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O prazer da palavra: o discurso literário e outros discursos

Mas a nós, que não somos nem cavaleiros da fé nem super-homens, só resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura.

Roland Barthes

O romance é uma diversidade social de linguagens organizadas artisticamente, às vezes de línguas e de vozes individuais.

Mikhail Bakhtin

“Como se arranjam língua e literatura nas estantes da vida?” Essa é a pergunta inicial da Apresentação do livro de Brait (2010, p.11)BRAIT, B. Literatura e outras linguagens. São Paulo: Contexto, 2010., Literatura e outras linguagens. E essa pergunta, com ligeira alteração, é bem pertinente neste belo número de Bakhtiniana (17.3): como se arranjam os estudos discursivos de literatura e de outras linguagens neste volume? Temos cinco artigos que tratam do discurso da arte - literatura, teatro e cinema, um artigo que aborda a esfera jornalística, e mais um, que como a resenha final, examina discursos digitais.

É sabido e amplamente difundido que as obras de Mikhail Bakhtin e o Círculo fornecem subsídios teóricos não apenas para o estudo da literatura, como se julgou inicialmente. Isso porque o lançamento de Problemas da poética de Dostoiévski, em 1981, no Brasil, apontava claramente, desde seu título, para a literatura. Um pouco anteriormente, porém, em 1979, já tivéramos o lançamento da primeira edição de Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem, ainda com a autoria atribuída a Bakhtin (Volóchinov). É certo que na obra lançada em 1981 sobressaía o estudo da obra de F. Dostoiévski, mas questões sobre o discurso, sobre a complementaridade entre os estudos discursivos e os da linguística – a metalinguística -, e sobre gêneros, por exemplo, estavam muito claramente ali colocadas e apelavam ao olhar dos estudiosos de língua/discurso. Por outro lado, na obra que chegou ao Brasil em 1979, o foco era a linguagem, mas todos os exemplos e a terceira parte inteirinha, dedicada ao discurso alheio e ao modo como se apresenta no enunciado (“aplicação do método sociológico aos problemas sintáticos”), era preenchida por trechos literários de diferentes autores das literaturas russa, francesa, alemã...

Constatamos, então, que língua em movimento, discurso e literatura caminham juntas na obra do Círculo, e é na teoria bakhtiniana do romance que podemos encontrar a chave dessa “parceria inquestionável”, sobretudo nos ensaios que se encontram na coletânea Questões de literatura e de estética (A teoria do romance)1 1 Quase todos os ensaios dessa coletânea contam com uma nova tradução, também diretamente do russo, realizada por Paulo Bezerra e publicada pela Editora 34. . Nesses textos, Bakhtin faz reflexões a respeito de como o autor do romance, em suas criações, se apropria da estratificação social e axiológica da língua; de como a prosa romanesca é criada a partir da variedade de discursos, de línguas existentes em cada língua, de vozes como postura axiológica, de estilos individuais e de gêneros. As diferentes vozes e posicionamentos na vida estão presentes, portanto, na arte literária.

É desse modo que língua e literatura constituem este número de Bakhtiniana: nossos autores mobilizaram fundamentos teóricos e metodológicos de diferentes fontes, no estudo não apenas de textos que apresentam o “máximo de sabor possível” (BARTHES, 2007, p.45BARTHES, R. Aula. Tradução e posfácio Leyla Perrone-Moisés [Aula inaugural da cadeira de Semiologia Literária do Colégio de France/Paris/França, pronunciada no dia 7 de janeiro de 1977]. São Paulo: Cultrix, 2007. p.16.), mas também daqueles que convocam nosso dever ético na compreensão da vida e da sociedade. Diríamos, porém, que, de uma forma ou de outra, nos estudos da linguagem todos nos debruçamos nos textos na busca do prazer (e do gozo), diria Barthes em Le plaisir du texte (1973), proporcionado pela palavra, que nos faz compreender o eu-para-mim, o outro-para-mim, o eu-para-o-outro (BAKHTIN, 2010, p.114BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. aos cuidados de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2010.); compreender o estético em sua ligação com a vida e a ciência, na unidade da cultura humana.

Disso decorre que haveria inúmeras formas de apresentarmos os artigos do número. Decidimos, no entanto, iniciar por dois em que as questões éticas – mais ou menos ligadas à estética – sobressaem. Assim, o primeiro texto deste número analisa um conto-crônica de Clarice Lispector - “Mineirinho”, produzido em 1962, a partir da morte de um conhecido criminoso. Dênia Moreira Andrade e Maria José Oliveira Araújo Guerra, ambas mestras pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas, em “A (trans)figuração do mundo pelo ato-palavra de/em ‘Mineirinho’” aproximam a perspectiva filosófica de Mikhail Bakhtin à literatura de Clarice, convidando-nos a pensar ativa e reponsavelmente sobre nosso ser-estar no mundo. Segundo as autoras:

Clarice olha para Mineirinho e oferece-lhe um lugar, sem exigir-lhe reciprocidade. Nós olhamos para o ato-palavra realizado na crônicaconto em um movimento de desorganização para tentar entender como a literatura, enquanto processo estético (ação humana), nos faz compreender a nós mesmos, o mundo contemporâneo, a palavra muda de Mineirinho e outros desconhecidos que, no silêncio, chegam até nós (p.30).

O artigo seguinte, “Direito contra direitos: uma polêmica do Largo de São Francisco na Folha de S. Paulo: reflexões crítico-discursivas”, redigido por Viviane de Melo Resende, da Universidade de Brasília – UnB, dialoga com o primeiro na preocupação com os excluídos/marginalizados, agora a população em situação de rua na cidade de São Paulo. Constituindo parte de um projeto maior de exame da representação de políticas públicas para essa população, o texto analisa um debate a esse respeito na esfera jornalística, pelas lentes teóricas dos estudos críticos do discurso e da análise interdiscursiva de políticas públicas. A análise de metáforas, de representações desumanizantes e “o foco no território quando se está diante do sofrimento, da negação, da rotineira violência e da violação de direitos” (p.54) levam-nos a refletir com mais profundidade (e compaixão) acerca desse profundo problema social.

De São Paulo partimos para o Amazonas e voltamos ao discurso literário com o estudo de duas crônicas de Milton Hatoum, por David Costa de Souza, Juciane dos Santos Cavalheiro e Márcio Leonel Farias Reis Páscoa, todos da Universidade do Estado do Amazonas - UEA, no artigo: “Crônicas de Milton Hatoum: dialogismo e emancipação na pós-modernidade”. É com base na perspectiva dialógica de Mikhail Bakhtin aliada à perspectiva epistemológica de Boaventura Santos acerca do desperdício da experiência social na modernidade/pós-modernidade, que os autores aproximam os textos de Hatoum de uma perspectiva contra-hegemônica e responsiva de representação literária, evidenciando possíveis relações entre o discurso sócio-histórico-econômico produzido pela crítica à modernidade/pós-modernidade e sua produção literária.

No artigo seguinte, iluminando o discurso da sétima arte, Silma Ramos Coimbra Mendes e Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva, ambas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, assinam “Cenografia, agenciamento e mundo ético na entrevista em Jogo de cena: uma abordagem discursiva”. O artigo analisa o documentário de 2007 de Eduardo Coutinho, Jogo de cena, a partir de conceitos de análise do discurso formulados por Dominique Mainguenau, como interdiscurso, cenografia e ethos discursivo. Ao examinar a “suposta neutralidade” nas cenas de fala das entrevistas com mulheres que contam e/ou encenam histórias sobre suas vidas, mulheres desconhecidas e atrizes famosas, as autoras depreendem um ethos respeitoso e atencioso do entrevistador e chegam a “seu silêncio acolhedor”.

No próximo texto, é o teatro ritual de Werewere Liking Gnepo, escritora, dramaturga e performer, nascida em Camarões, África, que Thaynara Henrique Vieira Lourenço, da Universidade de Brasília - UnB, nos apresenta, a partir de uma perspectiva dialógica, no artigo “Do dialogismo à estética polifônica nas didascálias do teatro ritual de Werewere-Liking Gnepo”. A autora expõe e debate, no teatro de Werewere, como a dramaturga se apropria do dialogismo da tradição e lhe confere novos papéis, especialmente no modo como M.S. (Mise-en-scène) se transforma em personagem, trazendo a presença de múltiplas vozes com diferentes perspectivas referenciais e vontades de mundo a seu texto. Sem dúvida, a leitura do artigo, além dos aspectos analíticos apresentados, nos transporta para uma cultura pouco conhecida, e para uma autora africana - uma “criadora pluridisciplinar” cujas iniciativas culturais se encontram a serviço “da causa social da juventude desfavorecida e sem escolarização”, em suas próprias palavras (p.106).

Do teatro africano voltamos à literatura brasileira, com o artigo “Dialogia e cronotopia no romance histórico Verde vale, de Urda Klueger”, de autoria de Vanilda Meister Arnold, Silvânia Siebert e Maria Marta Furlanetto, todas da Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL. As autoras promovem uma leitura e a análise do romance histórico regional, a partir dos estudos de Bakhtin, levantando movimentos ligados a contextos sociais específicos e refletindo a respeito de princípios e valores vinculados a um tempo-espaço catarinense e à imigração alemã no território brasileiro. Os cronotopos da transmigração, da soleira e da terra aproximam os fenômenos de toponímia e antroponímia, trabalhados como eventos de memória e identidade, e enriquecem a compreensão do romance.

Os dois últimos textos, como já anunciamos, são extremamente contemporâneos e voltam-se para os meios digitais. O artigo “Análise tecnodiscursiva de manifestações em torno de D. Maradona: metodologias de delimitação de regiões do dizer no Twitter” é assinado por Alejandra J. Josiowicz e Bruno Deusdará, ambos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ. O importante estudo, ainda que convoque a perspectiva discursiva do Círculo de Bakhtin para a análise do Twitter, amplia coerentemente as lentes teóricas de modo a explicitar e problematizar técnicas de captação e produção de um corpus digital de pesquisa, estratégia demonstrada na análise das imagens discursivas em torno de Diego Maradona por ocasião de seu falecimento, na Argentina, no Brasil e no mundo (em espanhol, português e inglês). O uso da tecnologia é apresentado criticamente, de modo a destacar as condições de utilização de plataformas digitais por analistas do discurso.

Tão contemporâneo quanto o discurso do Twitter é o discurso dos videogames, que começa a ser objeto de estudo da Linguística Aplicada e das análises do discurso. É dele que trata a obra Approaches to Videogame Discourse: Lexis, Interaction, Textuality, organizada pela canadense Astrid Ensslin, da University of Alberta, e pela espanhola Isabel Balteiro, da Universidad de Alicante. Rodrigo Costa dos Santos, Universidade Federal Fluminense - UFF, em sua resenha, dá-nos uma boa visão da obra e da bibliografia a respeito desse discurso cujo apelo é tão grande, principalmente, mas não apenas, entre os mais jovens.

Finalmente, é importante notar que Bakhtiniana avança no caminho da ciência aberta: neste número temos a publicação de mais pareceres e, sobretudo, bons pareceres. Sem dúvida, eles também se constituem em fonte de conhecimento e estudo, e mostram um diálogo produtivo entre pesquisadores. Por isso, convidamos todos – leitores, autores e colaboradores - a responder ativamente a esses textos, saboreando e incluindo em suas pesquisas este conjunto. Como podem ver os leitores, trata-se de um número que congrega quinze pesquisadores brasileiros de sete diferentes universidades brasileiras (PUC Minas; UnB; PUC-SP; UEA; UNISUL; UERJ; UFF).

Agradecemos, mais uma vez, o inestimável e constante apoio, auxílio e reconhecimento do CNPq, por meio da Chamada CNPq Nº 15/2021 – Programa Editorial, Proc. 402109/2021-0, e da PUC-SP, por meio do Plano de Incentivo à Pesquisa (PIPEq) / Edital 11913/2022 Publicação de Periódicos (PubPer-PUCSP), Solicitação 22883.

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    Quase todos os ensaios dessa coletânea contam com uma nova tradução, também diretamente do russo, realizada por Paulo Bezerra e publicada pela Editora 34.
  • Bolsista Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP (Processo n. 2019/20703-2)

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética A teoria do romance. Tradução (do russo) Aurora Fornoni Bernadini et al 3 ed. São Paulo: Editora UNESP, 1993. p.74.
  • BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável Trad. aos cuidados de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2010.
  • BARTHES, R. Aula Tradução e posfácio Leyla Perrone-Moisés [Aula inaugural da cadeira de Semiologia Literária do Colégio de France/Paris/França, pronunciada no dia 7 de janeiro de 1977]. São Paulo: Cultrix, 2007. p.16.
  • BARTHES, R. Le plaisir du texte Paris: Editions du Seuil, 1973.
  • BRAIT, B. Literatura e outras linguagens São Paulo: Contexto, 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2022
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