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O tilintar dos cálices de Cristo, Chico/Gil e Criolo: a questão da ética num brinde dialógico

RESUMO

Neste artigo, o objetivo é demonstrar o impacto ético-semântico do grande tempo na reacentuação de duas reformulações da expressão “Afasta de mim este cálice”. Teoricamente, descrevemos grande tempo como áreas semânticas da existência que emolduram as possibilidades de sentido realizadas em gêneros discursivos e enunciados concretos. Metodologicamente, a canção Cálice de Chico Buarque e Gilberto Gil e o RAP Cálice de Criolo são dialogicamente dispostos em relação ao seu contexto de produção, a um e ao outro e às narrativas bíblicas Jesus no Jardim do Getsêmani e A Última Ceia, que simultaneamente conferem status de enunciado à expressão da qual cálice configura uma metonímia e fixam a expressão como um item de uma memória cultural que podemos nomear Católica Romana1 1 Neste artigo, é feita a referência aos trechos bíblicos como repertório de uma memória cultural especialmente vinculada à Igreja Católica Romana pelo valor e pela função desta instituição na colonização lusitana, desde o século XVI, decisiva para a construção da brasilidade. Entretanto, especialmente a partir do século XIX, com a organização de instituições protestantes no Brasil, esses mesmos trechos passam a ecoar, também, outra vertente do cristianismo, de modo que essa memória cultural pudesse ser mais abrangentemente nomeada como "memória bíblica." Como a história do cristianismo no Brasil foge ao escopo deste artigo, registra-se esta nota, embora mantenham-se as menções à memória católica romana. . A discussão mostra que a transposição do enunciado de uma área semântica da existência para outra altera os processos de reflexão e refração de signos ideológicos por meio de um jogo de memórias.

PALAVRAS-CHAVE:
Área semântica da existência; Memória; Enunciado concreto; Ato ético; Signo ideológico

ABSTRACT

In this paper, the aim is to demonstrate the ethical-semantic impact of great time in the reaccentuation of two reformulations of the expression “let this cup pass from me.” Theoretically, we describe great time as semantic sectors of existence which frame the possibilities of meaning actualized in speech genres and concrete utterances. Methodologically, the song Cálice by Chico Buarque and Gilberto Gil and the RAP Cálice by Criolo are dialogically disposed in relation to their context of production, to one another and to the biblical narratives Jesus in the Garden of Gethsemane and The Last Supper, which simultaneously convey status of utterance to the expression of which cup configures a metonym and fix the expression as an item of a cultural memory that we can now name Roman Catholic memory.1 1 In this paper, references are made to biblical excerpts as components of the repertoire of the cultural memory specially linked to the Roman Catholic Church, because of its value and function in the Portuguese colonization of Brazil, since de 16th century, which was decisive for the constitution of the sense of Brazility. However, specially from de 19th century, with the organization of Protestant institutions in Brazil, these excerpts started to echo other trends of Christianity as well, so that this cultural memory could be broadly labled as “biblical memory.” As the history of Christianity in Brazil exceeds the scope of this paper, this note is registered, even though the mention to a Roman Catholic memory is kept. The discussion shows that the transposition of this utterance from one semantic sector of existence to another alters the reflection and refraction processes of ideological signs through a game of memories.

KEYWORDS:
Semantic sector of existence; Memory; Concrete utterance; Ethical act; Ideological sign

Introdução

Na história brasileira contemporânea, canções têm sido uma relevante arena de valores. Durante as décadas de ditadura militar (1964-1985), por exemplo, um movimento estético conhecido como Música Popular Brasileira (doravante, MPB) astuciosamente executou a tarefa política de resistir ao regime opressor. Na época, compositores tinham o desafio de, simultaneamente, participar da cadeia comunicativa subversiva e despistar censores. Assinar seus trabalhos com codinomes era uma estratégia comum dos compositores famosos (especialmente os letristas) para evitar a ameaça de veto. Além disso, no meticuloso trabalho com a linguagem verbal, a memória cultural de campos não políticos era frequentemente evocada para realizar a resistência desses artistas por meio da poesia. Nesse cenário, as canções eram armas simbólicas na luta em andamento pela democracia (NAPOLITANO, 2004NAPOLITANO, M. A MPB sob suspeita: a censura musical vista pela ótica dos serviços de vigilância política (1968-1981). Rev. Bras. Hist., São Paulo, v. 24, n. 47, p.103-126, 2004. Available at: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882004000100005&lng=en&nrm=iso. Access on: 23 Mar. 2020. https://doi.org/10.1590/S0102-01882004000100005.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
; SALLES et al., 2015SALLES, A. C. de M.; FERNANDES, F. S.; MALUF-SOUZA, O. A MPB no regime militar: silenciamento, resistência e produção de sentidos. RUA, v. 21, n. 2, pp.341 -361, 2015.; KOGAWA, 2018KOGAWA, J. Vozes em fragmentos na poesia de Chico: uma arquitetura polifônica? Rio de Janeiro: Multifoco, 2018.; SANTOS FILHO; BORGES, 2019SANTOS FILHO, L. B.; BORGES, V. R. S. Tempo de resistência: o discurso de protesto na poesia de Chico Buarque. Cadernos Cajuína, v. 4, n. 1, pp.247-264, 2019.).

Em circunstâncias diferentes, outros movimentos musicais também deram voz aos marginalizados no Brasil. A partir do final dos anos 1970, funk e RAP (iniciais para Rhythm and Poetry - Ritmo e Poesia, em tradução livre) se difundiram como movimentos artísticos marginais em que a voz da classe baixa suburbana podia eventualmente ser ouvida. Tanto o funk quanto o RAP têm sido instrumentos de identidade social e de luta estética e política (VIANNA, 1990VIANNA, H. Funk e cultura popular carioca. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 3, n. 6, pp.244-253, dez. 1990. ISSN 2178-1494. Available at: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2304. Access on: 27 Apr. 2020.
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/inde...
; CASTIBLANCO LEMUS, 2005CASTIBLANCO LEMUS, G. Rap y prácticas de resistencia: una forma de ser joven. Reflexiones preliminares a partir de la interacción con algunas agrupaciones bogotanas. Tabula Rasa [on-line]. 2005, n. 3, pp.253-270. Available at: https://www.redalyc.org/pdf/396/39600313.pdf. Access on: 15 Apr. 2020.
https://www.redalyc.org/pdf/396/39600313...
; DUTRA, 2007DUTRA, J. N. Rap: identidade local e resistência global. 2007. 104f. Dissertação (Mestrado em Música) - Programa de Pós-Graduação em Música, Universidade Estadual Paulista, São Paulo.; REIS, 2007REIS, S. M. O RAP na mídia: discurso de resistência? 2007. 75f. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) - Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada, Universidade de Taubaté, Taubaté.; GIMENO, 2009GIMENO, P. C. Poética versão - a construção do rap na periferia. 2009. 154f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de Campinas, Campinas.; ARAÚJO, 2018ARAÚJO, N. B. Juventude e resistência: o funk como forma de expressão dos(das) jovens da periferia. 2018. 106f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.).

Neste artigo, o objetivo é demonstrar o impacto ético-semântico do grande tempo (BAKHTIN, 1999cBAKHTIN, M. M. Response to a question from the Novy Mir Editorial Staff. In: BAKHTIN, M. M. Speech Genres and Other Late Essays. Translated by Vern W. McGee. Austin: University of Texas Press, 1999c. pp.1-9., 1999dBAKHTIN, M. M. Toward a Methodology for the Human Sciences. In: BAKHTIN, M. M. Speech Genres and Other Late Essays . Translated by Vern W. McGee. Austin: University of Texas Press, 1999d. pp.159-172.) na reacentuação de duas reformulações da expressão “afasta de mim esse cálice” em duas canções brasileiras: Cálice, composta por Chico Buarque de Holanda e Gilberto Gil e censurada em 1973, e Cálice, composta em 2011 pelo rapper Kleber Cavalcante Gomes, conhecido como Criolo. O enunciado original - “afasta de mim esse cálice” - integra uma narrativa no evangelho bíblico de acordo com Mateus (cap. 26, versos 36-46), Marcos (cap. 14, versos 32-42) e Lucas (cap. 22, versos 40-46), geralmente intitulada “Jesus no jardim do Getsêmani”. A narrativa conta a história dos últimos momentos de Jesus antes de ser preso, condenado e crucificado e revela um complexo embate ideológico.

Por um lado, os judeus, especialmente os fariseus, acusavam Jesus de blasfêmia por ter se proclamado Filho de Deus. Esse é o primeiro choque. Os guardiões da tradição judaica esperavam que o Messias realizasse uma independência política do Império Romano, mas Jesus parece ter realizado uma libertação religiosa, espiritual. Esse embate distinguiu, a princípio, judeus de judeus-cristãos. Por outro lado, sob o domínio político do Império Romano, os fariseus não tinham a autoridade para prender e condenar Jesus. Portanto, ajustaram sua acusação de modo a deflagrar uma resposta romana. Acusaram Jesus de se autodeclarar Rei dos Judeus e ameaçar a chamada “Pax Romana”. Nesse caso, houve um choque religioso e político.

A Igreja Católica deriva desse ramo judeu-cristão e espalha o evangelho bíblico especialmente pelo Ocidente no período conhecido como das Grandes Navegações. Assim, no século XV, os portugueses trouxeram ao Brasil não apenas sua língua, mas muitos outros enquadres culturais, incluindo a religião. A despeito da miscigenação étnica que ocorreu ao longo dos séculos subsequentes, a colonização linguística e a religiosa foram profundamente bem sucedidas no Brasil. Então, muitas das narrativas bíblicas constituíram seu repertório cultural.

Em resumo, essa é a fonte da qual ambos os compositores das canções intituladas Cálice bebem para enunciar sua posição ética de resistência política. Contudo, como destacado, a tensão entre religião e política tem sido uma questão desde a emergência do enunciado original. Porque a linguagem metafórica religiosa das canções não inaugura essa articulação com a política, hipotetizamos que as condições históricas do grande tempo são cruciais para a reacentuação ético-semântica desse enunciado no contexto brasileiro.

1 O mundo verboideológico: existência como um processo discursivo dinâmico

A despeito de toda a especulação filosófica em torno da ideia de existência, neste artigo, selecionamos da etimologia da palavra os esquemas básicos sobre as quais firmamos sua concepção dialógica. No latim, sistō, sistere significa “fazer levantar, montar, tomar uma posição2 2 Texto no original: “to cause to stand, set up, take a stand” ” (DE VAAN, 2008DE VAAN, M.Etymological Dictionary of Latin and the other Italic Languages .Leiden/Boston: Brill, 2008. - tradução nossa). O formativo ex indica um movimento, uma direção, e geralmente é traduzido como “fora, para fora de.” Etimologicamente, o conceito expresso pelo composto existere implica o movimento de tomar uma posição, de assumir uma postura. Dialogicamente, existência conceptualiza esse processo dinâmico de “assumir uma posição” em relação aos laços culturais que tornam indivíduos membros de grupos sociais. Esse entendimento dialógico da existência influenciou a produção teórica do Círculo Bakhtin/Medviédev/Volóchinov (doravante, Círculo BMV) desde o início.

No trabalho de Bakhtin, o conceito de ato - ato responsável - transmite essa ideia de assumir uma posição em relação ao outro, em relação ao pensamento, em relação à vida-como-ato. Ato é concebido no livro inacabado, provavelmente escrito entre 1919 e 1921 e originalmente publicado alguns anos após sua morte (BAKHTIN, 1995BAKHTIN, M. M. Toward a Philosophy of the Act. Translation and notes byVadim Liapunov . Austin: University of Texas Press, 1995 (University of Texas Press Slavic Series, No. 10).). Nesse trabalho não concluído, Bakhtin sustenta que não há como alguém escapar de sua responsabilidade de existir. Qualquer ato significativo que alguém execute é social e culturalmente implicado e, por conta disso, sua posição impacta as relações à sua volta. O autor russo vai além e afirma que nem mesmo um pensamento, incluindo um pensamento teórico, é escusado dessa participação ativa no evento de ser em andamento, isto é, existir.

O verdadeiro pensamento que age é pensamento emotivo-volitivo, é pensamento que entoa e tal entonação penetra de maneira essencial em todos os momentos conteudísticos do pensamento. O tom emotivo-volitivo envolve o conteúdo inteiro do sentido do pensamento na ação e o relaciona com o existir-evento singular (BAKHTIN, 2010, p.87)3 3 BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010. .

Portanto, Bakhtin entende que fazer sentido resulta do movimento constitutivo de tomar posição e participar da cadeia comunicativa que define “Ser-como-evento.”

Eu também sou - em toda a plenitude emotivo-volitiva atuante [Postupcnyj (adjetivo criado por Bakhtin sobre “postupak”)], de tal afirmação - e realmente sou - totalmente, e tenho a obrigação de dizer esta palavra, e eu também sou participante no existir de modo singular e irrepetível, e eu ocupo no existir singular um lugar único, irrepetível, insubstituível e impenetrável da parte de um outro. Neste preciso ponto singular no qual agora me encontro, nenhuma outra pessoa jamais esteve no tempo singular e no espaço singular de um existir único. (...) Tudo o que pode ser feito por mim não poderá nunca ser feito por ninguém mais, nunca. A singularidade do existir presente é irrevogavelmente obrigatória [nuditel’no obiazatel’na] (BAKHTIN, 2010, p.96)4 4 Para referência, ver nota 2. .

Ele, então, sintetiza esse movimento de existir como “meu não-álibi no existir” (BAKHTIN, 2010, p.96)5 5 Para referência, ver nota 2. . Sobre este não-álibi Bakhtin constrói uma teoria dialógica de linguagem. De acordo com o autor, a existência se desdobra numa cadeia comunicativa discursiva - cuja unidade real é o enunciado (BAKHTIN, 1999aBAKHTIN, M. M. The Problem of Speech Genres. In: BAKHTIN, M. M. Speech Genres and Other Late Essays. Translated by Vern W. McGee. Austin: University of Texas Press, 1999a. pp.60-102., 2016aBAKHTIN, M. Diálogo I. A questão do discurso dialógico. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016a. pp.113-124., 2016bBAKHTIN, M. Diálogo II. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016b. pp.125-150.). Nesse sentido, entendemos que enunciar é o meio de existir.

Em seus últimos apontamentos feitos entre 1970-71, Bakhtin (1999b)BAKHTIN, M. M. From Notes Made in 1970-71. In: BAKHTIN, M. M. Speech Genres and Other Late Essays. Translated by Vern W. McGee. Austin: University of Texas Press, 1999b. pp.132-158. descreve o modo como concebe o processamento semântico do evento de existir em andamento. Para fins retóricos, o autor identifica dois planos significativos interdependentes: um plano de estabilidade e outro de instabilidade. Porque os indivíduos não vivem num vácuo social, mas em sociedade, há um aspecto do significado que é necessariamente distribuído, isto é, é partilhado com os outros com quem o indivíduo forma uma unidade social. Essa distribuição entre o(s) grupo(s) social(is) constitui o plano da estabilidade do significado. Porque os enunciados são singularmente instanciados e nunca podem ser repetidos, há um aspecto do significado que é temporal e espacialmente situado. Este é o plano da instabilidade. O enunciado é o fenômeno que deriva da interseção desses dois planos

Cada elemento do discurso é percebido em dois planos: no plano da repetitividade da língua e no plano da não repetitividade do enunciado. Através do enunciado a língua comunga na não repetitividade histórica e na totalidade inacabada da logosfera (BAKHTIN, 2017, p.24)6 6 BAKHTIN, M. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017. p.21-56. .

No âmbito conceitual, esses dois planos provocam a distinção entre sentido (singular) e significado (distribuído). Ambos integram o processamento semântico, mas sentido põe em evidência o que deriva do caráter situado do enunciado, ao passo que significado põe em evidência as referências partilhadas pelo(s) grupo(s) social(is). Sentido é caracterizado por Bakhtin (2017, p.41)7 7 Para referência, ver nota 5. como uma resposta: “O sentido sempre responde a certas perguntas. Aquilo que a nada responde se afigura sem sentido para nós, afastado do diálogo”; significado, como um repertório compartilhado que não está diretamente ligado ao diálogo constante: “O significado está separado do diálogo, mas abstraído dele de modo deliberado e convencional. Nele existe uma potência de sentido” (BAKHTIN, 2017, p.41)8 8 Para referência, ver nota 5. . Ambos derivam da interação social real; sua distinção é uma questão de foco em diferentes planos do processamento semântico.

Isso nos permite dizer que, do ponto de vista dialógico, o processamento semântico envolve a atualização singular do repertório do grupo social, e isso necessariamente envolve avaliação.

A compreensão dos elementos repetíveis e não repetíveis do todo. Inteiração e encontro com o novo, o desconhecido. Esses dois momentos (a inteiração do repetível e a descoberta do novo) devem estar fundidos indissoluvelmente no ato vivo da compreensão: porque a não repetitividade do todo está refletida também em cada elemento repetível, coparticipante do todo (por assim dizer, é repetível-não repetível) (BAKHTIN, 2017, p.37)9 9 Para referência, ver nota 5. .

Isso significa que o processamento semântico implica uma perspectivação complexa. Sentido constitui uma realização social que resulta de um trabalho situado com a linguagem. Resultando de um trabalho situado, é necessariamente emoldurado por uma perspectiva situacional concreta. Significado constitui um tipo de referência compartilhada que é a base para esse trabalho situado. Porque o significado é abstraído do diálogo social, funciona como um índice de conhecimento compartilhado, que estabiliza um certo ponto de vista. O ponto de vista que emoldura um enunciado necessariamente implica tanto a avaliação da perspectiva estabilizada no significado quanto a avaliação da perspectiva situacional.

Essa complexa perspectivação é atualizada no curso da existência em andamento, isto é, conforme a cadeia comunicativa se desdobra. Portanto, essa dupla perspectivação acontece na interação cultural, na qual Bakhtin distingue dois tipos de palavras: a minha palavra e a palavra do outro. Esses dois tipos de palavras são qualitativamente distintos, no sentido de que a palavra do outro corresponde aproximadamente àquilo que está disponível no repertório do grupo social, e a minha palavra corresponde ao esforço singular e contínuo de fazer sentido a partir desse repertório. Bakhtin afirma:

Eu vivo em um mundo de palavras do outro. E toda a minha vida é uma orientação nesse mundo; é reação às palavras do outro (uma reação infinitamente diversificada), a começar pela assimilação delas (no processo de domínio inicial do discurso) e terminando na assimilação das riquezas da cultura humana (expressa em palavras ou em outros materiais semióticos) (BAKHTIN, 2017, p.38)10 10 Para referência, ver nota 5. .

De uma maneira um pouco diferente, num livro primeiramente publicado em 1928, Medviédev concebe esse “mundo das palavras do outro” como um mundo ideológico (MEDVEDEV, 1991MEDVEDEV, P. N. The formal method in Literary Scholarship. A critical introduction to Sociological Poetics. Trans. Albert J. Wehrle. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1991.). Todavia, antes de adentrar na discussão desse autor sobre esse assunto, é importante destacar dois pontos. Primeiro, os excertos selecionados para consideração aqui foram retirados de um trabalho em que Medviédev está cumprindo uma tarefa em particular: incluir os estudos literários na agenda marxista da URSS de seu tempo. Sua posição institucional demandava esse esforço, e os argumentos que apresenta no livro são cruciais para a presente discussão. Contudo, detalhes sobre suas condições de trabalho e a história intelectual de seu pensamento no Círculo BMV excedem o escopo deste artigo11 11 Para mais informações, ver, por exemplo, Medvedev e Medvedeva (2014) e Medvedev, Medvedeva e Shepherd (2016). .

Segundo, a noção de “ideologia” na Rússia/URSS nos anos 1920 estava sob disputa e qualquer conceito que evoquemos de lá/daquele tempo deve diferir de sua recepção atual, especialmente no mundo ocidental. Para este artigo, podemos dizer que “ideologia” refere-se aos sistemas simbólicos produzidos pela sociedade para organizar as relações humanas de uns com os outros e com o ambiente. Esse é o caso da lei, ciência, arte, religião e qualquer outro sistema para regular e categorizar relações sociais. Nas palavras de Volóchinov, “Entendemos por ideologia todo o conjunto de reflexos e refrações no cérebro humano da atividade social e natural, expressa e fixada pelo homem na palavra, no desenho artístico e técnico ou em alguma outra forma sígnica” (VOLÓCHINOV, 2019, p.243)12 12 VOLÓCHINOV, V. Estilística do discurso literário I: O que é a linguagem/língua (1930); In: VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019. p.234-265. . Portanto, neste trabalho, sempre que nos referirmos a “ideologia,” “campo da criatividade ideológica” ou quando caracterizarmos algo como “ideológico,” falamos dos campos da cultura, como arte, religião, lei, ciência etc., que enquadram e organizam as relações humanas de uns com os outros e que medeiam sua relação com o ambiente13 13 Para mais detalhes acerca das complexas fontes para o conceito de ideologia do Círculo BMV e sua recepção, ver Brandist (2002), Tihanov (2002), Costa (2016), Grillo (2017), entre outros. .

Tendo definido isso, reiteramos que Medviédev define o “mundo da palavra do outro” como um mundo ideológico, e há espaço para chamá-lo de mundo verboideológico.

O homem social está rodeado de fenômenos ideológicos, de “objetos-signo” dos mais diversos tipos e categorias: de palavras realizadas nas suas mais diversas formas, pronunciadas, escritas e outras; de informações científicas; de símbolos e crenças religiosas; de obras de arte, e assim por diante. Tudo isso em seu conjunto constitui o meio ideológico que envolve o homem por todos os lados em um círculo denso. Precisamente nesse meio vive e se desenvolve a sua consciência. A consciência humana não toca a existência diretamente, mas através do mundo ideológico que a rodeia. O meio ideológico é a consciência social de uma dada coletividade, realizada, materializada e exteriormente expressa. Essa consciência é determinada pela existência econômica e, por sua vez, determina a consciência individual de cada membro da coletividade. De fato, a consciência individual só pode tornar-se uma consciência quando é realizada nessas formas presentes no meio ideológico: na língua, no gesto convencional, na imagem artística, no mito e assim por diante (MEDVIÉDEV, 2012, p.56)14 14 MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica e uma poética sociológica. Tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2012. .

Medviédev argumenta que os indivíduos entram em contato com o mundo pelo enquadre de um grupo social. É a partir da perspectiva do grupo e através dela que alguém pode fazer sentido sobre aquilo que o rodeia. Então, o processo de fazer sentido conta com o que está distribuído entre a coletividade, e essa referência distribuída é a base da semiose. O professor russo também diz que todo produto ideológico é um objeto de relações (MEDVEDEV, 1991MEDVEDEV, P. N. The formal method in Literary Scholarship. A critical introduction to Sociological Poetics. Trans. Albert J. Wehrle. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1991.). Essa é uma das várias razões por que podemos assumir que há uma coerência entre o pensamento de Medviédev e o de Bakhtin. Ainda que vejamos um tipo de tendência fenomenológica no pensamento de Bakhtin e uma especulação marxista no de Medviédev, ambos consideram a existência como a assunção de uma perspectiva, e que a base dessa perspectiva está distribuída entre o grupo social e é singularmente atualizada nas relações sociais.

Até aqui, afirmamos que, de um ponto de vista dialógico, a existência ocorre na interação sociocultural e isso implica a abordagem histórico da instanciação da linguagem. Isso significa que a história necessariamente impacta a produção de linguagem e a circulação de discursos, mas como isso acontece? A condição histórica de qualquer enunciado é assumida pelos pensadores do Círculo BMV em, pelo menos, dois modos teóricos de relacionar diferentes níveis de temporalidade na produção de enunciados e circulação de discursos. Bakhtin (2017, p.77-78)15 15 BAKHTIN, M. Por uma metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017. p.57-80. , por exemplo, distingue “O ‘pequeno tempo - a atualidade, o passado imediato e o futuro previsível (desejado) - e o ‘grande tempo’ - o diálogo infinito e inacabável em que nenhum sentido morre”; e completa: “Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites para o contexto dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem limites). [...] Não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação. Questão do grande tempo. (2017, p.79)16 16 Para referência, veja nota 14. . O pensador russo afirma que muito da complexa condição cultural da humanidade é revelado no nível do grande tempo, o que parece ser o caso que examinaremos em breve.

Bakhtin/Volochínov (1999) também distingue dois níveis temporais e argumenta que ambos determinam qualquer interação discursiva: “[A] a situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir de seu próprio interior, a estrutura da enunciação” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1999, p.113)17 17 BAKHTIN, M. M. (VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Prefácio de Roman Jakobson. Apresentação de Marina Yaguello. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira com a colaboração de Lúcia Teixeira Wisnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 1999. . A integração desses dois níveis temporais define a compreensão do Círculo BMV do que seja história. Para os pensadores russos, a história consiste de uma dinâmica relacional que acontece por meio da tensão entre o intervalo de tempo das instanciações interacionais singulares (pequeno tempo de Bakhtin) e o fluxo de transformações superordenadas que tornam o reenquadramento cultural possível (MAGALHÃES; KOGAWA, 2019MAGALHÃES, A. S.; KOGAWA, J. Pensadores da Análise do Discurso: uma introdução. Jundiaí: Paco Editorial, 2019.).

Se essa diferenciação e integração temporal é conceitualmente relevante, sua abordagem metodológica não está necessariamente clara. Como podemos enfrentar “o meio social mais amplo”? Como podemos lidar com o diálogo que acontece entre culturas, povos, nações por séculos e milênios? Como podemos acessar o “passado sem limites e o futuro sem limites”? Desenhar fronteiras parece ser a chave para lançar luz sobre esse desafio.

Vološinov (1973VOLOŠINOV, V. N. Marxism and the Philosophy of Language. Translated by Ladislav Matejka and I. R. Titunik. Cambridge, London: Harvard University Press, 1973.; 1983a)VOLOŠINOV, V. N. Discourse in life and discourse in poetry. In: SHUKMAN, A. (ed.) Bakhtin School Papers. Russian Poetics in Translation. Oxford: RPT Publications,1983a. pp.5-30.18 18 Para referência, ver notas 11 e 16. vê a semiose e a organização social como interdependentes. O modo como entendemos essa interdependência se firma no fato de que qualquer produto social, isto é, o que quer que seja assumido para além de sua condição natural, é compreendido pelos laços que constituem o grupo social em que esse produto emerge, e não simplesmente por seus aspectos físico-químicos. Considere-se, por exemplo, uma árvore. Como um elemento da natureza, iguala-se a si mesmo. Uma vez simbolizada como um item de paisagismo ou um elemento da floresta tropical, a árvore excede sua condição natural e significa algo, e sua semiose depende da validação da estrutura cultural. Como um conceito, a árvore é interpretada por lentes sociais - Ecologia, Biologia e assim por diante; foi (culturalmente) semiotizada.

Isso significa que, no momento em que simbolizamos, ajustamo-nos a alguma orientação social e disparamos o processo de semiose. A árvore como elemento natural continua uma árvore. É a organização cultural que estabelece as condições para simbolizá-la como a fonte de algum medicamento, um item de paisagismo, um elemento da floresta tropical etc.

Porque Bakhtin/Volochínov (1999) entende que a história social está implicada na semiose, o autor descrever o processamento e a mudança semânticos como fenômenos culturalmente motivados e, portanto, histórica e socialmente condicionados. Suas palavras valem ser citadas:

A evolução semântica na língua é sempre ligada à evolução do horizonte apreciativo de um dado grupo social e a evolução do horizonte apreciativo - no sentido da totalidade de tudo o que tem sentido e importância aos olhos de um determinado grupo - é inteiramente determinada pela expansão da infra-estrutura econômica. À medida que a base econômica se expande, ela promove uma real expansão no escopo de existência que é acessível, compreensível e vital para o homem. O criador de gado pré-histórico não tinha preocupações, não havia muita coisa que realmente o tocasse. O homem no fim da era capitalista está diretamente relacionado com todas as coisas, seus interesses atingem os cantos mais remotos da terra e mesmo as mais distantes estrelas. Esse alargamento do horizonte apreciativo efetua-se de maneira dialética. Os novos aspectos da existência, que foram integrados no círculo do interesse social, que se tornaram objetos da fala e da emoção humana, não coexistem pacificamente com os elementos que se integraram à existência antes deles; pelo contrário, entram em luta com eles, submetem-nos a uma reavaliação, fazem-nos mudar de lugar no interior da unidade do horizonte apreciativo. Essa evolução dialética reflete-se na evolução semântica. Uma nova significação se descobre na antiga e através da antiga, mas a fim de entrar em contradição com ela e de reconstruí-la. O resultado é uma luta incessante dos acentos em cada área semântica da existência. Não há nada na composição do sentido que possa colocar-se acima da evolução, que seja independente do alargamento dialético do horizonte social. A sociedade em transformação alarga-se para integrar o ser em transformação. Nada pode permanecer estável nesse processo. É por isso que a significação [o plano da estabilidade mencionado anteriormente neste artigo], elemento abstraído igual a si mesmo, é absorvida pelo tema [o plano da instabilidade do sentido], e dilacerada por suas contradições vivas, para retornar enfim sob a forma de uma nova significação com uma estabilidade e uma identidade igualmente provisórias (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1999, p.135-136)19 19 Para referência, ver nota 16. .

Como um construto que relaciona a produção de sentidos e a história social, a área semântica da existência descreve uma condição superordenada para a semiose e nos habilita a esboçar fronteiras significativas no âmbito do intervalo do grande tempo. No escopo de sua discussão, Bakhtin/Volochínov (1999)20 20 Para referência, ver nota 16. destaca o potencial cultural das palavras. O autor afirma que “[A] a palavra é o fenômeno ideológico por excelência” (p.36) porque, diferente de outros tipos de material semiótico que são específicos “de algum campo particular da criação ideológica” (p.36), a palavra - ou o signo linguístico - “Pode preencher qualquer espécie de função ideológica: estética, científica, moral, religiosa” (p.37).

Esse é exatamente o caso em análise neste artigo. Na narrativa bíblica Jesus no jardim do Getsêmani, a palavra cálice funciona como um índice do discurso construído por uma tensão político-religiosa e estabelece a base para uma memória cultural judaico-cristã. A complexa conformação cultural a uma deidade estabeleceu as condições de produção da tensão que é constitutiva dessa memória.

A organização política do Império Romano foi fundada, entre outros aspectos, sobre a tolerância religiosa. Mesmo assim, o Império assumia a religião como uma referência reguladora e não havia distinção clara entre Igreja/Estado, sendo o imperador o pontífice máximo. Nesse sentido, o judaísmo era tolerado pelo Império, mas o monoteísmo estrito dos judeus provocava uma tensão político-religiosa. Essa tensão levou a uma perseguição feroz aos cristãos nos primeiros séculos a.C. Apenas quatro séculos depois da morte de Jesus o Imperador Constantino Magno se converteu ao cristianismo e favoreceu aos cristãos. Mais tarde, o alinhamento do Império com o cristianismo culminou na institucionalização da Igreja Católica Romana.

A Igreja Católica foi o artifício institucional usado pelos portugueses para estabelecer o enquadre religioso para o Brasil colônia no século XV, e a instituição permaneceu um forte vetor de memória cultural até a constituição da República no final do século XIX. A despeito das mudanças socioculturais ao longo dos séculos, é ainda penetrante. A composição de uma música popular no final do século XX e no início do século XXI assimilando e reacentuando elementos chave dessa memória católica corrobora isso. Contudo, a transposição de índices dessa memória cultural para uma área semântica da existência diferente e para um campo da cultura e um campo discursivo diferentes - nos termos de Vološinov, para um campo da criatividade ideológica diferente (VOLOŠINOV, 1973VOLOŠINOV, V. N. Marxism and the Philosophy of Language. Translated by Ladislav Matejka and I. R. Titunik. Cambridge, London: Harvard University Press, 1973.) - impacta a organização dos gêneros discursivos (BAKHTIN, 1999aBAKHTIN, M. M. The Problem of Speech Genres. In: BAKHTIN, M. M. Speech Genres and Other Late Essays. Translated by Vern W. McGee. Austin: University of Texas Press, 1999a. pp.60-102.) e altera o ato ético executado por meio de cada enunciado. Isso indica como as palavras são ideologicamente versáteis.

Repare que a versatilidade claramente distingue a noção volochinoviana de signo da saussuriana. Do ponto de vista dialógico, signos não derivam de relações intrassistêmicas, mas da interseção da história social e os sistemas culturais na simbolização. Então, podemos dizer que para Volochínov - assim como para os outros pensadores do Círculo BMV -, os signos linguísticos importam uma vez que revelam aspectos do mundo ideológico. Levando em consideração o caráter penetrante dos signos linguísticos, podemos renomeá-lo mundo verboideológico.

Em termos dialógicos, as áreas semânticas da existência descrevem as condições históricas em que grupos sociais enquadram e medeiam a relação do indivíduo com os outros e com o ambiente e a relação entre grupos sociais. As áreas semânticas da existência constituem uma limitação superordenada para os modos como alguém assume uma posição no processo contínuo de viver em sociedade, e a língua é uma parte integral delas, como veremos na próxima seção.

2 Memória social e o aspecto ético-estético de enunciar(se)

A interação social é atualizada por enunciados concretos e é limitada pelo sistema simbólico superordenado, teoricamente rotulado área semântica da existência. Entretanto, os enunciados não integram essa limitação superordenada de maneira imediata. Há outros níveis de arranjos simbólicos que organizam os modos de tomar uma posição no mundo verboideológico.

As condições verboideológicas do Império Romano correspondem ao que nomeamos de mundo pré-moderno. Nessa área semântica da existência, sociedades tradicionais eram reguladas pelo mito religioso, de modo que não havia clara distinção entre religião e o Estado. No mundo moderno, o ideal de nação aflorou como uma organização cultural em que a religião e o Estado constituíam instituições separadas (THIESSE, 1999THIESSE. A.-M. La création des identités nationales. Europe XVIIIe - XXe siècle. Paris: Editions du Seuil, 1999.). Dialogicamente, podemos dizer que os mundos pré-moderno e moderno diferem por conta das áreas semânticas da existência que regulam o funcionamento social. Nesse sentido, teocracia e democracia constituem não apenas modos de governar, mas dois diferentes sistemas simbólicos superordenados que limitam as maneiras como os grupos sociais se organizam, se relacionam e interagem.

Dufour (2003)DUFOUR, D.-R. L’art de réduire les têtes. Sur la nouvelle servitude de l’homme libéré à l’ère du capitalisme total. Paris: Denoël, 2003. realça duas características que destacam as referências do mundo moderno das do pré-moderno. Em primeiro lugar, o autor diferencia a assimetria transcendente que separa deidade e sujeitos em uma sociedade tradicional das referências antropocêntricas que regulam as relações socioculturais em uma sociedade moderna. Em segundo lugar, Dufour (2003)DUFOUR, D.-R. L’art de réduire les têtes. Sur la nouvelle servitude de l’homme libéré à l’ère du capitalisme total. Paris: Denoël, 2003. chama a atenção para o fato de que, na sociedade pré-moderna, há um valor regulador e um artifício validador para a organização cultural - deidade/religião. Na sociedade moderna, os valores reguladores e os artifícios validadores são plurais - Estado, Razão, Ciência. Assim, numa sociedade teocrática, os campos da cultura são subordinados à religião e seus mitos. Arte, lei, ciência, de algum modo, respondem ao status validador dos valores religiosos. Numa sociedade democrática, os campos da cultura respondem às múltiplas referências axiológicas - Estado, Razão, Ciência - e a religião constitui um dos campos da cultura, como a arte e a lei.

Esses são os macrocenários que abrangem os enunciados em análise aqui. O evangelho bíblico foi produzido numa cultura teocrática organizada em um Império que tolerava a religião dos grupos sociais sob seu domínio; as canções compostas alhures cerca de 20 séculos mais tarde foram produzidas numa sociedade antropocêntrica lutando pela liberdade de expressão e justiça social. Contudo, não há uma ligação imediata entre esses cenários. A memória cultural é condição para o estabelecimento de um legado social espalhado pelo mundo ocidental. A questão perseguida neste artigo deriva da transposição de um elemento da memória católica romana fixada em narrativas evangélicas para uma área semântica da existência diferente e do seu impacto na reacentuação de valores. A fim de compreender como essa memória cristã penetrante foi transposta para canções populares brasileiras, especificamos a configuração ético-estética implicada na concepção de memória da perspectiva dialógica.

Bakhtin (1999b)BAKHTIN, M. M. From Notes Made in 1970-71. In: BAKHTIN, M. M. Speech Genres and Other Late Essays. Translated by Vern W. McGee. Austin: University of Texas Press, 1999b. pp.132-158. deixa claro que a memória não é uma questão de lembrança individual. O autor diz que o que quer que possa penetrar na psique do indivíduo migrou da “memória das línguas, dos gêneros, dos rituais” (BAKHTIN, 2017, p.39)21 21 Para referência, ver nota 5. . Isso significa que concebe memória como um fenômeno social manifesto em formas culturais “(incluindo-se aí as formas linguísticas e discursivas), e nesse sentido elas [formas culturais] são intersubjetivas e interindividuais (logo, também sociais)” (BAKHTIN, 2018, p.225)22 22 BAKHTIN, M. As formas do tempo e do cronotopo no romance. In: BAKHTIN, M. Teoria do romance II: As formas do tempo e do cronotopo. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2018. p.11-237. .

Amorim (2009)AMORIM, M. Memória do objeto - uma transposição bakhtiniana e algumas questões para a educação. Bakhtiniana. São Paulo, v. 1, n. 1, pp.8-22, 2009. chama a atenção para a distinção que Bakhtin (1990)BAKHTIN, M. M. Author and Hero in Aesthetic Activity. In: BAKHTIN, M. M. Art and Answerability: Early Philosophical Essays. Edited by Michael Holquist and Vadim Liapunov. Translation and notes byVadim Liapunov. Austin: University of Texas Press, 1990. pp.4-256. faz entre memória do objeto e memória do sujeito. Aquela corresponde à memória preservada em formas objetivas que constituem o legado cultural, como já citado. Em resumo, podemos dizer que é um conjunto de vozes sociais que, por indicarem certo rastro histórico assim como um certo repertório ideológico, reverbera os significados em objetos culturais, como formas linguísticas, rituais etc. A memória do objeto é o atributo que garante lugar e relevância no mundo verboideológico. A memória do sujeito deriva da posição estética daqueles implicados no enunciado. Na posição estética em que se recebe o acabamento do outro - a posição de personagem - a memória do sujeito é orientada para um horizonte de sentido. Dentro do enquadre do horizonte, o sentido potencial é um processo de devir, e a memória que daí deriva pode ser categorizada como uma memória do futuro (BAKHTIN, 2003, p.140)23 23 BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.3-194. . Porque o horizonte está adiante e constitui uma destinação, uma direção para o sujeito objetificado como personagem, Bakhtin (1990)BAKHTIN, M. M. Author and Hero in Aesthetic Activity. In: BAKHTIN, M. M. Art and Answerability: Early Philosophical Essays. Edited by Michael Holquist and Vadim Liapunov. Translation and notes byVadim Liapunov. Austin: University of Texas Press, 1990. pp.4-256. realça o aspecto moral e ético desse tipo de memória e, Magalhães (2019)MAGALHÃES, A. S.; KOGAWA, J. Pensadores da Análise do Discurso: uma introdução. Jundiaí: Paco Editorial, 2019., esse aspecto moral e ético à implicação pragmática da memória do futuro. Diferentemente, na posição estética de autor, o sujeito não é orientado para o horizonte, mas para o acabamento inerente ao ato de criar. Isso significa que essa memória produz acabamento e, a fim de produzi-lo, o sujeito em posição de autor deve ter uma visão geral do todo de sentido de modo que o horizonte prospectivo da personagem constitui um objeto acabado pelo autor. A memória que deriva dessa posição estética pode ser categorizada como uma memória do passado (BAKHTIN, 2003, p.140). Obviamente, não está livre de responsabilidade ética, mas é determinada por sua função estética de finalizar, que produz sentido e não é guiada pelo horizonte de potencial de sentido.

No contexto bíblico, “afasta de mim esse cálice” tem dois planos enunciativos que distinguem entre o contexto citante e o citado e mobiliza diferentes parceiros dialógicos (BAKHTIN, 2016aBAKHTIN, M. Diálogo I. A questão do discurso dialógico. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016a. pp.113-124.; bBAKHTIN, M. Diálogo II. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016b. pp.125-150.). No contexto citado, Jesus suplica ao Pai que o livre da ira de Deus - o cálice - e, no contexto citante, os evangelistas registram a prece de súplica de Jesus. No primeiro contexto, a produção material e pragmática da prece é atualizada por uma interação entre Cristo, o autor da prece, e Yahweh, Deus Pai, a quem a prece é endereçada; e o objeto da prece, a súplica por livramento. Para um judeu da época, a palavra cálice integrava um repertório cultural com dois significados excludentes. Em vários salmos, na língua original, a palavra כוכּ [kōws] (CLINES, 1993-2001CLINES, D. J. A. (org). The Dictionary of Classical Hebrew. Sheffield: Sheffield Academic Press; Sheffield Phoenix Press, 1993-2011, v. 4.) é usada como metáfora para as bênçãos e salvação de Deus para seu povo. Esse é o caso de Sl 16:5, 23:5; 116:13. Não obstante, a palavra também pode funcionar como metáfora para o avesso disso, a ira de Deus especialmente dirigida aos povos ímpios, como em Sl 11:6, 75:8. Em livros proféticos, essa metáfora para a ira de Deus é reiterada, como em Is 51:17, Jr 25:15, Hc 2:16. Considerando a missão de Jesus como um ato sacrificial de expiação pelos pecados daqueles que ele congregou no Reino Espiritual de Deus, o cálice instanciado em sua súplica evoca desse repertório literário judaico a metáfora para a ira punitiva de Deus. Nesse escopo judaico, a prece é, a um só tempo, um recurso religioso e judicial.

No contexto citante, a prece não é um ato pragmático, mas cumpre a tarefa discursiva de integrá-la a um repertório literário, que constitui uma memória cultural - ou, de acordo com Bakhtin (1981BAKHTIN, M. M. Forms of Time and of the Chronotope in the Novel. In: BAKHTIN, M. M. The Dialogic Imagination. Four essays by M. M. Bakhtin. Translation by Emerson and Michael Holquist. Austin: University of Texas Press, 1981. pp.84-258.; 1999b)BAKHTIN, M. M. From Notes Made in 1970-71. In: BAKHTIN, M. M. Speech Genres and Other Late Essays. Translated by Vern W. McGee. Austin: University of Texas Press, 1999b. pp.132-158., uma memória objetificada em formas culturais. Entre os evangelhos sinóticos, aquele segundo Lucas parece enfatizar a humanidade de Jesus. O fato de ser o único evangelista a registrar o fenômeno da hematidrose em Jesus no jardim do Getsêmani corrobora essa ênfase. Sendo um médico, esse fenômeno físico deve ter tido especial relevância para Lucas. Além disso, Lucas parece se preocupar com a ordem cronológica das narrativas, o que reflete uma experiência temporal humana. De qualquer modo, o acabamento estético promovido no contexto citante realça a natureza humana de Jesus. Em resumo, no contexto citado, Jesus experiencia uma agonia excruciante orientada pelo horizonte, guiada por uma memória do futuro; no contexto citante, devido ao acabamento possibilitado pela memória do passado do autor da narrativa, a súplica de Jesus é significada como o início de seu sacrifício vicário.

Lucas explicitamente endereça seu texto a Teófilo (Lc 1:3). Alguns estudiosos consideram que nunca houve uma pessoa empírica assim nomeada e que Teófilo representaria um grupo de discípulos que seguiam os ensinamentos de Jesus (BÍBLIA DE ESTUDO DE GENEBRA, 2009aBÍBLIA DE ESTUDO DE GENEBRA. Introdução ao livro de Lucas. Trad. João Ferreira de Almeida. Edição revista e atualizada. 2. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil; São Paulo: Cultura Cristã, 2009a. pp.1316-1318.). Em todo caso, parece haver consenso que o destinatário primeiro de Lucas era grego, o que dá um status transcultural à narrativa (KOESTHER, 2005KOESTER, H. Introdução ao Novo Testamento. volume 2: história e literatura do cristianismo primitivo. São Paulo: Paulus, 2005.; STORNIOLO, 2011STORNIOLO, I. Como ler o Evangelho de Lucas. Os pobres constroem a nova história. São Paulo: Paulus, 2011.; MARGUERAT, 2012MARGUERAT, D. O Evangelho segundo Lucas. In: MARGUERAT, D. (org). Novo Testamento: história, escritura e teologia. Trad. Margarida Oliva. São Paulo: Edições Loyola, 2012. pp.107-136.; CARNEIRO, 2016CARNEIRO, M. Os Evangelhos Sinópticos. Origens, memória e identidade. São Paulo: Fonte Editorial; Edições Terceira Via, 2016.). De um ponto de vista cristão, o endereçado projetado e evidente nesses escritos pode ser qualquer gentio. Então, o alvo transcultural da narrativa era provavelmente a um só tempo étnico, geográfico e religioso. Finalmente, a agonia humana aguda de Cristo constitui o objeto enunciativo da narrativa “Jesus no jardim do Getsêmani”. Na tradição católica romana estabelecida com a institucionalização do cristianismo séculos mais tarde, o texto de Lucas constituiu um importante objeto da memória cultural, especialmente considerando a pista lexical que liga esta narrativa àquela conhecida como “A última ceia” (Lc 22:7-23).

Encontramos “A última ceia” alguns versículos antes de “Jesus no jardim do Getsêmani”. Naquele, Jesus metaforiza seu sangue ao propor que o vinho daquela ceia fosse um memorial de seu sacrifício por aqueles que o seguiriam. Mais tarde, essa metáfora seria a base para o ritual cristão institucionalizado como Santa Eucaristia. Neste, devido à apresentação cronológica dos eventos, o sangue que Jesus transpira pode já corresponder ao início de seu auto sacrifício. A palavra sangue no original, αιµατι [aimati] (NOVO TESTAMENTO INTERLINEAR, 2004NOVO TESTAMENTO INTERLINEAR. Grego-português. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004.) e του αίmατός [tou aimatós] (NOVO TESTAMENTO INTERLINEAR, 2004NOVO TESTAMENTO INTERLINEAR. Grego-português. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004.; RUSCONI, 2003RUSCONI, C. Dicionário do Grego do Novo Testamento. Trad. Irineu Rabuske. São Paulo: Paulus, 2003.), respectivamente, estabelece uma ligação material entre as narrativas. Assim, ambas são vetores para a consolidação do vínculo figurativo entre sangue e vinho dentro do domínio do sacrifício vicário. Isso constitui uma referência para a memória cristã, em geral, e para uma tradição católica romana, em particular.

Os dois planos enunciativos de ambas as narrativas provocam diferentes projeções discursivas sobre os processos metafóricos em três itens lexicais chave na prece e na narrativa evangélica: “cálice,” “vinho” e “pai.” De acordo com a tradição judaica, a figurativização de Yahweh como um pai tendia a ser restrita à sua relação com o descendente davídico que era esperado para “libertar” o povo hebreu ou a práticas litúrgicas (BÍBLIA DE ESTUDO DE GENEBRA, 2009bBÍBLIA DE ESTUDO DE GENEBRA. Notas e comentários ao evangelho de Jesus segundo João. Trad. João Ferreira de Almeida. Edição revista e atualizada. 2. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil; São Paulo: Cultura Cristã, 2009b. pp.1370-1416., cf. notas a Jo 8:41). O povo era geralmente metaforizado como rebanho, esposa ou noiva, entre outros. Pragmaticamente, no domínio judaico, a identificação de Jesus como Filho de Deus poderia ser ou uma heresia, ou o cumprimento de uma profecia. Sabemos que a tradição judaica se construiu sobre a primeira interpretação. Entretanto, para o cristianismo, em geral, e para o catolicismo romano, em particular, Deus é metaforizado como pai tanto de Jesus como dos membros da Igreja. Portanto, o endereçamento explícito na prece em Jesus no jardim do Getsêmani constitui um ponto de tensão discursiva no campo religioso original, e é sobre essa tensão que a memória judaico-cristã é fundada.

Essa tensão discursiva também interpela as outras palavras chave. Cálice, que abrange uma série de processos metafóricos, integra o campo religioso. Em primeiro lugar, nomeia um utensílio litúrgico sagrado. Em segundo lugar, as metáforas consolidadas nas tradições literária e profética dos judeus são acrescidas ao simbolismo litúrgico. Para conceituar a relação transcendente com Yahweh, profetas e poetas recorreram à antropopatia, que coloca o ser transcendental e intangível em escala humana, isto é, no escopo da perspectiva e domínio humanos. Assim, projetam humores e sentimentos humanos na divindade transcendental e metaforizam a “ira” de Deus. Em terceiro lugar, a “ira” é uma vez mais metaforizada como o “cálice [da ira de Deus].” Como uma metáfora para esse “sentimento de Deus,” cálice funciona como um índice de discursos e valores próprios do campo judaico-cristão. Vinho e sangue, do mesmo modo, seguem essa configuração discursiva.

O jogo semântico se desdobra por uma tensão entre os sentidos validados pela performance de uma heresia, de modo que pai, cálice e vinho funcionam como índices de uma profanação, e os sentidos validados pelo cumprimento de profecias específicas, de modo que as mesmas palavras são reacentuadas como índices de sacrifício remidor que funda a era cristã. De qualquer modo, produzem sentido dentro do campo judaico-cristão, em que um gênero do discurso específico, a prece, é o meio de participar do diálogo transcendente com Yahweh/Deus/Pai. Fora das fronteiras simbólicas desse campo emoldurado pela complexa organização social da comunidade judaica sob o domínio do Império Romano, o status ideológico dessas palavras altera-se completamente.

Para a presente discussão, é de especial relevância a integração desses discursos e valores numa memória cultural consolidada pela Igreja Católica Romana. Afinal, esta é a instituição por meio da qual o cristianismo também constituiu a memória brasileira. Os compositores das canções intituladas Cálice em análise neste artigo dialogam finalmente com a orientação apreciativa católica romana, e seu diálogo é construído pelo modo como jogam com a memória do passado e do futuro integrando acabamento estético e reivindicações éticas. Se a memória social é objetificada em formas culturais, incluindo gêneros e formas linguísticas, a memória do sujeito opera de acordo com a posição ético-estética assumida também em relação a essas objetificações, e a produção de sentido é um contínuo jogo de memórias (MAGALHÃES, 2015MAGALHÃES, A. S. A palavra, os discursos e a dinâmica das memórias. Gragoatá, v. 20, pp.7-28, 2015.). Como veremos na próxima seção, esse jogo de memórias se desdobra em duas direções simultaneamente. Por um lado, há o modo como o autor do enunciado finaliza episódios da memória católica. Por outro, há seu posicionamento ético como uma personagem na história social.

Esse refinado trabalho conceitual em torno da questão da memória ilumina a presente discussão no sentido de permitir a descrição de diferentes níveis éticos implicados na abordagem estética do enunciado. No contexto citado, Jesus sofre a expectativa do sacrifício e é guiado pela memória do futuro que dá um status moral e pragmático à sua prece. No contexto citante, o autor das narrativas finaliza a súplica de Jesus como uma manifestação de humanidade em relação ao sacrifício vicário, e o jogo de memórias objetifica a narrativa como um texto canônico corroborando, em termos gerais, uma memória cristã e, em termos restritos, uma memória católica romana.

Magalhães (2012MAGALHÃES, A. S. Políticas linguísticas e historicização do Brasil: a escrita na construção vernacular. Gragoatá (UFF), v. 17, pp.99-116, 2012., 2013)MAGALHÃES, A. S. Escritas da brasilidade: subjetivação e política lusófona na documentação vernacular. DELTA. Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada (PUCSP. IMPRESSO), v. 29, pp.1-27, 2013. já destacou a importância da escrita e, portanto, do letramento, para a política lusófona constitutiva da memória e identidade brasileiras. Pelo fato de o uso integrar a avaliação social à memória objetificada em palavras, o léxico é também constitutivo do legado cultural (MAGALHÃES, 2016MAGALHÃES, A. S. Lexicografia e pejoração no português brasileiro: notas dialógicas a partir de referências saussurianas. In: Cadernos do Congresso Nacional de Linguística e Filologia. Rio de Janeiro, 2016. v. XX. pp.139-157.), e os documentos escritos no Brasil preservam diferentes níveis da memória luso-brasileira. Neste artigo, consideramos a religião outra faceta dessa memória. Desde a chegada dos portugueses à América no século XV, a presença da Igreja Católica Romana tem sido um forte artifício ideológico para o desenho da memória e da identidade brasileiras. Fatos importantes evidenciam seu poder de penetração cultural: a primeira missa foi celebrada no Brasil em 1500 pelo frade e bispo português Henrique Coimbra; a Sociedade de Jesus teve ampla influência durante o período colonial; em 1824, a Constituição Política do Império do Brasil estabeleceu o catolicismo romano como a religião do Império. Nos dias atuais, a Igreja Católica é separada do Estado. Mesmo assim, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que cerca de 65% dos brasileiros se autodeclaram católicos.24 24 Disponível em: https://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo?id=3&idnoticia=2170&view=noticia. Acesso: 12 abril 2020. Portanto, apesar da transformação no status cultural e político da Igreja no Brasil, podemos afirmar que ela tem se constituído como um importante pilar da memória brasileira.

3 Quando os cálices tilintam: a questão da ética no jogo estético de memórias

Entre as instâncias em que as canções Cálice de Chico Buarque de Holanda e Gilberto Gil e Cálice de Criolo constituem enunciados concretos, nesta reflexão, analisamos, respectivamente, o documento com a letra avaliado e vetado por censores em 197325 25 Disponível em: http://www.arquivonacional.gov.br/br/ultimas-noticias/902-memorias-reveladas-2 Acesso: 26 abril 2020. e um vídeo de 2’47’’ com Criolo e Chico disponível no canal do YouTube do Criolo26 26 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=utJENUg2NJ4 Acesso: 26 abril 2020. . Focamos nas relações dialógicas que reacentuam alguns itens lexicais como índices de discursos e referências para o posicionamento sociocultural.

A canção de Chico e Gil se tornou famosa com a interpretação de Milton Nascimento em 1978, mas aqui consideramos o documento avaliado por censores em 1973. De qualquer maneira, a canção integra um contexto histórico em que vários movimentos estéticos assumiram a tarefa ética de resistir ao regime. Cantores e compositores de canções populares no final dos anos 1960 e nos anos 1970 fizeram dos festivais de música artifícios simbólicos para circulação de discursos e valores silenciados pelo sistema ditatorial (NAPOLITANO, 2004NAPOLITANO, M. A MPB sob suspeita: a censura musical vista pela ótica dos serviços de vigilância política (1968-1981). Rev. Bras. Hist., São Paulo, v. 24, n. 47, p.103-126, 2004. Available at: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882004000100005&lng=en&nrm=iso. Access on: 23 Mar. 2020. https://doi.org/10.1590/S0102-01882004000100005.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
). Nesse ambiente político, a MPB floresceu e se firmou como um podium discursivo em que vozes e diálogos de diferentes ordens dentro do campo musical e entre diferentes campos discursivos foram reorganizados, reacentuados e amplificados (CARETTA, 2013CARETTA, A. A. Estudo dialógico-discursivo da canção popular brasileira. São Paulo: Annablume, Fapesp, 2013.; SALLES; FERNANDES; MALUF-SOUZA, 2015SALLES, A. C. de M.; FERNANDES, F. S.; MALUF-SOUZA, O. A MPB no regime militar: silenciamento, resistência e produção de sentidos. RUA, v. 21, n. 2, pp.341 -361, 2015.). Chico Buarque era um proeminente oponente à ditadura militar e sua poesia desenvolveu-se como uma voz de resistência (SANTOS FILHO; BORGES, 2019SANTOS FILHO, L. B.; BORGES, V. R. S. Tempo de resistência: o discurso de protesto na poesia de Chico Buarque. Cadernos Cajuína, v. 4, n. 1, pp.247-264, 2019.). Sua canção composta com Gilberto Gil não era diferente. De um ponto de vista dialógico, o documento com a letra de Cálice enviado aos censores em 1973 constitui um ato, um modo de tomar uma posição na cadeia comunicativa de luta política e produção artística no Brasil. O campo discursivo é híbrido - ético-político - como é mostrado no jogo de memórias que o documento escrito atualiza.

A letra de Chico/Gil mobiliza o formato de uma prece de súplica, a prece de “Jesus no jardim do Getsêmani” em particular, para cumprir uma tarefa não religiosa. Ao assimilar a estrutura de súplica de Jesus - “Pai, afasta de mim esse cálice” - e ao repeti-la por três vezes, assim como Jesus fez na narrativa bíblica, é dada uma pista formal de relações dialógicas, e o enunciado concreto se desdobra por uma voz dupla.

Há uma voz que ecoa a súplica por livramento. É dirigida a Deus, o Pai, e participa de um diálogo transcendente; uma prática comum no cristianismo. O objeto dessa súplica - o cálice - é uma paráfrase da de Jesus. Há também uma voz que clama por liberdade de expressão. Ambas as vozes são ouvidas na performance real do ato, o que resulta em ambivalência semântica. Baseado em Bakhtin (1984)BAKHTIN, M. M. Rabelais and his world. Translated by Hélène Iswolsky. Bloomington: Indiana University Press, 1984., Magalhães (2019, p.98)MAGALHÃES, A. S. Dos discursos que dão vida à língua: "diretas já" em perspectiva cognitivo-dialógica. In: BRAIT, B.; PISTORI, M. H. C.; FRANCELINO, P. F. (Org.). Linguagem e conhecimento (Bakhtin, Volóchinov, Medviédev). Campinas: Pontes, 2019, pp.97-122. define ambivalência semântica como “correlação gradiente de significados validados socioculturalmente para produção de discurso”. Na presente discussão, essa correlação é estabelecida num movimento discursivo tríplice.

Em primeiro lugar, a memória católica romana é assimilada. A semelhança formal com a súplica na narrativa evangélica evoca uma tradição cultural - neste caso, o cânone católico romano. Em segundo lugar, essa memória é reorganizada. Evidentemente não se trata de uma transcrição do texto bíblico, mas uma adaptação para algo diferente que cumpre algo diferente. As palavras cálice, sangue e vinho são índices chave da ponte semântica entre a memória canônica e essa instanciação enunciativa lírica. Em terceiro lugar, a memória é politicamente reacentuada. Não é enunciada nem no contexto pragmático da súplica de Jesus, nem no contexto da narrativa bíblica. Mesmo assim, ambos os contextos são mobilizados para o acabamento estético do ato ético executado em uma área semântica da existência totalmente diferente daquela da súplica original. A produção da canção-enunciado não responde a uma sociedade teocrática e politeísta complexa, e o recurso religioso cumpre um papel totalmente diferente. É uma canção em forma de prece, e não o contrário. Essa hierarquia semântica é determinada pelo campo discursivo em que o enunciado emerge: o campo artístico-musical.

A letra avaliada pelos censores integrava o campo artístico-musical de uma jovem república cuja democracia estava sob ameaça por um regime militar imposto nove anos antes. Nesse sentido, a canção-enunciado não é enquadrada por um funcionamento social regulado por narrativas religiosas, ainda que essas narrativas tivessem um papel relevante na memória cultural dos grupos implicados no projeto enunciativo. A luta por democracia confirma a dimensão antropocêntrica da cadeia comunicativa e define o escopo ético.

A canção-enunciado segue esses processos de figurativização: no domínio fonte, há a forma de uma oração de súplica - a elaboração estética; no domínio alvo, há uma reivindicação subversiva - o ato ético. Por conta dessa elaboração estética, ouvimos ecos das vozes bíblicas. A canção assimila valores consolidados na memória católica estabelecida no campo religioso e reacentua o gênero prece de súplica ao transpô-lo para outro campo. A batalha pela democracia como expressão de um enquadre simbólico superordenado da ordem social indica que Estado e Religião têm diferentes status na cultura. O autor da canção, e não o da prece, também ecoa uma voz não religiosa, uma voz política. O impacto discursivo dessa troca de campos discursivos na elaboração estética e a implicação ideológica do refrão da canção tornam o ato ético evidente.

Considerando as vozes que podemos ouvir, o título da canção aponta simultaneamente para duas direções discursivas: para o passado, ao evocar a memória católica (enformação estética); para o futuro, ao reivindicar liberdade de expressão (ato ético). Por meio dessa tensão, a súplica que constitui o objeto da canção-enunciado não é a manifestação de um sofrimento expiatório, mas a performance de uma denúncia política.

Essa reclamação política por liberdade de expressão artisticamente elaborada é endereçada àqueles que podem restaurar uma condição discursiva democrática, e não realmente a Deus, e as fronteiras enunciativas materialmente realizadas nas notas do censor revelam a ambivalência semântica constitutiva do enunciado. No documento, o contraste visual entre a letra da canção, que está datilografada, as notas manuscritas do(s) censor(es) e o veto carimbado diferencia os sujeitos discursivos (os autores) em ação e explicitamente desenham os limites de cada enunciado. Entre as notas manuscritas dos censores, há uma justaposição à palavra chave da súplica combinando cálice [letra da canção datilografada] - cale-se [nota manuscrita]. Essa nota explicita a ambivalência semântica que liga o enunciado a um discurso político, e o veto confirma a condição histórica e pragmática da súplica. Se houvesse liberdade de expressão, a reclamação política não faria sentido. O veto, de uma única vez, responde ao enunciado estético e valida a performance ética.

A segunda canção-enunciado intitulada Cálice que consideramos aqui é um RAP selecionado de um vídeo curto que constitui ele mesmo uma pequena cadeia discursiva. Está disponível no canal do compositor Kleber Cavalcante Gomes, conhecido por seu nome artístico Criolo, no YouTube. Nascido dez anos antes do fim do regime ditatorial, Criolo começou sua carreira artística num contexto político de democracia restaurada. Mesmo assim, a escalada dos problemas sociais no Brasil causou uma segregação crítica. Classes baixas se fixaram na periferia das grandes cidades ou em favelas, de modo que a distinção econômica também se manifestou geograficamente. Especialmente por conta dessa distribuição econômico-geográfica, no Brasil, o subúrbio tem sido associado a uma série de problemas sociais, como pobreza, violência, entre outros. Criolo constrói sua identidade social e artística como um membro do subúrbio, e sua produção artística responde a esses problemas sociais. O compositor foi nomeado e venceu vários prêmios musicais27 27 Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Criolo_(cantor) Acesso: 26 Abr. 2020. ; conforme suas próprias palavras no rap-enunciado Cálice “me chamo Criolo e meu berço é o rap, mas não há fronteira para a minha poesia”28 28 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=utJENUg2NJ4 Acesso: 26 Abr. 2020. .

Seu canal no YouTube foi inaugurado em 2011, e o vídeo que discutimos aqui foi postado em 2012. O vídeo de 2’47’’ pode ser segmentado nessa sequência: A) 1’’ a 5’’ - foto de Chico e Criolo lado a lado; B) 6’’ a 1’30’’ - performance do RAP Cálice por Criolo, aparentemente, numa simples padaria; C) 1’31’’ a 2’34’’ - performance de um RAP por Chico em um show como uma resposta explícita ao RAP de Criolo; D) 2’35’’ a 2’41’’ - foto similar àquela da parte A, mas dessa vez com Criolo apoiando sua cabeça sobre o ombro esquerdo de Chico, constando a seguinte legenda entre aspas: “Bem vindo ao clube Chicão, bem vindo ao clube”; E) 2’42’’ até o final - créditos a @FCO_CrioloMc. Seguindo esta divisão, na presente discussão focamos as sequências B e C.

Na sequência B, identificamos um enunciado musical. O autor é pragmaticamente realizado por Criolo. Aos 35’’, ele explicitamente ecoa a canção Cálice de Chico: “Há preconceito com o nordestino/ Há preconceito com o homem negro/ Há preconceito com o analfabeto/ Mas não há preconceito se um dos três for rico, Pai”. Nordestino, homem negro e analfabeto funcionam como metonímias de problemas sociais brasileiros. O Norte e o Nordeste do país são consideravelmente mais pobres do que o sul e o sudeste, então, aspectos culturais daqueles - sotaque, tipo físico etc. - tendem a ser desvalorizados; devido à escravização de negro-africanos no Brasil-Colônia, preconceito racial tem sido uma questão séria desde então; porque o Brasil “herdou” a organização social portuguesa, o letramento tem sido um artifício crucial para participação cultural (MAGALHÃES, 2012MAGALHÃES, A. S. Políticas linguísticas e historicização do Brasil: a escrita na construção vernacular. Gragoatá (UFF), v. 17, pp.99-116, 2012.; 2013MAGALHÃES, A. S. Escritas da brasilidade: subjetivação e política lusófona na documentação vernacular. DELTA. Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada (PUCSP. IMPRESSO), v. 29, pp.1-27, 2013.) e, portanto, o analfabetismo tem sido um obstáculo para a existência plena como cidadão. Porém, todos esses problemas são subsumidos pela assimetria econômica, como indicado no último verso citado. Assim, podemos deduzir que o objeto enunciativo é uma denúncia social. A tríplice metonímia se assemelha formalmente com a repetição da súplica de Cristo. Além disso, a menção a “pai” ecoa o formato de uma prece. Contudo, os versos que seguem constroem um destinatário diferente.

Embora possamos ouvir um eco da memória católica como na canção de Chico/Gil, aos 51’’ o autor enuncia: “A ditadura segue, meu amigo Milton/ A repressão segue, meu amigo Chico/ Me chamo Criolo e meu berço é o rap, mas não há fronteira para minha poesia.” Ditadura e repressão fixam um cronotopo (BAKHTIN, 1981BAKHTIN, M. M. Forms of Time and of the Chronotope in the Novel. In: BAKHTIN, M. M. The Dialogic Imagination. Four essays by M. M. Bakhtin. Translation by Emerson and Michael Holquist. Austin: University of Texas Press, 1981. pp.84-258.) que comprime: a) o tempo e o espaço da composição de Cálice de Chico e Gil, 1973; b) o tempo e o espaço do lançamento da versão interpretada por Milton Nascimento, 1978; c) o tempo e o espaço do presente enunciado. Essa compressão não faz coincidirem esses tempos e espaços, mas coloca-os em contiguidade simbólica. Historicamente, a ditadura e a repressão não são as mesmas. Houve o tempo da composição e veto; houve o tempo do lançamento; agora é o tempo do eco desses outros tempos. Dialogicamente, ambas - ditadura e repressão - são simultaneamente referenciais, porque apontam para (refletem) um tempo de um regime realmente imposto, e metafóricas, porque também funcionam como referência social para significar o tempo e o espaço do presente enunciado artístico (refração). Isso é possível por conta do acabamento estético de Chico e Gil, que integram a memória cultural. Isso significa que são destinatários e personagens moldados em e representativos de um espaço, um tempo, uma luta política. Em 2012, Chico e Gil correspondem a ícones culturais por seu talento artístico e por sua história de luta política. No intervalo de tempo da ditadura referencial, são guiados pela memória de futuro e executam atos éticos (composição, lançamento etc.) na batalha pela liberdade de expressão; no tempo da performance desse RAP Cálice, Chico e Gil são, por um lado, esteticamente acabados como ícones da vitória da democracia, e, por outro, enunciados como destinatários diretos no diálogo artístico e político.

Em 1’03’’, o refrão reacentua os signos de duas vozes da canção de Chico e Gil, e cálice é substituído por biqueira29 29 Gíria que se refere ao tráfico de drogas ilegais e seu complexo sistema, envolvendo usuários, traficantes, organizações criminais, policiais corruptos etc. , biate30 30 Uma adaptação brasileira para o termo pejorativo em inglês bitch. e cocaine, de modo que cada um dos três enunciados de “súplica” aponta para problemas sociais aos quais Criolo responde. Nesse formato de súplica, o vocativo “pai” abrange várias possibilidades semânticas viabilizadas pela memória cultural. Na orquestração de uma denúncia social multivocal, ecoa a voz citada no evangelho, a voz do evangelho canônico e o ato ético de dupla voz de Chico/Gil e Milton. Como um maestro de vozes, Criolo dá acabamento a diferentes elementos e camadas da memória cultural para criar seu rap-enunciado; como um “denunciante,” atua como um guerreiro guiado pela memória moral do futuro. Está assumindo uma posição na cadeia discursiva em andamento (ele atualiza sua existência verboideológica); pragmaticamente executa um ato ético, cuja resposta está adiante, esperada, no devir.

Aos 2’01’’, a performance de Chico de outro RAP como uma resposta explícita ao rap Cálice de Criolo produz uma completude e (temporariamente) dá acabamento ao rap de Criolo, confirmando sua relevância cultural ética e estética e garantindo o encadeamento de discursos de diferentes momentos da luta política. Finalmente, Chico canta o refrão de sua própria composição Cálice e, mais uma vez, cálice, vinho e sangue são reacentuados. Dessa vez, dentro da mesma área semântica da existência que enquadra a composição de Chico/Gil e de Criolo, o enunciado não altera seu aspecto ético, mas o “cálice” e o “vinho tinto de sangue” são enformados por uma memória do passado que dá o acabamento estético à vitória da democracia sobre o regime ditatorial em meados de 1980. Podemos dizer que a performance de Chico dá um acabamento positivo para o vídeo, e a parte D confirma isto. Se a legenda sugere uma ascendência de Criolo sobre Chico - ele está dando as boas vindas a Chico a X -, a posição dos sujeitos fotográficos - Criolo apoiando sua cabeça sobre o ombro de Chico - constrói a relação deles pelo inverso. Além disso, a forma do hipocorístico - Chicão - indica o reconhecimento do status icônico de Chico no campo político-artístico. Em resumo, o vídeo de 2’47’’ no canal de Criolo no YouTube consiste de um enunciado otimista na cadeia discursiva político-artística em andamento, o que refrata facetas ideológicas que reiteram a implicação estético-ética na existência cultural. No jogo de memórias, cálice, vinho e sangue funcionam como índices de uma complexa rede ideológica.

Conclusão

Neste artigo, o objetivo foi demonstrar o impacto semântico do grande tempo na reacentuação de duas reformulações da expressão “afasta de mim esse cálice.” A fim de alcançá-lo, baseado em Vološinov (1973VOLOŠINOV, V. N. Marxism and the Philosophy of Language. Translated by Ladislav Matejka and I. R. Titunik. Cambridge, London: Harvard University Press, 1973.), grande tempo foi categorizado como áreas semânticas da existência, que foram definidas como sistemas simbólicos superordenados que limitam os modos como os grupos sociais se organizam e as maneiras como se relacionam e interagem. Embora esses sistemas superordenados realmente impactem semanticamente enunciados na interação concreta, dependem de outros dispositivos verboideológicos para operar.

Nesse sentido, baseados em diferentes contribuições do Círculo BMV, definimos o ambiente cultural como um mundo verboideológico em que participar de um processo discursivo contínuo é o meio de existência. Isso situa qualquer material significativo além de seu status natural produzindo uma compreensão de que a semântica corresponde às demandas comunicativas e, portanto, é historicamente tendenciosa. Por conta disso, tratamos as formas semióticas como índices de conceitos validados socioculturalmente. Também sustentamos que essa existência verboideológica é executada por um trabalho estético com resultados éticos. No caso discutido, o jogo de memória cultural (memória católica romana) e memória do sujeito (tanto do passado como do futuro) mostrou os processos de reacentuação de itens lexicais tornando-os índices de valores socioculturais.

Por fim, demonstramos que a distinção de áreas semânticas da existência é crucial para diferenciar a emergência histórica do enunciado original “Afasta de mim esse cálice” e sua assimilação, reorganização e reacentuação nos enunciados musicais de dois momentos da história brasileira recente. Mostramos que a súplica de Jesus nas narrativas dos evangelhos finalmente constitui um texto representativo de um cânone católico e, portanto, uma forma cultural em que uma memória religiosa é objetificada. Porque emergiu numa sociedade politeísta complexa, essa memória cultural abrange tanto dimensões religiosas quanto políticas. Uma vez transposta para outra área semântica da existência, a dimensão religiosa dá lugar, pragmaticamente, à estética, validando enunciados musicais como modos de participação numa luta política em andamento de uma jovem república. Por conta disso, palavras como cálice, vinho e sangue funcionam como signos multivocais que simultaneamente ecoam: a) a assimilação de uma prece constitutiva de um episódio da memória católica romana; b) a reorganização dessa prece e memória em canções em forma de prece; c) a reacentuação de um ato político-religioso como atos político-estéticos.

Para resumir, podemos dizer que, de um ponto de vista dialógico, todos esses “cálices” tilintam em um brinde dialógico porque todos apresentam uma dimensão subversiva. Embora as áreas semânticas da existência diferenciem o aspecto pragmático do que podemos categorizar como “subversivo,” de algum modo, todos eles cumprem uma resistência política em seu tempo. Devido à condição histórica de qualquer luta social e política, o jogo de memórias opera esse encadeamento simbólico de atos - e seus sentidos culturais - de diferentes sujeitos de diferentes lugares e tempos.

  • Declaração de autoria e responsabilidade pelo conteúdo publicado
    Declaramos que os autores tiveram acesso ao corpus de pesquisa, participaram ativamente da discussão dos resultados e revisaram e aprovaram a versão final do artigo.
  • 1
    Neste artigo, é feita a referência aos trechos bíblicos como repertório de uma memória cultural especialmente vinculada à Igreja Católica Romana pelo valor e pela função desta instituição na colonização lusitana, desde o século XVI, decisiva para a construção da brasilidade. Entretanto, especialmente a partir do século XIX, com a organização de instituições protestantes no Brasil, esses mesmos trechos passam a ecoar, também, outra vertente do cristianismo, de modo que essa memória cultural pudesse ser mais abrangentemente nomeada como "memória bíblica." Como a história do cristianismo no Brasil foge ao escopo deste artigo, registra-se esta nota, embora mantenham-se as menções à memória católica romana.
  • 2
    Texto no original: “to cause to stand, set up, take a stand”
  • 3
    BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.
  • 4
    Para referência, ver nota 2.
  • 5
    Para referência, ver nota 2.
  • 6
    BAKHTIN, M. Fragmentos dos anos 1970-1971. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017. p.21-56.
  • 7
    Para referência, ver nota 5.
  • 8
    Para referência, ver nota 5.
  • 9
    Para referência, ver nota 5.
  • 10
    Para referência, ver nota 5.
  • 11
    Para mais informações, ver, por exemplo, Medvedev e Medvedeva (2014)MEDVEDEV, I. P.; MEDVEDEVA, D. A. The M. M. Bakhtin Circle: on the Foundation of a Phenomenon. Bakhtiniana, São Paulo, Special Issue: 28-48, Jan./Jul. 2014. e Medvedev, Medvedeva e Shepherd (2016)MEDVEDEV, I. P.; MEDVEDEVA, D. A.; SHEPHERD, D. The Polyphony of the Circle. Bakhtiniana, São Paulo, 11 (1), pp.89-128, Jan./April. 2016..
  • 12
    VOLÓCHINOV, V. Estilística do discurso literário I: O que é a linguagem/língua (1930); In: VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Organização, tradução, ensaio introdutório e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2019. p.234-265.
  • 13
    Para mais detalhes acerca das complexas fontes para o conceito de ideologia do Círculo BMV e sua recepção, ver Brandist (2002)BRANDIST, C. The Bakhtin Circle: Philosophy, Culture and Politics. Londres: Pluto Press, 2002., Tihanov (2002)TIHANOV, G. The Master and the Slave: Lukács, Bakhtin, and the Ideas of Their Time. Oxford: Clarendon Press, 2002., Costa (2016)COSTA, L. R. Ideology and Scientific Dissemination: A Bakhtinian Analysis of the Discourse in Ciência Hoje [Science Today] Magazine. Bakhtiniana, São Paulo, 11 (2): 37-56, May/Aug. 2016., Grillo (2017)GRILLO, S. Marxismo e filosofia da linguagem: uma resposta à ciência da linguagem do século XIX e início do século XX. In: VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017. pp.7-79., entre outros.
  • 14
    MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica e uma poética sociológica. Tradutoras Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2012.
  • 15
    BAKHTIN, M. Por uma metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017. p.57-80.
  • 16
    Para referência, veja nota 14.
  • 17
    BAKHTIN, M. M. (VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Prefácio de Roman Jakobson. Apresentação de Marina Yaguello. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira com a colaboração de Lúcia Teixeira Wisnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 1999.
  • 18
    Para referência, ver notas 11 e 16.
  • 19
    Para referência, ver nota 16.
  • 20
    Para referência, ver nota 16.
  • 21
    Para referência, ver nota 5.
  • 22
    BAKHTIN, M. As formas do tempo e do cronotopo no romance. In: BAKHTIN, M. Teoria do romance II: As formas do tempo e do cronotopo. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. Organização da edição russa de Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2018. p.11-237.
  • 23
    BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.3-194.
  • 24
  • 25
  • 26
    Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=utJENUg2NJ4 Acesso: 26 abril 2020.
  • 27
    Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Criolo_(cantor) Acesso: 26 Abr. 2020.
  • 28
    Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=utJENUg2NJ4 Acesso: 26 Abr. 2020.
  • 29
    Gíria que se refere ao tráfico de drogas ilegais e seu complexo sistema, envolvendo usuários, traficantes, organizações criminais, policiais corruptos etc.
  • 30
    Uma adaptação brasileira para o termo pejorativo em inglês bitch.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    18 Jun 2020
  • Aceito
    05 Set 2020
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