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Responsabilidade ética na ciência, na arte e na vida

Os três campos da cultura humana – a ciência, a arte e a vida – só adquirem unidade no indivíduo que os incorpora à sua própria unidade. (...) O que garante o nexo interno entre os elementos do indivíduo? Só a unidade da responsabilidade.

Mikhail Bakhtin

É mais fácil e barato programar um robô para escrever textos do que checar a veracidade de uma informação.

Fernando Osório 1 Pesquisa FAPESP, março, 2023, p.20.

Talvez a novidade mais surpreendente na academia (e na sociedade), nos últimos tempos, tenha sido a criação e rápida disseminação do ChatGPT, “uma inteligência artificial (IA) gratuita, criada pela OpenAI”, que ‘conversa’ com o interlocutor, de forma natural e pode ser acessada por celulares Android ou iPhone (iOS), sem a necessidade de baixar aplicativos. O ChatGPT é capaz de gerar [generate] textos por meio da Inteligência Aritificial. Em muito pouco tempo, tornou-se conhecido mundialmente e foi produzido um grande número de artigos sobre ele nas diferentes mídias. Os sentimentos provocados foram bastante diversos – fascínio e temor, admiração, indiferença, entusiasmo -, mais especificamente em relação à sua habilidade e competência (e gentileza...) na redação de respostas e composição de textos nas diferentes áreas do conhecimento. Ao pedir ao próprio ChatGPT que se definisse, Fábio Cozman 2023COZMAN, F. O Que é o ChatGPT? SEMINÁRIO “ChatGPT: Potencial, Limites e Implicações para a Universidade”, Instituto de Estudos Avançados (IEA), USP, São Paulo, São Paulo, 21 de março de 2023. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bY2aTBeCyJU. Acesso em: 21 mar. 2023.
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, (online), do Center for Artificial Intelligence/USP, recebeu a seguinte resposta:

Eu sou o ChatGPT, um modelo de linguagem de inteligência artificial desenvolvido pela OpenAI. Fui projetado para responder perguntas e realizar tarefas diversas usando linguagem natural. Minha função é ajudar a fornecer informações e soluções para problemas por meio de conversas com usuários como você.

Sobre o GPT, o último número da revista Pesquisa FAPESP, de março de 2023, produziu uma bem elaborada matéria, “O universo expandido da inteligência artificial” (ANDRADE, p.16-25ANDRADE, R. O. O universo expandido da inteligência artificial. Pesquisa FAPESP, São Paulo, Ano 24, n.325, p.16-25, março de 2023. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2023/03/016-022_capa-chatgpt_325-Parte-1-2.pdf. Acesso em 22 mar. 2023.
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). Um dos aspectos abordados é a questão dos possíveis impactos do Chat na produção de conhecimento e na integridade da ciência. É um tema que tem suscitado estudos, pesquisas e seminários nas universidades e escolas de todos os níveis. Nos dizeres de Dora Kaufman (PUC-SP e C4AI), na mesma matéria, “[de] tempos em tempos, novas tecnologias aparecem e nos forçam a rever nossos comportamentos e métodos de trabalho e ensino” (apud Andrade, 2023, p.22ANDRADE, R. O. O universo expandido da inteligência artificial. Pesquisa FAPESP, São Paulo, Ano 24, n.325, p.16-25, março de 2023. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2023/03/016-022_capa-chatgpt_325-Parte-1-2.pdf. Acesso em 22 mar. 2023.
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). Esses dizeres evocam a seguinte afirmação de Medviédev, em 1928MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2012.:

Novos meios de representação forçam-nos a ver novos aspectos da realidade, assim como estes não podem ser compreendidos e introduzidos, de modo essencial, no nosso horizonte sem os novos recursos de sua fixação (2012, p.199MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2012.).

Forçam-nos ainda a pensar em marcos regulatórios para uso do ChatGPT e, sobretudo, em termos de ética da pesquisa, nos princípios que a regulam, em códigos de honra, como existentes em algumas universidades americanas e canadenses, entre outras. E, para nós, estudiosos da obra bakhtiniana, o debate em torno da IA (e do ChatGPT) e seu uso evoca também os princípios éticos defendidos por Bakhtin desde o primeiro texto que publicou, “Arte e responsabilidade”, em 1919 (2006, p.XXXIII-XXXIV). Em todos os momentos da vida e da pesquisa, afirma ele, o indivíduo é inteiramente responsável, isto é, responde por seus atos na “unidade da culpa e da responsabilidade”.

No entanto, a IA é uma realidade da ciência. No Seminário promovido pela USP, “ChatGPT: Potencial, Limites e Implicações para a Universidade”, realizado em 21 de março de 2023, foram apresentadas e discutidas muitas das possibilidades de ensino e aprendizagem que o ChatGPT oferece, ao lado, também, das preocupações com seu uso. Como um avanço da tecnologia e da ciência, não nos cabe negar e/ou proibir seu uso, mas buscar modos de utilizá-lo que permitam aumentar a capacidade humana de conhecimento, sem substituí-la pela máquina. Além disso, na defesa da ciência aberta, podemos vislumbrar, por meio do Chat, oportunidades de melhorar a comunicação da ciência com a sociedade, o que é bastante positivo. Na realidade, a IA constitui-se um novo desafio ao modo como se dá e dará a construção do conhecimento daqui para a frente.

As questões éticas que têm sido levantadas são cruciais também na análise e compreensão de discursos pertencentes a diferentes esferas da atividade humana. Mas, seguramente, podemos afirmar que, ao longo de sua existência, Bakhtiniana tem sempre a satisfação de divulgar pesquisas cuja preocupação ética se encontra explícita ou latente em todos os seus textos. E isso novamente pode ser observado neste número, em que os três campos da cultura humana se entrelaçam: a ciência, a arte e a vida. Passemos, portanto, à apresentação dos artigos “originais” (ainda escritos por seres humanos!) de Bakhtiniana 18.2BAKHTIN, M. Arte e responsabilidade. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p.XXXIII-XXXIV..

Quanto à produção do conhecimento teórico na área dos estudos da linguagem, começamos com a apresentação do artigo de Filipo Figueira (UNICAMP), “No rastro do ordinário do sentido: entre jogos de linguagem e práticas cotidianas”. Nele, o autor busca compreender e desenvolver o conceito de “ordinário do sentido”, proposto inicialmente por Michel Pêcheux. Para isso, coloca as sugestões de Pêcheux em diálogo com aquelas de Ludwig Wittgenstein e sua reinterpretação culturalista elaborada por Michel de Certeau nas “artes de fazer” cotidianas. Exemplifica sua argumentação com a leitura de um post do Memorial Inumeráveis nas redes sociais. Também é a inquietação teórica que mobiliza Euclides Barbosa Ramos de Souza (UFPB) na redação do artigo “A Filosofia por trás da conversação: implicaturas e os atos de discurso indiretos”. Ao retomar estudos de Paul Grice e John Searle, o autor procura mostrar como as teorias de ambos se interrelacionam orgânica e simbioticamente.

Ainda no campo teórico, temos o artigo que nos chega da Rússia, por intermédio das pesquisadoras Sandra Madureira e Anna Smirnova, ambas da PUC-SP. Trata-se de “Os princípios da Escola Fonológica de São Petersburgo para a elaboração de corpora de fala”, redigido por cinco pesquisadores: Pavel Skrelin, Tatiana Kachkovskaia, Daniil Kocharov, Vera Evdokimova, Uliana Kochetkova. No momento da submissão, todos trabalhavam no projeto e anotação de corpora na pesquisa em fonética na Saint Petersburg State University, Rússia.

Quanto à produção de conhecimento relativo às artes, temos dois artigos. O primeiro é assinado por Marília Amorim (UFRJ e Paris VIII) e se refere à dança: “O corpo da dança como arena de valores e o cronotopo do teatro – exercício de análise”. A autora nos mostra como o teatro se constitui como cronotopo que concretiza espaço-temporalmente valores sócio estéticos do balé clássico e, por meio de transgressões cronotópicas, do balé moderno. Sobre o discurso da literatura, João Carlos de Carvalho (UFAC) assina “A Amazônia judaica de Moacyr Scliar: a palavra alheia como afirmação da não-coincidência do outro em si”. O autor analisa dois romances do autor gaúcho, buscando como o imaginário judaico e o cenário da região amazônica dialogam em discursos que atravessam não apenas o país, mas o mundo e a história, formando e fundando etnias que se cruzam em terras brasileiras.

Quanto ao terceiro grupo de artigos, podemos afirmar que remetem mais diretamente ao discurso da vida, ao tratarem de maternidade, racismo, feminicídio e expiação (ou não) do passado; e três deles têm a Análise Dialógica do Discurso como fundamento teórico-metodológico. O primeiro, “Interação, heteroglossia e discurso na #maternidadereal”, apresenta um estudo de Bárbara Luisa Martins Wieler (UFPR) a partir do conceito bakhtiniano de heteroglossia. A autora toma como objeto de análise discursos que responderam a um desafio no Facebook, questionando os valores tradicionais assumidos pelas mulheres no papel de mães. Segundo a análise, a própria expressão e os posts sobre “#maternidadereal” evidenciam como a ideia de “real” flutuou a partir de diferentes posição-sujeito das mães. Maria Helena Cruz Pistori (PUC-SP) busca compreender a disseminação e consolidação de um signo ideológico de resistência, a partir de um enunciado verbo-visual, no artigo “Racismo e a constituição de um signo ideológico de resistência”. Na busca dos sentidos de uma foto e da fotorreportagem em que se insere, as cadeias dialógicas encontradas mostram como se constitui um discurso de resistência ao racismo e outras desigualdades sociais, expresso em um signo ideológico. São três os autores de “Análise dialógica dos discursos de réus do crime de feminicídio no Tribunal do Júri”: Andreia Aparecida de Souza (CIES – PR), Adriana Delmira Mendes Polato (UNESPAR) e Neil Franco (UEM-PR). Tratando de discursos circunscritos à esfera da atividade jurídica, os autores analisam depoimentos de réus no Tribunal do Júri, e mostram como constroem imagens de si mesmos como homens vitimados, perturbados e interpelados a agir.

O discurso de expiação, objeto do estudo de Maria Ferreira (ISCSP/UL, Portugal), em “Estratégias de reelaboração do passado e a autenticidade de atos discursivos de expiação política”, caberia na esfera de atividade política. Trata-se da análise da Declaração de um Primeiro-Ministro do Japão, em 2015, durante uma conferência de imprensa. O artigo busca as estratégias de legitimação discursiva utilizadas pelo ex Primeiro-Ministro japonês, especialmente aquelas identificadas por Van Leeuwen, mostrando como essas estratégias de elaboração do passado influenciam a autenticidade de um ato discursivo de expiação política.

Finalmente, Bakhtiniana publica a resenha de uma obra recente de Ken Hirschkop, (re)conhecido especialista na obra bakhtiniana, elaborada por Filipe Almeida Gomes (UEMG). Trata-se de HIRSCHKOP, Ken. The Cambridge Introduction to Mikhail Bakhtin. Cambridge, United Kingdom; New York, NY: Cambridge University Press, 2021, 194p. E-book. (Series: Cambridge introductions to literature). De forma crítica, o autor reconhece o valor da obra resenhada, e suscita a curiosidade do leitor para conhecê-la e, especialmente, refletir sobre ela.

Ao final, acrescentamos que Bakhtiniana continua a avançar no caminho da ciência aberta: a novidade deste número é que os artigos começam a ser publicados em ahead of print. O compromisso ético com o rigor científico, compartilhamento e transparência na pesquisa, procedimentos editoriais e sua divulgação continua, com a potencialidade de maior interação entre pesquisadores. Por isso, convidamos todos – leitores, autores e colaboradores - a responder ativamente a esses textos, saboreando e incluindo em suas pesquisas este conjunto. Como podem ver os leitores, é um número que congrega nove pesquisadores brasileiros de diferentes universidades e instituições brasileiras (UFRJ, UFPB, UEMG, CIES-PR, UNESPAR, UEM-PR, PUC-SP, UNICAMP, UFPR, UFAC), e sete pesquisadores de universidades estrangeiras (Université Paris VIII – Paris, France, Saint Petersburg State University, St. Petersburg -Rússia, Universidade de Lisboa, Portugal).

Agradecemos, mais uma vez, o inestimável e constante apoio, auxílio e reconhecimento do CNPq, por meio da Chamada CNPq Nº 12/2022 –Programa Editorial, Proc. 405404/2022-0, e da PUC-SP, por meio do Plano de Incentivo à Pesquisa (PIPEq)/ Publicação de Periódicos (PubPe-PUC-SP) – 1º semestre de 2023, Edital PIPEq 11941/2023, solicitação 26267.

E fechamos o Editorial, mais uma vez, refletindo sobre o ChatGPT, agora nas palavras de Eugênio Bucci (ECA-USP):

Outros dizem que o Chat não deveria nos preocupar porque, na verdade, não é inteligente, apenas finge ser. Para esses, o artefato passa a impressão de coerência lógica, mas não pensa coisa alguma. Pode ser que estejam certos. No entanto, o mundo está cheio de gente que ostenta a inteligência que não tem. Exatamente como o GPT. Serão elas menos humanas?

E assim estamos. Com algoritmos que falam (e, pior ainda, escutam), além de escrever (e até ler), a nossa irrelevância fica ainda mais indisfarçável. A máquina nos convida para o papel de coadjuvantes na nossa própria história. E fala pelos cotovelos de silício (2023).

  • 1
    Pesquisa FAPESP, março, 2023, p.20.
  • Bolsista Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP (Processo n. 2019/20703-2)

REFERÊNCIAS

  • ANDRADE, R. O. O universo expandido da inteligência artificial. Pesquisa FAPESP, São Paulo, Ano 24, n.325, p.16-25, março de 2023. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2023/03/016-022_capa-chatgpt_325-Parte-1-2.pdf Acesso em 22 mar. 2023.
    » https://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2023/03/016-022_capa-chatgpt_325-Parte-1-2.pdf
  • BAKHTIN, M. Arte e responsabilidade. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p.XXXIII-XXXIV.
  • BUCCI, E. O algoritmo loquaz. O Estado de S. Paulo São Paulo, A5, 23 de março de 2023.
  • COZMAN, F. O Que é o ChatGPT? SEMINÁRIO “ChatGPT: Potencial, Limites e Implicações para a Universidade”, Instituto de Estudos Avançados (IEA), USP, São Paulo, São Paulo, 21 de março de 2023. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bY2aTBeCyJU Acesso em: 21 mar. 2023.
    » https://www.youtube.com/watch?v=bY2aTBeCyJU
  • MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários Introdução crítica a uma poética sociológica. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2012.
  • OSÓRIO, F. In: ANDRADE, R. O. O universo expandido da inteligência artificial. Pesquisa FAPESP, São Paulo, Ano 24, n.325, p.16-25, março de 2023. Disponível em: https://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2023/03/016-022_capa-chatgpt_325-Parte-1-2.pdf Acesso em 22 mar. 2023.
    » https://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2023/03/016-022_capa-chatgpt_325-Parte-1-2.pdf
  • SEMINÁRIO “ChatGPT: Potencial, Limites e Implicações para a Universidade”, Instituto de Estudos Avançados (IEA), USP, São Paulo, São Paulo, 21 de março de 2023.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023
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