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Cultura, estudos literários e grande tempo

O autor é um prisioneiro de sua época, de sua atualidade. Os tempos posteriores o libertam dessa prisão, e os estudos literários têm a incumbência de ajudá-lo nessa libertação.

Mikhail Bakhtin

Num momento tão conturbado como o que estamos vivendo, Bakhtiniana destaca a importância da literatura num número em que o discurso literário está efetivamente presente em sete dos nove excelentes artigos submetidos no fluxo contínuo da revista; um oitavo texto trata do ensino da literatura e, o último, da atuação e competência dos Tilsp (Tradutores e intérpretes de libras e português). Este foco nos estudos literários lembra-nos palavras de Benedito Nunes sobre “a importância ética da leitura [que] está no seu valor de descoberta e de renovação para a nossa experiência intelectual e moral”. Continuando, o filósofo afirma: “(...) a leitura é um exercício de conhecimento do mundo, de nós mesmos e dos outros” (1999NUNES, Benedito. Ética e leitura. In BARZOTTO, V. Estados de leitura. Campinas, SP: Mercado de Letras/ABL,1999. p.193-205., p. 193). Por outro lado, ao contemplarmos o conjunto desses artigos, divisamos neles certa unidade, pois todos se ancoram na cultura de nossa época, o que nos evoca um breve, mas imprescindível, texto de Mikhail Bakhtin, “Os estudos literários hoje (Resposta a uma pergunta da revista Novi Mir)”1 1 Na nova edição deste texto (2017), o título é “A ciência da literatura hoje (Resposta a uma pergunta da revista Novi Mir)”. Paulo Bezerra, o tradutor de ambas as edições, nos explica, entre outras coisas, que o termo russo (literaturoviédenie), traduzido por ciência da literatura nesta segunda tradução, “sintetiza história da literatura, teoria da literatura e crítica literária, três áreas correlatas da investigação literária (...)”. Cf. Bezerra (2017), nota de rodapé 2, p. 9. .

Em 1970, a revista Novi Mir solicita a Bakhtin uma avaliação a respeito da ciência da literatura naquele momento, na União Soviética. Na resposta a essa pergunta, o autor propõe questões bastante instigantes, das quais destacaremos apenas duas. Inicialmente, a necessidade de pensarmos a literatura como parte da cultura humana, não apenas no aqui e agora, mas de um modo mais amplo e complexo, parte constituinte da cultura de diferentes épocas e espaços: “A literatura é parte inseparável da cultura, não pode ser entendida fora do contexto pleno de toda a cultura de uma época” (p. 360). Tratando das tênues fronteiras entre os diversos campos da cultura, Bakhtin acrescenta que a intensa atividade cultural ocorre entre e nas próprias fronteiras entre os diversos campos particulares e interdependentes, que variam em diferentes épocas.

Do mesmo ensaio, a outra questão que destacamos é a noção bakhtiniana do grande tempo, também fundamental na compreensão da literatura e de sua relação com a cultura. Se, no texto “Metodologia das ciências humanas”2 2 Na tradução de 2003 (p. 393-410), Paulo Bezerra dá ao texto o título de “Metodologia das ciências humanas; na nova tradução de 2017 (p. 57-79), ele o denomina “Por uma metodologia das ciências humanas”. escrito entre fins da década de 1930 e início da década de 1940, o filósofo russo já dissera que “[n]ão existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação. Questão do grande tempo” (2003, p. 410), na resposta à revista Novi Mir ele esclarece que as obras

(...) dissolvem as fronteiras da sua época, vivem nos séculos, isto é, no grande tempo... (...) uma obra não pode viver nos séculos futuros se não reúne em si, de certo modo, os séculos passados. Se ela nascesse toda e integralmente hoje (isto é, em sua atualidade), não desse continuidade ao passado e não mantivesse com ele um vínculo substancial, não poderia viver no futuro. Tudo o que pertence apenas ao presente morre juntamente com ele (Bakhtin, 2003BAKHTIN, Mikhail. Os estudos literários hoje (Resposta a uma pergunta da revista Novi Mir). In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 359-366; p. 364., p. 362-363).

É nesse sentido que os tempos posteriores libertam o autor de seu tempo, especialmente por meio dos estudos literários. E, ao destacarmos esses dois tópicos do ensaio bakhtiniano de 1970 - a literatura como parte da cultura humana e a noção do grande tempo - convidamos os leitores a incorporá-los na leitura e reflexão dos artigos que passamos a apresentar. Como verão, tanto as fronteiras entre as diferentes esferas da atividade humana representadas nos discursos analisados são frágeis, como ficamos nos indagando que novos sentidos tais discursos terão no grande tempo.

Os três primeiros artigos do número elegem a obra de um autor para análise. O primeiro deles, já no título - “O cronotopo de Paris na poesia da primeira onda de emigrantes russos: um estudo de caso dos poemas de Irina Knorring”, aproxima o contexto da poeta em análise a problemas muito manifestos também na contemporaneidade: inúmeras ondas de emigração e refugiados por questões políticas, sociais e econômicas ao redor do mundo... O artigo é assinado por Daria Shchukina e Dorra Aouini, ambas da Saint Petersburg Mining University, Saint Petesburg, Federação Russa. As autoras focalizam justamente o modo como o novo cronotopo experienciado pela poeta Irina Knorring, na Paris pós década de 1920, se expressa em seus poemas, permitindo observar a trajetória de vida de emigrantes russos na capital francesa, representando espacial e temporalmente as experiências individuais e o contexto mais amplo da emigração russa como um todo.

Fabiano Tadeu Grazioli, da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Rio Grande do Sul, nos transporta de volta ao Brasil, especialmente o país de nossa infância, no artigo “Poesia e acervos orais na urdidura dos poemas de Batata cozida, mingau de cará, de Eloí Bocheco”. O texto recupera acervos orais conhecidos das crianças, a partir dos quais a poeta Eloí Bocheco produziu a coletânea de poemas cujo título são os versos populares em redondilha menor: Batata cozida, mingau de cará. O autor apresenta uma reflexão a respeito da poesia para a infância, dos aspectos lúdicos que representa e das próprias noções de oralidade, memória e folclore.

A seguir temos um artigo que, ao selecionar um autor da literatura brasileira, busca compreender qual o seu processo de criação. É Cecília Almeida Salles (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil), cujo projeto de pesquisa tem sido a crítica aos processos de criação, que assina “O processo de criação de João Anzanello Carrascoza: diálogos com Bakhtin”. A autora parte do conceito de criação como rede, ampliado pelo pensamento bakhtiniano sobre a multiplicidade de vozes, para estudar os arquivos de Carrascoza anteriores à publicação de cada uma de suas obras, buscando as questões que o movem em seu projeto literário.

Os dois artigos seguintes apresentam uma outra face dos estudos literários, a reflexão acerca de conceitos teóricos. Em “Realismo grotesco e corpo grotesco em Bakhtin”, Francisco Benedito Leite (Pontifícia Universidade Católica de Campinas, São Paulo, Brasil) aprofunda os sentidos dos conceitos bakhtinianos de realismo grotesco e corpo grotesco, recuperando o processo do pensador russo na elaboração de sua tese de doutorado; as abordagens do conceito por linguistas e semióticos contemporâneos nossos; e o significado de ambos no interior da obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. O profundo estudo se encerra examinando algumas manifestações do grotesco em obras literárias e de artes plásticas do judaísmo antigo e do cristianismo antigo e medieval, direta ou indiretamente citadas ou aludidas por Bakhtin.

“Mito e discurso mitológico nos estudos literários” é um bom exemplo de estudo fronteiriço entre cultura e literatura. Elaborado por Zhansaya Zharylgapov, Bibi Syzdykova, Ainda Kaiyrbekova, Azat Babashov e Katira Shakirova, todas da Karaganda Buketov University, Cazaquistão, o texto acompanha os sentidos tradicionais do mito, compara-os com neomitos contemporâneos e examina sua inserção nas narrativas literárias. A parte mais significativa e original do ensaio é a descrição dessas etapas no que se refere à literatura cazaque, atestando, entre outros aspectos, como os esquemas do mito influenciam a cultura como um todo.

A literatura de ficção científica, muitas vezes considerada pelos críticos um gênero “menor”, é o foco do artigo de Stener Carvalho Fernandes Barbosa (Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas, Brasil). No artigo “A ficção científica: o enunciador hiperperceptivo e a viagem do ponto de vista na referenciação”, o autor analisa enunciativamente um fragmento da narrativa Duna, de Frank Herbert, buscando mostrar como os superpoderes dos personagens podem ser explicados linguisticamente e como a teoria dos pontos de vista (PDV) pode contribuir para uma melhor avaliação do gênero.

Continuando no tema da ficção científica, temos o artigo “Organizações produtivas: a interação homem-máquina em Black Mirror”, produzido por pesquisadores do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, Rio de Janeiro, Brasil. Os autores, Georgia de Souza Assumpção, Carolina Maia dos Santos, Raquel Figueira Lopes Cançado Andrade e Mayara Vieira Henriques são mestres na área de Engenharia de Produção e Sistemas; Alexandre de Carvalho Castro é doutor na área da Psicologia Social. Essa transdisciplinaridade enriquece sobremaneira o artigo, que analisa dialogicamente a série televisiva Black Mirror. De início, os autores mostram como a ficção científica, de início um gênero literário, chega à rede midiática nos discursos cinematográticos, quadrinhos e jogos eletrônicos. A seguir, por meio de uma análise minuciosa e profunda, destacam o modo como a ficção científica, de modo geral, e a série, em particular, elaboram críticas à ciência existente, à sociedade futura e à forma como interagimos com a tecnologia no presente. Mais uma vez temos a tênue fronteira entre os campos, que se concretiza, novamente, no último artigo, se pensarmos especialmente nas tecnologias digitais.

Elizabeth Penha Cardoso, Diana Navas, Fábio Roberto Lucas e Maurício Pedro da Silva, todos do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Crítica Literária da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil, assinam o texto “A articulação de contextos curriculares e o uso de tecnologias digitais na construção de uma plataforma de Ciência Aberta”. Partindo de experiências exitosas com diferentes trabalhos digitais realizados durante a pandemia, os autores relatam uma prática de ensino-aprendizagem por meio de metodologias ativas e tecnologias digitais de informação e comunicação. No texto, mostram como têm colocado em diálogo noções e práticas da ciência aberta a serviço dos estudos literários, na constituição de uma plataforma digital de grande alcance a contextos acadêmicos e sociais heterogêneos. É a possibilidade de construção da ciência cidadã que se coloca nessa experiência admirável.

Cidadania responsável, para todos, nos encaminha para o próximo artigo “O termo competência nos documentos oficiais que normatizam a atuação do Tilsp: da hierarquização à especialização”, de Carlos Alberto Matias de Oliveira e Paulo Rogério Stella, ambos da Universidade Federal de Alagoas. Os autores examinam possíveis sentidos construídos acerca do termo competência de Tradutores e Intérpretes de Libras e Português em documentos oficiais produzidos ao longo dos últimos anos, mostrando deslocamentos de sentidos do termo no campo de trabalho desse profissional.

Enfim, como podem constatar, o número oferece exemplos notáveis da cultura de nossa época e da intersecção de discursos das diferentes esferas de atividade humana. Por isso, convidamos todos - leitores, autores e colaboradores - a responder ativamente a esses textos, saboreando e incluindo em suas pesquisas este conjunto. Trata-se de um número que congrega 15 pesquisadores de cinco diferentes universidades brasileiras (Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, PUCCAMP, UFMG, PUC-SP, URI-RS, UFAL), e 07 pesquisadores de universidades estrangeiras (Federação Russa, Cazaquistão).

Agradecemos, mais uma vez, o inestimável e constante apoio, auxílio e reconhecimento do CNPq, por meio da Chamada CNPq Nº 12/2022 - Programa Editorial, Proc. 405404/2022-0, e da PUC-SP, por meio do Plano de Incentivo à Pesquisa (PIPEq)/ Publicação de Periódicos (PubPer-PUC-SP) - 1º semestre de 2023. Edital PIPEq 11941/2023, solicitação 26267.

  • 1
    Na nova edição deste texto (2017), o título é “A ciência da literatura hoje (Resposta a uma pergunta da revista Novi Mir)”. Paulo Bezerra, o tradutor de ambas as edições, nos explica, entre outras coisas, que o termo russo (literaturoviédenie), traduzido por ciência da literatura nesta segunda tradução, “sintetiza história da literatura, teoria da literatura e crítica literária, três áreas correlatas da investigação literária (...)”. Cf. Bezerra (2017)BEZERRA, Paulo. Nota à edição brasileira (incluindo as notas de rodapé). In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017., nota de rodapé 2, p. 9.
  • 2
    Na tradução de 2003 (p. 393-410), Paulo Bezerra dá ao texto o título de “Metodologia das ciências humanas; na nova tradução de 2017BAKHTIN, Mikhail. Por uma metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 57-79. (p. 57-79), ele o denomina “Por uma metodologia das ciências humanas”.

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, Mikhail. Os estudos literários hoje (Resposta a uma pergunta da revista Novi Mir). In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 359-366; p. 364.
  • BAKHTIN, Mikhail. Metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal Introdução e tradução do russo de Paulo Bezerra. Prefácio à edição francesa de Tzvetan Todorov. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 393-410.
  • BAKHTIN, Mikhail. A ciência da literatura hoje. Resposta a uma pergunta da revista Novi Mir). In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 09-19.
  • BAKHTIN, Mikhail. Por uma metodologia das ciências humanas. In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017. p. 57-79.
  • BEZERRA, Paulo. Nota à edição brasileira (incluindo as notas de rodapé). In: BAKHTIN, Mikhail. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas Paulo Bezerra. Notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2017.
  • NUNES, Benedito. Ética e leitura. In BARZOTTO, V. Estados de leitura Campinas, SP: Mercado de Letras/ABL,1999. p.193-205.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023
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