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A estilística de Spitzer e a estilística bakhtiniana na interpretação da obra de Rabelais

RESUMO

O objetivo deste artigo é aprofundar a questão da estilística na perspectiva de Spitzer, procurando aspectos relacionados com a estilística de Bakhtin, em específico no tratamento dado por ambos à obra de Rabelais Gargântua e Pantagruel (1532-1564). O princípio que fundamenta as análises é a concepção de estilo e de literatura que perpassa as análises de Spitzer e Bakhtin, desvelando aspectos contrastantes na interpretação dessa obra rabelaisiana.

PALAVRAS-CHAVE:
Estilística; Spitzer; Subjetividade; Estilística bakhtiniana

ABSTRACT

The purpose of this article is to delve deeper into issues of stylistics as addressed in the interpretation of Rabelais’ works, Gargantua and Pantagruel (1532-1564), from Spitzer’s perspective, while looking for related aspects from a Bakhtinian perspective. The principles on which the analysis is based are the concept of style and literature that crosses Spitzer and Bakhtin’s analyses, revealing contrasting aspects in the interpretation of this Rabelaisian work.

KEYWORDS:
Stylistics; Spitzer; Subjectivity; Bakhtinian stylistics

Introdução

A questão do estilo tem sido objeto de trabalhos teóricos ao longo do tempo, desde Aristóteles (335-323 a.C.), passando pela época clássica, com Boileau (1669), momento em que as normas regulavam a elaboração das obras literárias, até o período do Romantismo, quando essa norma é substituída pela imaginação e criatividade subjetiva do escritor romântico. Com o Romantismo, o estilo tornou-se, então, objeto de discussão a respeito da inspiração e da originalidade criativa da obra de arte e, a partir desse momento, várias concepções a esse respeito foram discutidas. Nessa perspectiva, a concepção romântica propiciou maior liberdade à expressão artística, perdurando até a época contemporânea, de modo a exigir dos críticos novas formas de interpretação da obra literária e, como consequência, novas perspectivas de concepção de estilo. O Romantismo também propiciou investigações a respeito da língua, motivando um trabalho de pesquisa linguística de natureza histórico-filológica para compreender a origem e as relações estabelecidas entre as diversas línguas. Esse movimento investigativo, relacionando história e cultura, exigia do pesquisador conhecimentos mais amplos, além dos linguísticos, não apenas pelo domínio de diversas línguas, como também pelo domínio das características culturais específicas de cada época. Sob esse aspecto, o material concreto propício para esse tipo de investigação eram os textos literários como expressão mais viva dos costumes e valores de cada cultura e de cada momento histórico. É o que justifica o fato de pesquisadores linguistas se debruçarem sobre as obras literárias como fonte de pesquisa linguística e cultural.

Nessa perspectiva, as variações a respeito do conceito de estilo, relacionadas à concepção de língua/linguagem, motivam enfrentamentos teóricos como o que se instaura entre os filólogos alemães, liderados por Karl Vossler (1872-1949) e os do Círculo bakhtiniano. Para os vosslerianos, o conceito de língua implica a concepção psicológica do sujeito autor e de sua subjetividade. Para Bakhtin e para os integrantes do Círculo, o estilo decorre das relações sociais mantidas entre o autor e o outro, presente na própria língua, e suas atitudes responsivas em relação ao contexto social. Como afirma Volóchinov (2019)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, introdução e notas Sheila Grillo e Ekaterina V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, p.59-108. [1926], o estilo é o homem e seu outro, contrapondo-se à concepção individualista e romântica de estilo. Portanto, o confronto entre essas duas vertentes teóricas torna-se evidente na forma como Spitzer e Bakhtin interpretam a obra de Rabelais1 1 A obra de François Rabelais (1494-1553) Gargântua e Pantagruel é constituída por cinco livros, publicados em série, cuja inspiração foi a publicação da obra Gargântua (um gigante de origem folclórica), de autor anônimo, reescrita e ampliada por ele. .

Para elucidar as relações que se estabelecem com a teoria que as constitui, discute-se a concepção estilística spitzeriana e, a seguir, a dialógica bakhtiniana. Para cumprir essa proposta, foram selecionados alguns ensaios de Spitzer, Lingüística e historia literaria (1968); “Art du langage et linguistique” e “Rabelais et les Rabelaisants”, da coletânea Étude de Style (1970 [1928]), traduzida por Éliane Kaufholz, Alain Coulon e Michel Foucault, prefaciada por Starobinski, e a investigação de Bakhtin sobre a obra de Rabelais, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. (1996 [1940]); “O cronotopo rabelaisiano” e “Os fundamentos folclóricos do cronotopo rabelaisiano” (2018 [1937-1939]).

1 A estilística de Spitzer

Os integrantes da Estilística Alemã, tomando como referência as obras literárias nas mais diversas línguas, objetivam identificar as transformações linguísticas sofridas ao longo do tempo e as alterações de sentido que vão incorporando em função dos costumes e da cultura. É nesse grupo investigativo, liderado por Karl Vossler2 2 Cf. PUZZO, M. Dialogismo bakhtiniano e a estilística vossleriana. Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, v. 12, n. 1, p.131-149, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bak/a/NFBqDNy7xmhwVKcTtqhgfRd/?lang=pt , que Spitzer se destaca como filólogo e intérprete do estilo individual dos autores, estabelecendo relações comparativas a respeito da linguagem literária. Por meio desse método, Spitzer observa especialmente as variações linguísticas, as diferentes imagens metafóricas e os diversos significados que assumem em cada contexto. Para desenvolver sua proposta investigativa, o filólogo conta com sua formação de base, como afirma no ensaio “Art du langage et stilistique”3 3 Este ensaio foi publicado na coletânea Linguística e história literária, com o mesmo título da obra, correspondente à comunicação proferida na Universidade de Princeton, à qual Spitzer acrescentou algumas notas e um epílogo, como o autor explicita em nota. (SPITZER, 1970, p.46SPITZER, L. Art du langage et linguistique. In: SPITZER, L. Études de style. Précédé de Leo Spitzer et la lecture stylistique de Jean Starobinski. Tradução do inglês e do alemão por Élaine Kaufholz, Alain Coulon, Michel Foucault. Paris: Édition Gallimard, 1970 p.45-78. [1960])4 4 São de responsabilidade da autora todas as traduções para língua portuguesa de citações cujo original é apresentado em nota de rodapé. :

Eu recebi no colégio as bases de uma sólida formação em línguas antigas; tinha então decidido estudar as línguas românicas e especificamente a filologia francesa: em Viena, onde nasci, nessa vila que era então de alegria e ordem, de ceticismo e de sentimentalidade, de catolicismo e de paganismo, nós adorávamos o estilo francês de existência5 5 Na tradução consultada: “J’avait reçu au collège les bases d’une solide formation en langues anciennes; j’avait donc décidé d’étudier les langues romanes et singulièrement la philologie française: à Vienne, en effet où je né, dans cette ville alors de gaieté et d’ordre, de scepticisme et de sentimentalité, de catholicisme et de paganisme, on adorait le style français d’existence”. .

Com essa formação consistente e com o trabalho de pesquisador linguístico, Spitzer demonstra um vasto conhecimento, abrangendo a literatura e a cultura em geral. Ao se debruçar sobre os recursos expressivos de uma obra, Spitzer destaca variações graduais psicologicamente condicionadas, quase imperceptíveis, até a criação de palavras novas, como os neologismos. Em sua concepção, o estilo origina-se na psique do autor como elemento desencadeador de sua expressividade subjetiva. Acompanhando essa lógica, em seu percurso investigativo explora os textos bíblicos, nas diversas versões, e os literários, como referência e comprovação dos novos sentidos incorporados pelos vocábulos, como evidencia em seu artigo de 1928, “Soy quien soy”. Nesse artigo, analisa essa expressão nas diversas versões da Bíblia, cuja referência é a divindade, concebida em função da cultura de cada época, assim como seu deslocamento dos textos sagrados aos textos literários. No Século de Ouro espanhol, tal expressão aparece como autorreferenciação, exaltando o caráter das personagens da nobreza, que se equiparam, sob esse aspecto, ao ser divino identificado na Bíblia por essa expressão.

Em sua obra Lingüística e historia literaria (1968), o autor, com seu método de investigação linguístico-filológico, seleciona os textos de autores de diferentes épocas para examinar os termos desviantes ou incomuns empregados em suas obras. A questão a que se propõe é se não haveria, na origem espiritual desses desvios, a fonte psicológica das respectivas peculiaridades estilísticas dos escritores.

Seguindo esse propósito, Spitzer acompanha o estilo de cada um deles ao longo do tempo para comprovar essa relação. Ao selecionar as expressões peculiares e as imagens metafóricas referentes ao estilo de cada autor, relaciona-as ao contexto cultural de que participam. Assim, o filólogo identifica, nas raízes etimológicas desses termos, as inovações de sentido que expressam por meio da criatividade estilística. Desse modo, conclui que tais autores se tornam responsáveis pela renovação do léxico e da semântica das línguas em que se expressam.

Segundo Spitzer, essa atualização vocabular literária é responsável pelas inovações no uso da língua. Portanto, é um trabalho filológico de natureza estilística, evidenciando as novas acepções que essas palavras ganham em função do momento e do contexto cultural de cada autor. Ao selecionar autores inovadores entre os séculos XVI e XX, Spitzer procura demonstrar como se tornam representantes especiais num contexto cultural específico, como se constituíssem o centro de um “sistema solar”. Entre os autores, dentre os mais antigos, destaca Dante, Quevedo e Rabelais, considerados renovadores do idioma pela inovação no vocabulário, evidenciando a transformação do ambiente histórico que representam. Como explicita em sua proposta:

A partir de uma série histórica, a etimologia de uma família de palavras, nós encontramos as provas de uma mudança do ambiente histórico. Em seguida, consideramos a mudança global do ambiente histórico pela forma como ele se manifesta nas criações linguísticas e literárias de escritores de duas épocas diferentes (o século XVI e o século XX) (SPITZER, 1970, p.64SPITZER, L. Art du langage et linguistique. In: SPITZER, L. Études de style. Précédé de Leo Spitzer et la lecture stylistique de Jean Starobinski. Tradução do inglês e do alemão por Élaine Kaufholz, Alain Coulon, Michel Foucault. Paris: Édition Gallimard, 1970 p.45-78. [1960])6 6 Na tradução consultada: “A partir d’une série historique, l’etymologie d’une famille de mots, nous avons trouvé les preuves d’un changement de climat historique. Puis nous avons considéré le changement global d’un climat historique tel qu’íl s’exprime dans les inventions, linguistiques et littéraires, d’écrivains de deux époques différents (le XVIe. et le XXe. siécle)”. .

Ao tratar de Rabelais, Spitzer coloca-o numa condição excepcional em seu contexto cultural. Pela sua avaliação, Rabelais constrói um mundo imaginário distante da realidade comum da população. Nesse universo ficcional criado pelo autor, as personagens representam seres estranhos, cujos nomes e atitudes são inusitados. Assim, nesse ambiente fantástico, habitado por seres excepcionais e comportamentos esdrúxulos, a linguagem é o elemento expressivo responsável pelo grotesco e pela poesia presente no ritmo e nas imagens com que os fatos são apresentados.

Desse modo, em consonância com esse universo imaginário, as personagens com nomes incomuns, como Pantagruel e Gargântua, também atuam de modo excepcional. Pantagruel, por exemplo, representa uma personagem imaginária cujo comportamento extrapola a natureza humana comum, revelando em sua forma existencial uma perspectiva comportamental filosófica. De forma semelhante, a criação de termos grotescos decorre de um processo peculiar em consonância com os nomes das personagens, criando um efeito de terror: do contexto bem conhecido e familiar ao leitor, ao universo ficcional desconhecido (SPITZER, 1970, p.59SPITZER, L. Art du langage et linguistique. In: SPITZER, L. Études de style. Précédé de Leo Spitzer et la lecture stylistique de Jean Starobinski. Tradução do inglês e do alemão por Élaine Kaufholz, Alain Coulon, Michel Foucault. Paris: Édition Gallimard, 1970 p.45-78. [1960]). Como afirma em “Lingüística e historia literária” (SPITZER, 1968, p.28SPITZER, L. Lingüística e historia literaria. 2. ed. Biblioteca Románica Hispánica. Madrid: Editorial Gredos, 1968.)7 7 Anteriormente, Linguística e história literária estava apenas marcada por itálico se tratar do título da obra. Aqui, entre aspas, se trata do título do primeiro ensaio da obra, que também é reproduzido na obra em francês organizada por Starobinski. :

[Rabelais] Forja famílias de palavras indicadoras de seres fantásticos, hipnotizantes que se acasalam e procriam diante de nossos olhos, que só no mundo das palavras são reais e que vivem relegados em um mundo intermediário entre a realidade e a irrealidade, entre o “lugar nenhum” que nos apavora” e o “aqui” que nos tranquiliza8 8 Na tradução consultada: “Forja familias de palabras indicadoras de despeluznantes seres fantásticos, que se aparean y engendran ante nuestros ojos, que sólo en el mundo de la palabra tienen realidad y que viven relegados en un mundo intermedio entre la realidad y la irrealidad, entre el ‘en ninguna parte’ que nos aterra y el ‘aquí’ que nos tranquiliza”. .

Partindo dessa premissa, Spitzer contrapõe-se à concepção de Lanson (1857-1934), historiador e crítico literário, que considera a obra de Rabelais extremamente realista. Seu argumento é de que essa concepção não condiz com o universo da obra, pois todas as cenas descritas, assim como as personagens representadas e os termos empregados, criam um mundo fantástico. Segundo ele, “a epopeia rabelaisiana, esta viagem fantástica de personagens fantásticos, tudo isso tende a constituir um mundo da irrealidade” (SPITZER, 1970, p.60SPITZER, L. Art du langage et linguistique. In: SPITZER, L. Études de style. Précédé de Leo Spitzer et la lecture stylistique de Jean Starobinski. Tradução do inglês e do alemão por Élaine Kaufholz, Alain Coulon, Michel Foucault. Paris: Édition Gallimard, 1970 p.45-78. [1960])9 9 Na tradução consultada: “l’épopée rabelaisianne, ce voyage fantastique de personnages fantastiques..., tout cela tend à constituer un monde de l’irréalité”. . Contudo, em sua concepção, essa peculiaridade ainda não é suficiente para entender e interpretar a totalidade desse processo na obra. Por isso, propõe-se a analisar a composição dos livros de Rabelais e, só depois, enfrentar suas ideias, suas narrativas e sua linguagem. Assim, mobiliza seu processo investigativo do “círculo filológico”, partindo dos elementos periféricos que constituem a obra para, depois, recompor a sua unidade. Desse modo, seu método de análise vai da superfície em direção ao centro vital da obra. A princípio, destaca os detalhes mais explícitos e visíveis e, somente a partir desses dados, o pesquisador passa a agrupá-los e integrá-los ao espírito criador, apreendendo sua totalidade.

Por meio dessa análise etimológica, do particular linguístico ao geral da obra em relação à história das ideias, Spitzer traça uma linha evolutiva a respeito da linguagem, observando que Rabelais cria “famílias de palavras” ou “monstros de palavras” (1968, p.28) que, além de serem criadas pela imaginação do autor, também são concebidas pelo processo de justaposição na recriação de termos novos. Por meio desse processo, o autor cria uma sequência de epítetos que se sobrepõem uns aos outros em grau hiperbólico, para provocar efeitos de terror, de tal modo que, a partir do conhecido, surge um mundo estranho pelo distanciamento da norma da língua francesa, reconhecida pela linguagem disciplinada e clara. Esse processo provoca o estranhamento do leitor afeito a um idioma escorreito e regrado que, segundo ele, vai se tornando independente por etapas e ao longo do tempo, da antiguidade à modernidade. Para sua comprovação, seleciona os autores na sequência em que a demonstram: Pulci, Rabelais, Vítor Hugo, Celine. Conforme explicita seu processo investigativo, justifica-o como uma escolha específica de sua proposta, que não é exclusiva, pois, segundo ele, outras linhas evolutivas poderiam ser cruzadas entre os diversos autores, visando outros aspectos a serem investigados. Nesse percurso, Spitzer destaca as peculiaridades linguísticas, reveladoras do estilo autoral, que convergem para o centro criador, para o seu psíquico, como um meio de conceber sua espiritualidade. Para ele,

apesar da distinção metodológica que acaba de ser feita, o pensamento humanista não é tão separado como se crê do pensamento teológico; não é por acaso se o “círculo filológico” foi descoberto por um teólogo, cuja tarefa era restaurar a harmonia no lugar da discórdia, e restituir a este mundo a beleza de Deus (SPITZER, 1970, p.65SPITZER, L. Art du langage et linguistique. In: SPITZER, L. Études de style. Précédé de Leo Spitzer et la lecture stylistique de Jean Starobinski. Tradução do inglês e do alemão por Élaine Kaufholz, Alain Coulon, Michel Foucault. Paris: Édition Gallimard, 1970 p.45-78. [1960])10 10 Na tradução consultada: “Malgré la distinction méthodologique qui vien d’être faite, la pensée humaniste n’est pas aussi séparée qu’on le croit de la pensée théologique; c’est ne pas un hasard si le ‘cercle philologique’ a été découvert par un théologicien, qui avait pour tâche de rendre son harmonie à la discorde, et restituer à ce monde la béauté de Dieu”. .

Pelo recorte acima, observa-se a afinidade de Spitzer com a espiritualidade e com o dom divino da criação, que se manifesta no psíquico do ser humano como uma atividade criadora do espírito. De acordo com seus princípios, “as humanidades não serão restauradas a menos que os humanistas abandonem sua atitude agnóstica, se tornem novamente humanos e partilhem a crença humanista da personagem de Rabelais” (SPITZER, 1970, p.65SPITZER, L. Art du langage et linguistique. In: SPITZER, L. Études de style. Précédé de Leo Spitzer et la lecture stylistique de Jean Starobinski. Tradução do inglês e do alemão por Élaine Kaufholz, Alain Coulon, Michel Foucault. Paris: Édition Gallimard, 1970 p.45-78. [1960])11 11 Na tradução consultada: “Les humanités ne seront pas restaurées que si les humanistes abandonnent leur attitude agnostique, s’ils redeviennent humains, et s’ils partagent la croyance humaniste et religieuse du personnage de Rabelais”. . Por essas palavras, Spitzer demonstra sua sintonia com a crença humanista e religiosa de Pantagruel, destacando a observação dessa personagem de que “sabedoria não entra na alma maliciosa; e Ciência sem consciência não é senão ruína da alma” (SPITZER, 1970, p.65SPITZER, L. Art du langage et linguistique. In: SPITZER, L. Études de style. Précédé de Leo Spitzer et la lecture stylistique de Jean Starobinski. Tradução do inglês e do alemão por Élaine Kaufholz, Alain Coulon, Michel Foucault. Paris: Édition Gallimard, 1970 p.45-78. [1960])12 12 Na tradução consultada: “sapience n’entre pas en âme malivole; et Science sans conscience n’est pas que ruine de l’âme”. . Com esse enfoque, Spitzer sinaliza sua concepção idealista associada à sua concepção de estilo.

Nessa coletânea, pode-se observar seu método filológico/comparativo ao selecionar obras literárias de autores consagrados num processo evolutivo, partindo de obras antigas de La Fontaine, Rabelais, Voltaire até as mais recentes como a de Michel Butor, cujo ensaio foi redigido antes de sua morte e publicado por George Poulet no Archivum linguistique (1960-1961). De acordo com Starobinski, seu apego ao psiquismo do autor como originalidade transformadora da língua acentua a perspectiva da estética crociana, segundo a qual a liberdade individual de expressão permite exteriorizar a vivência interior e a natureza humana do autor.

Desse modo, o método desenvolvido por Spitzer, ao analisar as partes para compreender o todo da obra, desenvolve-se num movimento oscilatório entre as partes de modo circular: “Nosso ir-e-vir de certos detalhes exteriores em direção ao centro, e daí a um novo conjunto de detalhes é apenas uma maneira de aplicar o princípio do ‘círculo filológico’” (SPITZER, 1970, p.61SPITZER, L. Art du langage et linguistique. In: SPITZER, L. Études de style. Précédé de Leo Spitzer et la lecture stylistique de Jean Starobinski. Tradução do inglês e do alemão por Élaine Kaufholz, Alain Coulon, Michel Foucault. Paris: Édition Gallimard, 1970 p.45-78. [1960])13 13 Na tradução consultada: “Notre va-et-vient de certains détails extérieurs vers le centre, puis que de là à un nouvel ensemble de détails n’est qu’une manière d’appliquer le principe du ‘cercle philologique’”. . Segundo ele, esse círculo não é vicioso, mas representa a base das operações fundamentais das disciplinas humanas – que é o mesmo processo seguido pelos estudiosos românicos e teólogos. Explicita, portanto, seu interesse em investigar as mudanças linguísticas sem perder de vista as peculiaridades dos autores das obras analisadas. De acordo com Starobinski (1970, p.29)STAROBINSKI, Leo Spitzer et la lecture stylistique. In: SPITZER, L. Études de style. Organização de Jean Starobinski. Tradução do inglês e do alemão por Élaine Kaufholz, Alain Coulon, Michel Foucault. Paris: Édition Gallimard, 1970. p.7-39.14 14 Jean Starobinski nasceu em Genebra, na Suíça. Doutorou-se em medicina (psiquiatria) e letras. Atuou como professor na Universidade John Hopkins e na Universidade de Genebra, lecionando literatura francesa e história da medicina, onde se aposentou em 1985. Disponível em: https://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=00484 Acesso em 22 de fev. 2019. , no prefácio ao livro Études de style,

Sua metodologia é a descrição de uma progressão da mente: não é uma receita, um modo de emprego, um procedimento, mas uma reflexão apoiada sobre as etapas progressivas onde se modifica, pouco a pouco, a relação do leitor com o texto, à medida que ele compreende melhor o sentido global15 15 Na tradução consultada: “Sa méthodologie est la description d’un cheminement de l’esprit: elle n’est pas une recette, un mode d’employ, un procédé, mais une réflexion portant sur les étapes progressives où se modifie, de proche en proche, la relation du lecteur au texte, à mesure qu’il en saisit mieux le sens global”. .

Desse modo, ao destacar as peculiaridades da língua em uma obra literária, o filólogo procura estabelecer relações comparativas dessas peculiaridades, enfatizando, no estilo individual, a originalidade de cada autor. É um método que parte do estudo linguístico para encontrar a subjetividade, sua essência espiritual, fugindo, segundo ele, das fórmulas aplicadas mecanicamente16 16 Sobre essa questão, Spitzer, assim como Vossler, renega a interpretação mecânica da língua, aproximando-se da posição discursiva de Bakhtin e do Círculo. para analisar os textos. Como ele enfatiza, “Cada poema demanda do crítico uma inspiração particular, uma iluminação singular (essa necessidade constante impõe a humildade, mas todas as iluminações passadas encorajam uma espécie de confiança piedosa)” (SPITZER, 1970, p.68SPITZER, L. Art du langage et linguistique. In: SPITZER, L. Études de style. Précédé de Leo Spitzer et la lecture stylistique de Jean Starobinski. Tradução do inglês e do alemão por Élaine Kaufholz, Alain Coulon, Michel Foucault. Paris: Édition Gallimard, 1970 p.45-78. [1960])17 17 Na tradução consultada: “Chaque poème demande du critique une inspiration particulière, une illumination singulière (ce besoin constant impose l’humilité, mais toutes les illuminations passés encouragent une sorte de pieuse confiance)”. . Em sua concepção, a criação resulta de um momento revelador, subjetivo.

Como comenta Starobinski e confirma-se nas próprias palavras do autor referidas anteriormente, Spitzer afasta-se do método exclusivamente filológico e aproxima-se da hermenêutica de Heidegger. Nessa linha de interpretação, Spitzer procura extrair do método interpretativo da hermenêutica inspiração para sua crítica, demonstrando que a saída do círculo para a interpretação não é gratuita nem superficial, ela parte de uma compreensão do conjunto, antecipando o processo de análise das partes como forma de comprovar o sentido inicial.

É esse o método adotado para interpretar a obra de Rabelais. Segundo o autor, ao criar uma obra fantasiosa, habitada por seres fantásticos como gigantes, pessoas de comportamento exagerado que estão fora do contexto social da época, Rabelais atualiza o vocabulário por meio de neologismos, obtidos pela justaposição de termos, criando novas expressões para poder retratar a realidade imaginária desse mundo fantástico. Portanto, essa concepção de grotesco como uma expressão artística, cujas raízes se encontram na Idade Média, é utilizada por Spitzer como artifício estilístico de Rabelais. Segundo o filólogo (SPITZER, 1970, p.57SPITZER, L. Art du langage et linguistique. In: SPITZER, L. Études de style. Précédé de Leo Spitzer et la lecture stylistique de Jean Starobinski. Tradução do inglês e do alemão por Élaine Kaufholz, Alain Coulon, Michel Foucault. Paris: Édition Gallimard, 1970 p.45-78. [1960]),

O vigor no pensamento e na sensibilidade sempre se acompanham pela inovação na linguagem; a criatividade mental se inscreve imediatamente na linguagem, na qual ela se transforma em criatividade linguística; a banalidade e a rigidez na linguagem não bastam para a expressão de uma personalidade forte18 18 Na tradução consultada: “La vigueur dans la pensée ou la sensibilité s’accompagne toujours d’innovations dans le langage; la créativité mentale s’inscrit aussitôt dans le langage, où elle devient créativité linguistic; la banalité et la rigidité dans le langage ne suffisent pas aux besoins d’expression d’une fort personnalité”. .

O interesse de Spitzer em sua investigação sobre a obra de Rabelais data de 1910, quando, em sua tese, discute as expressões verbais cômicas, comparando-as com as de autores vienenses como Nestroy19 19 Nascido em Viena em 1801, foi escritor, dramaturgo, poeta jurista, ator de teatro, cantor de ópera, satírico e poeta. , relacionando, nesse processo, linguística e história. Nessa pesquisa, demonstra que o termo pantagruelismo, com o qual Rabelais caracterizava a peculiaridade filosófica de sua personagem estoico-epicuriana, não é apenas um jogo de palavras, mas propicia a composição ficcional de um mundo irreal e desconhecido. Segundo ele, o sufixo –ismo lembra uma escola de filosofia tradicional como a de Aristóteles, enquanto a raiz Pantagruel se refere ao nome da personagem criada por ele: um gigante e rei que mistura fantasia e filosofia, realidade e ficção.

De acordo com o crítico, por meio desse processo Rabelais não fabrica esses neologismos gratuitamente, eles caracterizam o cômico-grotesco e se concretizam pelo processo de justaposição pelo qual, sem alterar as formas originais dos termos, se sobrepõem bruscamente epíteto sobre epíteto para obter o efeito de impacto, de surpresa.

Dessa forma, a linguística histórica e a perspectiva semântica entram em relação com a cultura. Sob esse ponto de vista, Starobinski (1970)STAROBINSKI, Leo Spitzer et la lecture stylistique. In: SPITZER, L. Études de style. Organização de Jean Starobinski. Tradução do inglês e do alemão por Élaine Kaufholz, Alain Coulon, Michel Foucault. Paris: Édition Gallimard, 1970. p.7-39. observa que Spitzer não se limita à aplicação de um único método ou uma única perspectiva teórica, rompendo barreiras limítrofes entre as diversas teorias, entre elas a filologia, a linguística, a história e a crítica literária. Nesse processo, evidencia seu conhecimento enciclopédico tanto das diferentes línguas que domina como filólogo: latim, grego, alemão, francês, inglês; quanto das obras que sedimentam a cultura ocidental: desde os textos sagrados, como as diversas versões da Bíblia, às grandes obras literárias.

No que concerne à concepção spitzeriana da obra de Rabelais, é preciso observar sua leitura a respeito da crítica dos intelectuais franceses que, na época do 4º centenário de Rabelais, se debruçaram sobre sua obra. No ensaio “Rabelais et les rabelaisants”, que faz parte dessa coletânea, Spitzer discute as diversas interpretações, considerando-as insuficientes pela perspectiva mais formalista ou superficial, de modo a restringir o aspecto lírico-literário com que Rabelais compõe Pantagruel e Gargântua.

Um dos aspectos destacados em seus comentários é a tendência dos críticos franceses em aplicar conhecimentos históricos exteriores para analisar a obra rabelaisiana. Em sua maioria, tais críticos relacionam dados históricos aos fatos narrados, sem considerar a obra artística do autor e seu valor estético, adotando a perspectiva do positivismo histórico de Abel Lefranc. Dessa constatação, Spitzer observa que, em sua maioria, falta aprofundamento interpretativo a esses críticos, pois ignoram o processo criativo da linguagem em Rabelais, com ênfase em imagens, recursos fonéticos e expressivos.

Em um de seus comentários, em que discute problemas atribuídos à leitura superficial dos romances, Spitzer observa a tendência crítica de M. Marichal ao procurar identificar, em Pantagruel, o autor empírico. Segundo ele, Marichal se equivoca na confusão que estabelece entre o criador e a personagem de ficção. Portanto, em seu ponto de vista, essa tendência conduz a interpretações equivocadas da obra literária.

Também condena a limitação da crítica em se ater apenas a um fragmento da obra de Rabelais, como a efetuada por Fernand Desonay, destacando o aspecto filosófico do episódio “A Abadia de Teleme” (L’Abbaye de Thélème). Comentário que, segundo ele, não acrescenta nada ao valor artístico da criação rabelaisiana.

Em outro comentário, usando de seu conhecimento filológico, Spitzer contesta a análise elaborada por M. Grève sobre a expressão “sustantificque mouelle” (“núcleo substancioso”), da qual extrai conclusões apressadas sem uma verificação mais atenta às observações que Rabelais faz no prólogo de Gargântua. Spitzer demonstra, pelo método comparativo, como essa expressão vai assumindo significados diferentes em função do momento histórico, desde os textos bíblicos aos textos medievais e modernos. Em suas palavras (SPITZER, 1970, p.142-143SPITZER, L. Art du langage et linguistique. In: SPITZER, L. Études de style. Précédé de Leo Spitzer et la lecture stylistique de Jean Starobinski. Tradução do inglês e do alemão por Élaine Kaufholz, Alain Coulon, Michel Foucault. Paris: Édition Gallimard, 1970 p.45-78. [1960]),

Ao inventar uma pseudo história, nosso comentador esquece a verdadeira história da expressão “sustantificque mouelle” (de cuja edição Lefranc não diz nada além); história esta que tem importância para situar nosso episódio num clima espiritual particular.20 20 Na tradução consultada: “En inventant une pseudo-histoire, notre commentateur oublie la véritable histoire de l’expression ‘sustantificque mouelle’ (dont l’édition Lefranc ne dit rien non plus); histoire, celle-ci, qui a del’importance pour situer notre épisode dans un climat spirituel particulier”.

Seguindo nessa linha, Spitzer continua contestando a forma superficial dos comentários dos críticos da Sorbonne que, detendo-se em aspectos históricos ou pouco significativos nos planos ficcional e estilístico, esquecem o valor literário do romance. Em contraposição a essa crítica mais formal, Spitzer mobiliza em suas análises interpretativas seu conhecimento enciclopédico, histórico-filológico, demonstrando as peculiaridades dos autores do ponto de vista estético e de sua subjetividade criativa.

Na contramão dessa perspectiva estética predominante, a visão dialógico-discursiva de Bakhtin demonstra um deslocamento de perspectiva analítica e abandona a visão do autor como fonte original para observar a sua relação com a cultura, não apenas nas particularidades da língua no texto. Muda, portanto, de paradigma. Essa perspectiva parte da premissa de que a obra de Rabelais representa uma resposta ao contexto sócio-histórico da Idade Média, caracterizada pelo domínio da Nobreza e do Clero sobre o povo. Sob esse enfoque teórico/discursivo, é possível estabelecer relações de confronto entre essas duas perspectivas.

2 A obra de Rabelais na perspectiva de Bakhtin

O título do livro A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais já sinaliza um novo método de análise. Bakhtin enfatiza o contexto social do autor para explicitar o significado de uma obra considerada inferior pelos parâmetros estéticos da época clássica. Antes de enfrentar a obra em si, Bakhtin discute as diversas interpretações críticas sobre o autor, desde o desvio da perspectiva literária dominante na época até as interpretações mais recentes.

Portanto, o trabalho investigativo de Bakhtin é mais amplo que a simples análise da obra porque procura estabelecer relações entre o passado e o presente de modo a compreender o processo criativo mobilizado pelo autor. Os dois ensaios, “O cronotopo rabelaisiano” e “Os fundamentos folclóricos do cronotopo rabelaisiano”, de 1937-1939, publicados na coletânea Questões de literatura e de estética: a teoria do romance em 1975 e traduzidos diretamente do russo por Paulo Bezerra em Teoria do romance II: as formas do tempo e do cronotopo (2018), são exemplares desse processo analítico de Bakhtin. Sua teoria abrange um universo cultural mais amplo que as simples transformações linguísticas.

Para entender a obra de Rabelais, o autor vai procurar na cultura popular elementos que estão presentes no processo de composição do romance. A partir desse princípio, Bakhtin identifica sete séries que constituem o método artístico de Rabelais: as do corpo humano; as do vestuário; as da comida; as da bebida e da embriaguez; as sexuais; as da morte; e as dos excrementos, que resumem o processo em torno do qual a obra é concebida. Segundo Bakhtin (2018)BAKHTIN, M. Teoria do romance II: as formas do tempo e do cronotopo. Tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra; Organização da edição russa Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2018., essas séries, que se desenvolvem e se cruzam entre si, permitem a Rabelais aproximar ou desunir tudo que lhe é necessário para a exploração temática do romance. Em suas palavras, “na solução da tarefa positiva, Rabelais se apoia no folclore e na antiguidade, onde a contiguidade dos objetos melhor correspondia a suas naturezas e já era estranha ao falso convencionalismo e à idealidade sobrenatural” (BAKHTIN, 2018, p.122BAKHTIN, M. Teoria do romance II: as formas do tempo e do cronotopo. Tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra; Organização da edição russa Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2018.).

Já o riso rabelaisiano, associado aos gêneros medievais da picaresca e da bufonaria, cuja origem se encontra na sociedade anterior à de classes, representa a solução negativa de sua proposta ficcional. Bakhtin analisa cada uma dessas séries na vida das personagens representativas dos cinco livros, para demonstrar como Rabelais se apropria da tradição folclórica em relação ao tempo e ao espaço, tradição que remonta à sociedade agrícola anterior à sociedade de classes. Em suas palavras,

Esse tempo é coletivo, é diferenciado e mediado apenas pelos acontecimentos da vida coletiva, e tudo o que existe nessa vida existe apenas para a coletividade. A série individual da vida ainda não se destaca (ainda não existe o tempo interior da vida individual, o indivíduo vive todo exteriorizado, no conjunto coletivo). Tanto o trabalho como o consumo são coletivos (BAKHTIN, 2018, p.169-170BAKHTIN, M. Teoria do romance II: as formas do tempo e do cronotopo. Tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra; Organização da edição russa Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2018.; grifos no original).

Essa percepção do ser humano integrado ao universo natural em uma mesma escala de valores demonstra a visão rabelaisiana da sociedade em oposição à estratificação social, à divisão de classes, submetendo o povo aos valores impostos pela nobreza e pelo clero.

No título da obra dedicada à análise do livro do autor, já se encontra a questão chave que orienta a teoria crítica bakhtiniana, “o contexto de François Rabelais”. Para Bakhtin e para o Círculo, o contexto exterior é um participante ativo na produção do enunciado. Portanto, ao privilegiar o contexto social como um integrante fundamental para a composição da obra, Bakhtin distancia-se tanto da crítica clássica, que considerava a obra de Rabelais menos significativa, quanto da crítica formal do século XIX, que procura ver a obra limitada a sua concretização material, ou, então, da estilística spitzeriana, que observa as características artísticas apenas como uma questão de originalidade e criatividade do autor.

A relevância do contexto social da Idade Média e do Renascimento destacada por Bakhtin permite uma compreensão mais clara das peculiaridades que parecem apenas uma criação fantasiosa, como entende Spitzer. A recuperação da tradição oral da Idade Média como recurso cômico/grotesco apresenta-se em resposta ao contexto social feudal, cujas instituições oprimiam o povo. Segundo Bakhtin, na cultura popular, predomina a vida em toda a sua dimensão terrena, mantendo uma alegria viva, cujo significado se encontra nela mesma, em sua concretude material. Assim, o princípio material e corporal é percebido como universal e popular, opondo-se a qualquer significado abstrato, cuja característica é o isolamento das necessidades corporais e materiais em benefício de uma realidade mais elevada. Para ele, o grotesco não é um valor negativo, pois assume um caráter “cósmico e universal” ao privilegiar a materialidade corporal e terrena, acompanhando o movimento vital da degradação/regeneração: nascimento, morte e renovação. Para Bakhtin, as personagens transfiguradas em seres grotescos comporiam um imaginário metafórico e hiperbólico próprio do folclore medieval, expondo as necessidades humanas potencializadas na criação do efeito do grotesco. Tal recurso representaria a força da cultura popular como uma transgressão ao sistema instituído pela nobreza. A essa tendência de exploração do corpo e da matéria por meio do exagero, Bakhtin denomina “realismo grotesco”, opondo-se à visão restrita à estética artística do grotesco. O sentimento predominante é o da alegria e o da descontração de expressão coletiva.

Assim, o folclore da Idade Média expressa essa relação do ser humano com sua realidade natural em sintonia com o sentimento coletivo. Não existe nesse período a preocupação com o indivíduo centralizado em seus interesses pessoais. O evento do Carnaval nessa época representa a expressão popular em um momento especial, uma reação irreverente ao sistema ao qual o povo se encontra submetido.

Dessa forma, na sua interpretação da obra de Rabelais, Bakhtin mobiliza sua concepção dialógica da linguagem, considerando que o contexto exterior participa internamente na materialização da obra. Ele entende que Rabelais, ao recriar o ambiente popular carnavalesco da Idade Média, expressa sua resposta a esse contexto por meio do riso, da irreverência, de um ambiente libertador em oposição ao sistema opressor da nobreza e da religião. Portanto, para Bakhtin, “A degradação cava o túmulo corporal para dar lugar a um novo nascimento. E por isso não representa somente um valor negativo pela destruição, pois a regeneração tem característica positiva” (BAKHTIN, 1996, p.19BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução Yara Frateschi Vieira. 3. ed. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1996. [1965]; grifo no original).

Bakhtin destaca assim a ambivalência desse processo vital, de negação e afirmação ao mesmo tempo. Portanto, as cenas e os eventos narrados do baixo corporal e dos excessos comportamentais das personagens, entre elas Gargântua e Pantagruel, são reveladores da condição humana mais primitiva.

Essa caracterização da vida representada no comportamento exagerado de suas personagens não significa a destruição absoluta, porque, de acordo com Bakhtin, o baixo produtivo concorre para a concepção e o renascimento. Assim, a destruição representa uma etapa necessária para a renovação, para a transformação produtiva responsável pelo ciclo vital (BAKHTIN, 1996, p.19BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução Yara Frateschi Vieira. 3. ed. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1996. [1965]).

Em sua investigação, Bakhtin parte de conceitos discutidos pelo Círculo, elaborados ao longo do tempo e que constituem a teoria dialógica para estabelecer categorias de análise.

Desde Problemas da poética de Dostoiévski (1963 [1929]), Bakhtin apresenta conceitos adequados à interpretação discursiva das obras, como as de Dostoiévski e de Rabelais, consideradas menos relevantes para a crítica. Além de recuperar o valor e o interesse das obras desses autores, Bakhtin extrai delas conceitos teóricos que as tornam significativas, tais como os de carnavalização, grotesco, paródia, estilização, entre outros. São conceitos preexistentes e que são reavaliados e reacentuados pela perspectiva dialógico-discursiva, considerando o posicionamento responsivo de seus autores e seu compromisso ético e estético em relação ao contexto social. Embora tais conceitos estejam centralizados na análise dessas obras ficcionais e singulares, podem ser compreendidos de modo mais amplo no campo da comunicação em geral. Tornam-se recursos expressivos agenciados pelos autores numa reação responsiva não só à ideologia dominante, como ocorre em Rabelais, mas a todo e qualquer contexto ao qual o sujeito responde. Portanto, nessa perspectiva, o estilo é concebido como resposta do autor ao contexto social e não apenas a um processo simplesmente subjetivo que evidenciasse a genialidade e a espiritualidade autoral, como entende Spitzer. Sob esse aspecto, destaca o posicionamento valorativo e axiológico do autor.

Bakhtin analisa a obra e as relações que o autor mantém com o público leitor como reação ao contexto sócio-histórico. Portanto, apesar de observar a materialidade linguística, ele não a entende como a expressão subjetiva de sua genialidade criativa, mas a relaciona a possíveis respostas do autor ao contexto imediato. Nessa perspectiva, ao discutir a obra de Rabelais, Bakhtin analisa as personagens e suas ações estranhas que compõem esse universo ficcional, como os gigantes, os anões, a mulher velha que gera um filho, as excrescências corporais e o ambiente social em que tais ações se desenrolam. Para Bakhtin, esse contexto espontâneo e alegre é próprio do ambiente carnavalesco da Idade Média, momento em que o povo gozava de toda liberdade para viver a vida em sua plenitude. O povo expressa, dessa forma, a confraternização universal na alegria da liberdade natural que se confronta com a realidade social opressora.

Assim, ao analisar a obra de Rabelais, Bakhtin interpreta-a como uma narrativa em que o autor/criador, ao reproduzir esse cenário carnavalesco, responde ao contexto social imediato, confrontando-o pelo riso e pela criação de um mundo “às avessas”. Evidencia, desse modo, seu posicionamento valorativo, diante desse contexto opressor, valorizando a vida natural em toda sua plenitude corporal demonstrada nos festejos carnavalescos.

Segundo Bakhtin (1996)BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução Yara Frateschi Vieira. 3. ed. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1996. [1965],

O porta-voz do princípio material e corporal não é aqui nem o ser biológico isolado nem o egoísta indivíduo burguês, mas o povo, um povo que na sua evolução cresce e se renova constantemente. Por isso o elemento corporal é tão magnífico, exagerado e infinito (p.17, grifo no original).

A força do livro de Rabelais, na perspectiva do filósofo, consiste na representação do imaginário popular como contraponto ao modelo instituído pela sociedade da época. Como consequência, Rabelais recupera na ficção um tempo “profundamente espacial e concreto”, que nas palavras do crítico,

(tempo) é totalmente uno. Essa unidade total se desvela no campo das percepções posteriores do tempo na literatura (e em geral na ideologia), quando o tempo dos acontecimentos pessoais, dos costumes, da família se individualizou e se separou do tempo da vida histórica coletiva do conjunto social, quando surgiram várias escalas para medir os acontecimentos da vida privada e os acontecimentos da história (eles apareceram em planos diferentes) (BAKHTIN, 2018, p.171BAKHTIN, M. Teoria do romance II: as formas do tempo e do cronotopo. Tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra; Organização da edição russa Serguei Botcharov e Vadim Kójinov. São Paulo: Editora 34, 2018.; grifo no original).

Sob esse aspecto, ao destacar o cenário escatológico e primitivo das pulsões vitais do ser humano, presente na cultura popular, Rabelais expõe uma virada ideológica no que tange à sociedade patriarcal da nobreza e do clero.

Aproveitando os elementos desse processo inovador de composição do romance, Bakhtin elabora conceitos fundamentais para a análise da linguagem ficcional. Apesar de tais conceitos (carnavalização, grotesco, estilização e paródia) terem sido elaborados a partir da análise dessas obras literárias, as reflexões posteriores sobre a linguagem e os gêneros discursivos (1954-1955) podem se estender a outras instâncias de textos comunicativos/criativos, nos mais variados gêneros.

Sendo assim, a distância mantida por Bakhtin em relação à Estilística praticada por Spitzer deve-se à concepção fundante de uma duplicidade constitutiva da linguagem em que o eu e o outro formam uma unidade intrínseca em sua complexidade individual e social ao mesmo tempo. Dessa forma, a obra do autor é compreendida como resposta valorativa do sujeito integrado ao seu ambiente social. Nessa perspectiva, o movimento exterior/interior; interior/exterior do autor é um dos elementos responsáveis pelo estilo, assim como sua relação com o público leitor e com sua atitude responsiva a esse contexto imediato, portanto distante de uma inspiração psíquica/transcendente/subjetiva. Não existe, na perspectiva bakhtiniana, separação entre história, linguagem e contexto social, pois essas relações convergem na produção enunciativa de modo intrínseco, e não mais como duas realidades paralelas. A concepção do sujeito em sua materialidade concreta opõe-se à dualidade corpo e espírito que constitui a concepção da Estilística idealista. A responsividade valorativa expõe a concepção de autor como um ser responsável e respondente ao contexto imediato. Sob esse aspecto, Bakhtin valoriza o romance de Rabelais como a expressão de seu posicionamento ético-estético diante da opressão vivenciada pela população, cuja cultura folclórica representava uma reação humorística ao cenário restritivo do cotidiano. Dessa forma, o horizonte do homem concentra-se em sua realidade física e em suas experiências concretas vivenciadas em seu cotidiano.

Conclusão

Encontramos, nessas duas perspectivas teóricas de tratamento do texto literário de Rabelais, duas propostas de interpretação: de um lado, a materialidade do texto literário; de outro, a materialidade do discurso.

Como Starobinski (1970)STAROBINSKI, Leo Spitzer et la lecture stylistique. In: SPITZER, L. Études de style. Organização de Jean Starobinski. Tradução do inglês e do alemão por Élaine Kaufholz, Alain Coulon, Michel Foucault. Paris: Édition Gallimard, 1970. p.7-39. observa, Spitzer desenvolve seu método ao longo do tempo, passando da análise filológica como peculiaridade linguística de um texto à concepção do estilo de um autor, de seu psiquismo como antecipação de um momento histórico. A língua, para Spitzer, evolui em função da idiossincrasia dos autores na literatura. Para ele, o psiquismo autoral e estilístico deveria ser ampliado em socioestilística. Essa peculiaridade de sua proposta torna suas observações mais próximas do Círculo, como pontua Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário, Sheila Grillo e Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.. Mas, segundo Starobinski (1970)STAROBINSKI, Leo Spitzer et la lecture stylistique. In: SPITZER, L. Études de style. Organização de Jean Starobinski. Tradução do inglês e do alemão por Élaine Kaufholz, Alain Coulon, Michel Foucault. Paris: Édition Gallimard, 1970. p.7-39., a mudança evidenciada por Spitzer não alterou os meios utilizados, ou seja, a análise textual para encontrar a expressividade do autor e de seu psiquismo.

Assim, a análise estilística de obras literárias de autores, entre eles Rabelais, Cervantes, Voltaire, considerados representantes sociais, poderia ser articulada ao momento histórico, conforme ele procura demonstrar em seu Études de Style, mas Spitzer não aprofunda as contradições internas do autor, a ambiguidade da linguagem, a ironia como um recurso expressivo de seu tom axiológico. Na perspectiva de Starobinski (1970)STAROBINSKI, Leo Spitzer et la lecture stylistique. In: SPITZER, L. Études de style. Organização de Jean Starobinski. Tradução do inglês e do alemão por Élaine Kaufholz, Alain Coulon, Michel Foucault. Paris: Édition Gallimard, 1970. p.7-39.,

é no próprio texto, a descoberto, que Spitzer entrevia as significações afetivas, as condutas e as paixões, e não em uma experiência [Erlebnis] anterior, onde poderiam estar atuando as motivações obscuras, mascaradas ou transformadas depois pela escritura (p.25).21 21 Na tradução consultada: “c’est dans le texte même, à découvert, que Spitzer discernait des significations affectives, des conduites et des passions, et non pas dans une Erlebnis antérieure, où eussent pu intervenir des motivations obscures, masqués ou transmuées ensuite par l’écriture”.

A expressividade da linguagem, priorizada pela estilística spitzeriana, presente na materialidade enunciativa, também é um fator decisivo para Bakhtin e Volóchinov nos gêneros menos formais, mas o conceito de estilo não se restringe a essa materialidade expressiva, pois resulta de uma perspectiva mais ampla. Em primeiro lugar, como expressão do sujeito/autor em relação ao leitor presumido e ao contexto social. Sob esse aspecto, a constituição da duplicidade da linguagem promove a relação entre o contexto imediato que atua sobre o enunciador, assim como este responde ao contexto, num movimento intrínseco entre o contexto social externo e a interioridade do indivíduo. Ao mesmo tempo, o sujeito/enunciador atua sobre o contexto externo, possibilitando transformações. Em segundo lugar, o conceito de estilo torna-se mais abrangente como elemento constitutivo dos gêneros discursivos, conforme pontua Bakhtin (2016)BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016. [1954-1955]. Portanto, o estilo não se reduz apenas à expressividade autoral, mas condiciona o enunciador às exigências dos gêneros discursivos. Dessa forma, o estilo passa a ser compreendido em sua complexidade relacional. A materialidade expressiva serve de base para a análise discursiva e, sob esse viés, o método estilístico da expressividade autoral é um aspecto que aproxima as duas teorias.

Entretanto, outras variáveis são consideradas a partir dessa materialidade com a qual o texto se constitui, o posicionamento valorativo do autor, sua relação responsiva em relação ao leitor presumido e ao contexto social. Em substituição ao psiquismo do sujeito/criador como fonte de sua inspiração, os intelectuais do Círculo relacionam essas peculiaridades estilísticas como resultado das suas relações com as condições sociais. Portanto, resulta de suas relações tensas com a sociedade e suas contradições às quais o autor, pelo seu tom e estilo, expressos na materialidade linguística, demonstra sua posição, sua visão de mundo, seus valores ideológicos. Comentando os limites da Estilística pela sua concepção psíquica do autor como um dos agentes do estilo literário, Volóchinov (2019)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, introdução e notas Sheila Grillo e Ekaterina V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, p.59-108. [1926] pontua:

qualquer ato de consciência mais ou menos preciso não ocorre sem o discurso interior, sem as palavras e sem a entonação (avaliações) e, consequentemente, já é um ato social, ou seja, um ato de comunicação. Mesmo a autoconsciência mais íntima já é uma tentativa de traduzir-se a si mesmo em uma língua comum, de considerar o ponto de vista do outro e, por conseguinte, ela inclui em si a orientação para um possível ouvinte (p.143).

Outra questão fundamental é a concepção do signo, que constitui a linguagem cujas relações não se limitam ao horizonte psíquico do sujeito, mas se constitui na relação com o contexto social imediato e possui várias possibilidades de materialização e compreensão. Como se expressa Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário, Sheila Grillo e Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.:

O que o idealismo e o psicologismo ignoram é que a própria compreensão pode ser realizada apenas em algum material sígnico (por exemplo, no discurso interior). Eles desconsideram que um signo se opõe a outro signo e que a própria consciência pode se realizar e se tornar um fato efetivo apenas encarnada em um material sígnico. Porque a compreensão de um signo ocorre na relação com outros signos já conhecidos (p.95; grifo no original).

Sob esse enfoque, o psiquismo só pode se constituir e se expressar por signos ideológicos, não existe um mundo interior exclusivamente psicológico, como uma realidade distinta, separada do contexto social. A consciência individual decorre desse processo interativo do sujeito com seu contexto, ao qual ele responde.

Apesar dessas diferenças, Bakhtin e Volóchinov reconhecem em Spitzer um ensaio aproximativo com relação à sociedade, principalmente nas obras em que trata da linguagem popular, como a Italienische Umgangssprache (A linguagem coloquial italiana), elaborada entre os anos de 1914 e 1920 (VOLÓCHINOV 2017 [1929]VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário, Sheila Grillo e Ekaterina V. Américo. Ensaio introdutório Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.; 2019 [1930]VOLÓCHINOV, V. N. (Círculo de Bakhtin). A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia. Organização, tradução, introdução e notas Sheila Grillo e Ekaterina V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2019, p.59-108. [1926]).

Spitzer representa, portanto, um filólogo e crítico literário de bastante representatividade nos moldes da análise de texto de linha francesa dos anos 1960 e da crítica hermenêutica, na perspectiva de Starobinski. Torna-se um seguidor de Vossler, mas enfatizando sua individualidade crítica em direção à sociolinguística. Tanto Vossler quanto Spitzer compreendem a língua em sua realidade viva, distante, portanto, da aplicação mecanicista de análise ou de ensino da língua. Sob esse aspecto, existe um ponto de convergência entre esses autores e o Círculo. Segundo Sheila Grillo, no “Ensaio introdutório” à tradução de Marxismo e filosofia da linguagem (2017),

o pensamento de Vossler constrói-se no tensionamento entre os polos da estabilidade das formas linguísticas e a atividade constante dos sujeitos falantes e, nesse sentido, as leituras russas desse autor, aí incluído a presente em MFL, são um tanto parciais, pois acentuam apenas o polo da criatividade artística e individual (p.40).

Como integrante da Estilística de Vossler, esse comentário pode se estender também a Spitzer, considerado por Starobinski um crítico literário com ênfase na interpretação estilística centrada no texto muito próximo da interpretação de texto de linha francesa.

O ponto crucial que distancia as duas perspectivas é o conceito de contexto social intrínseco no processo enunciativo em que as tensões e os conflitos se apresentam na própria linguagem autoral. Desse modo, na análise da obra de Rabelais, o aspecto divergente entre eles é justamente a incorporação do contexto social integrado ao contexto romanesco, como pontua Bakhtin. A materialidade linguística representa a resposta do autor a esse contexto de alegre liberdade, relacionando a obra do autor ao seu contexto temporal e espacial, procurando entendê-la como uma reatualização desse passado no tempo presente em projeção para o futuro. Enquanto Spitzer considera o romance de Rabelais como mundo irreal, imaginário e poético, fruto da capacidade criativa do autor, de sua individualidade expressiva, numa perspectiva estética; Bakhtin o interpreta num movimento cronotópico responsivo. Sob esse aspecto, considera as relações de sentido como atitudes responsivas ético-estéticas do autor, introduzindo a cultura popular no âmbito literário num momento em que ainda predominava a cultura clássica.

  • 1
    A obra de François Rabelais (1494-1553) Gargântua e Pantagruel é constituída por cinco livros, publicados em série, cuja inspiração foi a publicação da obra Gargântua (um gigante de origem folclórica), de autor anônimo, reescrita e ampliada por ele.
  • 2
    Cf. PUZZO, M. Dialogismo bakhtiniano e a estilística vossleriana. Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, v. 12, n. 1, p.131-149, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bak/a/NFBqDNy7xmhwVKcTtqhgfRd/?lang=pt
  • 3
    Este ensaio foi publicado na coletânea Linguística e história literária, com o mesmo título da obra, correspondente à comunicação proferida na Universidade de Princeton, à qual Spitzer acrescentou algumas notas e um epílogo, como o autor explicita em nota.
  • 4
    São de responsabilidade da autora todas as traduções para língua portuguesa de citações cujo original é apresentado em nota de rodapé.
  • 5
    Na tradução consultada: “J’avait reçu au collège les bases d’une solide formation en langues anciennes; j’avait donc décidé d’étudier les langues romanes et singulièrement la philologie française: à Vienne, en effet où je né, dans cette ville alors de gaieté et d’ordre, de scepticisme et de sentimentalité, de catholicisme et de paganisme, on adorait le style français d’existence”.
  • 6
    Na tradução consultada: “A partir d’une série historique, l’etymologie d’une famille de mots, nous avons trouvé les preuves d’un changement de climat historique. Puis nous avons considéré le changement global d’un climat historique tel qu’íl s’exprime dans les inventions, linguistiques et littéraires, d’écrivains de deux époques différents (le XVIe. et le XXe. siécle)”.
  • 7
    Anteriormente, Linguística e história literária estava apenas marcada por itálico se tratar do título da obra. Aqui, entre aspas, se trata do título do primeiro ensaio da obra, que também é reproduzido na obra em francês organizada por Starobinski.
  • 8
    Na tradução consultada: “Forja familias de palabras indicadoras de despeluznantes seres fantásticos, que se aparean y engendran ante nuestros ojos, que sólo en el mundo de la palabra tienen realidad y que viven relegados en un mundo intermedio entre la realidad y la irrealidad, entre el ‘en ninguna parte’ que nos aterra y el ‘aquí’ que nos tranquiliza”.
  • 9
    Na tradução consultada: “l’épopée rabelaisianne, ce voyage fantastique de personnages fantastiques..., tout cela tend à constituer un monde de l’irréalité”.
  • 10
    Na tradução consultada: “Malgré la distinction méthodologique qui vien d’être faite, la pensée humaniste n’est pas aussi séparée qu’on le croit de la pensée théologique; c’est ne pas un hasard si le ‘cercle philologique’ a été découvert par un théologicien, qui avait pour tâche de rendre son harmonie à la discorde, et restituer à ce monde la béauté de Dieu”.
  • 11
    Na tradução consultada: “Les humanités ne seront pas restaurées que si les humanistes abandonnent leur attitude agnostique, s’ils redeviennent humains, et s’ils partagent la croyance humaniste et religieuse du personnage de Rabelais”.
  • 12
    Na tradução consultada: “sapience n’entre pas en âme malivole; et Science sans conscience n’est pas que ruine de l’âme”.
  • 13
    Na tradução consultada: “Notre va-et-vient de certains détails extérieurs vers le centre, puis que de là à un nouvel ensemble de détails n’est qu’une manière d’appliquer le principe du ‘cercle philologique’”.
  • 14
    Jean Starobinski nasceu em Genebra, na Suíça. Doutorou-se em medicina (psiquiatria) e letras. Atuou como professor na Universidade John Hopkins e na Universidade de Genebra, lecionando literatura francesa e história da medicina, onde se aposentou em 1985. Disponível em: https://www.companhiadasletras.com.br/autor.php?codigo=00484 Acesso em 22 de fev. 2019.
  • 15
    Na tradução consultada: “Sa méthodologie est la description d’un cheminement de l’esprit: elle n’est pas une recette, un mode d’employ, un procédé, mais une réflexion portant sur les étapes progressives où se modifie, de proche en proche, la relation du lecteur au texte, à mesure qu’il en saisit mieux le sens global”.
  • 16
    Sobre essa questão, Spitzer, assim como Vossler, renega a interpretação mecânica da língua, aproximando-se da posição discursiva de Bakhtin e do Círculo.
  • 17
    Na tradução consultada: “Chaque poème demande du critique une inspiration particulière, une illumination singulière (ce besoin constant impose l’humilité, mais toutes les illuminations passés encouragent une sorte de pieuse confiance)”.
  • 18
    Na tradução consultada: “La vigueur dans la pensée ou la sensibilité s’accompagne toujours d’innovations dans le langage; la créativité mentale s’inscrit aussitôt dans le langage, où elle devient créativité linguistic; la banalité et la rigidité dans le langage ne suffisent pas aux besoins d’expression d’une fort personnalité”.
  • 19
    Nascido em Viena em 1801, foi escritor, dramaturgo, poeta jurista, ator de teatro, cantor de ópera, satírico e poeta.
  • 20
    Na tradução consultada: “En inventant une pseudo-histoire, notre commentateur oublie la véritable histoire de l’expression ‘sustantificque mouelle’ (dont l’édition Lefranc ne dit rien non plus); histoire, celle-ci, qui a del’importance pour situer notre épisode dans un climat spirituel particulier”.
  • 21
    Na tradução consultada: “c’est dans le texte même, à découvert, que Spitzer discernait des significations affectives, des conduites et des passions, et non pas dans une Erlebnis antérieure, où eussent pu intervenir des motivations obscures, masqués ou transmuées ensuite par l’écriture”.

Parecer I

http://orcid.org/0000-0002-5584-9197 Vera Bastazin Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP São Paulo São Paulo Brasil vbastazin@uol.com.br Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, São Paulo, São Paulo, Brasil.

O texto é muito bem escrito - o que não significa que se deva abrir mão de uma revisão que faça pequenas correções como colocação pronominal, palavras digitadas duas vezes e pequenos outros ajustes de microestrutura. A proposta é original tanto pela escolha de contraponto entre as duas teorias selecionadas, quanto pelo corpus ficcional sobre o qual a análise se debruça para aplicar as teorias e apontar os diferentes resultados em função dos dois pressupostos trabalhados. O título e o texto trazem perfeita conexão e o trabalho responde muito bem pelas expectativas criadas. Os objetivos propostos são pertinentes e, com certeza, trarão contribuições importantes e esclarecedoras para os futuros leitores. Por fim, apontamos a atualidade e adequação da bibliografia que se apresenta muito bem focada para responder aos objetivos que norteiam o trabalho. APROVADO

Parecer II

http://orcid.org/0000-0002-9134-8998 Guaraciaba Micheletti Universidade Cruzeiro do Sul – UNICSUL São Paulo São Paulo Brasil guaraciaba.micheletti@cruzeirodosul.edu.br Universidade Cruzeiro do Sul – UNICSUL – São Paulo, São Paulo, Brasil.

O título é adequado. O objetivo está claro tanto no resumo como no corpo do artigo. O trabalho compara duas teorias quanto à análise da obra de Rabelais, apontando que uma se volta à materialidade do texto literário, nos moldes do “comentário de texto francês” e a outra se relaciona à materialidade do discurso. De certo modo, traz à baila uma certa contribuição de Spitzer, um tanto esquecida na atualidade, bem como destaca aspectos de uma abordagem de estilo mais atual, que tem como centro o discurso. Demonstra conhecimento dos estudos atuais sobre o tema. Quanto à organização, o texto é claro, objetivo. Sou favorável à publicação. APROVADO

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    02 Abr 2021
  • Aceito
    27 Jul 2021
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