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A diatribe na construção de sentidos da Carta de Paulo aos Romanos

RESUMO

Neste trabalho, analisa-se a diatribe na construção de sentidos da Carta de Paulo aos Romanos, focalizando as relações dialógicas decorrentes de seu uso na construção enunciativa da carta. Para isso, o artigo dialoga com a perspectiva enunciativa da linguagem oriunda do Círculo de Bakhtin, a partir de uma abordagem qualitativa e interpretativa. A análise da carta mostra a ocorrência da diatribe materializada nos elementos linguístico-enunciativos configuradores do discurso direto retórico. Ao lançar mão desse recurso diatríbico na construção de sentidos, a carta desvela sua dialogicidade interna, o diálogo velado, o encontro de vozes, de discursos, materializando enunciativamente pontos de vista dos destinatários. Assim, consequentemente, a construção de sentidos se instaura sob maior ou menor influência do outro e da sua resposta antecipada.

PALAVRAS-CHAVE:
Carta aos romanos; Diatribe; Construção de sentidos; Relações dialógicas

ABSTRACT

In this work it was analized the diatribe in the meaning making of the Paul’s letter to Romans, focusing on the dialogical relations in its use in the enunciative construction of the letter. Thus, it dialogues with the enunciative language perspective from Bakhtin’s Circle, from a qualitative and interpretative approach. The analysis of the letter showed the occurrence of the diatribe materialized in the linguistic-enunciative elements that configure the rhetorical direct discourse. In terms of using this diatribical resource in meaning making, the letter reveals its internal dialogicity, veiled dialogue, the meeting of voices and discourses, materializing enunciatively recipients’ points of view. Therefore, meaning making settles down under bigger and smaller influence of the other and their anticipated response.

KEYWORDS:
Letter to Romans; Diatribe; Meaning making; Dialogical relations

Considerações iniciais

Ao discutir peculiaridades da obra de Dostoiévski, no texto Problemas da poética de Dostoiévski, Mikhail Bakhtin (2010 [1963]) apresenta a noção de diatribe como sendo de natureza marcadamente dialógica. A diatribe é uma espécie de diálogo interno ao gênero, ou seja, diz respeito à construção estilística e composicional do enunciado concreto e se manifesta no encontro de vozes no interior do discurso. Conforme Bakhtin (2010)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010 [1963]., a criação do gênero retórico interno dialogado – a diatribe – pode ser encontrada nos escritos da Antiguidade, mais precisamente em Bíon de Boristênide, que era considerado também o criador da menipeia1 1 Em Problemas da poética de Dostoiévski, Bakhtin (2010) discute amplamente a Menipeia. Para ele, a menipeia incorpora gêneros cognatos como a diatribe, o solilóquio e o simpósio, sendo um gênero interno dialogado. .

Na mesma discussão, Bakhtin (2010, p.137) observa que “[...] foi precisamente a diatribe, e não a retórica clássica, que exerceu influência determinante sobre as particularidades do gênero do sermão cristão antigo”. Como não era precisamente seu foco de discussão, o autor (Bakhtin) não se dedica a explorar e/ou a mostrar como a diatribe se revela nos sermões cristãos antigos. Assim, considerando essa possibilidade de investigação deixada pelo estudioso russo, e partindo do entendimento de que a diatribe se configura elemento enunciativo que instaura sentidos na construção de enunciados concretos, este trabalho2 2 Este trabalho retoma um estudo do uso da diatribe na Carta de Paulo aos Romanos iniciado, mas não verticalizado, na tese de doutorado intitulada O discurso citado na carta de Paulo aos romanos: uma abordagem discursivo-enunciativa (NASCIMENTO, 2019). analisa um escrito cristão antigo, mais precisamente a Carta de Paulo aos Romanos (doravante, Romanos), escrita no séc. I d.C. Portanto, pretende-se investigar como a diatribe é mobilizada na construção de sentidos de Romanos. Ao mesmo tempo, pretende mostrar que elementos linguístico-enunciativos tornam perceptível a diatribe na construção do tecido enunciativo. Desse modo, no percurso investigativo, busca-se responder a duas questões centrais, a saber, (i) que recursos linguístico-enunciativos materializam a diatribe na tessitura enunciativa de Romanos?; e (ii) como a diatribe é mobilizada no processo de construção de sentidos da referida carta?

Como fundamento teórico-metodológico, esta pesquisa dialoga com a perspectiva dialógica da linguagem oriunda do Círculo de Bakhtin, mais precisamente Mikhail Bakhtin (2010; 2011 [1976]; 2014BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et al. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 2014 [1975]. [1975]; 2016BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. Tradução de Paulo de Bezerra. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2016 [1952-1953]. [1952-1953]) e Valentin Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 1. ed. Tradução Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017 [1929]. [1929-1930]), e com estudos de comentadores da obra do referido Círculo, por exemplo, Augusto Ponzio (2013)PONZIO, A. No Círculo com Mikhail Bakhtin. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello et al. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013.. Esse diálogo com a perspectiva dialógica da linguagem leva em conta “[..] as particularidades discursivas que apontam para contextos mais amplos, para um extralinguístico aí incluído”, conforme aponta Beth Brait (2012BRAIT, B. Análise e teoria do discurso. In: BRAIT, B. Bakhtin: outros conceitos-chave. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2012, p.9-31., p.13), ao propor uma análise e teoria do discurso. Ademais, para a compreensão do contexto de produção de Romanos e da própria natureza da carta, o trabalho estabelece diálogo com autores como Alexandre Júnior (2015)ALEXANDRE JÚNIOR, M. Argumentação retórica na literatura epistolar da Antiguidade. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 8, p.166-187, jun.2015. Disponível em: http://periodicos.uesc.br/index.php/eidea/article/view/612.Acesso em 19/06/2021.
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, Gonçalves e Di Mesquita (2010)GONÇALVES, A. T. M.; DI MESQUITA, F. D. G. Atividade epistolar no mundo Antigo: relendo as cartas consolatórias de Sêneca. História, Goiânia, v. 15, n. 1, jan./jun. 2010, p.31-53. https://www.revistas.ufg.br/historia/article/view/10818Acesso em 19/06/2021.
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, Dunn (2003)DUNN, J. D. G. A teologia do apóstolo Paulo. Tradução de Edwino Royer. São Paulo: Paulus, 2003., Fabris (2003)FABRIS, R. Paulo: apóstolo dos gentios. Tradução Euclides Martins Balancin. 3.ed. São Paulo: Paulinas, 2003., Ehrman (1997EHRMAN, B. D. The New Testament: A Historical Introduction to the Early Chistian Writings. New York: Oxford University Press, 1997.; 2006), entre outros.

O corpus da análise, como já citado, é formado pela carta aos romanos de autoria do apóstolo Paulo. Cabe observar que essa carta é um dos textos canônicos que compõem o Novo Testamento da Bíblia cristã. Considerando a existência de várias versões e traduções da Bíblia, nesta pesquisa, utiliza-se o texto da versão e tradução da Bíblia de Jerusalém (2002BIBLÍA. Carta de Paulo aos Romanos. Tradução do texto em língua portuguesa diretamente dos originais. São Paulo: Paulus, 2002. [1998]). Essa escolha, entre outros motivos, deu-se em decorrência de certo prestígio que esta tradução desfruta perante especialistas no assunto, além de ser uma tradução feita diretamente dos originais. Ademais, quanto à escolha de Romanos como corpus de análise, destaque-se sua importância quantitativa e qualitativa. No aspecto quantitativo, ela é a carta mais longa/extensa do Novo Testamento; no qualitativo, possui o valor histórico-teológico de ser considerada o primeiro tratado teológico mais apurado do cristianismo primitivo.

Feita essa introdução, cabe dizer que este trabalho se encontra organizado nas seguintes seções principais: a segunda seção apresenta uma discussão acerca de Romanos, destacando sua origem e características formais e funcionais. Na terceira seção, discute-se a noção de diatribe a partir da perspectiva dialógica da linguagem. A quarta seção é dedicada à análise da diatribe na construção de sentidos da carta. Por último, a conclusão destacará aspectos principais explorados nas análises, como os recursos linguísticos que materializam a diatribe e os efeitos de sentidos decorrentes de seu uso em Romanos.

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A Carta de Paulo aos Romanos

O gênero discursivo carta exerceu função importante no estabelecimento e manutenção de laços comerciais, afetivos, familiares, religiosos, entre outros, na Antiguidade. Ao discutir a argumentação retórica na literatura epistolar da Antiguidade, o professor Alexandre Júnior (2015ALEXANDRE JÚNIOR, M. Argumentação retórica na literatura epistolar da Antiguidade. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 8, p.166-187, jun.2015. Disponível em: http://periodicos.uesc.br/index.php/eidea/article/view/612.Acesso em 19/06/2021.
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, p.168) constata que é “[...] surpreendente o volume de cartas recuperadas do mundo greco-romano”. Essa constatação histórica também é feita por Gonçalves e Di Mesquita (2010)GONÇALVES, A. T. M.; DI MESQUITA, F. D. G. Atividade epistolar no mundo Antigo: relendo as cartas consolatórias de Sêneca. História, Goiânia, v. 15, n. 1, jan./jun. 2010, p.31-53. https://www.revistas.ufg.br/historia/article/view/10818Acesso em 19/06/2021.
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, a partir da análise de três cartas consolatórias de Lúcio Aneu Sêneca, escritas no primeiro século da era cristã, durante o Império Romano. Gonçalves e Di Mesquita (2010GONÇALVES, A. T. M.; DI MESQUITA, F. D. G. Atividade epistolar no mundo Antigo: relendo as cartas consolatórias de Sêneca. História, Goiânia, v. 15, n. 1, jan./jun. 2010, p.31-53. https://www.revistas.ufg.br/historia/article/view/10818Acesso em 19/06/2021.
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, p.31) mostram que “[...] sem meios de comunicação que chegassem a grandes grupos sociais, as missivas tornavam-se locus primordial de informações e ideias entre particulares e destes com pequenos grupos aos quais as cartas eram remetidas”. Desse modo, no contexto de escrita de Romanos, o gênero discursivo carta convertia-se em veículo fundamental para a circulação de notícias, troca de ideias, estabelecimento de interação entre pessoas e entre grupos etc.

Escrita no contexto do século I d.C., Romanos é mencionada nas primeiras listas de textos considerados canônicos, sendo sua autoria atribuída a Paulo. No século II, Marcião, um filósofo-mestre que estava ativo em Roma, selecionou alguns escritos que, segundo ele, constituíam a lista dos textos sagrados da fé. Esse conjunto de textos ficou conhecido como o Cânon de Marcião, que era formado por onze livros/textos: dez cartas de Paulo (incluindo Romanos) e o evangelho de Lucas. Marcião deixou de fora o Antigo Testamento e os demais escritos que hoje compõem o Novo Testamento.

Acerca de Marcião, Ehrman (2006)EHRMAN, B. D. O que Jesus disse? O que Jesus não disse?: quem mudou a Bíblia e por quê. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo: Prestígio, 2006. comenta que ele fez surgir a necessidade de a Igreja delimitar um cânon (uma lista de textos inspirados, sagrados, de autoria dos apóstolos), já que, nos anos que se seguiram ao período apostólico, surgiram muitos escritos alegando autoridade apostólica. Foi essa disputa que fez surgir o Cânon de Muratori, por exemplo, um documento escrito em latim, do final do século II, em que são elencados 22 livros escolhidos pela Igreja de Roma considerados “apostólicos”. Esse documento atribui a Paulo treze cartas ao todo: nove delas são endereçadas às comunidades cristãs da época e quatro são endereçadas a amigos e/ou a colaboradores. É nesse documento que encontramos a primeira menção completa do epistolário paulino numa lista de livros cristãos.

Fabris (2003)FABRIS, R. Paulo: apóstolo dos gentios. Tradução Euclides Martins Balancin. 3.ed. São Paulo: Paulinas, 2003. cita a seguinte seção do Cânon de Muratori, que faz referência às cartas de Paulo:

Entre as cartas mais compridas, Paulo escreveu primeiro aos coríntios, proibindo as divisões em partidos; depois, aos gálatas, proibindo a circuncisão, e, de modo mais amplo, aos romanos, para inculcar neles a unidade e a ordem das Escrituras, que têm em Cristo o seu princípio unitário (Fragmento Cânon de Muratori. In: FABRIS, 2003, p.656).

Na organização e seleção dos livros canônicos, e na ordem em que finalmente se fixou, Romanos se encontra após o livro de Atos. Ela é, portanto, a primeira carta do volume de textos que compõem o Novo Testamento da Bíblia. Além disso, Romanos é a carta mais extensa do volume, dividida em 16 capítulos. Ademais, Ehrman (1997)EHRMAN, B. D. The New Testament: A Historical Introduction to the Early Chistian Writings. New York: Oxford University Press, 1997. destaca que nenhum livro do Novo Testamento demonstrou ser mais influente na história do pensamento cristão do que Romanos. Uma evidência disso é que esta carta é uma das peças mais citadas da literatura cristã durante os primeiros séculos da Igreja (EHRMAN, 1997EHRMAN, B. D. The New Testament: A Historical Introduction to the Early Chistian Writings. New York: Oxford University Press, 1997.).

A referida carta é direcionada a uma comunidade cristã residente em Roma. A partir da leitura dessa carta, é possível saber que o grupo de cristãos residente na capital do Império Romano era composto por gentios3 3 No contexto de produção da carta aos romanos, gentios eram todos os que não pertenciam à nação judaica. É, portanto, uma distinção muito marcada pela identidade étnico-religiosa. Essa distinção deve ser situada e ter o seu sentido enfatizado, pois marcava o lugar de vida religiosa, de pertencimento a uma tradição, a uma cultura. Assim, a distinção se tornava mais tensa no contexto do primeiro século (período de escrita de Romanos), pois, como o Império Romano exercia o governo sobre vasto território, cidades e vilas judaicas estavam sob o governo romano. e judeus. Estima-se que no ano 57 d.C. o movimento religioso cristão já estava presente na capital do Império Romano. Fabris (2003)FABRIS, R. Paulo: apóstolo dos gentios. Tradução Euclides Martins Balancin. 3.ed. São Paulo: Paulinas, 2003. e Ehrman (1997EHRMAN, B. D. The New Testament: A Historical Introduction to the Early Chistian Writings. New York: Oxford University Press, 1997.; 2006) entendem que o contato com a fé cristã por parte dos habitantes de Roma pode ser encontrado no episódio do livro de Atos. Esse livro, escrito décadas após o acontecimento histórico, apresenta uma narrativa do nascimento da Igreja. Segundo a narrativa, uma multidão de peregrinos estava presente em Jerusalém para a festa de Pentecoste e ouviu Pedro pregar o Evangelho. É dito que ali estavam “visitantes procedentes de Roma, tanto judeus como prosélitos” (Atos 2, 10). Assim, esses visitantes teriam se convertido à mensagem/pregação do Evangelho e levado as ideias/dogmas/ensinos do Cristianismo para a capital do Império – Roma.

Quanto à data de sua escrita, Paulo teria ditado a carta a seu colaborador, Tércio, durante o inverno de 56-57 d.C., na cidade grega de Corinto, tendo uma comunidade cristã não fundada por ele como interlocutora. Assim, Romanos visava a preparar a comunidade cristã para uma visita do apóstolo. O propósito da carta pode ser inferido do seguinte trecho inicial:

Realmente, desejo muito ver-vos, para vos comunicar algum dom espiritual, que vos possa confirmar, ou melhor, para nos confortar convosco pela fé que nos é comum a vós e a mim. E não escondo, irmãos, que muitas vezes me propus ir ter convosco — e fui impedido até agora — para colher algum fruto também entre vós, como entre os outros gentios. Pois eu me sinto devedor a gregos e a bárbaros, a sábios e a ignorantes. Daí meu propósito de levar o evangelho também a vós que estais em Roma (Romanos 1, 11-15).

Essas palavras introdutórias sinalizam o fato de que Romanos fora escrita para antecipar a visita de Paulo a Roma. Ao se comunicar via carta, o locutor aproveita para discutir questões de interesse da comunidade cristã, pois, conforme comenta Ehrman (1997EHRMAN, B. D. The New Testament: A Historical Introduction to the Early Chistian Writings. New York: Oxford University Press, 1997., p.247), “[...] as cartas de Paulo estão principalmente preocupadas com problemas que surgiram em suas igrejas”4 4 Tradução nossa. No original: “Paul´s letters are chiefly concerned with problems that have arisen in his churches”. . Quanto à carta aos romanos, o mesmo autor acrescenta: “Esta foi uma carta que Paulo escreveu a uma igreja particular. Como com todas as suas cartas, esta teve uma ocasião e foi escrita por uma razão” (EHRMAN, 1997EHRMAN, B. D. The New Testament: A Historical Introduction to the Early Chistian Writings. New York: Oxford University Press, 1997., p.299)5 5 Tradução nossa. No original: “This was a letter that Paul wrote to a particular church. As with all of his letters, this one had an occasion and was written for a reason”. .

Esse aspecto da carta também é destacado por Dunn (2003)DUNN, J. D. G. A teologia do apóstolo Paulo. Tradução de Edwino Royer. São Paulo: Paulus, 2003., ao analisar a teologia do apóstolo Paulo. Segundo Dunn (2003, p.36):

[...] os argumentos e exortações de Paulo focalizam com tanta frequência as situações dos seus ouvintes e as opiniões dos que discordavam dele, que se torna impossível entender plenamente esses argumentos e exortações sem algum conhecimento dessas situações e das opiniões refutadas por Paulo.

Nesse sentido, a carta apresenta o ponto de vista de seu autor (Paulo) acerca de assuntos referentes à fé cristã, travando diálogos polêmicos com determinadas ideias e práticas religiosas de grupos legalistas do Judaísmo. Por exemplo, a justificação perante Deus ocorre pela fé ou pelas obras da Lei, a circuncisão deve ou não deve ser praticada pelos cristãos? Assim, a carta apresenta o ponto de vista de seu autor nesse horizonte de discursos divergentes.

Além dos aspectos discutidos no âmbito dos estudos bíblico-teológicos, entende-se Romanos na perspectiva dos estudos enunciativos do Círculo de Bakhtin. Nessa perspectiva, a carta pode ser compreendida como um gênero secundário, pois, de certa forma, surge numa condição de convívio social complexa. Ela instaura um (in)tenso diálogo entre os interlocutores. Isso é percebido, por exemplo, nos movimentos enunciativos que visam apresentar e defender pontos de vista em torno de uma mensagem evangelística, mais precisamente na defesa de uma concepção religiosa.

Na mesma perspectiva, enquanto enunciado concreto, a carta apresenta endereçamento/direcionamento, autor e destinatário, como traços constitutivos. No texto Os gêneros do discurso, Bakhtin (2016BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. Tradução de Paulo de Bezerra. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2016 [1952-1953]., p.62-63; grifos do autor) discute esses traços constitutivos do enunciado:

Um traço constitutivo do enunciado é o seu direcionamento a alguém, o seu endereçamento. [...] o enunciado tem autor e destinatário. Esse destinatário pode ser um participante-interlocutor direto do diálogo cotidiano, pode ser uma coletividade diferenciada de especialistas de algum campo especial da comunicação cultural, pode ser um público mais ou menos diferenciado, um povo, os contemporâneos, os correligionários, os adversários e inimigos, o subordinado, o chefe, um inferior, um superior, uma pessoa íntima, um estranho, etc. ele também pode ser um outro totalmente indefinido, não concretizado (em toda sorte de enunciados monológicos de tipo emocional). Todas essas modalidades e concepções do destinatário são determinadas pelo campo da atividade humana e da vida a que tal enunciado se refere.

O endereçamento e o destinatário são traços importantes para serem considerados neste trabalho, pois a diatribe leva em conta tais traços no processo de sua constituição. No caso de Romanos, há pelos menos dois interlocutores: um real e outro fictício. O interlocutor real é a comunidade cristã de Roma; o fictício é um simulacro mestre de religião judaica. Corroborando essa leitura, conforme se depreende dos estudos de Dunn (2003)DUNN, J. D. G. A teologia do apóstolo Paulo. Tradução de Edwino Royer. São Paulo: Paulus, 2003., havia em Roma grupos religiosos diversos, entre eles, seitas radicais judaicas que divergiam do pensamento do autor de Romanos. Logo, é preciso observar que não há como generalizar as polêmicas presentes na carta como sendo direcionadas ao “Judaísmo”, pois esse não era um movimento religioso uniforme.

Assim, a partir dos estudos de Dunn (2003)DUNN, J. D. G. A teologia do apóstolo Paulo. Tradução de Edwino Royer. São Paulo: Paulus, 2003., entende-se, por exemplo, que há um interlocutor fictício em Romanos, sendo esse representado na literatura apócrifa pelo texto Salmos de Salomão6 6 Os textos apócrifos Salmos de Salomão formam uma coleção de 18 salmos atribuídos ao famoso filho de Davi, mas que provavelmente teve a sua origem no século II ou I a.C. Esses salmos mantêm íntima ligação com os salmos canônicos, imitando o estilo, e mostram uma forte posição conservadora judaica. Ênfases tais como a justiça, a retribuição divina e o determinismo apontam para assuntos debatidos posteriormente pelos fariseus. Dunn (2003), em A teologia do Apóstolo Paulo, mostra o diálogo que Romanos estabelece com as ideias dos Salmos de Salomão, evidenciando que existiam em Roma grupos judaicos de tendência mais radical/conservadora. . Nesse caso, esse interlocutor pode ser percebido em pontos da carta em que o autor tece críticas aos aspectos ideológicos mais radicais do Judaísmo.

Entender Romanos como um enunciado direcionado para determinados interlocutores é enfatizar também sua complexidade constitutiva, incluindo elementos enunciativos e aspectos da esfera comunicativa do século I. Discutindo o assunto, Gonçalves e Di Mesquita (2010GONÇALVES, A. T. M.; DI MESQUITA, F. D. G. Atividade epistolar no mundo Antigo: relendo as cartas consolatórias de Sêneca. História, Goiânia, v. 15, n. 1, jan./jun. 2010, p.31-53. https://www.revistas.ufg.br/historia/article/view/10818Acesso em 19/06/2021.
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, p.31) afirmam que “a epistolografia no mundo antigo era uma arte, uma técnica exercida pelo pequeno coeficiente de letrados, capazes de aplicar os elementos constituintes da retórica para transmitir mensagens e informações”. Conclui-se que a carta não é uma construção simplificada e desinteressada, nem foi improvisada, mas é um enunciado bem planejado, resultante de um projeto enunciativo bem elaborado. Nesse sentido, segundo Alexandre Júnior (2015)ALEXANDRE JÚNIOR, M. Argumentação retórica na literatura epistolar da Antiguidade. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 8, p.166-187, jun.2015. Disponível em: http://periodicos.uesc.br/index.php/eidea/article/view/612.Acesso em 19/06/2021.
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, as cartas escritas no mundo greco-romano se dividiam em três partes: abertura, desenvolvimento oratório e conclusão. No caso das cartas de Paulo, conforme observado por Fitzmyer (1972)FITZMYER, J. A. Vida de San Pablo. In: BROWN, R. E.; FITZMYER, J. A.; MURPHY, R. E. (org.). Comentario Biblico “San Jeronimo”: Nuevo Testamento I. (Tomo III). Tradução de Alfonso de La Fuente Andanez, Jesus Valiente Malla e Juan Jose del Moral. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1972, p.547-564., elas seguem algumas características formais e funcionais do gênero epistolar greco-romano vigente. Assim, as cartas continham uma (i) fórmula inicial (saudação), (ii) ação de graça, (iii) mensagem, (iv) conclusão e (v) saudação final.

A partir da leitura de Romanos, constata-se a divisão apresentada pelos autores citados. Estendendo a leitura de Fitzmyer (1972)FITZMYER, J. A. Vida de San Pablo. In: BROWN, R. E.; FITZMYER, J. A.; MURPHY, R. E. (org.). Comentario Biblico “San Jeronimo”: Nuevo Testamento I. (Tomo III). Tradução de Alfonso de La Fuente Andanez, Jesus Valiente Malla e Juan Jose del Moral. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1972, p.547-564. e de Alexandre Júnior (2015)ALEXANDRE JÚNIOR, M. Argumentação retórica na literatura epistolar da Antiguidade. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 8, p.166-187, jun.2015. Disponível em: http://periodicos.uesc.br/index.php/eidea/article/view/612.Acesso em 19/06/2021.
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para Romanos, constata-se a seguinte divisão (em decorrência da extensão, não será possível reproduzir todo o texto que compreende algumas seções, como o desenvolvimento oratório – mensagem, que consiste na exposição do corpo da carta):
  • I- Abertura

    • a- Fórmula inicial (saudação)

      Paulo, servo de Cristo Jesus, chamado para ser apóstolo, escolhido para o evangelho de Deus, [...], a vós todos que estais em Roma, amados de Deus e chamados à santidade, graça e paz da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo (Romanos 1, 1-7).

    • b- Ação de graça

      Em primeiro lugar, eu dou graças ao meu Deus mediante Jesus Cristo, por todos vós, porque vossa fé é celebrada em todo o mundo (Romanos 1, 8).

  • II- Desenvolvimento oratório

    • a- Mensagem

      (Romanos 1, 16 - 15, 13).

  • III- Conclusão

    • a- Conclusão

      Pessoalmente estou convicto, irmãos, de que estais cheios de bondade e repletos de todo conhecimento e em grau de vos poder admoestar mutuamente. Contudo, eu vos escrevi, e em parte com certa ousadia, mais no sentido de avivar a vossa memória, em virtude da graça que me foi concedida por Deus de ser o ministro de Cristo Jesus para os gentios, a serviço do evangelho de Deus, a fim de que a oblação dos gentios se torne agradável, santificada pelo Espírito Santo [...] (Romanos 15, 14-33).

    • b- Recomendação

      Recomendo-vos Febe, nossa irmã, diaconisa da Igreja de Cencréia, para que a recebais no Senhor de modo digno, como convém a santos, e a assistais em tudo o que ela de vós precisar, porque também ela ajudou a muitos, a mim inclusive [...] (Romanos 16, 1-2).

    • c- Saudação de Paulo

      [...] Saudai Prisca e Áquila, meus colaboradores em Cristo Jesus, [...]. Saudai também a Igreja que se reúne em sua casa. Saudai meu amado Epêneto, [...]. Saudai Maria [...] (Romanos 16, 3-16).

    • d- Advertência. Primeiro post-scriptum

      Rogo-vos, entretanto, irmãos, que estejais alerta contra os provocadores de dissensões e escândalos contrários ao ensinamento que recebestes. Evitai-os [...] (Romanos 16, 17-20).

    • e- Saudações dos colaboradores e do escriba (Tércio). Segundo post-scriptum

      Saúda-vos Timóteo, meu colaborador, e também Lúcio, Jasão e Sosípatro, meus parentes. Eu, Tércio, que escrevi esta carta, saúdo-vos no Senhor. Saúda-vos Gaio, que hospeda a mim e a toda a Igreja. Saúda-vos Erasto, administrador da cidade e o irmão Quarto (Romanos 16, 21-24).

    • f- Doxologia (hino de louvor)

      Àquele que tem o poder de vos confirmar segundo o meu evangelho e a mensagem de Jesus Cristo — revelação de um mistério envolvido em silêncio desde os séculos eternos, agora, porém, manifestado e, pelos escritos proféticos e por disposição do Deus eterno, dado a conhecer a todos os gentios, para levá-los à obediência da fé — a Deus, o único sábio, por meio de Jesus Cristo, seja dada a glória, pelos séculos dos séculos! Amém (Romanos 16, 25-27).

A abertura da carta inclui uma saudação e a expressão de um desejo de saúde ou uma fórmula de agradecimento, mais precisamente uma ação de graças. Essa composição segue a estrutura das cartas escritas no mundo greco-romano, conforme descrição de Alexandre Júnior (2015)ALEXANDRE JÚNIOR, M. Argumentação retórica na literatura epistolar da Antiguidade. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 8, p.166-187, jun.2015. Disponível em: http://periodicos.uesc.br/index.php/eidea/article/view/612.Acesso em 19/06/2021.
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. Do mesmo modo, o corpo da carta contém os conteúdos temáticos, a mensagem, que a situação impunha, incluindo elementos de carácter narrativo e argumentativo. Quanto à conclusão, do mesmo modo como citado por Alexandre Júnior (2015)ALEXANDRE JÚNIOR, M. Argumentação retórica na literatura epistolar da Antiguidade. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 8, p.166-187, jun.2015. Disponível em: http://periodicos.uesc.br/index.php/eidea/article/view/612.Acesso em 19/06/2021.
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acerca da carta na Antiguidade, Romanos apresenta fórmulas de despedida que claramente marcam o seu final. Nas fórmulas de despedidas que compõem a conclusão, pode-se incluir o que Fitzmyer (1972)FITZMYER, J. A. Vida de San Pablo. In: BROWN, R. E.; FITZMYER, J. A.; MURPHY, R. E. (org.). Comentario Biblico “San Jeronimo”: Nuevo Testamento I. (Tomo III). Tradução de Alfonso de La Fuente Andanez, Jesus Valiente Malla e Juan Jose del Moral. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1972, p.547-564. descreveu como recomendações, saudações de Paulo e dos colaboradores, advertências e doxologia (hino de louvor). Vale salientar que essa esquematização da carta não esmiúça todos os seus aspectos, mas visa apontar a sua organização macroestrutural, inserindo-a na corrente discursiva do primeiro século.

Como último aspecto, cabe reafirmar que Romanos foi, originalmente, produzida como correspondência entre interlocutores, tendo em vista leitores específicos, visando, portanto, cumprir objetivos específicos. Tal escrito, contudo, em decorrência da relação com a esfera religiosa e do crescimento do Cristianismo, passou a circular por várias comunidades religiosas, ou seja, seu conteúdo passou a ser de interesse não apenas de uma comunidade ou indivíduo específicos (a comunidade cristã em Roma), mas passou a circular entre aquelas comunidades que compartilhavam da fé cristã.

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Diálogo e diatribe na perspectiva dialógica da linguagem

Em escritos como “Os gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2016BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. Tradução de Paulo de Bezerra. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2016 [1952-1953].) e “O problema do texto na linguística, na filosofia e em outras ciências humanas” (BAKHTIN, 2011), o autor russo Mikhail Bakhtin pensa a natureza dialógica do enunciado, inserindo-o no grande diálogo da comunicação discursiva. Para esse filósofo da linguagem, os enunciados – textos reais produzidos numa determinada situação comunicativa – são considerados a partir da interação com outros enunciados. Essa concepção é revolucionária na medida em que aponta as relações dialógicas, as complexidades, a dinamicidade, a heterogeneidade e a multiforme realidade das manifestações enunciativas.

Cabe pontuar que, na perspectiva dialógica da linguagem, o diálogo é entendido de maneira ampla, ou seja, não diz respeito apenas à conversa face a face do cotidiano. O diálogo é pensando a partir da noção de relações dialógicas. “Contudo, as relações dialógicas não coincidem, de maneira alguma, com as relações entre as réplicas do diálogo real; são bem mais amplas, diversificadas e complexas”, postula Bakhtin (2011, p.331). Essa noção de diálogo entende que dois enunciados distantes um do outro, tanto no tempo quanto no espaço, “[...] que nada sabem um sobre o outro, no confronto dos sentidos revelam relações dialógicas se entre eles há ao menos alguma convergência de sentidos (ainda que seja uma identidade particular do tema, do ponto de vista, etc.)” (BAKHTIN, 2011, p.331).

Ao dialogar com Bakhtin e o pensamento contemporâneo, Augusto Ponzio, em A revolução bakhtiniana (2015), comenta a natureza dialógica de todo texto. Nas palavras de Ponzio (2015, p.102):

Todo texto, escrito ou oral, está conectado dialogicamente com outros textos. Está pensado em consideração a outros possíveis textos que este pode produzir; antecipar possíveis respostas, objeções, e se orienta em direção a textos anteriormente produzidos, aos que aludem, replicam, refutam ou buscam apoio, aos que congregam, analisam etc.

Desse modo, o diálogo perpassa as dimensões da espacialidade e da temporalidade, pois os enunciados se encontram, se tocam, ainda que seja apenas nos aspectos temáticos. Como bem observa Ponzio (2015)PONZIO, A. A revolução bakhtiniana: o pensamento de Bakhtin e a ideologia contemporânea. 2. ed. Tradução sob a coordenação de Valdemir Miotello. São Paulo: Contexto, 2015., o diálogo ocorre não apenas com os já ditos, mas com os possíveis textos, ou seja, o texto é dialógico porque é uma resposta antecipada a possíveis outros textos.

Essa noção de diálogo não se limita à ideia de concordância e discordância entre dois enunciados, mas implica relação, compreensão responsivo-ativa, pois, para Bakhtin (2011, p.333; grifo do autor), “[...] para a palavra (e consequentemente para o homem) não existe nada mais terrível do que a irresponsividade”. E ainda: “[...] a palavra quer ser ouvida, entendida, respondida e mais uma vez responder à resposta, e assim ad infinitum” (BAKHTIN, 2011, p.334; grifo do autor). Nessa perspectiva, as unidades da comunicação discursiva – o que Bakhtin (2011)BAKHTIN, M. M. O problema do texto na linguística, na filosofia e em outras ciências humanas. In: BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011, p.307-335. [1976] denomina de “enunciados totais” – são irreprodutíveis (ainda que se possa citá-las) e são ligadas entre si por relações dialógicas.

O mesmo autor, em Questões de literatura e estética: a teoria do romance (BAKHTIN, 2014BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et al. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 2014 [1975]., p.86), afirma:

O enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado momento social e histórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social. Ele também surge desse diálogo como seu prolongamento, como sua réplica, e não sabe de que lado ele se aproxima desse objeto.

Essa natureza dialógica do enunciado pode ser sentida na própria estrutura enunciativa. Assim, o mesmo autor, em Problemas da poética de Dostoiévski (2010), analisa o fenômeno do diálogo velado, que, segundo ele, não coincide com o fenômeno da polêmica velada. Essa, segundo o autor, ocorre quando o discurso está voltado para um objeto, “[...] nomeando-o, representando-o, enunciando-o, e só indiretamente ataca o discurso do outro, entrando em conflito com ele como que no próprio objeto (BAKHTIN, 2010, p.224). A polêmica velada, portanto, ocorre de maneira indireta, pois o encontro polêmico entre vozes ocorre no objeto, no tema. Nesse caso, voltado para o objeto e tocando polemicamente os sentidos de outros discursos, o discurso é bivocal, pois ele “[...] sente tensamente ao seu lado o discurso do outro falando do mesmo objeto, e a sensação da presença desse discurso lhe determina a estrutura”, explica Bakhtin (2010, p.224).

Outra noção posta em relação à polêmica velada é a noção de polêmica aberta. Para o pensador russo, “[...] a polêmica aberta está simplesmente orientada para o discurso refutável do outro, que é o seu objeto” (BAKHTIN, 2010, p.224). Nesse caso, além de estar voltado para o objeto/tema, o discurso se volta diretamente para o discurso do outro, polemizando seus sentidos.

Dito isso, voltando à noção de diálogo velado, Bakhtin (2010, p.226), para ilustrá-lo, cria a seguinte situação:

Imaginemos um diálogo entre duas pessoas no qual foram suprimidas as réplicas do segundo interlocutor, mas de tal forma que o sentido geral não tenha sofrido qualquer perturbação. O segundo interlocutor é invisível, suas palavras estão ausentes, mas deixam profundos vestígios que determinam todas as palavras presentes do primeiro interlocutor. Percebemos que esse diálogo, embora só um fale, é um diálogo sumamente tenso, pois cada uma das palavras presentes responde e reage com todas as suas fibras ao interlocutor invisível, sugerindo fora de si, além dos seus limites, a palavra não pronunciada do outro.

O diálogo velado marca as relações de reciprocidade com a palavra do outro no contexto vivo e concreto. Tal dinamicidade da inter-relação das vozes no discurso, do diálogo interno, pode variar acentuadamente (BAKHTIN, 2010). Em estreita relação com a noção de diálogo velado está a noção de diatribe. Não se concebe a diatribe sem o diálogo interno, sem a inter-relação de vozes, sem a percepção das palavras alheias. Bakhtin (2010)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010 [1963]. pontua a natureza dialógica da diatribe, apresentando-a como um gênero, embora não se detenha em maiores detalhes acerca disso. Ele explica que “[...] a diatribe é um gênero retórico interno dialogado, construído habitualmente em forma de diálogo com um interlocutor ausente, fato que levou à dialogização do próprio processo de discurso e pensamento” (BAKHTIN, 2010, p.137). Como se percebe, a diatribe é tida como um gênero marcadamente dialógico, pois se caracteriza pelo diálogo interno com um interlocutor ausente. Ausente fisicamente, mas presente na construção de sentidos do enunciado, já que é levado em conta pelo autor e influencia, por exemplo, a construção do estilo, a temática, a construção composicional do enunciado.

A diatribe é um recurso enunciativo de instauração do diálogo mostrado no discurso. Como pontuou Bakhtin (2010)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010 [1963]., ela materializa o dialogismo no próprio processo de construção do discurso e do pensamento. Isso implica pensar as vozes alheias, os pontos de vista e as valorações ideológicas de discurso do outro, que são mobilizadas e materializadas na construção enunciativa.

Quanto à sua origem, a diatribe remonta à literatura filosófica grega. Possivelmente, esse gênero surgiu dos trabalhos de filósofos cínicos gregos, por volta do século III a.C. A diatribe, como recurso enunciativo, consistia na exposição de ideias, doutrinas filosóficas na forma de diálogo. Por meio da diatribe, portanto, o autor de determinado discurso apresentava um diálogo interior, tendo em vista um possível interlocutor. Na Antiguidade, a diatribe fora usada também por escritores cristãos do primeiro século. Bakhtin (2010, p.137) percebe essa influência ao dizer que “[...] foi precisamente a diatribe, e não a retórica clássica, que exerceu influência determinante sobre as particularidades do gênero do sermão cristão antigo”.

Ademais, a diatribe é passível de ser materializada por diversos recursos linguístico-enunciativos. Como se mostrará na próxima seção, na carta, a diatribe se materializa por meio do discurso direto retórico. Esse modo de citar o discurso do outro é discutido por Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 1. ed. Tradução Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017 [1929]. em Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem, ao problematizar o fenômeno de transmissão do discurso alheio em uma perspectiva sociológica. Conforme Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 1. ed. Tradução Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017 [1929]., p.249,:grifos do autor), “[...] o ‘discurso alheio’ é o discurso dentro do discurso, o enunciado dentro do enunciado, mas ao mesmo tempo é também o discurso sobre o discurso, o enunciado sobre o enunciado”.

O mesmo estudioso ressalta que “[...] as formas de transmissão do discurso alheio expressam a relação ativa de um enunciado com outro, não no plano temático, mas nas formas construtivas estáveis da própria língua” (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 1. ed. Tradução Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017 [1929]., p.250). As formas de transmissão do discurso alheio, assim, instauram a reação da palavra à palavra. No caso específico do discurso direto retórico, Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 1. ed. Tradução Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017 [1929]. comenta que, muitas vezes, ele integra diretamente o discurso autoral e o discurso alheio.

O discurso direto retórico ocorre quando um mesmo discurso pode ser interpretado simultaneamente como pertencente ao autor e como pertencente a um outro. É, portanto, terreno povoado por mais de uma voz, é lugar da plurivocalidade, do encontro entre o eu e o outro. Com isso, para Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 1. ed. Tradução Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017 [1929]., a pergunta retórica e a exclamação retórica são recursos enunciativos que materializam o discurso direto retórico.

A pergunta retórica e a exclamação retórica se situam bem na fronteira entre o discurso autoral e o alheio (normalmente interior) e, muitas vezes, integram diretamente este ou aquele, ou seja, podem ser interpretados simultaneamente como uma pergunta ou exclamação do autor e como uma pergunta ou exclamação do personagem direcionadas a si próprio (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 1. ed. Tradução Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017 [1929]., p.285; grifo do autor).

A essência do discurso direto retórico é a presença de vozes situadas na fronteira entre o discurso autoral – o discurso citante, por exemplo, em Romanos – e o discurso alheio – o discurso do outro, por exemplo, o discurso citado dos interlocutores da carta. No discurso direto retórico, as palavras pertencem ao mesmo tempo ao autor do enunciado e ao outro, mas “[...] prevalece, sem dúvidas, a atividade do autor, e por isso elas nunca são colocadas entre aspas”, esclarece Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 1. ed. Tradução Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017 [1929]., p.287). No discurso direto retórico, o dizer é do próprio autor, mas ele faz isso em nome do um outro, como se falasse no seu lugar, ou seja, o autor se antecipa ao seu outro, “[...] fala por ele aquilo que ele poderia ou deveria dizer, que convém à situação” (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 1. ed. Tradução Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017 [1929]., p.287; grifo do autor).

A seguir, a análise de Romanos procurará mostrar como o discurso direto retórico instaura o fenômeno da diatribe na construção de sentidos do referido enunciado, atentando para os elementos linguísticos que materializam a diatribe.

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A diatribe na construção enunciativa dos sentidos da/na Carta de Paulo aos Romanos

A diatribe é um recurso enunciativo de construção de sentidos que instaura a presença ativa do outro no processo da comunicação discursiva de Romanos. Nesse caso, a carta é cenário de encontros de vozes, de pontos de vista, de posições valorativas, de concepções ideológico-religiosas, ou seja, seus sentidos são atravessados pelos discursos dos interlocutores, principalmente, grupos religiosos residentes em Roma. A análise da diatribe permite a escuta dos pontos de vista desses interlocutores, pois eles ganham corpo no enunciado.

Os trechos que serão analisados são representativos dos movimentos enunciativos que mobilizam a diatribe na construção de sentidos da carta. Na análise desses trechos, será destacada a materialidade linguístico-enunciativa em que se escutam vozes alheias na construção enunciativa. Assim, nas ocorrências a seguir, a carta materializa um encontro polêmico entre pontos de vista. Esse encontro de vozes torna visível “[...] a influência profunda do discurso da resposta antecipada” (BAKHTIN, 2014BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et al. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 2014 [1975]., p.89), ou seja, faz emergir vozes alheias na tessitura enunciativa.

Que vantagem há então em ser judeu? E qual a utilidade da circuncisão? Muita, e sob todos os pontos de vista. Em primeiro lugar, porque foi a eles que foram confiados os oráculos de Deus. E que acontece se alguns deles negaram a fé? A infidelidade deles não irá anular a fidelidade de Deus? De modo algum! [...] Não cometeria Deus uma injustiça desencadeando sobre nós sua ira? — Falo como homem —. De modo algum! Se assim fosse, como poderia Deus julgar o mundo? Mas se por minha mentira resplandece mais a verdade de Deus, para sua glória, por que devo eu ser ainda julgado pecador? E por que — como aliás alguns afirmam caluniosamente que nós ensinamos — não haveríamos nós de fazer o mal para que venha o bem? Desses tais a condenação é justa (Romanos 3, 1-8).

Nesse trecho em destaque, Paulo discute pontos sensíveis da fé judaica e da fé cristã. Esses dois mundos religiosos, essas duas ideologias religiosas, encontram-se na carta. De um lado, percebe-se a leitura que Paulo faz da situação dos judeus e dos gentios perante o julgamento de Deus. Na carta, Paulo faz uma releitura da circuncisão, que era um ritual judaico que servia para inserir todo menino judeu no chamado “povo da aliança”. Ao ressignificar a circuncisão, Paulo trava um embate polêmico com pontos de vista de interlocutores que possuíam formação judaica, pois, naquele contexto e dentro do sistema religioso judaico da época, a circuncisão era sinal de fé suficiente para alcançar a justificação diante de Deus. Ao escrever Romanos, Paulo reinterpreta a circuncisão, argumentando a partir de outro ponto de vista, a saber, a “verdadeira circuncisão é a do coração”.

A influência do discurso dos interlocutores é sentida na carta de tal modo que Paulo antecipa seus possíveis questionamentos. No trecho da carta em destaque, esses questionamentos aparecem na forma de diatribe, mais precisamente por meio de discurso direto retórico. De modo mais específico, há uma alternância de vozes no trecho em destaque. Imediatamente antes do trecho em análise, Paulo afirmara que é “judeu aquele que o é no interior e a verdadeira circuncisão é a do coração” (Romanos 2, 29). Diante dessa afirmação, o destinatário da carta logo questionaria: “Que vantagem há então em ser judeu? E qual a utilidade da circuncisão?” (Romanos 3, 1). Numa resposta ativa aos questionamentos levantados por esse interlocutor, Paulo apresenta uma contrapalavra: “Muita, e sob todos os pontos de vista. Em primeiro lugar, porque foi a eles que foram confiados os oráculos de Deus” (Romanos 3, 2). Com isso, Paulo tem em vista refutar, apagar dúvidas e apresentar outro ponto de vista na interação polêmica com tais interlocutores.

Os questionamentos (discurso vivo dos destinatários) e a resposta (contrapalavra) instauram a “dialogicidade interna do discurso” (BAKHTIN, 2014BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et al. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 2014 [1975]., p.89). Essa dialogicidade manifesta também o traço do endereçamento/direcionamento do enunciado, que é percebido na própria constituição estilística. Bakhtin (2016BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. Tradução de Paulo de Bezerra. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2016 [1952-1953]., p.63) diz que ao interlocutor do enunciado, ao modo como quem escreve, percebe e representa para si os seus interlocutores, à força e à influência desses interlocutores no enunciado, “[...] dependem tanto a composição quanto, particularmente, o estilo do enunciado”. Assim, a carta percebe, no processo de sua construção, os questionamentos advindos dos interlocutores. Desse modo, o estilo, as escolhas linguístico-enunciativas, as tonalidades do dizer são ajustadas em direção aos interlocutores e às suas respostas.

O recurso diatríbico, mobilizado no trecho em análise, instaura um movimento dialógico de antecipação ao ponto de vista dos interlocutores, visando combatê-los. Esse recurso enunciativo permite ao autor se antecipar ao ponto de vista alheio. Tal movimento dialógico ocorre porque, de acordo com Bakhtin (2016BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. Tradução de Paulo de Bezerra. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2016 [1952-1953]., p.63), ao procurar antecipar o discurso do outro, “essa resposta antecipável exerce, por sua vez, uma ativa influência sobre o meu enunciado (dou resposta pronta às objeções que prevejo, apelo para toda sorte de subterfúgios, etc)”. Isso implica dizer que Romanos, assim como todo enunciado concreto, leva em conta o campo aperceptivo da percepção do discurso pelo interlocutor.

Ainda sobre o trecho em análise, como é característico da diatribe, ele apresenta turnos de vozes, numa sequência formada por questionamentos e respostas, assim como na conversa face a face do cotidiano. É assim no decorrer de todo o trecho, pois as perguntas “E que acontece se alguns deles negaram a fé? A infidelidade deles não irá anular a fidelidade de Deus?” (Romanos 3, 3) também se encontram na fronteira entre o discurso autoral e o discurso do outro. Ou seja, essas perguntas podem ser atribuídas não apenas a Paulo, mas também aos interlocutores da carta. A esses questionamentos, o discurso autoral responde o seguinte: “De modo algum!” (Romanos 3, 4). Cabe pontuar que esses questionamentos são materializados por meio de discurso direto retórico, porque o enunciado está na fronteira entre o discurso autoral e o discurso dos interlocutores. Portanto, esses possíveis questionamentos não são simplesmente perguntas monológicas feitas por Paulo, mas é o discurso do outro ativo e presente na orientação dos sentidos da carta. Como postula Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 1. ed. Tradução Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017 [1929]., o discurso direto retórico integra diretamente o discurso autoral e o discurso alheio. Ouve-se, assim, em um mesmo enunciado, duas vozes, dois discursos, dois (no mínimo) centros valorativos.

Em outro momento do mesmo trecho, a carta se antecipa a mais um questionamento dos interlocutores: “E por que — como aliás alguns afirmam caluniosamente que nós ensinamos — não haveríamos nós de fazer o mal para que venha o bem?” (Romanos 3, 8). Essa voz do outro é ativa e ganha materialidade na forma de um discurso direto retórico, pois o autor formula uma pergunta, atribuindo-a, no mesmo movimento enunciativo, a alguns interlocutores. Vale destacar que, no discurso direto retórico, como no caso em análise, o enunciado é compartilhado, o dizer é bivocal, o outro se instaura.

Além disso, percebe-se que o discurso direto retórico instaura a polêmica aberta, pois o discurso autoral (do autor de Romanos) se orienta diretamente para o discurso do outro, marcado linguisticamente com a expressão “como aliás alguns afirmam caluniosamente”. Assim, esse “alguns”, a quem se reconhece o lugar de voz, embora indefinido, está presente no discurso. Os interlocutores (marcados pelo “alguns”) “afirmam”, mas essa afirmação é valorada negativamente. O peso do termo “caluniosamente” recai sobre o ato enunciativo, sobre o conteúdo do dizer.

Ademais, o discurso direto retórico é percebido na carta pela “[...] invasão de elementos expressivos do discurso do outro (reticências, perguntas, exclamações) no sistema sintático do discurso do autor” (BAKHTIN, 2015BAKHTIN, M. M. Teoria do romance: a estilística I. Tradução de Paulo Bezerra. 1 ed. São Paulo: Editora 34, 2015., p.105). Assim, as perguntas retóricas são compartilhadas com os interlocutores da carta, ou seja, são possíveis perguntas/questionamentos que os leitores/ouvintes fariam a Paulo se esse estivesse pessoalmente com eles. As perguntas retóricas se situam na fronteira entre o discurso autoral (de Paulo) e o discurso dos interlocutores da carta. Retornando ao trecho em análise, diante do possível questionamentos dos destinatários, Paulo se resume a dizer: “Desses tais a condenação é justa” (Romanos 3, 8).

No trecho abaixo, constata-se mais uma ocorrência da diatribe na construção de sentidos da carta:

Que diremos, pois, de Abraão, nosso progenitor segundo a carne? Ora, se Abraão foi justificado pelas obras, ele tem do que se gloriar. Mas não perante Deus (Romanos 4, 1-2).

Esse trecho integra a argumentação em favor da tese de que todos os homens são justificados pela fé e não pelas obras da Lei. Conforme leitura de Dunn (2003, p.421), “as ‘obras’ contra as quais Paulo constantemente adverte eram na sua opinião o entendimento errôneo por parte de Israel do que a lei da sua aliança exigia”. Para esse estudioso, “[...] a interpretação errada focalizava mais agudamente as tentativas judaicas de manter sua aliança que os distinguia dos gentios e as tentativas dos cristãos judeus de exigir que os cristãos gentios adotassem essas características da aliança” (DUNN, 2003, p.422). Portanto, temas como a “justificação” e o papel das “obras” não eram questões pacíficas entre os interlocutores de Romanos.

Assim, é possível perceber que havia entre os interlocutores de Romanos uma crença de que eram justos diante de Deus pelo fato de terem a “Lei de Moisés” – os textos atribuídos a Moisés que atualmente compõem o Antigo Testamento da Bíblia –, a circuncisão e os escritos dos profetas. Desse modo, para muitos leitores da carta, o simples fato de pertencer à nação judaica, ter por “sobrenome judeu” (Romanos 2, 17), já era condição suficiente (e também necessária) para ser considerado “justo diante de Deus”. Em outras palavras, retomando a leitura feita por Dunn (2003)DUNN, J. D. G. A teologia do apóstolo Paulo. Tradução de Edwino Royer. São Paulo: Paulus, 2003. sobre a questão, na concepção ideológico-religiosa de interlocutores de Romanos, a identidade étnica (judaica) possuía valor de maior importância para a salvação, determinando e qualificando a justificação. Ao apresentar um ponto de vista religioso diferente, a carta escuta questionamentos advindos desses interlocutores. Dessa forma, o trecho em análise desvela a relação dialógica marcada com uma resposta antecipada do outro/interlocutor, engendrando efeitos estilísticos no discurso.

Com isso, o trecho em destaque evidencia a tonalidade de réplica, mais precisamente, instaura uma polêmica aberta com o discurso do outro (dos destinatários), pois, conforme Bakhtin (2010, p.224), “[...] a polêmica aberta está simplesmente orientada para o discurso refutável do outro, que é o seu objeto”. No caso em análise, a polêmica aberta ocorre porque, diante da tese de Paulo de que “o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei” (Romanos 3, 28), alguns interlocutores logo discordariam dessa tese, citando o caso de Abraão, pois esse era considerando o “pai da nação” que, na crença de determinados interlocutores da carta, era exemplo de alguém justificado pelas obras. Com isso, o enunciado/carta escuta a seguinte perguntar polêmica: “Que diremos, pois, de Abraão, nosso progenitor segundo a carne?” (Romanos 4, 1). Essa estrutura de discurso direto retórico (a pergunta atribuída ao destinatário) mostra o direcionamento da carta para o discurso do outro, representando-o, enunciando-o, entrando em conflito com ele no próprio corpo do enunciado. “É como se no discurso estivesse encravada a réplica do outro” (BAKHTIN, 2010, p.237), mostrando também o quanto a estrutura do enunciado é determinada pela relação dialógica entre os interlocutores do processo comunicativo que dá vida à carta.

Assim, como pontua Bakhtin (2010, p.224), “[...] a estrutura do discurso seria inteiramente distinta se não houvesse essa reação ao discurso subentendido do outro”. Conforme o mesmo autor, o colorido polêmico do discurso manifesta-se em traços puramente linguísticos. Ele cita como exemplo a entonação e a construção sintática. No caso da carta aos romanos, esse colorido polêmico aparece marcado na estrutura sintática, a saber, por meio da diatribe, que ganha materialidade nos casos de discurso direto retórico.

Ademais, a análise da carta a partir da diatribe revela que o interlocutor de Paulo compartilha do discurso de que Abraão foi justificado pelas obras. Essa escuta se desvela numa contrapalavra: “Ora, se Abraão foi justificado pelas obras, ele tem do que se gloriar. Mas não perante Deus” (Romanos 3, 2). Desse modo, constata-se que a luta pelo sentido da narrativa de Gênesis está aqui em questão. A carta percebe o discurso do outro e reage a ele. O campo da disputa é o discurso acerca de “como Abraão foi justificado perante Deus”. Essa disputa instaura a dialogicidade de duas maneiras: primeiro, no encontro com o discurso do outro no próprio objeto, ou seja, no tema do discurso, a saber, a justificação de Abraão; segundo, na disputa que ocorre na resposta antecipada do ouvinte interna ao enunciado. Essa segunda maneira, de acordo com Bakhtin (2014BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et al. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 2014 [1975]., p.91), “[...] introduz um caráter mais subjetivo, mais psicológico e, frequentemente, mais casual, por vezes grosseiramente conformista, às vezes mesmo provocador e polêmico”.

Como visto, quanto a esse aspecto polêmico e provocador, a diatribe, por meio do discurso direto retórico, marca pontos de vista polêmicos na trama interna da carta. Além disso, na carta, a diatribe se constrói como forma de diálogo com um interlocutor ausente fisicamente. “É próprio da carta uma aguda sensação do interlocutor, do destinatário a quem ela visa”, afirma Bakhtin (2010, p.235). Ele ainda diz que “[...] a maneira individual pela qual o homem constrói seu discurso é determinada consideravelmente pela sua capacidade inata de sentir a palavra do outro e os meios de reagir diante dela” (BAKHTIN, 2010, p.225). Como enunciado concreto, Romanos apresenta uma relação/reação intensa com os outros participantes da comunicação, a saber, os grupos religiosos residentes em Roma. Os questionamentos polêmicos, os elementos expressivos e a entonação valorativa da carta são marcados por essa relação com a comunidade religiosa destinatária.

No próximo trecho, a relação polêmica com o discurso do outro também se faz perceber na dialogicidade interna da carta.

Que diremos, então? Que devemos permanecer no pecado a fim de que a graça atinja sua plenitude? De modo algum! Nós, que morremos para o pecado, como haveríamos de viver ainda nele? Ou não sabeis que todos os que fomos batizados em Cristo Jesus, é na sua morte que fomos batizados? (Romanos 6, 1-3).

No contexto imediato a esse trecho em destaque, Paulo expõe sua visão de como “Deus justifica por meio da fé”. Ele expõe que a Lei trouxe à luz o pecado, ou seja, a Lei mosaica acusa a existência do pecado e, consequentemente, causa a morte, mas, por outro lado, argumenta ele, “onde avultou o pecado, a graça superabundou, para que, como imperou o pecado na morte, assim também imperasse a graça por meio da justiça, para a vida eterna, através de Jesus Cristo, nosso Senhor” (Romanos 5, 18-21). Ao dizer que a “graça superabundou onde avultou o pecado”, o discurso de Paulo foi atravessado pelo discurso do outro, que ganha lugar na tessitura da carta. É possível escutar esse discurso outro no seguinte questionamento, materializado em forma de discurso direto retórico: “devemos permanecer no pecado a fim de que a graça atinja sua plenitude?” (Romanos 6, 1). Paulo dialoga com esse discurso, que expressa outro ponto de vista, outra maneira de se relacionar com a divindade, outra cosmovisão religiosa, outra posição axiológica.

Ocorrências como essas, nos remetem ao que diz Bakhtin (2011, p.301) acerca do modo “como o falante (ou o que escreve) percebe e representa para si os seus destinatários, qual é a força e a influência deles no enunciado”. E ele afirma acertadamente que disto dependem tanto a composição quanto, particularmente, o estilo do enunciado. A análise da diatribe revela exatamente a presença (in)tensa e polêmica dos discursos dos destinatários na construção de sentidos de Romanos. É, ao mesmo tempo, discurso sobre discurso e discurso no discurso (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 1. ed. Tradução Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017 [1929].). Essa presença guia a escolha do assunto, do estilo, da linguagem, das tonalidades expressivas. Ela é responsável pela orientação temática, pelas polêmicas veladas e abertas, pela construção argumentativa do enunciado.

Ainda, analisando o mesmo trecho, percebe-se que a voz do outro, que atravessa a carta, tem uma lógica fundamentada na afirmação de Paulo, a saber, se onde avultou o pecado superabundou a graça, então, quanto mais pecado mais graça haverá. A escuta percebe esse questionamento, materializado por meio de uma forma de discurso direto retórico, pois a voz do outro é escutada juntamente com a voz do autor (Paulo). O discurso autoral não deixa esse outro no vazio de resposta e enfaticamente responde: “De modo algum! Nós, que morremos para o pecado, como haveríamos de viver ainda nele?” (Romanos 6, 2). Nota-se, portanto, o diálogo interno materializado na carta. Cabe dizer que esse aspecto responsivo da carta, orientada para o destinatário, não é exclusivo da carta aos romanos, mas, como constata Alexandre Júnior (2015ALEXANDRE JÚNIOR, M. Argumentação retórica na literatura epistolar da Antiguidade. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 8, p.166-187, jun.2015. Disponível em: http://periodicos.uesc.br/index.php/eidea/article/view/612.Acesso em 19/06/2021.
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, p.168), na Antiguidade, a carta era “escrita como diálogo entre partes interessadas, como um dos dois lados de uma discussão; como que a invocar a dinâmica estratégica do discurso oratório, onde refutação e confirmação eram evidentes”.

Diante dos trechos analisados, é perceptível que, e retomando afirmações de Fabris (2003, p.60), “[...] no diálogo epistolar com as suas jovens comunidades cristãs, Paulo recorre a alguns elementos da diatribe ou do debate em uso entre os mestres e propagadores do estoicismo popular”. A análise mostrou o uso do discurso direto retórico como elemento instaurador da diatribe. Dito isso, o próximo tópico destacará algumas conclusões inferidas das análises.

Considerações finais

Este trabalho investigou o uso da diatribe na construção de sentidos da Carta de Paulo aos Romanos, focando em duas questões centrais, a saber, (i) que recursos linguístico-enunciativos materializam a diatribe na tessitura enunciativa de Romanos; e (ii) como a diatribe é mobilizada no processo de construção de sentidos da referida carta? Para isso, dialogou com estudos de Bakhtin (2010; 2011; 2014BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini et al. 7 ed. São Paulo: Hucitec, 2014 [1975].; 2016BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. Tradução de Paulo de Bezerra. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2016 [1952-1953].), Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 1. ed. Tradução Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017 [1929]., Ponzio (2013)PONZIO, A. No Círculo com Mikhail Bakhtin. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello et al. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013., Alexandre Júnior (2015)ALEXANDRE JÚNIOR, M. Argumentação retórica na literatura epistolar da Antiguidade. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 8, p.166-187, jun.2015. Disponível em: http://periodicos.uesc.br/index.php/eidea/article/view/612.Acesso em 19/06/2021.
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, Gonçalves e Di Mesquita (2010)GONÇALVES, A. T. M.; DI MESQUITA, F. D. G. Atividade epistolar no mundo Antigo: relendo as cartas consolatórias de Sêneca. História, Goiânia, v. 15, n. 1, jan./jun. 2010, p.31-53. https://www.revistas.ufg.br/historia/article/view/10818Acesso em 19/06/2021.
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, Dunn (2003)DUNN, J. D. G. A teologia do apóstolo Paulo. Tradução de Edwino Royer. São Paulo: Paulus, 2003., Fabris (2003)FABRIS, R. Paulo: apóstolo dos gentios. Tradução Euclides Martins Balancin. 3.ed. São Paulo: Paulinas, 2003., Ehrman (1997)EHRMAN, B. D. The New Testament: A Historical Introduction to the Early Chistian Writings. New York: Oxford University Press, 1997., entre outros.

A análise mostrou como a diatribe ocorre por meio das marcas linguístico-enunciativas do discurso direto retórico, configurando-se recurso enunciativo recorrente em Romanos. Nesse modo de escutar o outro, o autor da carta traz para seu enunciado (Romanos) o discurso dos destinatários, visando refutar seus argumentos, responder seus questionamentos, silenciar seus possíveis protestos. Com isso, foi possível mostrar o diálogo polêmico velado e mostrado na constituição de sentidos e como a resposta antecipada do discurso do outro influencia a escolha dos recursos linguísticos, a construção do estilo, as valorações e a construção da temática do enunciado (BAKHTIN, 2016BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. Tradução de Paulo de Bezerra. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2016 [1952-1953].).

Portanto, a partir da análise de trechos representativos da carta, fica evidente o quanto a diatribe, especificamente nos casos de discurso direto retórico, é um recurso linguístico-enunciativo utilizado por Paulo para tratar de questões polêmicas. Por meio desse recurso, Paulo traz para seu discurso o discurso do outro, dos interlocutores/destinatários, visando refutar seus argumentos, responder seus questionamentos, silenciar seus protestos.

Com isso, na dialogicidade interna da carta, ficam perceptíveis as vozes em disputa. Nesse ponto, confirma-se a compreensão de Bakhtin (2010)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010 [1963]. quanto ao gênero carta. Segundo esse filosofo, “[...] como a réplica do diálogo, a carta se destina a um ser determinado, leva em conta as suas possíveis reações, sua possível resposta. Essa consideração do interlocutor ausente pode ser mais ou menos intensiva [...]” (BAKHTIN, 2010, p.235). Portanto, na construção da carta, as ocorrências de discurso direto retórico materializam a diatribe como recurso enunciativo de construção de sentidos. Como já apontara Bakhtin (2010)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010 [1963]., a diatribe exerceu forte influência no gênero sermão cristão antigo. Pode-se dizer, a partir da análise empreendida, que, na carta aos romanos, esse elemento linguístico-enunciativo de construção de sentidos se realiza nos casos de discurso direto retórico.

Ademais, a dialogicidade interna – como diálogo do cotidiano – corrobora o entendimento de que Romanos pertence à categoria dos gêneros secundários, pois, como discute Bakhtin (2016BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. Tradução de Paulo de Bezerra. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2016 [1952-1953]., p.15), “[...] no processo de sua formação eles [os gêneros secundários] incorporam e reelaboram diversos gêneros primários (simples), que se formaram nas condições da comunicação discursiva imediata”. Sem dúvidas, a carta analisada apresenta as características de gênero discursivo complexo, mais particularmente por integrar a diatribe como recurso dialógico composicional.

Além disso, ao lançar mão da diatribe, Paulo demonstra possuir algum conhecimento das ideias e pontos de vista que circulavam na comunidade cristã em Roma, que era composta por gentios e judeus. Como o próprio Ehrman (1997EHRMAN, B. D. The New Testament: A Historical Introduction to the Early Chistian Writings. New York: Oxford University Press, 1997., p.301) afirma, “ao empregar esse estilo (a diatribe), Paulo poderia efetivamente combater os argumentos que outros haviam feito contra seus ensinos”7 7 Tradução nossa. No original: “By emploing this style, paulo could effectively counter arguments that others had made against his teachings”. . Desse modo, a diatribe, além de funcionar argumentativamente na defesa de pontos de vista do autor, é recurso enunciativo que marca a construção do estilo e do diálogo interno da carta.

Em síntese, Romanos é território interindividual (VOLOCHINOV, 2017), pois o destinatário também tem sua voz marcada enunciativamente. Ela é, parafraseando Bakhtin (2010)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010 [1963]., intensamente dialógica, pois construída como correspondência, a antecipação ao discurso dos destinatários penetra profundamente no âmago de sua construção discursiva. A análise mostrou ainda como essa antecipação ao discurso do outro ocorre por meio da diatribe, mais precisamente por meio do discurso direto retórico, instaurando relações dialógicas polêmicas, sendo essas relações responsáveis por constituir a arquitetônica enunciativa da carta.

  • 1
    Em Problemas da poética de Dostoiévski, Bakhtin (2010)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010 [1963]. discute amplamente a Menipeia. Para ele, a menipeia incorpora gêneros cognatos como a diatribe, o solilóquio e o simpósio, sendo um gênero interno dialogado.
  • 2
    Este trabalho retoma um estudo do uso da diatribe na Carta de Paulo aos Romanos iniciado, mas não verticalizado, na tese de doutorado intitulada O discurso citado na carta de Paulo aos romanos: uma abordagem discursivo-enunciativa (NASCIMENTO, 2019NASCIMENTO, I. A. A. O discurso citado na carta de Paulo aos Romanos: uma abordagem discursivo-enunciativa, 2019, 280 f. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, 2019.).
  • 3
    No contexto de produção da carta aos romanos, gentios eram todos os que não pertenciam à nação judaica. É, portanto, uma distinção muito marcada pela identidade étnico-religiosa. Essa distinção deve ser situada e ter o seu sentido enfatizado, pois marcava o lugar de vida religiosa, de pertencimento a uma tradição, a uma cultura. Assim, a distinção se tornava mais tensa no contexto do primeiro século (período de escrita de Romanos), pois, como o Império Romano exercia o governo sobre vasto território, cidades e vilas judaicas estavam sob o governo romano.
  • 4
    Tradução nossa. No original: “Paul´s letters are chiefly concerned with problems that have arisen in his churches”.
  • 5
    Tradução nossa. No original: “This was a letter that Paul wrote to a particular church. As with all of his letters, this one had an occasion and was written for a reason”.
  • 6
    Os textos apócrifos Salmos de Salomão formam uma coleção de 18 salmos atribuídos ao famoso filho de Davi, mas que provavelmente teve a sua origem no século II ou I a.C. Esses salmos mantêm íntima ligação com os salmos canônicos, imitando o estilo, e mostram uma forte posição conservadora judaica. Ênfases tais como a justiça, a retribuição divina e o determinismo apontam para assuntos debatidos posteriormente pelos fariseus. Dunn (2003)DUNN, J. D. G. A teologia do apóstolo Paulo. Tradução de Edwino Royer. São Paulo: Paulus, 2003., em A teologia do Apóstolo Paulo, mostra o diálogo que Romanos estabelece com as ideias dos Salmos de Salomão, evidenciando que existiam em Roma grupos judaicos de tendência mais radical/conservadora.
  • 7
    Tradução nossa. No original: “By emploing this style, paulo could effectively counter arguments that others had made against his teachings”.

REFERENCES

  • ALEXANDRE JÚNIOR, M. Argumentação retórica na literatura epistolar da Antiguidade. EID&A - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 8, p.166-187, jun.2015. Disponível em: http://periodicos.uesc.br/index.php/eidea/article/view/612.Acesso em 19/06/2021.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Set 2021
  • Data do Fascículo
    July/Sept. 2021

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2020
  • Aceito
    12 Jun 2021
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