temporal, este pluralismo, porque não pode haver uma expansão puramente temporal ad infinitum, mas apenas uma pluralidade limitada que temos que ordenar, a partir de nosso próprio presente.

A teoria cultural do tempo aqui esboçada contribui particularmente para esclarecer alguns usos e abusos contemporâneos da história, que são casos especiais de policronismo.

3 O policronismo hoje

Vivemos hoje numa espécie de diferentes camadas temporais multiplicadas que embaralham muitos tipos de passado (o passado antigo, o passado recente, o passado da guerra mundial, o passado pós-soviético, o passado pós-ideológico e assim por diante) e muitos tipos de temporalidades (a imediata do presente, a longue durée17 17 N. do T.: Longue durée é um conceito formulado por Fernand Braudel em 1949 para designar a prioridade dos acontecimentos de largo alcance na história em detrimentos dos eventos de episódios determinados. Serviu de orientação para os estudos da École des Annales e para a inserção do estudo da economia numa perspectiva histórica. da economia, a persistência da herança cultural, a “contemporaneidade” da globalização, etc.). Mais do que nunca nos encontramos em uma situação de extrema complexidade temporal em que temos de enfrentar diferentes temporalidades simultaneamente, o que se deve a muitos fatores:

  • Nosso conhecimento do passado é cada vez mais detalhado;

  • As mudanças em nossa sociedade estão acontecendo muito mais rapidamente do que em épocas anteriores (o que dimensiona o passado muito prontamente);

  • Nós temos uma maneira metalinguística de nos relacionarmos com o passado que é citado e ressignificado, como o fez o pós-modernismo;

  • Temos uma verdadeira paixão pela memória (tanto no nível acadêmico como no cotidiano), tanto que em todos os lugares temos memoriais, novos museus, filmes sobre nosso passado;

  • A globalização nos confrontou com diferentes estados de desenvolvimento, cada um com sua própria temporalidade.

Nesse sentido, a categoria do cronotopo18 18 Sobre o papel da categoria do cronotopo, cf. Torop (2017). de Bakhtin (1937-1938)19 19 Sobre a relação entre a teoria de Bakhtin e de Lotman, cf. Torop (1999), Petrilli (1999), Shukman (1989) e Bethea (1997). muito contribui para esta formulação. Segundo ele, existem algumas formas estereotipadas de se apropriar de aspectos temporais e espaciais da realidade na literatura. A narrativa oferece uma série de imagens (a estrada, o castelo, a cidade provincial, o limiar) que ligam lugares específicos a certo tipo de processo e evento temporal (disruptivo, repetitivo, cíclico e assim por diante); por conseguinte, uma série de desenvolvimentos possíveis e previsíveis derivam deste vínculo espaço-temporal. Essas imagens são “os centros organizadores dos eventos narrativos fundamentais do romance. O cronotopo é o lugar onde os laços de narrativa são amarrados e desatados” (BAKHTIN, 1981Bakhtin, M. Forms of Time and of the Chronotope in the Novel. In: Bakhtin, M. The dialogic imagination. Ed. By M. Holquist. Trans. By Caryl Emerson and Michael Holquist.Texas: Texas University Press, 1981, pp.84-258., p.250) e a partir de sua densidade espaço-temporal emerge seu potencial narrativo. Podemos afirmar que, no mundo de Bakhtin, os cronotopos servem para convergir elementos da narrativa que estariam, doutra forma, espalhados, com o fito de dar a eles concretude, evidência e conexão. Dessa forma, enredos bem sucedidos podem ser bem desenvolvidos. O cronotopo é, ao mesmo tempo, um elemento de síntese e de desenvolvimento posterior: lugares como ruas, salas de estar, castelos, praças (exemplos dados por Bakhtin) englobam atores, paixões e valorações específicos

Bakhtin discute o cronotopo apenas no contexto do discurso literário. Ele não o estende a outras áreas da cultura como estou fazendo neste trabalho. Em minha opinião, a cultura como um todo precisa de cronotopos: em outras palavras, a cultura busca espaço-tempo marcados que agem como síntese e potencial para desenvolvimentos futuros.

Uma das dificuldades da contemporaneidade, em minha opinião, é que vivemos em um tempo caracterizado por uma multiplicidade de cronotopos. Nós não temos mais um cronotopo dominante e o que domina é a tendência à mistura, embaralhamento de diferentes cronotopos. Temos mais camadas temporais (nos termos de Lotman) do que no passado e temos mais cronotopos (nos termos de Bakhtin) à disposição para narrar nossa experiência temporal, mas sem um cronotopo dominante: a web (em primeiro lugar), as ruas, o futuro (da ficção científica e da tecnologia), as praças (consideremos o fenômeno da Primavera Árabe). O resultado é uma “história contada” muito heterogênea e em constante mudança, segundo a qual - olhando para o passado - procedemos de maneira horizontal (saltando de um cronotopo para o outro) e não de um modo vertical. Os cronotopos (o da estrada, do paraíso perdido, do deserto, de 11/09...) tornam-se um conjunto de citações possíveis e, em consequência, o papel do sujeito da enunciação cresce em importância. O lugar, o tempo e a identidade do sujeito da enunciação é o que justifica e explica o conjunto de citações cronotópicas embaralhadas.

A impressão, diante disso, é que essa multiplicação de temporalidades, esse tipo de policronismo no qual nos encontramos atualmente, gerou como seu oposto uma espécie de paixão pelo presente: um “presentismo” que é o equivalente do localismo que a globalização produziu. Na última citação retirada de Lotman, discutia-se “um sentimento de simultaneidade”. Essa simultaneidade embaralha as temporalidades e cria um colapso entre temporalidades presentes e passadas, confundindo cronotopos.

3.1 O presentismo

A ideia de “presentismo” é tomada emprestada de um historiador contemporâneo, François Hartog (2003)Hartog, F. Régimes d'historicité. Paris: Seuil. 2003., que entende nossa forma contemporânea de viver o tempo histórico como uma pretensão de trazê-lo de volta ao presente.

Podemos considerar, por exemplo, aniversários. Muitos aniversários são celebrados hoje. Muitas vezes, no entanto, esses momentos não são ocasiões para um aprofundamento efetivo do passado, ou seja, oportunidades para olhar o passado de forma distanciada e reconhecer o seu valor, o papel de um dado evento na História (a “grande História”, com H maiúsculo). Muitas vezes, esses momentos são ocasiões para conversar sobre eles como se estivéssemos vivendo no presente, no hoje. A nossa projeção no passado não existe, de fato, como um presente no qual revivemos os sentimentos do passado. Esse é um tema que discuti em meu ensaio em 2013, em que analisei, em especial, o vigésimo aniversário da queda do Muro de Berlin em 2009. Toda a mídia - na Itália o fenômeno foi nacional - buscou projetar o espectador ou o leitor na Berlin daquele tempo, simulando ser capaz de trazê-lo de volta para viver, no presente, no hoje, os sentimentos daquele tempo. Dessa forma, o passado se torna apenas a ocasião de uma ênfase renovada sobre o presente, uma forma de fortalecer o presente e expandir as suas fronteiras para o passado.

Esse retorno ao presente, ao “localismo” do hic et nunc é típico de momentos de confusão, multiplicação. Segundo Lotman, ao se colocar diante de múltiplos níveis temporais, a cultura reage retornando a um ponto de estabilização que é autocentrado. Quando falamos de História com H maiúsculo, o eu se torna o critério para ordenar e lidar com a pluralidade e, em termos temporais, o eu corresponde a uma forma de significar hic et nunc.

Então, mesmo se estamos em uma cultura onde os planos de temporalidade são cada vez mais numerosos (porque a memória se tornou uma espécie de “tendência” - por um lado, com museus de memória, novelas gráficas de memória, design de época, enquanto, por outro lado, a velocidade de nossos dispositivos tecnológicos e de nossa vida está se tornando cada vez mais intensificados), o efeito não é uma expansão real da linha do tempo, mas uma espécie de necessidade de trazer tudo de volta ao presente numa constante “instanteciação” da vida.

O paradoxo dessa tensão entre unidade e diversidade, entre a tendência à multiplicação e a necessidade de nos centrarmos em uma identidade central já foi notada no globalismo de nosso mundo. Hoje, graças à evolução geopolítica e ao progresso tecnológico, vivemos em um espaço globalizado onde o mundo inteiro pode ser o contexto de nossos discursos. Minha voz e meu discurso não são ouvidos apenas por aqueles que têm uma relação direta comigo, mas podem ser ouvidos simultaneamente em todo o mundo, da mesma forma que o que eu estou comendo ou vestindo na Itália pode ser comido ou vestido na China ou no Chile. Portanto, ao lado dessa “tradutibilidade” do meu discurso, a natureza local da minha enunciação não mudou. Pelo contrário, a especificidade de algumas características é cada vez mais acentuada: a individualidade é hoje muito mais forte do que no passado, a busca pelo que é típico e específico sobre um determinado mundo é uma característica comum em nossa vida. No nível político, cultural e folclórico, o regionalismo está crescendo, quase em toda parte.

Tal fenômeno (cf. Sedda, 2008Sedda F. Reflectionson Glocal. On the Basis of the Semiotic Study of Culture, Centro Argentino de Estudios Internacionales. 2008. www.caei.com.ar/es/programas/teoria/35.pdf
www.caei.com.ar/es/programas/teoria/35.p...
), normalmente chamado de “glocalismo” (soma da globalização e localização), também tem a ver, na minha opinião, com a dimensão temporal de nossa vida. Se, por um lado, vivemos numa dimensão temporal sempre em expansão, por outro, produzimos enunciações cada vez mais ligadas ao presente. Não podemos nos referir ao passado sem referência ao presente; não podemos atravessar as várias linhas do tempo que atravessam nossa cultura sem um ponto de vista radicalmente situado no momento presente.

Em certo sentido, numa típica atitude pós-moderna, só podemos citar o passado, mas não podemos conhecer o passado em si. O resultado desse repertório múltiplo de cronotopos é uma espécie de livre acesso ao tempo, o que implica uma contínua “contemporização” da história: o que aconteceu no passado pode ser revivido hoje e também pode acontecer novamente no futuro… e nós podemos saltar de um evento passado para outro, no passado ou no futuro, sem restrições rigorosas, sem modelos rígidos.

Essa forte contemporarização, esse constante presentismo, muitas vezes oferece um desfrute simplesmente “experiencial” do passado como presente, ao invés de um proveito ético real do passado para o presente. Parece haver a dominação de sistema confuso que mistura passado-presente-futuro, história-crônica-memória e isto, na minha hipótese, é uma das características culturais mais difundidas de nossos anos: um policronismo radical e confuso.

Quando confrontada com situações como essas, a teoria de Lotman pode ser muito relevante. Como sua teoria sugere, a cultura não tolera uma diversidade excessiva, não tolera um dinamismo radical. A cultura cresce através do poliglotismo, busca a multiplicação de linguagens e códigos. Em suas fases mais criativas, a cultura aceita muitas temporalidades diferentes, mas a cultura também é bem sucedida ao criar uma imagem clara de si mesma, identificando um centro, traduzindo e transpondo o que é diferente para o que pode ser aceitável.

Não há globalização sem localismo, e não há complexificação temporal sem referência ao presente. O presentismo de hoje não é nada além do inverso do policronismo.

  • 1
    Para uma visão geral da teoria de Lotman e sua relevância para uma abordagem semiótico-cultural, ver Lorusso, 2015Lorusso A. M. Cultural Semiotics. For a Cultural Perspective in Semiotics. New York: Palgrave - Macmillan, 2015., capítulo 2.
  • 2
    Texto original: “The spatiality of cultural space is not separate from its temporality, but rather analogous and interchangeable to it. The opposition of categories of space and time is introduced according to the needs of the processes of cultural (self-)description. Accordingly, the beginning and end can be seen as spatial or temporal (or spatio-temporal) categories”.
  • 3
    Texto no inglês: “Culture, whilst it is a complex whole, is created from elements which develop at different rates, so that any one of its synchronic sections reveals the simultaneous presence of these different stages. Explosions in some layers may be combined with gradual development in others. This, however, does not preclude the interdependence of these layers. Thus, for example, dynamic processes in the sphere of language and politics or of morals and fashion demonstrate the different rates at which these processes move. And although more rapid processes may exert an accelerating influence on those that move more slowly, and whilst the latter may appropriate for themselves the self-description of those that move more quickly and thus accelerate their own development their dynamics are not synchronic”.
  • 4
    Texto no inglês: “The aggression of one does not subdue but, rather, stimulates the development of the opposite tendency”.
  • 5
    A metáfora foi formulada em Universe of the Mind [Universo da mente] (LOTMAN, 1990Lotman Y. M. M. Universe of the Mind. A Semiotic Theory of Culture. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1990.).
  • 6
    Texto no inglês: “Imagine a museum hall where exhibits from different periods are on displays, along with inscriptions in known and unknown languages, and instructions for decoding them; there are also the explanations composed by the museum staff, plans for tours and rules for the behaviour of the visitors. Imagine also tour-leaders and visitors in this hall, and imagine all this as a single mechanism (which in a certain sense it is). This is an image of the semiosphere”.
  • 7
    Texto no inglês: “The characteristic of each age and culture is the existence of quite fixed and typical relationships together with very specific incompatibilities”.
  • 8
    Texto no inglês: “As the culture mechanisms grow increasingly complicated, the simple juxtaposition of the 'cultural' space (organised) and the 'non cultural' (not organised) is replaced by a hierarchy: inside a closed space stand increasingly higher hierarchical sectors”.
  • 9
    Texto no original: “In dynamism the simultaneity of the two processes in culture is important. On the one hand, in different fields of culture, specialisation of cultural languages takes place as a result of autocommunication and identity searches. On the other hand, on the level of culture as a whole, the integration of cultural languages emerges as a possibility of self-communication and self-understanding. Yet the dynamism of integration is revealed in the simultaneity of the two processes: self-descriptions and alongside them, meta-descriptions or descriptions from the position of culture as a whole”.
  • 10
    Texto no inglês: “The meta-mechanism not only provides a certain standard for the synchronic state of culture, but also his version of the diachronic process. It selects not only the texts of the present but also those of the past culture”.
  • 11
    A referência chave para o conceito de “invenção da tradição” continua sendo Hobsbawm e Ranger (1983)HOBSBWAM, E.-RANGER, T. (eds.) The Invention of Tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 1983..
  • 12
    Texto no inglês: “the ‘non-facts’ of different periods would make interesting lists”.
  • 13
    Texto no inglês: “The interrelationship between cultural memory and its self-reflection is like a constant dialogue: texts from chronologically earlier periods are brought into culture and interacting with contemporary mechanisms, generate an image of the historical past, which culture transfers into the past and which, like an equal partner in a dialogue, affects the present. But as it transforms the present, the past too changes its shape. This process does not take place in a vacuum: both partners in the dialogue are partners too in other confrontation, both are open to the intrusion of new texts from outside, and the texts, as we have already had cause to stress, always contain in themselves the potentiality for new interpretations. Just as different prognoses of the future make up an inevitable part of the universum of culture, so culture cannot do without 'prognoses' of the past”.
  • 14
    Texto no inglês: “The historian regards an event from a point of view which is oriented from present to past. This view, by its very nature, transforms the object of description. The picture of events, which appears chaotic to the casual observer, leaves the hands of the historian in the form of a secondary organization. It is natural for the historian to proceed from the inevitability of what has occurred. However, his creative activity is manifested in other ways: from the abundance of facts stored in memory, he constructs a sequential line, leading with the utmost reliability towards this conclusive point”.
  • 15
    Texto no inglês: “[…] the least appropriate one is the image of the library with books on its shelves, or a computer with data of whatever quantity stored in its memory. Memory is more like a generator, reproducing the past again; it is the ability, given certain impulses, to switch on the process of generating a conceptualized reality which the mind transfers into the past”.
  • 16
    Texto no inglês: “The retrospective view allows the historian to examine the past from two points of view: being located in the future in relation to the event described, he sees before himself a whole chain of completed actions; transporting himself mentally into the past and looking from the past into the future, he already knows the results of the process. [...] The historian may be compared with the theatrical spectator who watches a play for the second time: on the one hand, he knows how it will end and there is nothing unpredictable about it for him. The play, for him, takes place, as it were, in the past from which he extracts his knowledge of the matter. But, simultaneously, as a spectator who looks upon the scene, he finds himself once again in the present and experiences a feeling of uncertainty, an alleged “ignorance” of how play will end. These mutual but also mutually opposing experiences merge, paradoxically, into a certain feeling of simultaneity. Thus, the event that has occurred presents itself in a multi-layered fashion: on the one hand, it is aligned to the memory of the explosion it has recently experienced and on the other - it acquires the features of an inevitable destination. The latter is psychologically connected with the tendency to turn back to that which has occurred and to subject it to a “correction” in the memory or in its retelling. This is why we should examine in detail the psychological basis of written memoirs and what is more, the psychological substantiation of historical texts”.
  • 17
    N. do T.: Longue durée é um conceito formulado por Fernand Braudel em 1949 para designar a prioridade dos acontecimentos de largo alcance na história em detrimentos dos eventos de episódios determinados. Serviu de orientação para os estudos da École des Annales e para a inserção do estudo da economia numa perspectiva histórica.
  • 18
    Sobre o papel da categoria do cronotopo, cf. Torop (2017)Torop, P. Semiotics of Cultural History. Sign Systems Studies vol. 45 (3/4), pp.317-334, 2017..
  • 19
    Sobre a relação entre a teoria de Bakhtin e de Lotman, cf. Torop (1999)Torop, P. Cultural Semiotics and Culture. Sign Systems Studies vol. 27, pp.9-23, 1999., Petrilli (1999)Petrilli, S. Bakhtin’s Research Between Literary Theory and Semiotics. European Journal for Semiotic Studies 10/1-2, pp.201-216, 1998,, Shukman (1989) e Bethea (1997)Bethea, D. M. Bakhtinian Prosaics Versus Lotmanian “Poetic Thinking”: The Code and its Relation to Literary Biography. Slavic and East European Journal, 41/1, pp.1-15, 1997..

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    07 Ago 2018
  • Aceito
    25 Ago 2019
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