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Análise do conto “A dama do cachorrinho”. Paralelos entre as relações autor-personagem em Mikhail Bakhtin e Antón Tchékhov

RESUMO

Os primeiros trabalhos de Bakhtin apontam as origens de sua teoria. O ineditismo deste artigo, então, consiste em comparar os trabalhos iniciais de Bakhtin, mais precisamente o ensaio “O autor e a personagem na atividade estética”, escrito nos anos 1920, com as visões de Tchékhov sobre a relação autor - personagem - leitor. Isso porque consideramos Tchékhov não apenas escritor, mas também teórico da criação verbal, o que mostraremos com trechos das suas cartas. Assim, o artigo apresenta uma análise do conto “A dama do cachorrinho”, de Anton Tchékhov, e a tese de que Tchékhov teve, já a partir do título, a intenção de relacionar o seu conto com o romance A dama das camélias, de Alexandre Dumas Filho.

PALAVRAS-CHAVE:
Tchékhov; Bakhtin; Teoria bakhtiniana; Relações Autor-Personagem; Narração tchekhoviana

ABSTRACT

Bakhtin's early works point to the origins of his theory. The novelty of this article consists in presenting Bakhtin's early works, more precisely the essay “The Author and the Hero in Aesthetic Activity,” written in the 1920s, and comparing it with Chekhov's views on the Author-Character-Reader relationship since we consider Chekhov a writer and a theorist of verbal creation, which we will evidence with excerpts from his letters. The article presents an analysis of Anton Chekhov's short story “The Lady with the Dog,” and the thesis that Chekhov had, right from the title, about the intention of relating his story to Alexandre Dumas' novel The Lady of the Camellias.

KEYWORDS:
Chekhov; Bakhtin; Bakhtinian theory; Author-Character relations; Chekhov’s narrative style

Introdução

Este artigo é resultado do trabalho conjunto de duas pesquisadoras russas, que atuam no Brasil, na Universidade de São Paulo. Efetuou-se uma análise do conto A dama do cachorrinho”, de Anton Tchékhov, com base na teoria bakhtiniana, desenvolvida e influente no país. Muitos são os estudiosos brasileiros da obra de Tchékhov, dentre os quais Boris Schnaiderman, Arlete Cavaliere, Bruno B. Gomide e Elena Vássina. Como escreve Bruno Gomide (2018GOMIDE, B. Apresentação. In: NASCIMENTO, R. A. Tchékhov e os palcos brasileiros. Sāo Paulo: Perspectiva, 2018., p.XIII-XV) na Apresentação de Tchékhov e os palcos brasileiros, de Rodrigo Alves do Nascimento, a percepção de Tchékhov difere, no Brasil, daquela de Dostoiévski e Tolstói, pois dependeu de “uma série complexa de redefinições dos modos como o texto russo era percebido” para que um “diálogo mais produtivo fosse estabelecido com as editoras, os críticos, os palcos e os escritores brasileiros”. Desse modo, este artigo visa a contribuir para o desenvolvimento desse diálogo. Ressaltamos que a maior parte das pesquisas sobre Tchékhov no Brasil têm como objeto a sua dramaturgia (como, por exemplo, os estudos de Arlete Cavaliere e Elena Vássina e o livro As três irmās, de Tchékhov, por Stanislávski, de Tieza Tissi, para citar alguns); ainda são poucos os escritos sobre a sua prosa, a qual é um dos focos de nossa pesquisa. Neste artigo, Anton Tchékhov apresenta-se não apenas como escritor, mas também como teórico da criação verbal, o que se demonstra com trechos de cartas suas.

Há proximidades entre as ideias de Tchékhov sobre as relações autor - personagem - leitor e um trabalho inicial de Bakhtin, o ensaio “O autor e a personagem na atividade estética”, escrito nos anos 1920. Sem nenhuma pretensão de analisar a teoria de Bakhtin na sua totalidade, o que poderá ser objeto de um futuro artigo, justificamos a escolha do referido trabalho de Bakhtin pelo fato de estar próximo, no tempo, da obra de Tchékhov. Além disso, é nele que se podem traçar as origens da teoria de Bakhtin sobre as relações autor - personagem - leitor. “O autor e a personagem na atividade estética” é considerado um dos primeiros tratados filosóficos de Bakhtin, escrito não para o público em geral, mas para si próprio, e já então ele discute questões e conceitos que desenvolveria na sua teoria. Após a publicação, na Rússia, das obras completas de Bakhtin com comentários de V. Mákhlin, S. Botcharóv, L. Gogotichvíli e outros (2003c), observou-se, entre os estudiosos, um especial interesse pelos seus primeiros trabalhos. Citemos a tese de mestrado de Irina Archínova, defendida sob orientação do eminente professor Piótr Bukhárkin, grande especialista em cultura russa, da Universidade Estatal de São Petersburgo, em 2016, que explica essa tendência: “esses textos, segundo a opinião unânime de especialistas, contêm de forma condensada praticamente todas as principais ideias desenvolvidas por Bakhtin ao longo da sua longa vida científica” (ARCHÍNOVA, 2016ARCHÍNOVA, I. Kontsiéptsiia “Avtor - Gierói - Tchietátiel” v rabótakh M. M. Bakhtiná 1920-kh godóv [O conceito de autor - personagem - leitor nas obras de M. M. Bakhtin na década de 1920]. 2016, 53 f. Dissertação (Mestrado em filologia) - Universidade Estatal de São Petersburgo, São Petersburgo, 2016., p.5)4 1 Tradução nossa. No original, em russo transliterado: “Éti tiéksty, po iedinodúchnomu mniéniiu spietsialístov, v sguschiónnoi fórmie sodiérzhat praktítchieski vsié osnovny’ie idiéi, razvivávchiiesia Bakhtiny’m na protiazhiénii iegó dólgoi naútchnoi zhízni”. .

Em meio aos raros trabalhos que articularam a teoria de Bakhtin com a análise da obra de Tchékhov, está o livro O problema da comunicação em Tchékhov [Probliémy kommunikátsii u Tchékhova], de A. D. Stiepánov (2005STIEPANOV, A. Probliémy kommunikátsii u Tchékhova [Problemas de comunicação em Tchékhov]. Moscou: Yazykí slaviánskoi kultùri, 2005., ainda sem tradução para o português), no qual obras de Tchékhov são analisadas à luz da teoria dos gêneros discursivos de Bakhtin. Nós visamos a acrescentar à sua abordagem de Tchékhov a ideia de que este foi não apenas um criador, mas também um teórico da criação estética verbal. A proximidade entre as visões de Tchékhov e Bakhtin acerca da relação autor - personagem - leitor é tamanha que permite a aplicação das ideias do segundo às obras do primeiro.

Embora Mikhail Bakhtin tenha estudado profundamente diversos autores russos, como Dostoiévski, Gógol e Púchkin, nos seus trabalhos ele apenas cita as obras de Anton Tchékhov. Ao mesmo tempo, Bakhtin menciona-o em “Formas de tempo e de cronótopo no romance” e faz referências a ele em alguns dos seus rascunhos, como em “Tolstói como dramaturgo”, e em apontamentos para as suas palestras. Mas ele nunca se aprofundou em textos de Tchékhov, o que é de se estranhar, em primeiro lugar, pela relevância dos textos e dramas desse escritor para o desenvolvimento da literatura russa no século XX e, em segundo lugar, pela afinidade entre as ideias de ambos sobre a criação verbal. Bakhtin, embora profundo conhecedor da literatura clássica russa, provavelmente desconhecia as ideias de Tchékhov sobre as relações autor-personagem, e o tempo mostraria que os dois tinham visões parecidas acerca do assunto, como mostraremos a seguir.

Na sociedade russa do século XX, houve grandes mudanças na abordagem da obra do Tchékhov, as quais coincidiram parcialmente com as mudanças nas visões de Bakhtin. Apesar de ter iniciado o século XX com popularidade, Tchékhov logo passou a encontrar uma grande resistência entre os escritores e pensadores do mesmo período na Rússia, que o consideravam um escritor superficial e passageiro, e não um autor profundo, de grandes e influentes ideias. Essa visão foi típica durante o período denominado Século de Prata: aproximadamente, entre os anos de 1890 até a Revolução Russa, em 1917, e ainda um pouco após a Revolução, no início dos anos 1920.

Bakhtin cresceu e formou-se precisamente nessa altura, quando, inclusive, conheceu Valery Briúsov e Viatcheslav Ivánov e frequentou os encontros filosóficoliterários de Andriéi Biélyi e Mieriezhkóvski / Zinaída Híppius, que naquela época constituíam o centro da vida cultural em São Petersburgo. Tais encontros formavam as visões sobre a criação verbal e literatura em geral, na época. O próprio Bakhtin, na conhecida entrevista para Duvákin (1973), declarou que os seus interesses literários não se limitavam aos clássicos e que havia uma paixão, da sua parte, pela poesia moderna, em particular por Viacheslav Ivánov, o seu poeta favorito. Vemos a confirmação dos seus interesses no ensaio “Peculiaridades formais da poesia de Viatcheslav Ivánov”, em Estética da criação verbal (2003cBAKHTIN, M. Peculiaridades formais da poesia de Viatcheslav Ivánov. In: BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa Tzvetan Todorov. São Paulo: Martins Fontes, 2003c. p.414-421.). O conhecimento pessoal de Viacheslav Ivánov e outros poetas inscreve a forma de pensar de Bakhtin em um determinado contexto cultural da época.

Ao final da vida, Bakhtin aprofunda a sua percepção de Tchékhov ao tratar de uma equivocada encenação do TAM (Teatro de Arte de Moscou), que primeiramente ocorreu nos anos 1910. Na entrevista supracitada, Bakhtin (1973) afirma que, entre os anos de 1915 e 1917, Tchékhov foi “entendido erroneamente”; depois da canonização, foi mal interpretado e “perdeu as raízes” (vy’rodilsia sovierchiénno); e, por fim, que essa “canonização o matou” (iegó ubíla kanonizátsiia). Para o teórico, não era aceitável “criar um melodrama choroso” de Jardim das cerejeiras, inicialmente proposto por Tchékhov como farsa e comédia (DUVAKIN, 1996DUVAKIN, V. D. Biesiédy V. D. Duvákina s M. M. Bakhtiny’m [Conversas de Duvákin com Bakhtin]. Мoscou: Progress, 1996., p.77)5 2 Foi consultada a edição brasileira (BAKHTIN, M., DUVAKIN, V. Mikhail Bakhtin em diálogo: conversas de 1973 com Viktor Duvakin. Tradução Daniela Miotello Mondardo, a partir de edição italiana. São Carlos: Pedro e João Editores, 2012), com a tradução indireta da língua italiana. Entretanto, decidimos manter nossa tradução, diretamente do russo. . Durante o período em que se formavam as ideias de Bakhtin, a recepção de Tchékhov foi variada e inconstante, oscilando do ódio à canonização. O teórico discordou de ambos os extremos, como comprova a entrevista para Duvákin.

Neste artigo, focaremos nas relações entre autor, personagem e leitor nas perspectivas de Bakhtin e de Tchékhov. Considerando a tradição brasileira, a comparação permitirá apontar que, para ambos, a importância do leitor na criação verbal é próxima daquela do autor/criador e do personagem. Uma vez que, nos trabalhos iniciais de Bakhtin, a estética da criação verbal se volta para a estética filosófica geral, trataremos da noção de ‘exotopia’ (ou ‘extra-localização’) em relação à ‘compenetração’ (vzhivániie) e ‘conclusão’ (zavierchéniie) da narrativa. Posteriormente, aproximaremos esse quadro teórico à objetividade na narrativa tchekhoviana e veremos que, tanto em trabalhos iniciais de Bakhtin quanto em Tchékhov, a objetividade estética e o ‘interesse artístico’ são fundamentais na criação verbal.

Para finalizar o nosso quadro teórico, trataremos dos símbolos e pormenores fortuitos, dois pontos marcantes nas obras de Tchékhov, sob a noção bakhtiniana de exotopia, que expressa a ideia da ‘compenetração’ e ‘conclusão’ para Bakhtin e equivale, para Tchékhov, à objetividade da narrativa. Após essa exposição, efetuaremos a análise do conto “A dama do cachorrinho” e poremos em relevo as relações Autor-Personagem segundo os resultados da nossa proposta teórica. Com base nessas relações, nos símbolos e pormenores fortuitos e na combinação desses com o título, faremos uma nova proposição acerca do referido conto: ele mantém um diálogo intertextual com o romance A dama das camélias, de Alexandre Dumas Filho.

1 Autor-Personagem na atividade estética para Mikhail Bakhtin e para Antón Tchékhov

Referência na questão de formação das relações autor - personagem - leitor no Brasil é o livro de Beth Brait A personagem (1985; 1917). A estudiosa trata do “jogo artístico-literário” que entrelaça criador, criatura e todos aqueles que “se envolvem com eles, vivenciando-os, amando-os, odiando-os” ou “tentando entendê-los” (BRAIT, 2017BRAIT, B. A personagem. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2017., p.9). Nesse processo de criatividade, todos estamos claramente envolvidos, dos leitores aos estudiosos, e esse envolvimento reflete a visão bakhtiniana do assunto: “não vivenciamos os sentimentos isolados (estes nem existem) mas o todo espiritual da personagem; os nossos horizontes coincidem, e por isso praticamos interiormente com ela todos os seus atos como elementos necessários de sua vida co-vivenciada por nós” (BAKHTIN, 2003aBAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martin Fontes, 2003a. p.3-192., p.73).

Já no início da discussão, é notável a proximidade entre as visões de Bakhtin e de Tchékhov; este afirma, em carta a Suvórin de 1º de abril de 18906 3 Alexéy Suvórin foi jornalista, editor, escritor, crítico de teatro e dramaturgo russo. Editor do jornal Novo Tempo (Nóvoie vriémia), com o qual Tchékhov colaborou. : “Quando eu escrevo, confio inteiramente no leitor, supondo que ele próprio acrescentará os elementos subjetivos que faltam ao conto…” (TCHÉKHOV, 1995TCHÉKHOV, A. Cartas para uma poética. Trad. Sophia Angelides. São Paulo: Edusp, 1995., p.174). Para o escritor, a cumplicidade do leitor é importante: o leitor, ao ingressar no jogo, interpreta-o à sua maneira, com base na sua própria experiência e na sua própria personalidade. Por causa dessas posições, os contos do período tardio da obra de Tchékhov (como “A dama do cachorrinho”, de 1899) parecem-nos os mais apropriados para serem considerados à luz da teoria autor - personagem - leitor de Bakhtin.

Mikhail Bakhtin, ao longo da vida, dedicou vários trabalhos à questão das relações autor - personagem - leitor. Dentre os mais significativos, citamos O autor e a personagem na atividade estética, escrito nos anos 1920, mas publicado em russo apenas em 1979, na coletânea Estética da criação verbal (que chegou ao Brasil em 1992, a partir do francês; e, diretamente do russo, apenas em 2003); Problemas da poética de Dostoiévski (na Rússia, a 1ª edição foi publicada em 1929 e a 2ª edição - ampliada, em 1963; no Brasil, a 2ª edição russa foi publicada em 1981 e a 1ª edição está em processo de publicação ); O discurso do romance (escrito nos anos 1930, mas publicado na Rússia apenas em 1975, na coletânea Questões de literatura e de estética: a teoria do romance; no Brasil, foi publicado em 1988). Nesses trabalhos, como menciona Brait (2017)BRAIT, B. A personagem. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2017., Bakhtin não classifica as personagens, mas aprofunda questões da prosa literária, como a ética e a estética, o dialogismo, a polifonia e as relações autor - personagem - leitor. Inaugura, assim, a discussão de como um autor-criador “dá voz às suas criaturas, indo em busca de uma poética da prosa” (BRAIT, 2017BRAIT, B. A personagem. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2017., p.58). Para a proposta deste artigo, abordaremos especificamente “O autor e a personagem na atividade estética”, dos anos 1920, por ser cronologicamente mais próximo ao tempo de Tchékhov. Essa obra, a nosso ver, reflete as origens da teoria bakhtiniana e não pode ser ignorada nos estudos sobre o tema; uma análise mais minuciosa do legado de Bakhtin na totalidade, com relação a Tchékhov, ensejaria artigos futuros. Esclareça-se que não falamos de empréstimo direto entre as duas visões (posições), mas da influência da época, do tempo em que as visões de Bakhtin foram formadas.

A referida obra, infelizmente, não se encontra totalmente preservada no arquivo de Bakhtin, e existe apenas parte do primeiro capítulo. No entanto, as partes preservadas dão uma imagem holística e completa dessa grande obra de Bakhtin, que a iniciou em meados da década de 1920, mas não a concluiu. Supõe-se que o texto tenha sido trabalhado durante os anos de permanência do autor em Vítiebsk (1920-1924), quando se dedicava à estética da criação verbal. O conteúdo dessa obra está intimamente relacionado a dois outros trabalhos da década de 1920: o artigo “O problema do conteúdo, material e forma na arte verbal” (1924) e o livro Problemas da obra de Dostoiévski (1929)7 4 Traduzido pelas Professoras Doutoras Sheila Vieira de Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo, a sair em 2022. . A tese fundamental do artigo de 1924 e desses trabalhos iniciais de Bakhtin é a necessidade da estética da criação verbal ser baseada em uma estética filosófica geral (ver BAKHTIN, 2002BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética. A teoria do romance. Tradução do russo Aurora Bernardini et al. São Paulo: Hucitec, Annablume, 2002.).

Um dos aspectos principais da criação da personagem, segundo essa obra inicial, é a ideia de extra-localização ou exotopia (vnenakhodímost’). A primeira etapa da atividade estética seria a ‘compenetração’ (vzhivániie): “eu devo entrar em empatia com esse outro indivíduo, ver axiologicamente o mundo de dentro dele tal qual ele o vê, colocar-me no lugar dele...”; a isso, segue-se a etapa que podemos chamar de ‘separação’ (otstraniéniie, razmykániie): “(...) depois de ter retornado ao meu lugar (...)”; e, por fim, segue-se a ‘conclusão’ (zavierchéniie): “(…) completar o horizonte dele com o excedente da visão que desse meu lugar se descortina fora dele, convertê-lo, criar para ele um ambiente concludente a partir desse excedente da minha visão” (BAKHTIN, 2003aBAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martin Fontes, 2003a. p.3-192., p.23). Consideramos que, para Bakhtin, os momentos de ‘compenetração’ e ‘conclusão’ não se sucedem cronologicamente e que a distinção entre eles é apenas semântica; ainda assim, ambos estão intimamente ligados, e essa ligação forma um acontecimento estético (estetítchieskoie sobýtiie): em uma obra verbal, cada palavra tem uma dupla função e orientação: tanto dirige a ‘compenetração’ quanto a conclui, embora um momento possa prevalecer sobre o outro (BAKHTIN, 2003aBAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martin Fontes, 2003a. p.3-192., p.23). Notamos um efeito parecido nas obras de Tchékhov, nas quais o mundo retratado pelo autor passa totalmente pelo prisma da percepção da personagem. É retratado somente o que a personagem sente, vê e sabe. O microcosmo artístico de tal história torna-se o mundo percebido pelas personagens. Essa capacidade da narrativa de Tchékhov “de se transformar em uma personagem” já foi percebida por estudiosos contemporâneos da sua obra (TCHUDAKÓV, 1971TCHUDAKÓV, А. Poétika Tchékhova [Poética de Tchékhov]. Мoscou: Nauka, 1971., p.48).

No mesmo trabalho, “O autor e a personagem na atividade estética”, Bakhtin (2003a)BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martin Fontes, 2003a. p.3-192. define autor e personagem: o autor é o portador da unidade ‘tensamente ativa’ da personagem e da obra/texto concluído, que é ‘transgrediente’ a cada elemento particular deste. O autor não apenas “enxerga e conhece tudo o que cada personagem em particular e todas as personagens juntas enxergam e conhecem, (...) [ele] ademais enxerga e conhece algo que por princípio é inacessível a elas” (BAKHTIN 2003aBAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martin Fontes, 2003a. p.3-192., p.10-11). Bakhtin chama a isso ‘excedente de visão do autor’ (izbýtok vídeniia ávtora). A consciência da personagem e o interesse vital (cognitivo-ético) no acontecimento da personagem é “abarcado pelo interesse artístico do autor. Nesse sentido, o rumo em que segue a objetividade estética difere do rumo da objetividade cognitiva e ética (…); para a objetividade estética, o centro axiológico é o todo da personagem e do acontecimento a ela referente” (BAKHTIN 2003aBAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martin Fontes, 2003a. p.3-192., p.11). Sobre o interesse artístico do autor, ligado à objetividade estética, escreve nas suas cartas Tchékhov com irritação, em linguagem cotidiana, ao discutir com o editor Suvórin (carta de 17/10/1889, TCHÉKHOV, 1995TCHÉKHOV, A. Cartas para uma poética. Trad. Sophia Angelides. São Paulo: Edusp, 1995., p.155):

Se lhe servem café, não o confunda com cerveja... Será que você dá tanto valor a opiniões de qualquer gênero, que vê somente nelas o centro de gravidade, e não na maneira de expressá-las, nem na origem delas etc.?

(...) Para mim, como autor, essas opiniões, pela sua essência, não têm nenhum valor. A questão não está na essência delas, que varia e não é nova. O fundamental está na natureza dessas opiniões, na sua submissão às influências externas etc. É preciso examiná-las como coisas, como sintomas, de modo totalmente objetivo, procurando não concordar com elas, nem contestá-las.

Na passagem apresentada, Tchékhov indica a insignificância das opiniões das personagens nos textos, mas eleva a importância da maneira de expressar essas opiniões (objetividade estética), tratando da questão da objetividade da narrativa, o que ele considera um ponto essencial. Vamos, brevemente, observar o caminho do autor que vai da narrativa subjetiva até a objetividade da narração. O estilo narrativo de Tchékhov é considerado um fenômeno especial da arte russa do final do século XIX e início do século XX. Segundo Tchudakóv (1971)TCHUDAKÓV, А. Poétika Tchékhova [Poética de Tchékhov]. Мoscou: Nauka, 1971., as obras de Tchékhov podem se dividir em 3 etapas. A primeira (escritos de, aproximadamente, 1881 a 1887), denominada narrativa subjetiva, mostra um autor ativo: os julgamentos vêm diretamente dele, característica que foi típica da literatura do período anterior a Tchékhov. Essa narrativa é cheia de emoções e avaliações do autor e, em nenhuma passagem da obra Tchékhov omite os próprios julgamentos (contos “Dátchnitza”, “V vagóne”). Gradualmente, o ponto de vista do narrador começa a deixar de coincidir com o do autor. Essa disjunção culmina numa segunda etapa (escritos de, aproximadamente, 1888 a 1894), na qual Tchékhov começa a criar uma nova maneira de narrar: surgem julgamentos e emoções emanadas das próprias personagens; a voz do autor desaparece do texto e a narração é feita do ponto de vista da personagem. Nessa etapa, o discurso indireto predomina na criação verbal de Tchékhov. Já na terceira etapa (escritos de, aproximadamente, 1895 a 1904), a personagem passa a deslocar o narrador da sua posição: a forma torna-se mais complexa, as vozes das personagens e do autor às vezes soam e se entrelaçam, às vezes se separam.

Apesar de a estrutura narrativa das obras do período inicial e do tardio de Tchékhov ser notavelmente complexa, não há limites nítidos entre elas; ocorre uma transição suave. Desde meados dos anos 1880, Tchékhov vinha desenvolvendo e aprimorando o seu sistema de arte, de modo que, ao final dos anos 1890, consolidou um sistema definitivo e inovador, com uma estrutura e uma interação entre autor e personagem complexas. Essa interação é construída pela composição, estilo, formas de fala (por exemplo, o discurso indireto) e diversidade de pontos de vista. As vozes do narrador e da personagem estão tão entrelaçadas que é quase impossível distingui-las, o que torna a identificação da visão do autor especialmente difícil tanto para leitores quanto para pesquisadores da obra de Tchékhov.

2 Simbolismo e pormenores fortuitos de Tchékhov

Antes de iniciarmos a análise do conto, abordaremos brevemente as características do simbolismo de Tchékhov e o papel dos pormenores fortuitos, os quais refletem a sua concepção das relações autor - personagem - leitor. Andriéi Biélyi escreve, pela primeira vez, sobre o símbolo nas obras do escritor, no artigo “Tchékhov” (1907). Segundo Biélyi, juntamente com a continuação da tradição realista, Tchékhov “lançou a dinamite do verdadeiro simbolismo” (TCHÉKHOV, 2002, p.831). Itens específicos da personagem (como as memórias, a natureza etc.) tornam-se símbolos para o autor: a cor cinzenta denota enfado e tédio, por exemplo. O símbolo conecta-se com o mundo interior da personagem e, por isso, reflete o estado da personagem, e o mundo objetivo que cerca a personagem é transgressor para a sua própria consciência.

Além do simbolismo, queremos realçar em Tchékhov também os pormenores fortuitos. No sistema literário tradicional, um pormenor é um elemento de caracterização da personagem ou da atmosfera da obra. Em Tchékhov, há numerosos pormenores, entre os quais queremos assinalar os pormenores fortuitos, que nada têm a ver com a caracterização da personagem ou com o enredo. A presença dos pormenores fortuitos no texto tchekhoviano não possui uma função clara, especialmente naqueles textos curtos e tão minuciosamente construídos, em que não há uma única palavra deslocada ou que sobra. A função do pormenor fortuito é especialmente polêmica, porque, à primeira vista, ele não parece ser um meio de caracterização e, de acordo com as regras da literatura anterior a Tchékhov, não é necessário no texto ou, ao menos, é opcional. Vários pesquisadores dão as suas interpretações: Tchudakóv (1971)TCHUDAKÓV, А. Poétika Tchékhova [Poética de Tchékhov]. Мoscou: Nauka, 1971., por exemplo, acredita que eles confirmam as contingências da vida real. Algo pode não ser importante para a personagem, mas sê-lo para o autor. O pormenor, em Tchékhov, pode tanto possuir significado direto e figurativo quanto pode ser apenas uma pincelada lírica e um meio de subtexto.

O pormenor fortuito não altera a sua semântica; o objeto permanece ele próprio. Nós julgamos que, ao se repetir em diferentes textos e episódios, o pormenor fortuito indica paralelos entre as personagens (as mãos, no capítulo 3), entre cenas no conto (lornão, vento) e outras obras deste e de outros autores (o título do espetáculo Gueixa, por exemplo), no que nos deteremos mais adiante8 5 É necessário assinalar que o pormenor fortuito também pode desempenhar outros papéis, como, por exemplo, participar na formação do cronotopo. No presente artigo, nós não tratamos desse tema. .

3 Análise do conto “A dama do cachorrinho”, de Anton Tchékhov, sob a perspectiva das relações autor-personagem

Em “O autor e a personagem na atividade estética,” Bakhtin (2003a)BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martin Fontes, 2003a. p.3-192. explica que uma condição necessária para um acontecimento estético é que haja uma personagem e que este exista como uma consciência diferente em relação à consciência onipresente do autor. O autor está além do escopo do conteúdo e, portanto, elabora e completa o evento externamente em relação à personagem. As ideias do autor estão ocultas nas profundezas do texto: no estilo, na composição, na trama, no cronotopo etc. Para que se constitua a exotopia, Bakhtin aponta como primordial a integração entre duas consciências que precisam ser distintas: a do autor e a da personagem. Tchékhov basicamente defende a mesma posição em carta a Alexander Tchékhov, 20 de fevereiro de 1883: “É suficiente ser apenas um pouco mais honesto: colocar-se à margem de tudo, não se enfiar nas personagens do romance, renunciar a si próprio nem que seja por meia hora” (TCHÉKHOV, 1995TCHÉKHOV, A. Cartas para uma poética. Trad. Sophia Angelides. São Paulo: Edusp, 1995., p. XXX). Mostraremos, a seguir, como a exotopia de Bakhtin, que vai ao encontro da posição de Tchékhov sobre as relações autor-personagem, está desenvolvida nesse conto. Para isso, examinaremos o léxico e o discurso indireto, a aparência da personagem e a voz do autor e a relação entre as repetições, em Tchékhov, e os paralelos com a lenda de Don Juan. Toda a discussão sobre como esses elementos fazem o acabamento do conto tchekhoviano nos levará, por fim, a apresentar a nossa hipótese acerca da intertextualidade de “A dama do cachorrinho” e A dama das camélias.

3. 1 Léxico e discurso indireto

O conto “A dama do cachorrinho” foi escrito em 1899. A ação acontece em Iálta, cidade turística do Sul da Rússia. Dois turistas, Dmitry Gúrov, e uma jovem, Ana Sierguèievna Díderits, a que eles chamaram “a dama do cachorrinho”, pois os turistas costumam vê-la passear pelo aterro com um lulu branco à trela, travam conhecimento. Gúrov, longe da esposa, espera um relacionamento leve e fácil; já Ana, decepcionada com a sua união com um homem não amado, quer experimentar uma aventura e sentir as emoções das quais ela é privada em um casamento insuportavelmente tedioso. Um romance trivial é iniciado entre eles, porém, inesperada e inexplicavelmente, o caso transforma-se em um sentimento forte e profundo para ambos. O sentimento muda não tanto o curso das suas vidas, mas os próprios protagonistas. O enredo da história não é sobre o desenvolvimento de relações de caráter; antes, é uma reflexão sobre o desenvolvimento e a mudança gradual de sentimentos até sua completa transformação em relação ao ponto de partida.

Embora “A dama do cachorrinho” tenha sido escrito a partir do ponto de vista do narrador, o leitor quase imediatamente percebe que a situação, eventos e personagens são retratados através da percepção da personagem Gúrov, pois apenas o que este vê, ouve e pensa entra no campo de visão do leitor. O texto do autor ruma imperceptivelmente em direção aos pensamentos da personagem, o que aproxima tanto o discurso indireto do discurso direto (niesóbstvienno-priamáia rietch), que se torna extremamente difícil traçar limites claros entre as duas vozes: “começara a oprimi-lo um desejo intenso de partilhar com alguém suas recordações. Mas, em casa, não se podia falar de seu amor e, fora, não havia com quem. Não ia fazê-lo com os moradores do prédio ou no banco em que trabalhava. Além disso, falar do quê? Amaria ele, então?” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.325).

Segundo Bakhtin, para que o leitor perceba o texto do ponto de vista da personagem, deve-se lançar mão de várias formas estilísticas, gramaticais e lexicais. Assim, a partir da primeira frase da história, menciona-se a incerteza, estado que só é possível para a consciência subjetiva. A incerteza é construída pela forma impessoal dos verbos ‘dizer’ (‘dizia-se’, ‘diziam’, govoríli) e ‘chamar’ (‘chamavam-na’, nazyváli): “dizia-se que havia aparecido à beira-mar uma nova personagem: uma senhora com um cachorrinho. Ninguém sabia quem era e chamavam-na, simplesmente, a dama do cachorrinho” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.314). O mesmo papel da incerteza e da presunção é desempenhado por algumas palavras e construções introdutórias, como ‘parecia’ (kazálos’), ‘deveria ser’ (dolzhnó byt’), ‘certamente’9 6 Aqui, encontramos um provável erro de tradução. Em russo, otchievídno tem dois significados (VOINOVA; STARETS, 1989, p.400): 1) advérbio - “evidentemente”, “sem dúvidas” e 2) palavra introdutória - “pelo visto”, “ao que parece”. No sentido proposto pelo texto, seria melhor usar o segundo. A história também contém a incerteza do herói sobre o que está acontecendo e a ambiguidade da avaliação do autor, enfatizando a transição pouco clara entre os pontos de vista de ambos. “Obviamente”, como uma palavra introdutória, juntamente ao sinônimo “provavelmente” e “aparentemente” e verbos com o mesmo significado (por exemplo, “parecia”), representam o motivo de incerteza, um dos principais do conto. A incerteza do herói sobre o que está acontecendo e a ambiguidade da avaliação do autor reforçam aquela transição pouco clara entre os pontos de vista de um e outro. Além disso, o motivo da incerteza também se correlaciona com a dualidade da vida de Gúrov e, em alguns fragmentos do texto, esse motivo é contrastado com a ‘clareza’: “tudo permanecia nítido na memória” (TCHÉKHOV, 2011, p.324); “compreendeu com nitidez que não existia, agora, para ele, em todo o mundo, pessoa mais próxima (TCHÉKHOV, 2011, p.328). (otchievídno) e ‘provavelmente’ (veroiátno): “acercou-se deles um homem, provavelmente um guarda, olhou-os e se afastou” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.321); “parecia-lhe que fora suficientemente instruído por sua amarga experiência, para chamá-las como lhe aprouvesse, mas, apesar de tudo, não poderia passar dois dias sem a ‘raça inferior” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.315); “durante todo o tempo, ela o chamara de bondoso, extraordinário, superior. Certamente, Gúrov aparecia-lhe como alguém diferente do que era na realidade; por conseguinte, enganavaa sem querer” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.323); “era provavelmente o marido” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.328).

Palavras que indicam um acontecimento repentino em relação à personagem (‘de repente’ - vdrug, ‘pelo menos’ - khotiá by, ‘por exemplo’ - naprimiér) ou um estado emocional (partícula de realce je) também indicam que o ponto de vista retratado é o mundo subjetivo da personagem, o qual Bakhtin chama de o seu ‘todo espiritual’: “o passado deixara-lhe a lembrança de mulheres despreocupadas, benevolentes, alegres de amor e que lhe eram agradecidas pela felicidade, embora muito breve, que lhes proporcionava; de outras [lembranças], como, por exemplo, sua mulher” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.318); “(…) tudo ressuscitava, de repente, em sua memória: o que sucedera no quebra-mar, o amanhecer com aquela névoa sobre as montanhas, o navio chegando de Feodóssia, os beijos” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.325); “não ia fazê-lo com os moradores do prédio ou no banco em que trabalhava” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.325).

As indicações de que o ambiente e a atmosfera são dadas a partir do ponto de vista da personagem incluem palavras que transmitem sensações como sede, congestão, cheiros e emoções como medo ou irritação, e que transmitem uma posição no espaço e eventos temporários, nos quais o ponto de partida também é a consciência subjetiva: “foi envolvido pelo perfume e pela umidade das flores (...)” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.318); “distinguiam-se nitidamente” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.317); “Ana Sierguèievna estava já silenciosa” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.318); “em Oreanda, ficaram sentados num banco, perto da igreja, olhando, em silêncio, o mar” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.321); “passada uma hora, ouviu tocar o piano, mas os sons chegavam-lhe fracos, pouco nítidos” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.327); “veio uma sensação de medo” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.329); “dava sede o dia inteiro e Gúrov entrava com frequência no pavilhão, oferecendo a Ana Sierguèievna ora refresco, ora sorvete. Ficava-se sem saber onde se meter” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.317); “Gúrov já estava se aborrecendo de ouvir aquilo, irritava-o aquele tom ingênuo, aquele arrependimento tão inesperado e fora de propósito. Não fossem as lágrimas nos olhos, poder-se-ia pensar que ela estava brincando ou desempenhando um papel” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.320). Os verbos no discurso indireto desempenham o mesmo papel (‘ele pensava’ - dúmal, ‘ele lembrou-se’ - vspómnil, ‘ele compreendeu’ - pónial): “e compreendeu com nitidez que não existia, agora, para ele, em todo o mundo, pessoa mais próxima, querida e importante” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.328); “enquanto falava, pensava que estava indo para uma entrevista de amor e que nem viva alma sabia disso e, provavelmente, jamais o saberia” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.331).

Exclamações, perguntas e equívocos sobre alguns eventos que estão no contexto da narrativa do autor também enfatizam o mesmo ponto narrativo: “que selvagens costumes, que rostos! Que noites estultas, que dias desinteressantes, anódinos!” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.325); “nos feriados de dezembro, preparou-se para viajar. Disse à mulher que ia a Petersburgo, a fim de pedir certos favores de pessoas influentes para um jovem, mas viajou para S. Para quê?” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.326); “pensava que em sua vida ocorrera mais uma aventura, um episódio, que também terminara, deixando apenas uma recordação (...)” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.323); “passaria um mês, mais ou menos, e Ana Sierguèievna tinha a impressão que cobrir-se-ia de bruma em sua memória, e somente em raro ia aparecer-lhe em sonho, com seu tocante sorriso, tal como outras apareciam” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.324).

3. 2 A aparência da personagem e a voz do autor

Bakhtin (2003aBAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 4. ed. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martin Fontes, 2003a. p.3-192., p.26-27) considera a aparência da personagem dentro de dois mundos: do real e do ideal ou ‘mundo do sonho’ (mir mietchtý). O mundo do meu sonho ‘centrado em mim’ (mir mietchtý o siebié) não encontra expressão no exterior, e a personagem não consegue imaginar a sua imagem externa, fora desse mundo de sonho, apenas as imagens de outros personagens. Até as personagens menores são apresentadas com incrível clareza e minúcia, com todas as emoções. Mas a personagem, com quem essas emoções se relacionam, não é apresentada. A personagem apenas “atua”, “vence corações”, “conquista fama inusitada” etc.

Essa perspectiva interna, o mundo de sonho consigo próprio, está materializada em “A dama do cachorrinho”. A visão interior é enfatizada pela falta de um retrato de Gúrov, uma vez que ele não precisa focar a atenção na sua própria aparência (em oposição à aparência de outras personagens que entram em seu campo de visão); contudo, os traços de caráter, atitude em relação à vida e aos outros são transmitidos em pormenor. É precisamente aqui que o leitor parece ouvir duas vozes, simultaneamente, e é bastante difícil diferenciá-las - em dado momento, fica claro que a descrição da aparência de Gúrov é, de fato, a sua própria percepção, posicionamento e desejo de ver-se de uma determinada maneira; por outro lado, ao mesmo tempo acontece uma separação entre autor e personagem e um retorno do autor a si próprio. Segundo Bakhtin, no fluxo da consciência da personagem, há ironia explícita do autor:

Parecia-lhe que fora suficientemente instruído por sua amarga experiência, para chamá-las como lhe aprouvesse, mas apesar de tudo, não poderia passar dois dias sem a “raça inferior”. Aborrecia-se em companhia de homens e mostrava-se frio, pouco loquaz, mas encontrando-se no meio de mulheres, sentia-se despreocupado e sabia do que falar e como se portar; era-lhe, mesmo, fácil calar-se em companhia delas. Em seu aspecto exterior, em seu gênio, em toda a sua personalidade, havia algo atraente, imperceptível, que predispunha as mulheres a seu favor, que as atraía, ele sabia disso e, por sua vez, sentiase atraído por elas.

Uma experiência variada, realmente amarga, ensinara-lhe, havia muito, que toda aproximação, a qual constitui a princípio uma variação tão agradável na vida e apresenta-se como uma aventura ligeira e aprazível, converte-se invariavelmente, em se tratando de pessoas corretas, especialmente moscovitas, indecisas e pouco dinâmicas, num verdadeiro problema, extraordinariamente complexo, e a situação, por fim, torna-se verdadeiramente difícil. Mas, a cada novo encontro com uma mulher interessante, essa experiência escapava-lhe da memória, vinha-lhe uma vontade de viver, e tudo parecia simples e divertido (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.315).

Nas passagens em que a ironia é clara, a narrativa do autor mescla-se com a percepção da personagem, e dois estilos de fala entrelaçam-se, o que enfatiza a vulgaridade da situação e adiciona um efeito cômico:

Ele a olhou então fixamente e, de súbito, abraçou-a e beijou-lhe os lábios; foi envolvido pelo perfume e pela umidade das flores e, no mesmo instante, espiou assustado em redor, para certificar-se de que ninguém os vira - Vamos a sua casa... - disse em voz baixa (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.318);

E muitas vezes, no parque ou em algum jardinzinho público, quando não havia ninguém nas proximidades, ele a atraía de repente para si e beijava-a apaixonado. Aquele ócio completo, aqueles beijos em pleno dia, repassados incessante de gente ociosa, bem-vestida e nutrida, pareceram tê-lo transformado completamente. Dizia a Ana Sierguèievna como ela era bonita e tentadora, demonstrava uma impaciência apaixonada, não a deixava por um momento. Ela ficava frequentemente pensativa, pedindo-lhe sempre confessar que não a estimava, não a amava um pouco sequer, e que via nela simplesmente uma mulher vulgar (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.322).

Não apenas a voz da personagem pode ser tecida na narração do autor, mas o narrador pode aparecer repentina e diretamente no contexto dos pensamentos da personagem, como se estivesse a juntar-se a eles:

naquele momento, lembrou-se de repente de como, certa noite, numa estação da estrada de ferro, tendo acompanhado Ana Sierguéievna ao trem, dissera a si mesmo que tudo estava terminado e que não se tornariam a ver jamais. Mas como estava longe, ainda, o fim de tudo! (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.329).

A última frase (“mas como estava longe, ainda, o fim de tudo!”) é, claramente, a voz do autor, que possui uma perspectiva alargada em relação à personagem.

3. 3 As repetições e a lenda de Don Juan

Nas obras de Tchékhov, espelhamentos são recorrentes: a repetição de situações, diálogos e personagens ocorrem não apenas em um conto ou outro, mas perpassam toda a sua obra. Esse é um dos truques que nos ajudam a encontrar a voz do autor, oculta no subtexto. Portanto, um pormenor fortuito que menciona a educação formal de Gúrov liga essa personagem a outros filólogos de Tchékhov, tais como Mikhail Fiódorovitch (de “História enfadonha”) e Laiévsky (de Duelo). Todos eles têm um tipo definido de personalidade: uma tendência a um jogo inconsciente, no qual vestem a máscara de outra personagem da literatura. Laiévsky vê-se na imagem de Oniégin ou Pechórin, e Mikhail Fiódorovitch posa como Mefistófeles. O autor brinca com as personagens com tanta habilidade que o leitor (e até o pesquisador) pode ser enganado e confundir a máscara com a personagem do texto em questão, sem notar alguns pormenores. O pesquisador Kubássov (1998)KUBÁSSOV, A. Proza A. P. Tchekhova. Iskusstvo stilizacii [A prosa de A. P. Tchékhov. Arte da estilização]. 1998, 200 f. Monografia - Universidade Pedagógica do Estado dos Urais, Ekaterinburg,1998. observa que, antes de mais nada, as iniciais do nome e do patronímico de Mikhail Fiódorovitch - M. F. - não foram escolhidas ao acaso, mas apontam para determinado protótipo literário (Mefistófeles); analogamente, o nome e sobrenome de Dmítri Gúrov - D. G., em “A dama do cachorrinho”, faz analogia a Don Guán (em russo; Don Juan, em português).

Características da aparência, como cabelos grisalhos e sobrancelhas negras, compõem uma semântica complementar: encontram-se na figura de outro Mefistófeles, o monge negro de “O monge negro”. Kubássov analisa o léxico da personagem Mikhail Fiódorovitch, no qual são recorrentes algumas réplicas que remetem ao campo semântico do ‘infernal’, como, por exemplo, “um frio dos infernos” (ádski khólodno) e “o diabo que o carregue” (k tchiórtu), e acrescenta que, por ironia, essa personagem se dirige a Deus com mais frequência do que as outras (“Ai, meu Deus!”, “Deus me livre” etc.); a partir disso, assinala o cinismo de Mikhail Fiódorovitch, principalmente quando se trata de outros membros da Igreja. Na opinião de Kubássov, todo esse conjunto cria uma genealogia literária e indica um oculto parentesco com Mefistófeles. Concordamos, em muito, com as conclusões do pesquisador, mas ressaltamos que ele deixou escapar dois pormenores substanciais, que não apenas complementam a figura de Mikhail Fiódorovitch, como também a modificam. O primeiro é que a personagem não é simplesmente um colega de universidade, mas um filólogo; mais do que isso, “pertence a uma antiga e nobre família, bastante feliz e talentosa, que desempenhou um papel apreciável na história da nossa literatura e da nossa instrução” (p.134).

O paralelo entre “A dama do cachorrinho” e a lenda de Don Juan, mais precisamente na versão de Púchkin, foi notado pela primeira vez por Katáev (1989)KATÁEV, V. B. Literaturnye svjazi Tchekhova [Contactos literários de Tchékhov]. Moscou, Ed. da Universidade Estatal de Moscou,1989. Disponível em: http://apchekhov.ru/books/item/f00/s00/z0000017/st012.shtml. Acesso em: 8 jul. 2021.
http://apchekhov.ru/books/item/f00/s00/z...
. Como no caso de Mikhail Fiódorovitch, Tchékhov brinca com os nomes Dmitry Gúrov/Don Guan (de Púchkin) e Dama Ana/Donna Anna. Há semelhança entre os enredos (adultério) e as personagens principais. Como observa Katáev, a coincidência chega inclusive ao fato de os dois escritores haverem-se apaixonado e separado dos seus amores no ano em que escreveram as suas obras.

Discordamos, nesse ponto, do respeitado estudioso. Um pormenor é que Gúrov, o ‘filólogo’, muda a ênfase do ponto de vista do autor para o ponto de vista da própria personagem. É a personagem quem se realiza como Don Juan, o conquistador e favorito das mulheres, e que, ao mesmo tempo em que é condescendente com elas, as despreza. No entanto, os pormenores do autor que reverberam as entoações da personagem são que Gúrov, uma pessoa criativa, preparava-se para cantar em uma ópera privada, ainda que trabalhasse modestamente em um banco e que ele se casara à força, a sua esposa era-lhe desagradável e metia-lhe medo. Tudo isso modifica a imagem que Gúrov possui de si, de modo que o leitor vê um homem de meia idade encantador, porém comum, covarde, de vontade fraca e pouco notório.

As personagens restantes - Ana e o marido, a esposa de Gúrov, o cão e até as mais episódicas (o zelador em Oreanda, o recepcionista, o colega, a filha, estudantes no teatro) aparecem na história, de um jeito ou de outro, apenas em presença de Gúrov - quando a personagem se lembra deles, os vê, os ouve ou lhes fala. Com a exceção de um ponto no final da história, Ana não existe por si só. Tudo o que a caracteriza - a aparência, os pensamentos, ações, o seu discurso - é apresentado apenas através do prisma de Gúrov, ou seja, ao leitor é dado a conhecer apenas aquilo que a personagem vê, sente e pensa de Ana. O narrador que cria a imagem de Gúrov é ele próprio, o que confirma as ideias de Bakhtin mencionadas na parte teórica.

O cachorrinho, de raça conhecida (um lulu (spitz) branco), é mencionado três vezes no texto: no início, como marca registrada de uma senhora desconhecida; depois, como motivo de reconhecimento; e, finalmente, aparece de relance em um episódio alarmante e lânguido de espera na cerca cinzenta, como algo familiar e caro à personagem que, de tão animado, logo recupera o fôlego. É fácil perceber que o lulu aparece na história somente quando está no campo de visão de Gúrov e, mais do que isso, quando a personagem está interessada na sua presença ou consciente dela. Onde estaria o cãozinho quando o romance de férias se desenvolve nas cenas do píer, do hotel, em Oreanda, na despedida? O cãozinho parece desaparecer precisamente quando o Narrador-Gúrov se esquece dele.

Por mais de cem anos, os pesquisadores tentaram resolver o enigma do que torna o cão tão importante para Tchékhov - uma vez que, ao que parece, removê-lo do texto não alteraria evento nenhum. Tchékhov, inclusive, coloca-o no título, e com isso indica que ele desempenha um papel especial no conto. Acerca desse enigma, apresentaremos a nossa própria interpretação.

Os elementos nos quais o ponto de vista do autor pode, sem dúvida, ser buscado, é no título da obra, na proporção entre vários elementos artísticos independentes e na composição deles de uma maneira definida para suscitar o maior impacto emocional e semântico ao leitor. O modo de construção e organização do texto literário e a interligação entre os seus elementos, de onde provêm a sua unidade e inteireza, é um material selecionado e disposto de determinada maneira para a obtenção do máximo efeito emocional e semântico sobre o leitor, sempre em conformidade com a ideia do autor.

O título, nas obras de Tchékhov, especialmente do período tardio, é muitas vezes simbólico e concentra todo um ponto de vista e ideias do autor, sendo a chave para desvendar o significado e o subtexto ocultos. “A dama do cachorrinho” fala, claramente, de Ana e do seu lulu branco; por que o título não menciona Gúrov, personagem a partir de quem o leitor recebe a imagem dos acontecimentos? Eis cá a nossa hipótese.

3. 4 “A dama do cachorrinho” e A dama das camélias

No outono de 1893, Tchékhov conheceu Lídia Iavórskaya, atriz de Moscou. Por vários anos, eles se mantiveram ligados por relações amorosas e amigáveis. No mesmo ano de 1893, Iavórskaya estrelou no palco do teatro F. Korsch, no papel de Marguerite Gauthier em A dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho. Sabe-se que Tchékhov assistiu repetidamente às suas apresentações e conhecia bem o enredo do espetáculo. A semelhança entre os nomes chamou a nossa atenção imediatamente e, a partir disso, pudemos encontrar muitos paralelos entre A dama das camélias e “A dama do cachorrinho”, tanto no nível de enredo quanto no de pormenores em geral e pormenores fortuitos. O tema principal do romance de Dumas é o amor inesperado, sacrificial e inexplicável das personagens em oposição aos fundamentos morais da sociedade. Em A dama das camélias, a cortesã Marguerite Gauthier, quando tenta explicar ao seu amado toda a força do seu amor, diz:

- é verdade - retomou ela -, nós, criaturas do acaso, temos desejos fantásticos e amores inconcebíveis. Vou dizer uma bobagem, mas há muito tempo tive um cachorro que me olhava de um jeito todo triste quando eu tossia: foi o único ser que amei. Pois bem, amei você tão prontamente quanto ao meu cão (DUMAS, 2004DUMAS, A. A dama das Camélias. Tradução de Caroline Chang. São Paulo: L&PM Pocket, 2004., p.78).

O cão funciona, portanto, como uma medida de amor; para Marguerite, o cão é o parâmetro do amor mais elevado. Já no mundo de Tchékhov, o verdadeiro amor é irracional, espontâneo e não requer explicação, porque é impossível e está em um plano independente da mente humana, numa espécie de natureza eterna. Gúrov sentiu essa fusão, pela primeira vez, sentado à beira-mar. O episódio de Oreanda é o ponto mais alto da história. A partir desse momento, embora as personagens ainda não suspeitem disso, o seu romance superficial de férias repentina e inexplicavelmente começa a transformarse em um profundo sentimento genuíno, cuja força é tal que se torna impossível resistir a ele. A incapacidade de as personagens decidirem os seus destinos, que se traduz em uma espécie de força irracional, para além do controle humano e quase mística - semelhante a um dilúvio - é o evento principal do conto. Já mencionamos a dualidade e objetividade dos símbolos de Tchékhov; no presente caso, o cão é um animal concreto, real, branco e, ao mesmo tempo, um símbolo desse amor sublime e cuja força equivale à inexorabilidade da própria natureza. Assim, a alusão ao romance A dama das camélias, no título da história de Tchékhov, determina imediatamente o seu conteúdo semântico.

Em ambas as obras, os temas têm algo em comum (amor, pecado, sociedade, sentido superior), assim como as imagens: por exemplo, em ‘pássaros em gaiolas’, a cena da ação é o teatro. Alguns fragmentos fazem paralelo:

A dama das camélias “A dama do cachorrinho” De forma que na loja da Madame Barjon, sua florista, terminou-se por chamá-la a Dama das Camélias, e este apelido ficou (II); Passeava sozinha, sempre com a mesma boina e acompanhada do lulu branco. Ninguém sabia quem era e chamavam-na simplesmente: a dama do cachorrinho (p.314); Chegando à porta do apartamento que você conhece, o coração batia-me tão forte que o pensamento me escapava. Alguns acordes de piano chegavam até nós (VIII); Gúrov caminhou, sem se apressar, para a StaroGontchárnaia e procurou a casa.... passada uma hora, ouviu tocar o piano, mas os sons chegavam-lhe fracos, pouco nítidos.... Gúrov quis chamar o cachorro, mas, de súbito, começou a bater-lhe precipitadamente o coração e, perturbado, não consegui lembrar o nome do lulu (p.326-327); Sempre se associou o campo ao amor, e fez-se bem: nada enquadra a mulher amada como o céu azul, os perfumes, as flores, as brisas, a solidão resplandecente dos campos ou das florestas ... Eu tinha ao meu lado uma mulher jovem, bela, que eu amava e pela qual era amado, e que se chamava Marguerite (XVI). Sentado ao lado da jovem mulher, que, ao alvorecer, parecia tão bonita, acalmado e embevecido face ao ambiente encantado, face ao mar, às montanhas, às nuvens, ao amplo céu, Gúrov pensava em como, na realidade, refletindo-se direito sobre isto, tudo é belo neste mundo, tudo, com exceção do que nós mesmos pensamos e fazemos, quando nos esquecemos dos objetivos elevados da existência e de nossa própria dignidade humana (p.321). Fonte: Elaborado pelas autoras.

A toponímia também é semelhante: em ambas as obras, junto com as cidades reais nomeadas (Paris, Toulon e Bouzewal, em A dama das camélias; e Ialta, Moscou e Petersburgo, em “A dama do cachorrinho”), há também uma cidade sem nome - cidade S. (no romance de Dumas, o pai da personagem chega da cidade S.; no conto de Tchékhov, Gúrov vai à cidade S. para ver Ana). Em ambos os casos, a cidade S. torna-se fatídica para as personagens. Em “A dama do cachorrinho”, com uma referência óbvia ao romance de Dumas Filho, a intensidade do romantismo se reduz à maneira tchekhoviana - não há vítimas, mortes ou sepulturas cavadas; a história de amor é corriqueira, tranquila e secreta. E, enquanto Marguerite Gauthier é uma morena brilhante e fica deslumbrantemente linda com roupas brancas, vermelhas ou pretas, atraindo a atenção de todas as maneiras, Ana Sierguéievna é uma loira modesta, de boina e vestido cinzento, ou seja, enfaticamente comum. No entanto, alguns pormenores (pormenores fortuitos) unem as duas: as flores e os binóculos, inalterados nas mãos da cortesã Marguerite, ecoam as flores e os binóculos nas mãos de Ana Sierguéievna no cais, antes da sua queda à noite, no hotel. Embora supérfluo para a história, o título da peça Gueixa (associação com o fato de Marguerite ser uma cortesã) confirma a nossa hipótese.

Em “A dama do cachorrinho”, duas forças opressoras são claramente sentidas e criam um conflito insolúvel para as personagens: de um lado, a sociedade; do outro, o amor. A palavra com a qual a história começa - ‘dizia-se’ (diziam, govoríli, p.314) - é reforçada pela forma impessoal do verbo, que torna a ocorrer adiante no texto: ‘dizia-se’ (govoríli, p.314); ‘haviam-no casado’ (jeníli, p.314); ‘caçados e obrigados a viver em gaiolas separadas’ (poimáli i zastávili jit’ v otdiélnykh kliétkakh, p.333). A representação do socium, no conto, é impessoal, destituída de individualidade. A multidão sem rosto é descrita pelo autor em duas cenas: no cais e no teatro, onde não se veem rostos, apenas roupas e, muitas vezes, roupas militares, uniformes e insígnias. No capítulo 3, a contraposição entre sociedade e as personagens principais é sublinhada por um pormenor fortuito: a posição das mãos. Em relação ao enredo e à caracterização de qualquer elemento do texto (personagens, situações, relações etc.), não tem nenhuma importância o fato de que, na residência do governador, de trás do reposteiro se vejam apenas as mãos e não se veja a cabeça, assim como o fato de que o cavaleiro sobre o tinteiro tenha um braço levantado e a cabeça tenha sido arrancada. No entanto, a semelhança entre os pormenores fortuitos encontrados no conto de Tchékhov reúne-os em um grupo: o mundo contraposto às personagens principais. Nos objetos e nas personagens que personificam a “sociedade”, é como se as mãos estivessem separadas do corpo e existissem por si próprias. Por exemplo: “levantando um braço com chapéu” (p.326); “este poderia cair nas mãos do marido” (p.326); “os elegantes locais ficavam de pé, na primeira fila, as mãos atrás” (p.328); “deixando aparecer apenas as mãos”. As mãos de Anna e Gúrov estão apertadas, unidas, achegadas uma à outra: “apertou fortemente nas mãos” (p.328); “pôsse a beijar-lhe o rosto, as faces, as mãos” (p.330); “ele apertou-lhe a mão” (p.330).

Com a exceção das personagens principais, todas as outras não possuem nome. A esposa de Gúrov e o marido de Ana, no texto, são chamados apenas de ‘marido’ e ‘esposa’. Gúrov não consegue lembrar-se do nome do lulu, e os nomes das personagens principais soam distorcidos na boca de outras personagens: a mulher erroneamente chama ‘Dmitry’ de ‘Dimítri’, assim como o porteiro, que pronuncia o sobrenome (Díderets) de maneira errada (Dríderets). Ambos as personagens são representantes da sociedade ao seu redor, embora sejam os únicos com identificação, nomes completos e biografia; além disso, antes de saber o nome de Ana, Gúrov sonha, nas palavras do autor, “com um caso com uma mulher desconhecida, a qual você não conhece de nome e sobrenome”.

Publicamente, a vida de Gúrov permanece a mesma; uma nova vida é apenas adicionada a essa vida pública. A nova vida é aquela que a personagem percebe como real, secreta, paralela e definida como ‘grão e casca’. A palavra ‘mistério’ é o motivo principal de todo o texto e tem um duplo sentido: tanto ‘engano’ quanto ‘mistério’, propriamente, no sentido positivo de algo fascinante e belo. Esse conceito é tão importante para Tchékhov, que o autor chama a atenção do leitor para a repetição da palavra ‘segredo’ (táina, táiny) cinco vezes em um mesmo parágrafo no início do capítulo 4. Infelizmente, o tradutor do português optou por sinônimos - ‘segredo’, ‘ocultas’, ‘mistério’ (p.331), e o efeito de repetição ficou enfraquecido.

A repetição das mesmas situações, vocabulário, motivos e símbolos formam a estrutura do texto. No entanto nota-se que eles se repetem de uma forma ligeiramente diferente, como reflexo das mudanças que ocorrem com as personagens. Por exemplo, tanto nos episódios do cais quanto do teatro, Gúrov e Ana estão cercados por uma multidão elegante, composta de senhoras e pessoas uniformizadas. No cais, Ana perde os binóculos; no teatro, ela os aperta com força. No cais, “o vento arrastava a poeira em turbilhão” (p.317); no teatro, havia “um vento encanado” (p.329). No cais, “de súbito, abraçou-a e beijou-lhe os lábios… e, no mesmo instante, espiou assustado ao redor, para certificar-se de que ninguém os vira” (p.318); no teatro, Gúrov “não se importava com coisa alguma, atraiu para si Ana Sierguéievna e pôs-se a beijar-lhe o rosto, as faces, as mãos” (p.330).

Outra situação se repete no hotel: Ana chora duas vezes. No primeiro caso, repreendendo-se pelo ‘pecado’ que cometera, temendo que Gúrov deixasse de respeitála; no segundo, chora em silêncio, pela desesperança da situação. A atitude de Gúrov em relação às lágrimas também é diferente: incompreensão e irritação, no primeiro caso, e profunda compaixão, no segundo. No hotel em Ialta, Ana diz: “Que Deus me perdoe!” (p.319); em Moscou: “perdoaram um ao outro tudo aquilo de que se envergonhavam em seu passado, perdoavam-se tudo no presente e sentiam que aquele amor os transformava” (p.333). Em Ialta, Gúrov, irritado, come uma melancia; no hotel, em Moscou, toma chá, dando a Ana tempo para se acalmar. O mais importante é que o que eles significam um para o outro está mudando. No hotel em Ialta, eles são apenas amantes; já em Moscou, Ana Sierguéievna “e ele amavam-se como gente próxima e querida, como marido e mulher, como dois ternos amigos” (p.333).

3. 5 Simbolismo das cores e objetos e oposições lexicais

Uma das formas de construção do subtexto está no vocabulário que, repetido de forma persistente, atrai a atenção do leitor para motivos ou símbolos. Às vezes, essas unidades lexicais formam pares de significados semelhantes ou opostos, como ‘o segredo’ (táina); o russo skúka, traduzido como os sinônimos ‘aborrecido’ e, no mesmo campo semântico, ‘cinzento’ (siérost’), ‘sufocante’ (dukhotá); os opostos ‘experiência’ (ópyt) e ‘inexperiência’, ‘angulosidade’ (nieópytnost’); ‘pureza’ (tchistotá) e ‘impureza’ (nietchistotá) ou ‘depravação’, no sentido de ‘pecado’.

Muito do que foi dito acima aparece já no primeiro capítulo do conto que, além disso, já exibe uma categoria espaço-temporal composta por eventos temporais específicos (semana, segundo mês), e uma categoria topográfica, composta pelas 4 cidades nomeadas e, posteriormente, presentes no texto, a saber, Ialta, Moscou, Petersburgo e a cidade de S. A presença de ambas as categorias nos permite falar sobre a formação de um cronotopo. No primeiro capítulo, já se fazem presentes todas as personagens principais: Gúrov, Ana, o cãozinho, o marido, a esposa e inclusive até os filhos. Aparecem as cores simbólicas branco, escuro e cinzento, monocromo que será observado ao longo da história, com exceção da descrição das cores do mar no primeiro capítulo: “a água tinha uma cor lilás… e sobre ela o luar deitava uma faixa dourada” (p.316). Outra cor relevante é o vermelho: “um homem mensageiro de chapéu vermelho” (p.330), que é o sinal luminoso que liga as personagens, no último capítulo. Esses são os únicos pontos coloridos na história.

Todos esses símbolos, em algum grau, são estáveis no sistema artístico de Tchékhov, mas, às vezes, podem inesperadamente mudar de significado, segundo a intenção do autor. A cor cinzenta e o ‘tédio’, por exemplo, são um reflexo simbólico de desesperança, falta de espiritualidade e harmonia na existência humana. Em “A dama do cachorrinho”, a desesperança é construída simbolicamente pela poeira e pelo pano, cobertor e muro cinzentos, que fazem Gúrov sentir uma melancolia insuportável. Porém, o significado deste símbolo muda quando se trata de Ana, pois seus olhos são cinzentos, porém bonitos, e o seu vestido cinzento é o preferido de Gúrov.

‘Segredo’, no mundo de Tchékhov, é sinônimo do conceito de amor10 7 Aliókhine (TCHÉKHOV, 1975), na história “Sobre o amor”, diz: “até agora, apenas uma verdade indiscutível foi dita sobre o amor, a saber, que “este grande segredo é”. [Tradução nossa. No original, em russo transliterado: “Do sikh por o liubví bylá skázana tól’ko odná nieosparímaia právda, a ímienno, tchto ‘táina siia vieliká iest’”. Disponível em: https://ilibrary.ru/text/461/p.1/index.html. Acesso em: 10 jul 2021. . Já no primeiro capítulo, a raiz da palavra ‘segredo’ é repetida duas vezes: “ele, secretamente, considerava-a pouco inteligente” (p.314); “com um objetivo secreto que ela não podia deixar de adivinhar” (p.317). Além disso, a própria aparência de Ana, uma estranha de boina, é misteriosa. Outro pormenor misterioso aparece no segundo capítulo: “e este pormenor pareceu igualmente misterioso e belo”11 8 Tradução nossa. No original, em russo transliterado: “I éta podróbnost’ pokazálas’ takói taínstviennoi I tózhe krasívoi”. (p.321). O tradutor escolhe um sinônimo para ‘segredo’ - ‘mistério’. Além do segredo, outro motivo do segundo capítulo é o religioso, também expresso lexicalmente: ‘imploro’, ‘pecado/salvação’, ‘Deus/diabo’ (nietchísty), ‘pecadora’, ‘igreja’.

Apesar de o texto enfatizar o fato de Gúrov e Ana ainda viverem a mesma “vida sem asas”, mentindo e trapaceando, no quarto e último capítulo, podemos ver que a atitude do autor em relação à personagem está mudando e o próprio ponto de vista do autor torna-se mais complexo. A narrativa do autor fortalece-se, a ironia desaparece; surgem a simpatia e o arrependimento. A incapacidade de as personagens encontrarem uma saída para o conflito amoroso, dentro dos limites da narrativa, remete à incapacidade de as três irmãs irem a Moscou, como se nada dependesse delas. O capítulo 4 ecoa semanticamente o início do segundo: “ficava-se sem saber onde se meter” (p.317). As personagens tornam-se iguais; não apenas Gúrov, mas também Ana atua como um personagem independente, dada diretamente pelo autor, e pela primeira vez aparece o seu discurso indireto: “chorava de emoção, da consciência angustiosa de que a vida deles dispusera-se de modo tão triste; viam-se apenas em segredo, escondiam-se das pessoas, como ladrões! Não estava destruída a vida de ambos?” (p.332). Com as últimas frases, o autor parece juntar-se às personagens e as suas vozes se fundem. E se no terceiro capítulo encontramos a palavra “fim”, que ainda estaria longe (“mas, como estava longe ainda o fim de tudo!”12 9 Tradução nossa. No original, em russo transliterado: “No kak daliekó ieschie by’lo do kontsá”. , p.329), a última palavra do conto é ‘iniciava-se’ (natchináietsa): “o mais difícil e complexo apenas se iniciava” (p.333).

Ao traduzir, é muito importante preservar a frequência de repetição desses lexemas sem substituí-los por sinônimos, pois este é um dos principais elementos do subtexto do autor. Os temas, motivos, símbolos, o cronotopo e o ritmo da história “A dama do cachorrinho” estão intrinsecamente ligados ao tema da narração do autor, são ricos em material interessante para o pesquisador e ainda não foram estudados. No âmbito deste trabalho, tivemos a oportunidade apenas de delinear as principais teses e apresentálas como pontos de partida para pesquisas futuras.

Considerações finais

Concluímos, agora, os aspectos tratados no artigo. A profundidade de compreensão de Tchékhov no Brasil, fora da área da dramaturgia, ainda não foi suficientemente explorada; com este artigo, pretendemos contribuir para o diálogo entre os leitores brasileiros e os russos e o mundo do autor. O ineditismo da pesquisa é mostrar a proximidade entre as visões de Mikhail Bakhtin no início das suas atividades de ensaísta e Anton Tchékhov como teórico da criação verbal (analisando suas cartas), aplicando essa teoria aos corpora. Abrimos, assim, um debate sobre a possibilidade de comparar as ideias de Mikhail Bakhtin sobre as relações autor - personagem - leitor com as visões tchekhovianas sobre o assunto. Tais ideias, como vimos, podem ser ilustradas pela narrativa do escritor, e a combinação pode vir a ser de interesse para futuros estudos.

A ausência de análises de Tchékhov nas obras de Bakhtin advém, na nossa opinião, da influência do conceito pejorativo que perseguiu o escritor no Século de Prata. Contudo, ao longo da vida, Bakhtin mudou de opinião acerca de Tchékhov, e hoje podemos cotejar a proximidade entre ambos no que se refere às relações autorpersonagem e ao acabamento da narrativa.

Tanto para Tchékhov quanto para Bakhtin na fase inicial da sua atividade ensaística, todos nós - leitores e estudiosos - estamos envolvidos no processo da criação verbal, juntamente com o autor/narrador e a personagem. O mundo retratado por um autor passa totalmente pelo prisma da percepção da personagem, o que é denominado por Bakhtin como ‘excedente de visão do autor’: quando a consciência e o interesse vital (cognitivo-ético) no evento da personagem é abraçado pelo interesse artístico do autor. A dominância da estética na criação verbal é enfatizada tanto por Bakhtin quanto por Tchékhov: na visão bakhtiniana, da mesma maneira que nos princípios da narrativa de Tchékhov, o mundo objetivo que cerca a personagem é transgressor para a consciência do próprio.

Na análise do conto “A dama do cachorrinho”, aplicamos e atestamos o funcionamento das ideias iniciais bakhtinianas na narrativa de Tchékhov. Embora a história tenha sido contada pelo narrador, quase imediatamente percebemos que a situação, eventos e personagens são retratados pelo prisma da percepção da personagem: apenas o que a personagem vê, ouve e pensa entra no campo de visão do leitor. Aparece a incerteza, que só é possível para a consciência subjetiva da personagem e é expressa pela forma impessoal dos verbos, palavras e construções introdutórias: palavras que transmitem sensações, a fatalidade de um fato, um estado emocional, a posição no espaço e eventos temporários, os verbos no discurso indireto, exclamações, perguntas e equívocos sobre alguns eventos. A visão interior é enfatizada pela falta de um retrato de Gúrov, em oposição à aparência de outras personagens que entram no seu campo de visão. Demonstramos o paralelo entre a lenda de Don Juan e apresentamos a nossa própria versão da origem do título do conto analisado: a intertexutalidade entre “A dama do cachorrinho”, de Antón Tchékhov, e A dama das camélias, de Alexandre Dumas Filho.

  • 1
    Tradução nossa. No original, em russo transliterado: “Éti tiéksty, po iedinodúchnomu mniéniiu spietsialístov, v sguschiónnoi fórmie sodiérzhat praktítchieski vsié osnovny’ie idiéi, razvivávchiiesia Bakhtiny’m na protiazhiénii iegó dólgoi naútchnoi zhízni”.
  • 2
    Foi consultada a edição brasileira (BAKHTIN, M., DUVAKIN, V. Mikhail Bakhtin em diálogo: conversas de 1973 com Viktor Duvakin. Tradução Daniela Miotello Mondardo, a partir de edição italiana. São Carlos: Pedro e João Editores, 2012BAKHTIN, M.; DUVAKIN, V. Mikhail Bakhtin em diálogo: conversas de 1973 com Viktor Duvakin. Trad. Daniela Miotello Mondardo, a partir de edição italiana. São Carlos: Pedro e João Editores, 2012.), com a tradução indireta da língua italiana. Entretanto, decidimos manter nossa tradução, diretamente do russo.
  • 3
    Alexéy Suvórin foi jornalista, editor, escritor, crítico de teatro e dramaturgo russo. Editor do jornal Novo Tempo (Nóvoie vriémia), com o qual Tchékhov colaborou.
  • 4
    Traduzido pelas Professoras Doutoras Sheila Vieira de Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo, a sair em 2022.
  • 5
    É necessário assinalar que o pormenor fortuito também pode desempenhar outros papéis, como, por exemplo, participar na formação do cronotopo. No presente artigo, nós não tratamos desse tema.
  • 6
    Aqui, encontramos um provável erro de tradução. Em russo, otchievídno tem dois significados (VOINOVA; STARETS, 1989VOINOVA N., STARETS, V. Dicionário russo-português. 2. ed. Moscou: Russki Yazik, 1989., p.400): 1) advérbio - “evidentemente”, “sem dúvidas” e 2) palavra introdutória - “pelo visto”, “ao que parece”. No sentido proposto pelo texto, seria melhor usar o segundo. A história também contém a incerteza do herói sobre o que está acontecendo e a ambiguidade da avaliação do autor, enfatizando a transição pouco clara entre os pontos de vista de ambos. “Obviamente”, como uma palavra introdutória, juntamente ao sinônimo “provavelmente” e “aparentemente” e verbos com o mesmo significado (por exemplo, “parecia”), representam o motivo de incerteza, um dos principais do conto. A incerteza do herói sobre o que está acontecendo e a ambiguidade da avaliação do autor reforçam aquela transição pouco clara entre os pontos de vista de um e outro. Além disso, o motivo da incerteza também se correlaciona com a dualidade da vida de Gúrov e, em alguns fragmentos do texto, esse motivo é contrastado com a ‘clareza’: “tudo permanecia nítido na memória” (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.324); “compreendeu com nitidez que não existia, agora, para ele, em todo o mundo, pessoa mais próxima (TCHÉKHOV, 2011TCHÉKHOV, A. A dama do cachorrinho e outros contos. Tradução de Boris Schnaiderman. 4. ed. São Paulo: Editora 34, 2011., p.328).
  • 7
    Aliókhine (TCHÉKHOV, 1975TCHÉKHOV, A. P. Pólnoie sobrániie sotchiniénii I písiem v 30 tomákh [Obras e cartas completas em 30 volumes]. Písma [Cartas]: em 12 volumes. Academia de Ciências da URSS. Institút mirovói litieratúry imieni A. M. Gór’kogo. Мoscou: Nauka, 1974-1983. v. 4. Cartas, janeiro 1890 - fevereiro 1892. Мoscou: Nauka, 1975. Disponível em: http://ruslit.traumlibrary. net/book/chekhov-pss3021/chekhov-pss30-21. html . Acesso em: 8 jul. 2021.
    http://ruslit.traumlibrary. net/book/che...
    ), na história “Sobre o amor”, diz: “até agora, apenas uma verdade indiscutível foi dita sobre o amor, a saber, que “este grande segredo é”. [Tradução nossa. No original, em russo transliterado: “Do sikh por o liubví bylá skázana tól’ko odná nieosparímaia právda, a ímienno, tchto ‘táina siia vieliká iest’”. Disponível em: https://ilibrary.ru/text/461/p.1/index.html. Acesso em: 10 jul 2021.
  • 8
    Tradução nossa. No original, em russo transliterado: “I éta podróbnost’ pokazálas’ takói taínstviennoi I tózhe krasívoi”.
  • 9
    Tradução nossa. No original, em russo transliterado: “No kak daliekó ieschie by’lo do kontsá”.

Agradecimentos

Agradecemos ao Prof. Dr. Noé Silva de Oliveira Queiroz Policarpo Polli, do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e aos integrantes do grupo de pesquisa Diálogo USP/CNPq pelos comentários e discussões.

  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido pela Bakhtinina. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.
    Disponibilidade de dados de pesquisa e outros materiais Os conteúdos já estão disponíveis.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    10 Jul 2021
  • Aceito
    23 Ago 2022
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